Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FERNANDO MONTEIRO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ACTIVO PLURALIDADE DE LESADOS CONTITULARIDADE DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO INTERVENÇÃO PROVOCADA DOS DEMAIS LESADOS | ||
Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 142.º, DA LCS ARTIGO 316.º, 3, B), DO CPC | ||
Sumário: | O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. No plano ativo, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do mesmo sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas. Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho sem os demais. O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, com a presença do responsável primário, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados. A Ré Seguradora, responsável secundária, apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei deseja, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, sendo caso de contitularidade do direito indemnizatório. Não ocorre esta contitularidade nos direitos dos lesados. | ||
Decisão Texto Integral: | *
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra: Está em causa a seguinte decisão: “Veio a ré G..., S.A., na contestação por si apresentada, alegando que, em face do sinistro em causa nos autos, com o abalroamento do Autor e de outras duas pessoas, considera existir o risco de a 2ª ré ser chamada a pagar, globalmente, quantia superior à do capital seguro atualmente disponível, o qual, corresponde ao valor de 46.385,58€ (quarenta e seis mil trezentos e oitenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), pese embora não tenha sido intentada contra os réus qualquer outra ação judicial por danos conexos com os factos em causa. “Assim, conclui a Ré que, atentos os danos reclamados pelo autor nestes autos (já de si superiores ao capital seguro disponível na apólice), os danos sofridos por todos os lesados poderão exceder o limite do capital seguro garantido pela apólice celebrada, pelo que antevê esta a necessidade de rateio do capital entre os vários lesados, dois dos quais identifica, como sendo os únicos que conhece. “Assim, requer a intervenção principal nesta ação de todos os “potenciais” lesados identificados, uma vez que a determinação dos danos dos demais lesados só pode ser efetuada mediante a intervenção destes na presente demanda, como partes principais, de forma a que deduzam, querendo, os seus pedidos de indemnização, que concorrem com o do autor para o mesmo capital seguro. “Alega que, existindo outros lesados e por força do que estabelece o n.º 1 do artigo 142º do RCJS, nunca poderia o Tribunal condenar a 2ª ré a pagar ao autor qualquer quantia líquida, mesmo que concluísse pela existência de danos e pela responsabilidade da ora ré, pelo que, na ótica da ré, só com a intervenção na presente ação de todos os lesados pelo equídeo dos autos, no dia 01.07.2022, poderia ser definitivamente regulada a situação concreta do autor relativamente ao pedido que formula (superior ao capital seguro peça apólice) e que, mesmo que assim não se entendesse, sempre estaria verificada a situação prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 316º do Código de Processo Civil. “Discorda-se totalmente da posição assumida pela Ré quanto à requerida intervenção principal provocada e com os fundamentos da mesma. “Independentemente de o autor, nos presentes autos, ter deduzido um pedido de indemnização no valor de 100.000,00€ (correspondendo a um valor superior ao capital seguro), e existem outros lesados que poderão ter sofrido danos, mas desconhecendo se os mesmos os pretendem peticionar, sendo que cada pretensão, no caso é um direito próprio de cada um dos lesados, não se verificando aqui qualquer contitularidade quanto ao direito de indemnização, carece de fundamento legal a pretensão da ré G... quanto à requerida intervenção, pois que, também, na parte em que possa vir a ser fixada indemnização que exceda a o capital seguro, a responsabilidade será da 1ª Ré. “O mero facto de existir um risco abstrato de ser ultrapassado o limite do capital seguro ou a eventual necessidade de um “rateio” não é fundamento para a requerida intervenção. “O pressuposto básico para a intervenção principal provocada é que o chamado tenha interesse igual ou paralelo a uma das partes principais em juízo. “Trata-se de chamar à ação alguém que, nos termos do artigo 311º, pudesse nela intervir espontaneamente do lado do autor ou do lado do réu, o que não se verifica no caso, pois que, pese embora possa ser acionada a mesma apólice de seguro, o interesse em causa não é idêntico ao do autor. Seria necessário que o chamado tivesse um interesse igual ao do autor ou que com ele se pudesse coligar, respetivamente nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º, todos do Código de Processo Civil, o que não se verifica, como referido. “Desta forma, impõe-se concluir que a relação material controvertida, no caso concreto, respeita apenas ao Autor, sendo que a Ré Seguradora, a ser condenada a indemnizar o Autor, apenas será por força da apólice de seguro e capital seguro, o que não cabe, no caso ao Tribunal determinar, pois que, todo o valor em que haja condenação que seja superior ao capital seguro, ficará a cargo da 1ª Ré, sendo esta a primeira responsável pelo pagamento, caso se venha a verificar uma condenação no autos na total ou parcial procedência da ação. “Pelo exposto, não se admite a requerida intervenção principal provocada.” (Fim da citação.) * Inconformada, a Ré Seguradora recorreu e apresenta as seguintes conclusões: 1. A recorrente não se conforma com a decisão de indeferimento do incidente de intervenção principal provocada que deduziu nos presentes autos, com vista à intervenção principal de AA e de BB neste processo. 2. Fundou-se a decisão recorrida na circunstância de as pretensões de cada um dos lesados constituírem um direito próprio de cada um deles, não se verificando aqui qualquer contitularidade quanto ao respectivo direito de indemnização. 3. A decisão recorrida fundou-se também no entendimento de que o mero facto se existir um risco abstracto de ser ultrapassado o limite do capital seguro na apólice ou a eventual necessidade do seu “rateio” não constitui fundamento para a requerida intervenção, pois os chamados não possuem um interesse igual ou paralelo a uma das partes principais em juízo, a saber, o autor. 4. O que, salvo melhor entendimento – que muito se respeita – não é correcto. 5. Compulsada a contestação de fls… apresentada pela recorrente nos presentes autos, verifica-se que esta, além do mais, alegou que: - O capital estabelecido na apólice celebrada com a ora contestante era o de 50.000,00€ (cinquenta mil euros), por sinistro e período seguro, independentemente do número de lesados e de sinistros, sendo este o limite da sua responsabilidade, independentemente do número de sinistrados lesados pelo sinistro; - Não só o autor, mas também os chamados sofreram danos corporais em consequência do abalroamento pelo cavalo dos autos, na mesma ocasião em que se produziram os danos reclamados pelo autor nos presentes autos, tendo a 2ª ré liquidado a todos eles, bem como aos hospitais que os assistiram, quantias atinentes a tais tratamentos hospitalares, médicos, medicamentosos e de transportes que se mostraram necessários ao seu restabelecimento, no valor global de 3.614,42€. - A ora contestante só tem conhecimento, até à data, da presente reclamação feita pelo autor, consubstanciada pelo pedido que formula no articulado inicial. - Coexistem vários lesados que concorrem para o mesmo e único capital seguro de 50.000,00€, a saber, e pelo menos, o autor e os chamados, pelo que existe o evidente risco de a 2ª ré ser chamada a pagar globalmente, quantia superior à do capital seguro, desde logo tendo em atenção que só o autor já peticiona da ora contestante um valor correspondente ao dobro do capital seguro pela apólice para a cobertura da responsabilidade civil extracontratual. - Antevê-se como possível a necessidade de rateio do capital entre os vários lesados. - Para se estabelecer qual a proporção do capital seguro que cabe a cada um dos lesados é necessário, previamente, apurar a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados, o que só pode suceder mediante intervenção destes na ação, como partes principais, de forma a que deduzam, querendo, os seus pedidos de indemnização, que concorrem com o do autor para o mesmo capital seguro. - No que diz respeito à recorrente, verificam-se os pressupostos do litisconsórcio necessário entre o autor da acção e todos os demais lesados conhecidos, acima identificados, o que impõe e justifica a intervenção destes nos presentes autos. - Só com a intervenção de todos os lesados, a decisão a proferir nesta acção produzirá o seu efeito normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente aos pedidos, ou seja, definindo, se se mostrar necessário, a parte do capital que deve caber a cada um dos lesados. - Tal definição dos direitos dos demais lesados deverá ser efectuada nos presentes autos, por via da respectiva intervenção nesta acção. 6. Perante o alegado, a ré requereu a intervenção dos demais lesados nos factos em apreço nos presentes autos, a saber, AA e de BB, na qualidade de intervenientes principais, visando com tal incidente acautelar o risco de ser ultrapassado o limite do capital seguro, ou o de se ver forçada a pagar ao autor quantia superior à que, por força do obrigatório rateio, teria de suportar, com a inerente necessidade ou risco de pagar aos demais lesados quantias superiores às devidas. 7. No caso concreto, e de acordo com o alegado, coexistem vários lesados que concorrem para o mesmo e único capital seguro de 50.000,00€, a saber, o recorrido e os chamados AA e de BB, sendo de crer que os danos sofridos por este conjunto de lesados excedem largamente o limite do capital seguro garantido pela apólice celebrada com a ora recorrente. 8. Como tal, antevê-se como possível a necessidade de rateio do capital entre os vários lesados, o qual efetua-se mediante a atribuição a cada um deles da parte proporcional do capital seguro que corresponde à percentagem dos danos de cada um, na totalidade dos prejuízos apurados, o que no caso concreto implica o prévio apuramento a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados; 9. Só com a intervenção na acção de todos os lesados pelo mesmo evento – o abalroamento por um cavalo ocorrido no dia 01/07/2022 – poderá ser definitivamente regulada a situação concreta do autor, relativamente ao pedido que formula contra aqui recorrente, por se mostrar necessário proceder ao prévio rateio do capital por todos os lesados. 10. Só com a intervenção de todos os lesados nesta acção, a decisão que o Tribunal vai proferir a final produzirá o seu efeito normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente aos pedidos, ou seja, definindo, se se mostrar necessário, a parte do capital que deve caber a cada um dos lesados. Cf. acórdão do STJ de 02/06/2016, no processo 3987/10.1TBVFR.P1.S1; 11. No que respeita ao pedido dirigido contra a recorrente verificam-se os pressupostos do litisconsórcio necessário entre o autor da acção e todos os demais lesados pelos mesmos factos, o que impõe e justifica a intervenção destes nos presentes autos. 12. Por outro lado, resulta evidente, face ao preceituado nos nº 1 e 2 do artigo 142º do DL 72/2008 que o autor e os chamados (lesados nos factos em apreço nestes autos) são verdadeiramente contitulares do direito ao valor do capital seguro na apólice invocada no petitório. Cf. alínea b) do n.º 3 do artigo 316.º do CPC. 13. Na verdade, na parte que excede a percentagem do capital seguro que lhes pode ser atribuída (a qual se desconhece de momento), os demais lesados são, na verdade, possíveis contitulares, ou mesmo contitulares do direito a esse mesmo capital seguro, justificando-se, também por esta via, o seu chamamento à acção. 14. Só o incidente de intervenção principal provocada dos lesados AA e de BB tem a virtualidade de acautelar o risco de ser ultrapassado o limite do capital seguro, ou o de a recorrente se ver forçada a pagar ao autor quantia superior à que, por força do obrigatório rateio, teria de suportar, com a inerente necessidade ou risco de pagar aos demais lesados quantias superiores às devidas. 15. A decisão ora em apreço deve ser revogada por Vossas Excelências e substituída por outra que admita o incidente de Intervenção Principal Provocada de AA e de BB, tal como a ré oportunamente requereu na sua contestação. 16. A decisão recorrida viola o preceituado nos artigos 316º e seguintes do CPC e nos n.º 1 e 2 do artigo 142º do RJCS. * Não foram apresentadas contra-alegações. * As questões a decidir são as seguintes: No caso existe litisconsórcio necessário? E contitularidade de direito pelos lesados? * Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas. * Em certo dia, um cavalo da 1ª Ré abalroou várias pessoas, ferindo-as. O Autor, uma dessas pessoas, intentou ação contra a detentora do animal e contra a seguradora desta, pedindo uma indemnização pelos danos que sofreu. O seguro celebrado entre as Rés é facultativo e está limitado a 50.000,00€. O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. No plano ativo, o dos lesados, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas. Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho, sem os demais. A ação regula a relação entre o lesado e o lesante, definindo o direito de indemnização do primeiro, direito (personalizado) que é diferenciado dos direitos indemnizatórios dos demais lesados. A intervenção da seguradora é feita para definir a sua responsabilidade garantística, não diretamente para com os lesados, mas para com a sua segurada, até ao limite do capital seguro. Para além deste, continua a vigorar a responsabilidade primária do lesante, que pode ser condenado em valor superior. O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados. A norma regula a posição da seguradora quando o segurado responder perante vários lesados. A norma não regula a posição do responsável primário. Como a responsabilidade (secundária) da seguradora está limitada, a lei impõe, quanto a ela, e definida a responsabilidade primária, um rateio proporcional. Este deverá ser acautelado com a pessoa segurada. A limitação do capital não existe para a 1ª Ré, a responsável primária. Também não existe o risco da seguradora ser chamada a pagar quantia superior à do capital seguro. Relativamente a este, a seguradora responde perante a segurada. Para se estabelecer qual a proporção do capital seguro que cabe a cada um dos lesados não é necessário, previamente, nesta ação, apurar a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados. A questão não respeita a esta ação, sendo respeitante à seguradora. A necessidade de rateio não influencia ou contraria a decisão relativa a cada lesado, ou seja, não é por força daquele que a indemnização de cada lesado é limitada ao capital seguro ou ao proporcional dele. A condenação eventual da 2ª Ré poderá ser feita com menção das eventuais limitações contratuais (o capital seguro, a franquia ou outras). Quanto ao efeito útil normal da decisão, ele consegue-se com a regulação da responsabilidade primária do lesante perante o Autor, lesado, sem que a regulação relativa aos demais lesados interfira naquela. A limitação de que beneficia a seguradora também não interfere naquelas regulações. Definidas as indemnizações dos lesados, o que pode ser feito de diferentes formas e processos, caberá à seguradora, no que respeita aos 50 mil euros, acautelar um eventual rateio no seu pagamento. (O caso regulado no acórdão do STJ de 02/06/2016, no processo 3987/10, é relativo ao Fundo de Garantia Automóvel, único Réu, com responsabilidade limitada.) Pelo exposto, não existe no caso um litisconsórcio necessário. Sendo assim, a Ré Seguradora apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei lhe impõe, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, em caso de contitularidade do direito indemnizatório. No caso, apenas está em causa essa norma. E, então, não vemos que exista esta contitularidade no direito indemnizatório. O que existe, potencialmente, são diferentes direitos indemnizatórios pertencentes a diferentes titulares. Não há um direito pertencente a vários titulares. Os direitos são exercidos contra o lesante sem limitações de capital. O rateio e o capital seguro não impõem qualquer unificação aos direitos. * Decisão. Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente, vencida. Coimbra, 2023-09-12 (Fernando Monteiro) (Moreira do Carmo) (Alberto Ruço) |