Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
393/09.4TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: JUNÇÃO DE PARECER
CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SEIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 493º, 495º, 497º, 498º E 525º DO CPC
Sumário: I – Por interpretação extensiva do disposto no artº 525º do CPC, quer até por aplicação analógica do disposto no artº 693º-B do CPC, deve entender-se que a junção de pareceres em recursos interpostos para a 2ª instância só pode ocorrer, como data limite, com as alegações de recurso (se forem juntos pelo recorrente) ou com as contra-alegações (se forem juntos pelo recorrido).

II – A excepção do caso julgado pressupõe, nos termos do artº 497º, nºs 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

III – O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.

IV – Uma causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório.

1. A autora, A... , instaurou (20/8/2009) a presente acção declarativa (que adiante designaremos por acção 393/09 ou também por 2ª acção), com forma de processo ordinário, contra os réus, B... e seu marido C... (cujos termos e pedido adiante nos referiremos).

2. Na sua contestação, os RR. defenderam-se por impugnação e por excepção.

Na defesa por excepção os RR. invocaram, além do mais e para aquilo que aqui interessa, a excepção de caso julgado, por alegada existência identidade de partes, pedido e causa de pedir entre a presente acção e a acção que correu termos no mesmo Tribunal sob o nº 483/2002 (aquela no 1º Juízo e esta no 2º Juízo, e a cujos termos e pedidos adiante também nos referiremos mais pormenorizadamente).

3. Na réplica, a A. defendeu, além do mais, a inexistência de tal excepção.

4. Na sequência de convite judicial formulado para o efeito, a autora veio (fls. 174/175) deduzir incidente da intervenção principal provocada, chamando há acção, como seus associados, D... e mulher E..., F..., G... e H....

5. Intervenção essa que veio a ser admitida pelo despacho de fls. 186/187.

6. Os referidos chamados vieram, entretanto, declarar aceitar tal chamamento, fazendo seus os articulados apresentados pela autora (fls. 198/199).

7. Mais tarde, no despacho saneador julgou-se procedente a excepção de caso julgado invocada pelos RR., absolvendo-se, em consequência, estes da instância.

8. Não se conformando com tal decisão, a autora e os demais aludidos intervenientes dela apelaram.

9. Apelantes esses que concluíram as correspondentes alegações de tal recurso nos seguintes termos:

[…]

10. Contra-alegaram os RR., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

11. Já após os autos terem sido conclusos ao relator para elaborar o projecto de acórdão, vieram a autora e os referidos intervenientes (que a ela se associaram) juntar (fls. 318/354) aos mesmos um parecer emitido, sobre a questão objecto deste recurso, pela insigne professora doutora I....

12. Notificados do mesmo, vieram os RR. opor-se à sua junção devido à sua alegada extemporaneidade, contra o que ripostaram a autora e os intervenientes defendendo a tempestividade do mesmo.

13. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) Questão prévia/da junção do parecer pelos apelantes.

Como supra (nº 11 do ponto I) deixámos assinalado, já após os autos terem sido conclusos ao relator para elaborar o projecto de acórdão vieram a autora e os referidos intervenientes (que a ela se associaram) juntar (fls. 318/354) um parecer emitido, sobre a questão objecto deste recurso, pela insigne professora doutora I....

Notificados do mesmo, vieram os RR. opor-se à sua junção devido à sua alegada extemporaneidade, contra o que ripostaram a autora e intervenientes defendendo a tempestividade do mesmo.

E a questão prévia que se coloca, desde logo, consiste em saber se deve ou não admitir-se a junção aos autos dedo referido parecer?

Vejamos.

Começaremos por sublinhar que, dada a data em que a presente acção foi instaurada, o presente recurso foi processado e será julgado já à luz da nova reforma introduzida pelo DL nº 303/07 de 24/8 (cfr. artºs 11, nº 1, e 12º, nº 1).

Por reflectirem aquilo que pensamos a esse respeito, servirmos das palavras de Abrantes Geraldes (in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, pág. 217”) quando afirma “constata-se que não foi transposta para o artº 693-B.º a referência à junção de pareceres que expressamente constava do nº 3 do artº 706.º (da anterior reforma de 95, enfatizando nós, que foi na sua totalidade revogado pelo artº 9.º al. a) do citado DL nº 303/07). Apesar disso, foi mantida a redacção da al. d) do nº 1 do artº 700.º que atribui ao relator a função de autorizar a sua junção.

Desconhecem-se os motivos que presidiram a esta opção, confrontando-nos agora com a problemática da admissibilidade de apresentação de pareceres que anteriormente não suscitava qualquer dúvida,

No que respeita ao recurso de apelação a questão está, em parte, resolvida pelo disposto no artº 525.º. Uma vez que, segundo este preceito, a junção de pareceres pode ser feita na 1ª instância, em qualquer altura, basta que acompanhem as alegações que necessariamente são apresentados no tribunal a quo.

, porém, terá de se considerar eliminada a possibilidade que antes existia (artº 706.º, nº 2) de serem juntos pareceres até ao momento em que se iniciam os vistos, a não ser que, para o efeito, prevaleça a norma do artº 700.º, nº 1 al. al. e), que confere ao relator a função de autorizar ou recusar a junção de pareceres, atribuindo-lhe, assim, algum conteúdo útil.” (sublinhado nosso).

Na reforma de 95 também já existia uma norma (o artº 700, nº 1 al. d)) de teor idêntico ao actual artº 700, nº 1 al. e), do CPC, sendo que, como se viu, o anterior artº 706 (vg. o seu nº 2) não foi transposto para a actual reforma. O que significa que a referida norma (o artº 700, nº 1 al. e)) não se mostra, a nosso ver, relevante para a decisão da problemática aqui questionada.

Em sede de recurso, na reforma de 95 (introduzida pelo DL nº 329-A/95 de 12/12), também os documentos supervenientes poderiam ser, à semelhança dos pareceres, juntos até se iniciarem os vistos (cfr. o artº 706º, nº 2)

Porém, nesse domínio – relativamente à junção de documentos em sede de recursos -, a actual reforma em vigor, introduzida pelo citado DL nº 303/07, o legislador introduziu, essencialmente, duas grandes alterações: por um lado, ampliou a possibilidade da instrução documental dos recursos às situações contempladas nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º, e, por outro, estabeleceu como limite temporal para esse junção as próprias alegações de recurso.

No que concerne a esta última alteração, tal significa que os documentos destinados a instruir os recursos devem ser sempre, e em qualquer circunstância, juntos com as alegações e/ou as contra-alegações, e não em momento posterior. É isso mesmo que se extrai do seguemento do referido normativo (o artº 693º-B): “as partes apenas podem juntar documentos às alegações…”. (Nesse sentido Abrantes Geraldes, in “Ob. cit., pág. 216”).

Aliás, percebe-se que assim seja, já que tal vai ao encontro de um dos três objectivos que declaradamente (cfr. preâmbulo do referido DL que a introduziu) norteou a referida reforma dos recursos no Processo Civil: “celeridade processual”. E daí que, ao contrário do que sucedia com a anterior, na actual reforma os vistos só ocorrem após o juiz relator tiver elaborado o projecto de acórdão (cfr. artº 707º do CPC).

E se assim é para a junção de documentos, não vemos, por razões de coerência e unidade até do sistema jurídico, que assim não seja para a junção dos pareceres. As razões de celeridade fazem-se sentir em ambos os casos.

Não faria, a nosso ver, sentido que os documentos em sede de recurso para 2ª instância só possam ser juntos com as alegações ou contra-alegações de recurso, e os pareceres pudessem ser juntos posteriormente. E mais ainda, como acontece no caso, que essa junção possa ocorrer quando os autos se encontram já conclusos ao relator para elaboração do projecto de acordão. Veja-se a situação a que nos conduziria solução contrária, se o relator já tivesse elaborado o projecto ou já tivesse iniciado a elaborar o mesmo…(já vimos que os vistos agora só correm depois da elaboração do projecto de acórdão). Aliás, a junção do referido parecer veio mesmo in casu atrasar o andamento dos autos, pois, como resulta do que supra se deixou expresso, veio dar origem à “questão incidental” de os apelados (que já haviam junto as suas contra-alegações), notificados da junção desse parecer tivessem vindo suscitar a questão prévia de sua tempestividade, pugnando pela sua inadmissibilidade precisamente com o fundamento da sua extemporaneidade, o que motivou ainda, com base nos respeito do princípio do contraditório quanto a tal questão, que os apelantes tenham vindo, em resposta, defender a sua tempestividade.

E daí que, quer por interpretação extensiva do disposto no artº 525, quer até por aplicação analógica do disposto no artº 693º-B do CPC, entendamos que a junção de pareceres em recursos interpostos para a 2ª instância só possa, como data limite, ocorrer com as alegações de recurso (se forem juntos pelo recorrente) ou com as contra-alegações (se forem juntos pelo recorrido).

Logo, face ao exposto, somos levados a concluir que a junção do aludido parecer pelos apelantes se mostra extemporânea.

Desse modo, não se admite a sua junção, o qual deverá, assim, oportunamente ser desentranhado dos autos e remetido àqueles.


***

B) De facto.

Para além daqueles que se deixaram exarados no ponto I do relatório que antecede, para melhor compreensão e decisão do objecto do presente recurso importa ter, essencialmente, ainda presentes os seguintes factos (que resultaram das peças processuais e documentos contidos nos autos):

[…]

5. Foi então instaurada a presente acção (a 2.ª, com o nº 393/09), pela autora A... contra os mesmos RR. daquela 1ª acção (no que depois, como vimos, foi acompanhada pelos demais intervenientes acima identificados que ela se associaram).

E nesta 2ª acção, a referida A., terminou a sua petição inicial pedindo:

a) Que se reconheça a qualidade sucessória da A., como legítima herdeira, na herança indivisa aberta por óbito de J..., falecido em Abril de 1998, em direito de representação de sua mãe, pré-falecida, L...;

b) Que se declare que as quantias referidas no ponto 74. da matéria de facto assente no acórdão junto - aquele do STJ - (39.981.350$00/€199.426,13 e 28.064.783$20/€189.986,60), num total de € 389.412,73, constituíram doações do J... aos Réus e, em consequência, serem os mesmos condenados a relacionarem tais verbas no inventário por óbito do doador, para efeitos de avaliação e igualação da partilha (colação).

c) Subsidiariamente, a condenação dos RR. a pagar a cada um dos herdeiros, na proporção das suas quotas, a quantia de 389.412,73, acrescida de juros legais vencidos e vincendos desde a data do seu enriquecimento sem causa.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte (e para aquilo que ora importa):

Depois de fazer o mesmo historial que conduziu à instauração da 1ª acção e descrever os factos dados como assentes nesta acção, vem agora alegar que a transferência das referidas quantias da conta do de cujus para as contas da R. B... foi efectuada a título gratuito, na sequência de diversas doações que o primeiro fez à segunda.

Quantias (doadas) essas que, por ultrapassarem largamente o valor da quota disponível do de cujus, terão que ser relacionadas no sobredito inventário, para igualação das partilhas.

Porém, para o caso de não se vir a demonstrar estar-se perante doações, então sempre se terá de concluir que não houve qualquer razão que justificasse tais transferências do património mobiliário, já que não houve empréstimos, pagamentos de serviços ou qualquer outro contrato que estivesse na base das mesmas.

A ser assim, estão os RR. enriquecidos à custa do património do falecido J..., o qual, por morte deste, passou a ser pertencente dos seus herdeiros; enriquecimento esse que, assim, por ser sem causa, obriga os RR. a indemnizarem a autora e demais herdeiros, na proporção da quota de cada um deles, no montante equivalente às referidas quantias, acrescidas de juros de mora.


***

C) De direito.

1. Do mérito do recurso.

1.1 É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.
É também sabido que, dentro de tal âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, exceptuando-se aquelas questões cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras (cfr. 1ª parte do nº 2 do artº 660 do CPC).

Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido de que no conceito questões de que o tribunal deva conhecer, nos termos do artº 660 do CPC, não se encontram englobados os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso verifica-se que a única verdadeira questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se estamos ou não perante uma situação de excepção de caso julgado?

No despacho recorrido entendeu-se que tal situação ocorria por haver identidade entre os sujeitos, os pedidos e as causas de pedir nas duas acções, enquanto que os apelantes defendem que essa identidade só ocorre em relação aos sujeitos.
1.2 Por ter interesse para o caso em apreço, começaremos, antes de mais, por fazer uma abordagem teórica dessa controversa figura processual, caracterizando-a.

A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objecto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.
Lembraremos antes que, após a revisão do Código de Processo Civil efectuada pelos DLs nºs 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/9, a figura do caso julgado passou a constituir uma excepção dilatória – ao contrário do que sucedia até então em que assumia a natureza de excepção peremptória (cfr. artº 494, al. i), do CPC, e cuja diploma nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).
O caso julgado constitui, assim, uma das excepções previstas na lei adjectiva, que é de conhecimento oficioso e cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artºs 495 e 493, nº 2).

Excepção essa que pressupõe, nos termos do artº 497, nºs 1 e 2, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua o prof. Anselmo de Castro, (in “Processo Civil Declaratório, Vol. II, pág. 242”), ao escrever “tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.
O caso julgado, como refere o prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 307”), consiste, assim, na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário, ou então, como ensina o prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305 e 306”), o caso julgado consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social.
O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal (vidé, por todos, o prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado, vol. III, pág. 93”).
Compreende-se, desse modo, a razão de tal autoridade do caso julgado pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
Tanto mais que a decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr., a propósito, o prof. Alberto dos Reis, in “Ob. cit., pág. 94”).
Perante tais efeitos do caso julgado torna-se imperioso estabelecer, com nitidez, o conceito de repetição de uma causa.
Tal resposta é-nos dada pelo artº 498, nº 1, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Por seu lado, os nºs 2, 3 e 4, desse mesmo preceito, concretizando melhor, dispõem que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”. Acrescentando-se, no último normativo, e para o caso que aqui nos importa, que “nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real”.
Num esforço de ainda maior concretização daquele tríade de conceitos, podemos dizer, tal como se escreveu, entre outros, nos Acordãos do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Coimbra, respectivamente, de 6/1/94 e 9/12/81, (in, respectivamente, “CJ, ano IX, T1 - 198 e CJ, ano X, T5 - 79”), que as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as partes assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa acção e réus na outra (cfr., por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 319”).
Por sua vez, e tal como se escreveu também no 1º daqueles arestos, haverá identidade de pedidos “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter” e que a identidade da causa de pedir “pressupõe que o acto ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico”.
Há identidade de pedidos quando numa e noutra acção se pretende obter o mesmo efeito jurídico, ou seja, terá de ser o mesmo direito subjectivo cujo reconhecimento se pretende, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada.

Como escreve Mariana Gouveia (in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, págs. 493 e 509”), a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, mas segundo o critério misto não pode deixar de prescindir de uma perspectiva material dos limites das normas e dos seus nexos, por referência ao direito substantivo, nem dos limites dos factos, tal como são apresentados na sentença, sendo este critério o que melhor responde aos problemas de concurso aparente de normas.
Haverá, assim, que procurar a identidade da causa de pedir na questão fundamental levantada nas duas acções (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/10/89, in “BMJ nº 390 - 379”). O que significa, que à causa de pedir apenas interessam os factos fundamentais ou essenciais, porque juridicamente relevantes, pois que quanto aos factos instrumentais eles são em si mesmo insignificantes, relevando apenas para a demonstração da realidade dos fundamentais.
Assim, em resumo e noutra linguagem, podemos dizer que a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida) - em consonância, assim, com o princípio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico -, enquanto que o pedido se reconduz ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal - trata-se de um elemento fundamental, considerando as imposições do princípio do dispositivo: são os interessados que accionam os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjectivos invocados garantem -, e, por fim, que o conceito de sujeito a atender para o efeito coincide com a noção (adjectiva) de parte.
A excepção de caso julgado consiste, assim, e para concluir, na constatação de que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (cfr. artº 677).
Porém, e tal como já resulta do que supra deixámos expresso, importa dizer que a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado. Ambos são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, existindo mesmo hoje uma larga corrente de opinião defendendo que para que autoridade do caso julgado actue não se exige sequer a coexistência da tríplice identidade referida no artº 498 (cfr., a esse propósito, Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”; Ac. da RC de 27/9/05, in www.dgsi.pt; Ac. da RC 15/5/2007, in “Rec. Agravo nº 80/95 e o prof. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., págs. 320/321.”).

No desenvolvimento daquela afirmação, escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 325”), que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito” enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão” (...). “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

No mesmo sentido vai o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ nº 325, págs. 49 e ss”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente”. (Vidé ainda, a propósito, Ac. do STJ de 26/1/1994, in “BMJ nº 433 – 515” e Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”).

E tal questão (da autoridade do caso julgado) conduz-nos à polémica e muito discutida questão da extensão ou alcance do caso julgado.

Nos termos do disposto no art 671, nº 1, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele…” (sublinhado nosso).

Por sua vez, sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado” preceitua o artº 673 que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte que decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição de verifique, o prazo se preencha ou o facto de pratique”.

Resulta do exposto, que os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender-se aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - valendo como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu (cfr., a propósito, e para maior desenvolvimento, os profs. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., pág. 285”; Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo em Processo Civil, 1968” e Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, págs. 309  a 316”).

Na referida vexata quaestio vem hoje ganhando predominância a corrente que perfilha o entendimento mitigado no sentido de que muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não devendo, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se, apenas, à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, mas sendo, todavia, já de estender-se também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado (cfr., entre muitos, e para maior desenvolvimento, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55 e 56”, e a abundante doutrina aí citada; Ac. do STJ de 28/5/ 2002, in “Agravo nº 1043/02, 6ª sec., Sumários, 5/2002”; Ac. do STJ de 26/2002, in “Agravo nº 213/02, 2ª sec., Sumários 9/2002” e Ac. da RC de 18/10/94, in “BMJ nº 440 – 545”).

Daí que, e como se escreveu no Ac. do STJ de 3/4/1991 (in “AJ, 18º - 9”), no nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só possa ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga, tal como estipula o citado artº 673.

Porém, muitas vezes, e como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 683”), “a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº 673). Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”.

Daí que igualmente vem sendo defendido que não seja de excluir recorrer à parte motivatória da sentença (ou seja, aos seus fundamentos) sempre que tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exacto conteúdo da sentença em causa (vidé, a propósito, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55”; Ac. da RP de 28/1/82, in “CJ, Ano VII, T1 – 266” e os profs. Manuel de Andrade e A. Varela, in “Obs. cits., respectivamente, págs. 318 e 696/697”).

1.3. Pois bem, tomando por base tais considerações de carácter mais geral sobre tão controversa figura processual (e que por isso, como logo no inicio expressámos, se nos afiguram úteis para melhor compreensão e delimitação da problemática que nos foi colocada em “mãos” com o presente recurso), focalizemo-nos, agora, no caso em apreço.

A questão suscitada e que nos foi submetida a recurso situa-se, desde logo, ao nível da excepção de caso julgado (na sua função negativa).

Havendo, agora, consenso de que as duas acções são idênticas quanto aos sujeitos, a controvérsia gira à volta da questão de saber se essa identidade também ocorre em relação aos pedidos e às causas de pedir de ambas as acções.

Tendo por base a materialidade factual que acima se deixou descrita, dela ressalta que na 1ª acção os AA., o essencial, pretendiam, por um lado, obter a condenação dos RR. a restituírem as importâncias monetárias em causa à herança, a fim de serem relacionadas e partilhadas, aberta por óbito do sobredito J..., e, por outro, ainda que a ré, como herdeira, visse perdido o direito de beneficiar dessa quantias em benefício dos restantes co-herdeiros. Pretensões essas que fundamentaram, por um lado, no facto de tais importâncias pertencerem à herança do de cujus (por se encontrarem integradas no seu património aquando do seu falecimento), e, por outro lado, no facto de a ré estar a sonegar à herança essas importâncias, ocultando, de forma dolosa, as mesmas. Os efeitos jurídicos que os AA. pretendiam retirar dessa alegada sonegação, pressupunham, naturalmente e tal como decorre do artº 2096 do CC, que as referidas importâncias pertencessem à herança, tal como alegaram e como pretendiam ver reconhecido nessa 1ª acção.

Acção essa que, como vimos, veio a ser julgada improcedente pelo STJ com base nos fundamentos que supra se deixaram transcritos, ou seja, e desde logo, por os AA. não terem logrado provar que tais importâncias pertenciam ao dito acervo hereditário.

Porém, nesta 2ª acção, a A. e os demais intervenientes seus associados pretendem, como efeito jurídico obter, trazer as referidas importâncias à colação (artº 2104 do CC) para efeitos de igualação da partilha no inventário do referido de cujus, alegando-se para o efeito, agora, que as referidas importâncias foram doadas pelo de cujus à ré. Ou seja, nesta acção a A. e os demais intervenientes já não invocam que as referidas importâncias são pertença da herança, mas antes aceitam que elas são pertença da ré, invocando, como causa de pedir daquela sua pretensão, que a propriedade das mesmas se transferiu, ainda em vida de ambos, da esfera jurídica do ora inventariado para a esfera jurídica da ré, em consequência de um contrato de doação que o primeiro fez à segunda.

É sabido que a colação (efeito agora pretendido pela A. e demais intervenientes seus associados) tem como função apontar no sentido da igualação da partilha entre todos os herdeiros, partindo da presunção ter sido a vontade do doador a de apenas antecipar ao herdeiro donatário o que (ou parte de que) este viria a obter à data da morte do seu autor. O escopo fundamental desse instituto visa promover a igualação entre os herdeiros legitimários, procurando-se através dele fazer coincidir o resultado da partilha com aquele a que se chegaria se não tivera lugar a doação. Porém, a restituição na colação faz-se, como regra, em valor, e não em espécie, sendo que esta já normalmente (mas não obrigatoriamente) acontece em caso de haver lugar a redução por inoficiosidade (cfr., por todos, o prof. Jorge Leite, in «Algumas notas sobre “A Colação”, Coimbra, 1977, págs. 11 e 17»).

Por fim, resta ainda referir, que nesta 2ª acção, foi formulado, em termos subsidiários, ou seja, para caso de o primeiro não proceder, tendo como causa de pedir o enriquecimento sem causa, o pedido de condenação dos RR. a pagarem a cada um dos herdeiros, na proporção das suas quotas, a quantia de 389.412,73€, acrescida de juros mora legais vencidos e vincendos.

Ora, perante tal, e salvo sempre o devido respeito por opinião em contrário, é para nós patente não existir, no que concerne ao núcleo essencial ou relevante dos factos que os integram, identidade entre os que pedidos e as respectivas causas de pedir nas duas acções, mostrando-se, ao invés, distintos.

E sendo assim, não se verifica a excepção de caso julgado (quer na sua função negativa, tal como foi decretada na 1ª instância, quer mesmo na sua função positiva, de autoridade de caso julgado), não havendo, desse modo, perigo de serem proferidas decisões contraditórias ou repetitivas.

Termos, pois, que, face ao exposto, se decide conceder provimento ao recurso, revogando-se a, aliás, douta decisão da 1ª instância, devendo, em consequência, os autos prosseguir os seus posteriores trâmites legais.


***

III- Decisão


Assim, em face do exposto, acorda-se:

a) Em não admitir o parecer que os apelantes juntaram a fls. 318/354, o qual deverá, assim, ser oportunamente desentranhado dos autos e remetido àqueles.

b) Em conceder ao provimento do recurso, revogando a decisão recorrida da 1ª instância, e ordenar que, em consequência, os autos prossigam os seus posteriores trâmites legais.

Custas pelos RR./apelados.

Isaías Pádua (Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo