Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1073/21.8T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
IMPEDIMENTOS DA PROVA TESTEMUNHAL
REQUISITOS DA POSSE
SUCESSÃO NA POSSE
PRESUNÇÃO DERIVADA DE POSSE ANTERIOR A REGISTO DE AQUISIÇÃO A FAVOR DE OUTREM
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 89.º A 101.º, DO CÓDIGO DO NOTARIADO
ARTIGOS 413; 495.º E SEG.S E 607.º, 5, DO CPC
ARTIGOS 342.º, 1; 349.º; 350.º, 1 E 2; 392.º A 396.º; 1251.º; 1259.º; 1268.º, N.º 1; 1276.º E SEG.S; 1287.º; 1289.º; 1293.º E SEG.S; 1296.º; 1298.º E SEG.S; 1316.º E 1317, C), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. - A não indicação pelo recorrente das passagens da gravação a que alude a al.ª a) do n.º 2 do art.º 640.º do NCPCiv., nem nas conclusões do recurso, nem na antecedente alegação/motivação, ademais sem apresentação de qualquer transcrição de excertos da gravação, obriga, por força de disposição legal imperativa, à rejeição imediata do recurso na parte afetada, não sendo caso de convite ao aperfeiçoamento conclusivo da impugnação da decisão de facto.

2. - Na ação de reivindicação colhem aplicação as normas de índole probatória do regime geral previsto no CCiv. e no NCPCiv., designadamente quanto a inadmissibilidades e impedimentos da prova testemunhal, e não qualquer regime especial restritivo, nomeadamente previsto no Código de Notariado.

3. - A posse, adequada a fazer operar o instituto da usucapião, tem de traduzir-se num “corpus” – prática de atos materiais, sobre a coisa, correspondentes ao exercício do direito – e num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder, sobre a coisa, correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, devendo ser exercida por certo lapso temporal e revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade.

4. - Por morte do possuidor, sendo a posse prosseguida por um seu filho, nos mesmos moldes do pai, aquele continua na posse do progenitor, dando-se a sucessão na posse.

5. - Ainda que haja registo de aquisição a favor de outrem, sendo o início da posse muito anterior a tal registo, prevalece a presunção de propriedade decorrente dessa posse.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa comum contra

BB, também com os sinais dos autos,

pedindo que:

a) Seja declarada a aquisição originária do direito de propriedade do A. sobre o prédio que identifica – prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ...58.º da secção L e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37, sito no ..., ... –, aquisição essa por via de usucapião;

b) Seja a R. condenada a restituir o prédio ao A., livre e devoluto de pessoas e bens, no seu estado primitivo, a expensas daquela.

Alegou, em síntese, que:

- o A. é proprietário de diversos prédios rústicos, melhor identificados no art.º 1.º da petição inicial, que foram adquiridos (à exceção do “L-153”) por seu pai ao pai e a um tio avô da R., o que ocorreu na década de setenta do século XX;

- tais prédios, tal como o prédio em causa nos autos (“L-...58”), eram utilizados como um só, e desde, pelo menos, o ano de 1971 passaram a ser usados pelo pai do A. e, após o falecimento deste, pelo próprio A., pois que pensavam que também havia sido adquirido o último deles aquando da compra dos terrenos identificados no art.º 1 da petição;

- porém, em outubro de 2020, a R. ocupou aquele prédio inscrito na matriz sob o art.º ...58.º da secção L, destruindo parte do muro de xisto, instalando novas divisórias de rede metálica e iniciando trabalhos para proceder à respetiva exploração agrícola;

- daí a necessidade da presente ação, destinada à condenação da R. a reconhecer a aquisição pelo A., por usucapião, do direito de propriedade sobre o imóvel mencionado, com a consequente restituição.

A R. contestou, concluindo por dever a ação improceder, para o que deduziu impugnação da matéria vertida na petição inicial, alegando que é a única proprietária do imóvel “L-...58”, o qual sempre esteve fisicamente dividido do prédio “L-...59”, embora não vedado.

Foi admitida a intervenção principal provocada de CC, marido da R., com os sinais dos autos [nos termos do disposto nos art.ºs 33.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 316.º, n.º 1, 318.º, n.º 2, e 320.º do NCPCiv. e 1682.º-A, n.º 1, al.ª a), do CCiv.].

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com indicação do objeto do litígio e dos temas de prova, após o que foi realizada a audiência final.

Seguiu-se a sentença (datada de 02/04/2024), com o seguinte dispositivo:

«(…) julga-se a ação totalmente procedente e, em consequência decide-se:

a) Condenar os Réus BB e marido CC a reconhecer o Autor AA como único dono e legítimo proprietário do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...58 da secção L e descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ...37, sito no ..., ..., ...;

b) Condenar os Réus a entregar o prédio melhor identificado na alínea anterior ao Autor, livre de pessoas e bens e no seu estado primitivo, sendo que qualquer custo relativo às diligências necessárias a tal entrega nesses moldes será a cargo dos Réus.».

Desta decisão veio a R., inconformada, interpor o presente recurso, apresentando alegação, com as seguintes

Conclusões ([2]):

«(…)

IV. O Autor da aquisição por usucapião do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...58-L da freguesia ..., concelho ..., tem origem numa alegada aquisição, em 1971, desse artigo matricial, conjuntamente com a aquisição do artigo ...59-L, a um tio-avô da Ré, que identifica como DD.

V. Estando convencido de que o artigo ...59-Ll e ...58-L, constituíam um único prédio, o inscrito na matriz sob o artigo ...59-L, uma vez que entre estes dois artigos matriciais não existia divisão física.

VI. Ressalta à evidência e o pai do Autor e o Autor em seguida não podiam ter deixado de constatar que a área do artigo ...59-L (1,075 ha) era cerca de metade da área do prédio na sua globalidade (artigos ...58-L e ...59-L) - 2,125 ha, não sendo, pois, crível que nem o pai do Autor, nem o Autor se tenham apercebido de que não havia correspondência de áreas entre o artigo matricial e a área do prédio que consideravam como um único.

VII. O Autor que adquiriu o prédio em questão nos autos (L-...58) a um tio avô da Ré, de nome DD.

VIII. A bisavó da Ré EE teve 4 filhos, 2 a quem foi posto o nome da ..., outro chamado FF e o avô da Ré, GG.

IX. Pelo que tal facto não poderia ter sido considerado como provado. Tal facto foi impugnado pela Ré, até porque a Ré não tinha nenhum tio avô de nome DD, facto que aliás carece de prova documental, - artigo 364º do Código Civil.

X. Tal facto embora impugnado pela Ré veio a ser considerado provado, como ocorreu.

XI. E só por aí se pode aquilatar da independência, do conhecimento da veracidade dos depoimentos das testemunhas do Autor.

XII. A fundamentação da matéria de facto esta assentou nas declarações de parte do Autos e nos depoimentos das testemunhas ouvidas, excepção à testemunha “HH” e ainda fotografias juntas.

XIII. Acontece que a testemunhas são familiares próximas do Autor, e por todo o depoimento das mesmas perpassa a ligação familiar muito próxima, isto para além do desconhecimento do facto inicial a aquisição do prédio em 1971, cujo conhecimento apenas é indirecto.

XIV. As testemunhas em causa que prestaram o seu depoimento nos autos foram:

--- II (irmã do Autor);

--- JJ (filha do Autor);

--- KK (sobrinho do Autor).

XV. O meio próprio para reconhecimento do direito de propriedade por usucapião consiste na escritura de justificação notarial previsto e regulado nos artigos 89º a 101º do Código do Notariado.

XV. E nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96º, 84º e 68º, não podem ser testemunhas: os cônjuges, os parentes e afins, na linha recta ou em 2º grau da linha colateral, tanto do notário que intervier no instrumento como de qualquer dos outorgantes, representantes ou representados – Artigo 68º, nº 1, alínea e) do Código do Notariado.

XVI. Ou seja, nenhuma das testemunhas ouvidas poderia ser testemunha (declarante) no processo de justificação notarial

XVII. Entendemos que este regime de incapacidade, inabilidade deve também ser aplicável em processos judiciais em que se pede o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

XVIII. O que bem se compreende, pois não basta aos declarantes, beneficiários da usucapião alegarem que a sua posse decorre do direito de propriedade, ou que agiram como se fossem proprietários.

XIX. Esse direito de propriedade tem de ser reconhecido ou tido como tal pela comunidade, pela generalidade das pessoas do lugar, da população.

XX. É que os actos alegadamente praticados pelo pai do Autor e posteriormente por ele, Autor, não são por si só e objectivamente, geradores da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

XXI. Porquanto, poderiam ocorrer numa eventual situação de arrendamento, comodato, ou mesmo decorrer de uma mera tolerância do legítimo proprietário do prédio, sem que isso confira ao possuidor do prédio o direito a adquirir por usucapião.

XXII. Para que tal ocorra os vizinhos, a comunidade, a generalidade das pessoas do lugar e que conhecem o prédio e o seu possuidor têm de ter a convicção, que até pode ser errada, de que ele o possui e age como seu dono e legítimo proprietário, e não um simples detentor.

XXIII. Como dispõe o artigo 1253º do Código Civil são tidos como detentores ou possuidores precários:

d) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;

e) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

f) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome e outrem

XXIV. E esta posse não é geradora do direito de aquisição da propriedade por usucapião.

XXV. Só a posse titulada, de boa fé, pacífica e pública pode ser geradora do direito de aquisição por usucapião. E a prova dessa posse titulada, de boa fé, pacífica e pública, não pode ser feita única e exclusivamente com as declarações do possuidor e dos familiares próximos, conforme estatui o artigo 68º do Código do Notariado.

XXVI. E a posse invocada pelo Autor, em questão nos autos não é uma posse titulada, ao contrário do sustentado na sentença objecto do recurso, pois embora não alegado expressamente, a aquisição do prédio (L-...58) em questão só pode ter sido oral, pois não foi junto ao processo qualquer documento ou contrato que comprove a aquisição.

XXVII. Constitui jurisprudência fixada que a posse titulada não pode ser fundada numa compra e venda verbal. Veja-se a este propósito o que se diz no Ac. Do STJ de 09-10-2003, proferido no Processo 03B1415:

“….”

IV- Não é titulada a posse fundada num contrato-promessa de compra e venda – que não é, em si mesmo, em abstrato, um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade – nem num negócio de compra e venda verbal.

XXVIII. E também não é uma posse pública, pois a posse pública adquire-se pela prática reiterada, com publicidade (…), dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor …” Acórdão do STJ de 21-10-2010, proferido no Processo 120/2000.S1-7ª Secção.

XXIX. E esta publicidade traduz-se, no nosso modesto entender, na consideração pela comunidade, pelos vizinhos, pelas pessoas do lugar em geral que o possuidor é o legitimo dono da propriedade e não um mero possuidor precário, pois também este (possuidor precário) pratica ou pode praticar os mesmos actos do possuidor que age como dono ou proprietário.

XXX. Não basta, pois, que o possuidor cultive o terreno, o explore, trate dele, se não existir publicidade de que essa posse se traduz num direito de propriedade.

XXXI. Não foi apresentada qualquer testemunha da população do ..., qualquer vizinho, que pudesse vir dizer que o Autor e antes dele o seu pai, era considerado pelas pessoas, pela população como proprietário do prédio. Não foi apresentada como testemunha qualquer amigo que, como invocado, tivesse sido recebido e participado em festas no prédio.

XXXII. Não se pode concluir, como se faz na douta sentença recorrida, que “ … a população do ... sabia que o pai do autor utilizava a tapada e aí tinha uma casa, onde cultivava o terreno e tinha gado, sendo que tal sempre foi do conhecimento da população”

XXXIII. Porquanto nenhuma testemunha da população do ..., com excepção dos familiares veio depor.

XXXIV. Também não foi apresentada qualquer foto do interior da edificação existente, ou sequer com a porta aberta, em que, alegadamente se realizavam festas e se recebiam amigos e onde o onde o pai do Autor dormia com regularidade, sendo que algumas das fotos, foi reconhecido, foram tiradas no prédio L-...59.

XXXV. A Ré é proprietária de vários prédios naquela área, nomeadamente de outros imóveis que confinam uns com os outros e a sul e oeste com o prédio dos autos (L-...58), os quais totalizam dezenas de hectares e não se encontravam delimitados uns dos outros sendo contíguos

XXXVI. E todos eles eram pastorados e/ou explorados por outras pessoas com tolerância da Ré e antes dela pelo seu pai., como, aliás, pode dizer a única testemunha ouvida fora do circuito familiar, cujo testemunho é descrito como “confuso e evasivo”, relatou pastorear aquela área, desconhecendo a situação do terreno em causa nos autos.

XXXV. O que pelo menos demonstra que, residindo no ..., não reconhecia o Autor como dono daquele prédio, reconhecendo pastorear terrenos da Ré.

XXXVI. Sendo certo, aí sim que toda a população do ... os tinha, pai da Ré e posteriormente a Ré, e tem por donos desses prédios.

XXXVII. A construção existente no local nunca chamou a atenção da Ré, e antes dela por seu pai, por que se encontra edificada numa extrema do artigo ...58-L, na zona de fronteira com o artigo ...59-L, não sendo perceptível, a olho nu em qual dos prédios se situava.

XXXVIII. Deste modo, a prova produzida nos autos, não se revela idónea à fixação da matéria de facto, dos autos, designadamente os factos provados sob os números 3 e 6 a 15.

XXXIX. Não se mostram pois demostrados o factos geradores da aquisição pelo autora da propriedade do prédio L-...58 por usucapião.

Vejamos:

XXXX. Entre as formas de aquisição da propriedade encontra-se a usucapião – artigo 1316º do Código Civil.

XXXXI. O direito de propriedade traduz-se no gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem – Artigo 1305º do Código Civil.

XXXXII. Dispõe o artigo 1387º do Código Civil que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

XXXXIII. O artigo 1251º do Código Civil, por seu lado dispõe que a “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real.

XXXXIV. Mas não basta este exercício de facto de atos que correspondem ao exercício do direito de propriedade. A lei exige ainda a demonstração que o detentor tem a intenção (animus) de exercer um direito real sobre a coisa, não apenas o poder de facto, prova que em nosso entender não foi feita.

XXXXV. E quanto ao modo de aquisição da posse, de acordo com o disposto no artigo 1263º do Código Civil a posse pode ser adquirida:

-- através da prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito ou pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor.

XXXXVI. A posse invocada pelo Autor não é titulada, pois como se diz no Ac. Do STJ de 09-10-2003, proferido no Processo 03B1415:

“….”

IV- Não é titulada a posse fundada num contrato-promessa de compra e venda – que não é, em si mesmo, em abstrato, um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade – nem num negócio de compra e venda verbal.

XXXXVII. E também não é uma posse pública!

XXXXVIII. Pois a posse, enquanto geradora da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, só se pode considerar pública quando os vizinhos, a comunidade, a população do lugar no geral, tenha o possuidor por proprietário.

XXXXIX. Como dispõe o artigo 1253º do Código Civil são tidos como detentores ou possuidores precários:

a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;

b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome e outrem.

L. Também esta posse (uso, exploração e cultivo da propriedade) é pública, no sentido de que é tida à vista de toda a gente, mas não pode gerar a aquisição pelo possuidor do direito de propriedade da coisa por usucapião, e a prova dessa publicidade só pode ser feita por pessoas da população do lugar, vizinhos, ou que de alguma forma conheçam o possuidor e o prédio e tenham aquele por seu proprietário

LI. Concluímos, pois, que não devem ser dados como provados os factos dos números 3 e 6 a 15, e ainda que a posse do Autor, não é titulada e não pode ser tida como publica, e, em consequência não pode ser geradora da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade do prédio L-...58, pelo autor.

LII. A douta sentença recorrida viola, pois os artigos 1287º, 1251º, 1252º, 1260º, 1316º e 1305º, todos do Código Civil e ainda o artigo 68º do Código do Notariado.

LIII. Razão pela qual se impõe que seja dado provimento ao presente recurso, e considerando-se a acção improcedente, por não provada, absolvendo a Ré do pedido formulado nos autos.

Nestes termos,

E nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirão,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença objecto do recurso, absolvendo-se a recorrente dos pedidos contra si deduzido pela recorrida, como é de

DIREITO E INTEIRA JUSTIÇA».

Na sua contra-alegação, o A./Recorrido pugna pelo bem fundado da sentença.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante, NCPCiv.), –, incidindo a apelação sobre a decisão da matéria de facto e de direito, importa saber ([4]):

a) Se, a ser admissível a empreendida impugnação da decisão da matéria de facto, deve a mesma proceder (pontos 3- e 6- a 15- do factualismo dado como provado, a deverem ser julgados como não provados);

b) Se, perante a alteração do factualismo provado, ou por razões de direito, deve a sentença ser revogada, com a decorrente improcedência da ação de reivindicação, por não se demonstrarem os elementos de que depende a aquisição do direito de propriedade (pelo A.) por via de usucapião, faltando, assim, uma posse, que fosse titulada e pública.


***

III – Fundamentação

A) Admissibilidade e procedência da impugnação da decisão de facto

Tendo a R./Recorrente, em sede de impugnação da decisão de facto, deixado suficientemente observados alguns dos ónus a seu cargo, a saber, aqueles a que alude a norma do art.º 640.º, n.º 1, al.ªs a) e c), do NCPCiv. – posto ter discriminado quais os factos que considera incorretamente julgados e qual a diversa decisão a dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas –, já, porém, não observou um outro desses ónus legais, precisamente o que impõe ao impugnante que, sob pena de rejeição, indique, obrigatoriamente, convocando prova pessoal, quais as passagens da gravação dessa prova em que funda a impugnação [cfr. al.ª a) do n.º 2 desse art.º 640.º], isto é, que indique, de forma clara/inequívoca, quer apresente ou não transcrição dos excertos considerados relevantes, “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso” (formula legal).

Na verdade, das conclusões da presente apelação – tal como da antecedente motivação/alegação – não logra retirar-se, por inexistente (não foi indicada), qualquer menção/referência/alusão/esboço às ditas “passagens da gravação” da prova pessoal convocada, designadamente testemunhas inquiridas.

Ora, é sabido que, ao impugnar a decisão da matéria de facto, o recorrente deve indicar, para além dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, enunciando-os na motivação de recurso e sintetizando-os nas respetivas conclusões, os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, impunham decisão diversa da adotada quanto aos factos impugnados, indicando com exatidão, se for o caso – como é –, as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição ([5]).

É que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu julgamento dessa específica matéria de facto, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente.

Como explicita Abrantes Geraldes ([6]), “A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões”. E acrescenta que se, “para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspectiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir os objectivos pretendidos” ([7]).

Especificamente em matéria de impugnação da decisão de facto, à luz do art.º 640.º do NCPCiv., refere o mesmo Autor:

“… podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora passa a vigorar sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;

d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto” ([8]).

Para depois concluir: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” ([9]).

Assim sendo, constituindo as conclusões o mecanismo de delimitação do âmbito do recurso, delas deve constar o respetivo objeto, também em matéria de impugnação da decisão de facto, seja quanto ao âmbito fáctico da impugnação recursória (concretos pontos de facto impugnados, por incorretamente julgados), seja quanto ao objetivo pretendido (indicação clara da decisão que, em concreto, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, os factos concretos que deverão, finalmente, ser julgados provados, não provados ou alterados/reformulados no seu conteúdo) ([10]).

Em qualquer caso, também não pode esquecer-se, quanto à prova pessoal convocada, a dita indicação exata das passagens da gravação, sob pena de “imediata rejeição”.

É certo que vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça – cfr., entre outros, o Ac. STJ de 19/02/2015 ([11]) – que:

«… a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.

Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC.  

É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC.

Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.

(…)

Outra problemática consiste em saber se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou se bastará incluí-los no corpo alegatório.

Segundo certo entendimento, a lei não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do artigo 639.º, n.º 1 e 2, do CPC. Outro entendimento vai no sentido de que, constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias, por força do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugadamente com o art.º 640.º, n.º 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no n.º 1 do art.º 639.º, todos do CPC.

Nesta segunda linha de entendimento, não parece que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam figurar da síntese conclusiva, já que não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.».

Ora, como dito já, vistas as conclusões da aqui Apelante, delas não consta – repete-se – a especificação/indicação exata das passagens da gravação da prova pessoal a que alude, nem da esgrimida na sentença a respeito, especificação/indicação essa que também não consta da antecedente alegação/motivação do recurso, sendo ainda que nem sequer foi junta qualquer transcrição.

E, se a Recorrente alude às testemunhas ouvidas (cfr., por exemplo, as conclusões XI a XIV, XVI, XXXIII e XXXVI), também é certo que o Tribunal recorrido se fundou na prova pessoal para dar como provados os factos que vêm impugnados pela Apelante.

Com efeito, pode ler-se na justificação da convicção da 1.ª instância:

«A formação da convicção do Tribunal sobre a matéria de facto assentou no depoimento das testemunhas e no depoimento de parte, bem como, no teor do acervo documental dos autos, com a apreciação crítica do mesmo que de seguida se explanará (Cf. 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil), tendo sempre por base o princípio da livre apreciação da prova, em consonância com o disposto no artigo 607.º n.º 5 do Código de Processo Civil.

(…)

Os factos 5 a 10 foram dados como provados pela conjugação das declarações de parte do autor, com os depoimentos das testemunhas II, JJ e KK e, ainda, pela análise das fotografias juntas a fls. 23 a 24 verso.

(…)

Os factos 11 a 15 foram dados como provados pela conjugação das declarações de parte do Autor, com o depoimento das testemunhas II, JJ e KK, bem como, pela cópia do procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e partilha.

(…)» (destaques aditados).

Assim sendo, se cabia à Recorrente mostrar/evidenciar, através da análise das provas – também daquelas em que o Tribunal se baseou para fundar a sua convicção positiva –, o erro de julgamento em matéria de facto da 1.ª instância, a total inobservância do dito ónus legal a seu cargo, ao não proceder à indicação das necessárias passagens da gravação, compromete, desde logo, esse seu dever e objetivo, votando à imediata rejeição a impugnação fundada em prova pessoal, tal como a factualidade estabelecida na sentença com base na prova pessoal produzida ([12]).

Resta dizer, para finalizar, que não procede a argumentação da R./Apelante vertida nas suas conclusões IV a X, no concernente ao impugnado ponto 3- dos factos provados.

Com efeito, uma coisa é o que o A. alegou (em sede de articulados); outra coisa, o que ficou provado.

Ora, não ficou provado que o tio avô da R. fosse “DD”.

O que consta daquele ponto 3 é apenas que: «Os prédios identificados em i e iii do facto 1. foram adquiridos pelo pai do aqui Autor, em data não concretamente apurada, ao pai e tio avô da aqui Ré.».

Não se deu como provado, por isso, que o tio avo da R. fosse “DD”.

E nem se trata aqui de factualidade essencialmente referente às relações de parentesco, que houvesse necessariamente de ser provada por via documental (através de documento com força probatória plena).

O que está essencialmente em causa é o modo de aquisição aludido, a quem foram “adquiridos” os prédios/direitos dominiais, não as relações de parentesco entre as pessoas, motivo pelo qual nada impedia que fosse produzida prova pessoal a respeito da materialidade inerente ao invocado modo de aquisição, sabido, reitera-se, que não foi sequer dado como provado – no dito facto impugnado – que o familiar da R. se chamasse “DD” ([13]).

Por fim, diga-se que também não pode proceder, manifestamente – e com todo o respeito devido –, o argumento retirado do regime legal aplicável à “escritura de justificação notarial previsto e regulado nos artigos 89.º a 101.º do Código de Notariado” (cfr. conclusões XIII a XVIII, quanto ao “processo de justificação notarial”).

Pretende a Apelante que esse regime – no concernente a “incapacidade, inabilidade”, quanto à prova testemunhal – deveria “ser aplicável em processos judiciais” como o presente (conclusão XVII).

Ou seja, advoga a Recorrente que nesta ação (uma ação judicial de reivindicação), no campo probatório, em vez de se seguir o regime geral previsto no NCPCiv. (e no CCiv.), se deveria seguir aquele regime especial do “processo de justificação notarial”, com as inerentes restrições/limitações probatórias (as ditas “incapacidades, inabilidades”).

Porém, tem de convir-se que esta argumentação não pode colher.

É que aquele regime legal especial colhe aplicação ao domínio particular para que foi previsto e estabelecido, o domínio do dito “processo de justificação notarial” e “escritura de justificação notarial”. Ou seja, em pleno campo de atuação notarial.

Aí, realmente, prevalece a lei especial.

Mas não pode pretender-se que a lei especial prevaleça sobre o regime geral no âmbito de aplicação deste último (em plena ação judicial).

Ou seja, a lei especial, derrogando a lei geral, prevalece no seu campo de aplicação (no caso, no âmbito do dito “processo de justificação notarial” e “escritura de justificação notarial”).

Mas não colhe aplicação – nem prevalência – fora desse âmbito, designadamente, como é patente, na ação judicial de reivindicação.

Neste campo judicial, tem de aplicar-se o regime geral, sem derrogações: aqui vale, em matéria probatória, o regime geral previsto no CCiv. e no NCPCiv., designadamente quanto à prova testemunhal (cfr. art.ºs 392.º a 396.º do CCiv., 413.º e 495.º e segs. do NCPCiv.), havendo o juiz – diferentemente do que sucede com o notário, naqueloutra latitude do sistema – de apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (como impõe o art.º 607.º, n.º 5, do NCPCiv.).

Em suma, no âmbito da ação judicial de reivindicação, vale de pleno o regime legal probatório geral, o estabelecido, como dito, no CCiv. e no NCPCiv..

Termos em que não podem ser acolhidas as conclusões da parte recorrente em contrário, antes se mantendo inalterada – e, assim, se tornando definitiva nos autos – a matéria de facto plasmada na sentença, sendo, por isso, a ela (e somente a ela) que haverá de atender-se para decisão do recurso interposto.

         B) Quadro fáctico da causa

1. - Na 1.ª instância foi considerada – e assim se mantém – a seguinte factualidade como provada:

1. O Autor é proprietário dos seguintes prédios:

i. Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...30 da secção L, sito no ..., ..., ....

ii. Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...53 da secção L, sito no ..., ..., ....

iii. Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...59 da secção L, sito no ..., ..., ....

2. Tais prédios foram adquiridos em 2010, em virtude de sucessão hereditária, após o falecimento de LL, pai do aqui Autor.

3. Os prédios identificados em i e iii do facto 1. foram adquiridos pelo pai do aqui Autor, em data não concretamente apurada, ao pai e tio avô da aqui Ré.

4. O prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...58 da secção L e descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ...37, sito no ..., ..., ... encontra-se registado a favor da Ré.

5. Os prédios identificados em 1. e em 4. não se encontram delimitados entre si, havendo apenas um muro de xisto nas confrontações externas destes terrenos com os terrenos inscritos na secção L com o n.º 133, 150, 151 e 160.

6. Desde pelo menos 1971, o pai do Autor cultivava e explorava o terreno do prédio rústico identificado no artigo que antecede, aí produzindo hortícolas, centeio, entre outros, e criando gado.

7. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 1971, o pai do Autor construiu uma habitação no terreno identificado em 4.

8. Desde pelo menos 1971, o pai do Autor aí pernoitou e fez as suas refeições, com regularidade não concretamente apurada, tendo ainda organizado convívios e encontros familiares.

9. Tal utilização, descrita nos factos 5 a 8, foi feita dia após dia, à vista de todas as pessoas, sem oposição ou intromissão de ninguém e sem violência.

10. O pai do Autor, e, após o seu falecimento, o Autor, estavam convictos de que era os únicos e exclusivos donos do prédio identificado em 4., pelo que achavam que não estavam a lesar os direitos ou interesses de outrem.

11. O pai do Autor faleceu em 2010, deixando como herdeiros o Autor e a sua irmã II.

12. Após a morte do seu pai, apenas o Autor passou a utilizar o prédio identificado em 4., e já não a sua irmã.

13. Diferentemente do seu pai, o Autor não tinha plantações nem gado no prédio identificado em 4.

14. Com regularidade não concretamente apurada, mas não muito frequentemente, o Autor, após 2010, ia ao terreno identificado em 4., com familiares e amigos, aí convivendo durante períodos de férias.

15. Após a morte do seu pai, o Autor conservou e cuidou do terreno identificado em 4., aí passando férias e convivendo com amigos, à luz do dia, dia após dias, sem oposição ou intromissão de ninguém, sem violência, convicto de que não lesava direito ou interesse de outrem, agindo no propósito de que era proprietário do terreno.

16. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos em outubro de 2020, a Ré, após ter procedido ao levantamento topográfico do terreno, em qualquer aviso ou comunicação prévia, decidiu, sem consultar ou informar o Autor, por intermédio de terceiros por si contratados, destruir parte do muro de xisto existente no prédio identificado em 4., instalar novas divisórias de rede metálica e iniciar os trabalhos para proceder à exploração agrícola.

17. Neste seguimento, no terreno identificado em 4. foi implementanda uma plantação de pistachios, explorada pela Sociedade A..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ...00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ....

18. O Autor teve conhecimento da destruição parcial do muro de xisto e da instalação da divisória através do seu sobrinho KK.

19. Após tal conhecimento, o Autor, por intermédio da sua filha, JJ, apresentou queixa no posto territorial da GNR na ..., o qual deu origem ao auto de notícia com o NUIPC 000012/21.....

20. Por carta registada, enviada em 01.03.2021, o Mandatário do Autor, em sua representação, interpelou a Ré para que esta desfizesse todas as intervenções realizadas, restituindo o terreno ao Autor no seu primitivo estado, o que não ocorreu até ao momento.

21. A Ré nunca tinha ido ao prédio rústico identificado em 4. até 2016.

22. A Ré não tinha conhecimento das dimensões e delimitações do terreno identificado em 4., nem da sua utilização.

23. Em 2016, quando a Ré teve conhecimento das dimensões e delimitações do terreno, teve igualmente conhecimento de que no mesmo se encontrava uma construção rudimentar, não logrando apurar a origem da mesma.”.

2. - E foi julgado como não provado:

«A. O prédio é atualmente, e desde há longos anos, não concretamente apurados, pastoreado por um individuo conhecido por HH.».


***

C) Matéria de Direito

Da inexistência de posse titulada e pública, impedindo a aquisição por usucapião

Defende a parte apelante, em contraposição ao Tribunal recorrido, que a factualidade apurada implica, no essencial, a improcedência da ação, pois que não se demonstra posse boa para usucapir, mormente uma posse titulada e pública.

Ora, apreciando, dir-se-á que, subsistindo a factualidade julgada provada pela 1.ª instância, a delimitação fáctica resulta devidamente apurada na sentença, com as inerentes consequências.

Vejamos, então, a posse à luz dos factos provados.

A posse, como é consabido, é constituída por um corpus e por um animus ([14]), matéria essencial à procedência da ação de reivindicação fundada na usucapião.

Na verdade, quanto à usucapião (cfr. art.ºs 1287.º e 1299.º, ambos do CCiv.), enquanto modo de aquisição originária do direito de propriedade [cfr. art.ºs 1316.º e 1317.º, al.ª c), também do CCiv.] sobre bens imóveis ([15]), dir-se-á que este instituto postula, no âmbito dos seus elementos integrantes, uma posse (art.º 1251.º do mesmo Cód.), a qual se traduz num “corpus” – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito –, tal como num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, posse essa que deve ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade (cfr. art.ºs 1293.º e segs. e 1298.º e segs. ainda do CCiv.).

A posse assume relevância jurídica fundamental, não só pelos mecanismos legais adotados para a sua defesa (cfr. art.ºs 1276.º e segs. do CCiv.), mas também por nela poder fundar-se a presunção da titularidade do respetivo direito, já que, com alude o art.º 1268.º, n.º 1, do CCiv., o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, a não ser que exista presunção, a favor de outrem, fundada em registo anterior ao início da posse.

Quer dizer, em ação de reivindicação caberá ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu pretendido direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. ([16]) –, prova essa a ser efetuada através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou dos seus antecessores na posse.

Quando, porém, a aquisição for derivada terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que ocorra presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), como a resultante da posse ou do registo definitivo de aquisição ([17]).

Em causa está agora a verificação de atos materiais de posse sobre o discutido prédio (o dito “L-...58”, um imóvel rústico), que a sentença teve por demonstrados, em termos válidos para efeitos de usucapião, pela parte demandante.

E vem provado, em conformidade, que o pai do A./Apelado, desde, pelo menos o ano de 1971, passou a cultivar diversos prédios rústicos contíguos, não delimitados entre si – à exceção de um muro de xisto em determinadas confrontações –, explorando o terreno, produzindo ali hortícolas e outras plantas, para além da criação de gado, sendo que, já posteriormente a 1971, construiu uma habitação num desses prédios, mais precisamente no terreno/prédio “L-...58”, o aqui reivindicado (factos 1- a 7-).

Ora, apurou-se que, «Desde pelo menos 1971, o pai do Autor aí pernoitou e fez as suas refeições, com regularidade não concretamente apurada, tendo ainda organizado convívios e encontros familiares» (facto 8-).

Tal descrita utilização (do pai do A.), relativamente ao prédio em discussão (o aqui reivindicado), «foi feita dia após dia, à vista de todas as pessoas, sem oposição ou intromissão de ninguém e sem violência» (facto 9-). Ou seja, estão caraterizados atos materiais de posse (o corpus), tal como uma atuação com publicidade (à vista de toda a gente) e pacificidade (sem oposição ou intromissão de quem quer que fosse e, por isso, sem violência), para além da continuidade (“feita dia após dia”).

Mas também se apurou que, ao assim agir, o «pai do Autor, e, após o seu falecimento, o Autor, estavam convictos de que era os únicos e exclusivos donos do prédio identificado em 4. [dito “L-...58”], pelo que achavam que não estavam a lesar os direitos ou interesses de outrem» (facto 10-), de onde se retira uma atuação com o animus, em termos de direito de propriedade, já que na convicção de exclusivo dono, para além da boa-fé (ignorância de lesar quaisquer direitos de outrem). Tal configura uma verdadeira posse, e não uma mera/simples detenção (cfr. art.º 1253.º do CCiv.), embora não titulada (art.º 1259.º do CCiv.).

Tendo o pai do A. falecido em 2010, passou o demandante, por morte daquele, a utilizar o referido prédio, deslocando-se ao respetivo terreno, por vezes, com familiares e amigos, ali convivendo em tempo de férias (factos 11- a 14-).

Com efeito, após a morte do seu pai, foi o A. quem «conservou e cuidou do terreno identificado em 4., aí passando férias e convivendo com amigos, à luz do dia, dia após dias, sem oposição ou intromissão de ninguém, sem violência, convicto de que não lesava direito ou interesse de outrem, agindo no propósito de que era proprietário do terreno» (facto 15-).

Ou seja, subiste o corpus e o animus (propósito/convicção de que era proprietário), agora por parte do A. (mas em continuação/prosseguimento da atuação do seu pai), bem como as caraterísticas da continuidade (dia após dia, de forma ininterrupta), publicidade (à luz do dia, à vista de todos) e pacificidade (sem oposição ou intromissão de ninguém), para além da boa-fé (convicto de não lesar o direito ou interesse de outrem).

O que perdurou, nesses moldes, até – tanto quanto se apurou – outubro de 2020, quando a R. passou a intervir no local (pela forma descrita em 16- a 20- dos factos provados).

Ora, assim sendo, a posse do pai do A., continuada por este ([18]), em termos de direito de propriedade, vem desde a década de setenta do século XX (por volta de 1971), portanto, com início há mais de 40 anos com referência à data do início da intervenção/oposição da R..

Aliás, tendo a posse do pai do A. tido prolongamento até à sua morte (ocorrida em 2010), tem de concluir-se que este foi possuidor por mais de 30 anos, tempo suficiente para usucapir para si próprio (mesmo na ausência de título).

Ainda, pois, que – como pretende a R./Apelante – tal posse não fosse titulada ([19]), posto o art.º 1296.º do CCiv., na pior das hipóteses (falta de título e de registo e posse de má-fé), estabelecer um prazo máximo de usucapião de 20 anos.

No caso, porém, verificada a atuação de boa-fé, o prazo aplicável é o de 15 anos.

Assim, aquela posse do pai do A., por mais de 30 anos (prazo consecutivo), com as ditas caraterísticas da publicidade, continuidade e pacificidade, era idónea a fazê-lo adquirir, por usucapião, o direito de propriedade sobre o imóvel em discussão.

Posse e direito esses que se transmitiram para o A., como sucessor na posse e no direito, após a morte de seu pai.

E, embora se prove que o imóvel tem registo de aquisição a favor da R. (facto 4-), resulta dos autos que tal registo é de 26/01/2023 – trata-se, aliás, da descrição predial com o n.º ...26 (como decorre da certidão permanente de fls. 117 do processo físico) –, logo, muito posterior ao início da posse mencionada.

Daí que a posse, de si ininterrupta, tenha de prevalecer sobre o registo (cfr. art.º 1268.º, n.º 1, do CCiv.), o que teria de determinar, como determinou, a procedência da ação, por verificados todos os requisitos da aquisição originária, por via de usucapião.

Improcedem, por isso, as conclusões da Apelante em contrário, havendo de manter-se a decisão recorrida, que não incorreu em qualquer imputada violação de lei.

Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

 

***

(…)


***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Recorrente (vencida no recurso).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 12/11/2024

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Fonte Ramos


([1]) Em 15/07/2021, no Juízo de Competência Genérica de Idanha-a-Nova do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.
([2]) Reprodução do acervo conclusivo na parte que importa para decisão do recurso, com destaques retirados.
([3]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([5]) Cfr. art.º 640.º do NCPCiv., bem como Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 126 e segs., e Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 153, e ainda, no mesmo sentido, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, págs. 253 e segs.. Vide também Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STJ, podendo ver-se, por todos, os Ac. desse Tribunal Superior de 04/05/2010, Proc. 1712/07.3TJLSB.L1.S1 (Cons. Paulo Sá), e de 23/02/2010, Proc. 1718/07.2TVLSB.L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
([6]) Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 115. 
([7]) Op. cit., p. 118, com itálico aditado.
([8]) Op. cit., ps. 126 e seg., com negrito e itálico aditados.
([9]) Cfr. op. cit., ps. 128 e seg..
([10]) E aconselha a boa técnica jurídica – na senda, aliás, do teor literal do art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv. – que das conclusões conste também o âmbito probatório da impugnação (concretos meios de prova que, fundamentadamente, obrigam a decisão diversa da recorrida), sem prejuízo de, a constar da alegação, ser ainda considerado pelo Tribunal.
([11]) Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Cons. Tomé Gomes), disponível em www.dgsi.pt, com itálico e sublinhado aditados. 

([12]) Como vem entendendo a jurisprudência dominante do STJ, “no âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações” – cfr. Ac. STJ de 09/02/2012, Proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1 (Cons. Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt, com itálico aditado, bem como demais jurisprudência ali citada. No mesmo sentido, à luz do NCPCiv., cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., ps. 127 e seg..
([13]) O que estava em causa era a realidade dominial, cujos inerentes factos podem ser provados por via testemunhal, e não tanto factos referentes ao estado e parentesco das pessoas (a R. é que poderia, querendo, abalar os depoimentos testemunhais, juntando prova documental sobre os seus antepassados, por ser quem estava em melhor posição para tanto, visto o seu conhecimento pessoal quanto à identidade de tais antepassados).
([14]) Cfr., por todos, na jurisprudência recente, o Ac. STJ, de 07/02/2013, Proc. 1952/06.2TBVCD.P1.S1 (Cons. Serra Baptista), em www.dgsi.pt.
([15]) Ou até sobre móveis (sujeitos ou não a registo).
([16]) Assim já era entendido no distante Ac. TRL, de 09/02/1993, Proc. 0066831 (Rel. Joaquim Dias), em www.dgsi.pt.
([17]) Cfr. Ac. STJ, de 16/06/1983, BMJ, 328.º - 546, citado por Abílio Neto, em Código Civil Anot., 6.ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1987, p. 771.
([18]) Mediante sucessão na posse, a que alude o art.º 1255.º do CCiv..
([19]) É titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, como resulta do aludido art.º 1259.º do CCiv..