Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
354/21.5PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: ANTECEDENTES CRIMINAIS
VÍCIO DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
BUSCA NÃO DOMICILIÁRIA
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDIMENTO DE BEM A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO E CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO DA ARGUIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 109.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 53.º, N.º 2, ALÍNEA B), 174.º, N.ºS 2, 5 E 7, 249.º, 251.º, N.º 1, ALÍNEA A) 263.º, N.º 1, 267.º, 374.º, N.º 2, 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), 412.º, N.º 3, E 430.º DO CÓDIGO PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGOS 21.º, 25.º E 35.º, N.ºS 1 E 2, DO D.L. Nº 15/93, DE 22 DE JANEIRO
Sumário:
I – Na enumeração dos factos provados e não provados, que o artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P. impõe, deve constar a indicação dos antecedentes criminais, com referência expressa às condenações relevantes para a decisão a tomar, identificando os elementos distintivos do crime, a data de cometimento, as datas da condenação e do trânsito em julgado da decisão condenatória, a pena aplicada e a data de extinção da mesma.

II – Quando tais elementos faltem verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do artigo 410.º, n.º 3, alínea a), do C.P.P., no que à medida da pena diz respeito.

III – De acordo com o disposto no artigo 174.º, n.º 2, do C.P.P., a busca tem lugar quando houver indícios de que objectos relacionados com um crime, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.

IV – A busca prevista na alínea a) do artigo 251.º do C.P.P. é um acto de natureza cautelar, que não carece de autorização ou determinação da autoridade competente quando haja fundada razão para crer que em determinado lugar reservado ou não livremente acessível ao público e onde se encontrem suspeitos, se ocultem objectos relacionados com o crime ou susceptíveis de servirem de prova e que de outra forma poderia perder-se.

V – Nestes casos o n.º 2 do artigo 251.º do C.P.P. exige que a busca seja imediatamente comunicada ao juiz e não obstante o artigo 174.º, n.º 7, indicar como destinatário da comunicação o JIC, deve interpretar-se a norma em conformidade com as que regulam a competência para ordenar as buscas e revistas, admitindo-se que na fase de inquérito a fiscalização do procedimento levado a cabo pelo OPC quanto a buscas não domiciliárias seja realizado pelo Ministério Público.

VI – Na impugnação ampla da decisão da matéria de facto a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida em caso de declarações gravadas faz-se por referência ao consignado na acta, com indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação, e na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações com a transcrição dessas declarações, tendo o recorrente, também, que indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido, os que foram considerados quando não o podiam ser, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões e que referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.

VII – A impressão produzida no julgador pela prova oral, e que se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação, daqui resultando que o tribunal da relação só pode censurar a 1.ª instância no que a tal prova respeita quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.

VIII – Na fase do recurso a demonstração da violação do princípio in dubio pro reo passa pela respectiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, ou seja, tem que resultar da fundamentação desta, de forma clara, que o juiz, embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou que, sendo favorável ao agente, o considerou não provado.

IX – A considerável diminuição da culpa essencial à figura do crime de tráfico de estupefacientes privilegiado deve resultar de uma avaliação global da situação de facto, pela ponderação, entre outros factores, dos meios utilizados, da modalidade e circunstâncias da acção e da qualidade e/ou quantidade das substâncias, plantas ou preparados.

X – O perdimento de bens a favor do Estado exige que do factualismo provado resulte a existência de uma causalidade adequada entre a utilização desses bens e a prática do crime em causa nos autos.

Decisão Texto Integral:

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            - RELATÓRIO

1.

*

1.1. Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, com data de 23 de março de 2023, do dispositivo do qual ficou a contar, como decidido, o seguinte:

“I - Absolver o arguido AA da imputada prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo arteº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22.01, por referência a tabelas I-A e I-C, anexo àquele diploma legal.

II - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22.01, por referência à tabelas I-A e I-C, anexo àquele diploma legal na pena de 5 (cinco) anos e 1 (um) mês de prisão.

III - Absolver a arguida BB da imputada prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22.01, por referência à tabelas I-A e I-C, anexo àquele diploma legal.

(…)

Nos termos do artigo 35.º, n.ºs 1, e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, determina-se o perdimento a favor do Estado de todos os objectos relacionados com o tráfico de estupefacientes, apreendidos aquando das buscas realizadas nos presentes autos, incluindo o veículo que os respectivos arguidos utilizavam para a execução das suas actividade de venda de estupefaciente, por terem servido para a prática do crime de tráfico imputado aos arguidos.”


*

2. … interpuseram recurso os arguidos, extraindo da motivação exarada nos recursos por eles apresentados as conclusões que se transcrevem:

2.1Do recurso do arguido …

1.ª Entende o arguido que o Acórdão recorrido reclama a superior correção, de Vossas Excelências, porquanto:

i. Relativamente ao episodio do dia 19/06/2021, a sua condenação assenta em prova proibida nos termos do n.º 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal;

ii. Não fez uma correta interpretação da prova globalmente considerada …

2.ª Ora, desde logo, a busca realizada no dia 19/06/2021, deve ser considerada nula por não ter operado dentro daquelas situações excecionais que a lei vem permitir que os OPC’s possam agir por iniciativa própria nos termos do n.º5 do artigo 174º e na al. a) do n.º1 do artigo 251º do Código de Processo Penal, pelo que, por imperativo do chamado efeito à distância, nos termos do artigo 122º, n.º1 do referido diploma legal, ter-se-á de considerar nula a apreensão realizada, por violação do n.º3 do artigo 126º do Código de Processo Penal, configurando prova proibida.

3.ª Efetivamente não havia qualquer flagrante delito, até, pelo menos, à concretização da busca, ou seja, até se iniciar a intromissão para a qual se exige prévia autorização judicial ou consentimento do visado, …

4.ª Depois, apesar de ter havido a suspeita da pratica de um crime de trafico de produtos estupefacientes - criminalidade altamente organizada – não se verificava qualquer perigo para a vida ou integridade física, quer dos próprios, quer de terceiros, pelo que aquela busca não poderá ser validada ao abrigo do al. a) do n.º5 do artigo 174º do Código de Processo Penal.

5.ª Igualmente se diga, no que toca às medidas cautelares e de polícia, previstas nos artigos 248º e seguintes do Cód. do Processo Penal, com especial enfoque para o disposto na al. a) do n.º1 do artigo 251º, em que, concretamente, a situação não cumpria com todos os requisitos legais que validam e permitem que os OPC’s realizem buscas ao veiculo.

6.ª Não se verificava qualquer situação de fuga iminente ou detenção por parte de nenhum dos arguidos, pelo que não estava legitimado ao OPC procederem, por sua livre iniciativa, à busca ao interior do veículo, configurando uma ingerência proibida na esfera de proteção da privacidade dos visados.

7.ª Por fim, a busca só poderia ser legitimada e validada através do consentimento dos visados, o que também não sucedeu.

8.ª Assim, … a mesma configura um meio de obtenção de prova nulo, sendo que, por efeito de contagio, ter-se-á de considerar, igualmente, a apreensão nula, por violação do n.º3 do artigo 126º do Código de Processo Penal, estando perante prova proibida, insuscetível de ser valorada, pelo que deverá o arguido ser absolvido.

9.ª Porem, caso assim não se entenda, sempre se dirá que o Tribunal a quo não dispunha de acervo probatório suficiente capaz de imputar, ultrapassando o mínimo de duvida aceitável, a posse e propriedade daquele produto estupefaciente ao arguido, ora recorrente.

10.ª No cumprimento e para efeitos do preceituado no artigo 412º n.º 3 alínea a) do Código de Processo Penal, o arguido, ora recorrente, considera terem sido incorretamente julgados os pontos 3 e 4 e 13 a 15 da matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido, que aqui se transcrevem:

17.ª O Tribunal decidiu, …, condenar o arguido, ora recorrente, pelo que, tal condenação configura uma clara violação da presunção da inocência, nos termos do n.º2 do artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa, devendo neste sentido o arguido de ser absolvido pela pratica do crime ocorrido no dia 19/06/2021.

18.ª No limite, o Tribunal deveria ter-se situado na duvida e em cumprimento do principio do in dúbio pro reo, absolver, igualmente, o arguido da pratica de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de janeiro, ocorrido no dia 19/06/2021.

20.ª E mais, ainda que se admita, por mera cautela e dever de patrocínio, que o produto estupefaciente era, efetivamente do arguido, o Tribunal a quo também não dispunha de qualquer elemento que colocasse o arguido na posição de vendedor, …, pelo que, apenas poderia o Tribunal a quo condena-lo pela mera posse e jamais como vendedor, diminuindo-se assim a intensidade da ilicitude e da culpa.

21.ª No que toca ao episodio do dia 26/10/2021, no cumprimento e para efeitos do preceituado no artigo 412º n.º 3 alínea a) do Código de Processo Penal, o arguido, ora recorrente, considera terem sido incorretamente julgados os pontos 7, 10 e 12 a 15 da matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido, que aqui se transcrevem:

30.ª Pelo que, deveria o Tribunal a quo situando-se na duvida e em cumprimento do principio in dúbio pro reo absolver o arguido da pratica de um crime de tráfico de estupefacientes, eventualmente ocorrido no dia 26/20/2021.

31.ª Posto isto, admitindo que Vossas Excelências apenas acompanhem parcialmente o nosso entendimento, julgando improcedente a invalidade invocada e a impugnação de toda a matéria de facto que determina a absolvição do arguido, somos a ponderar o seguinte quadro: Vossas Excelencias dão como provado o episodio do dia 19/06/2021 e absolvem o arguido do crime do dia 26/10/2021; Vossas Excelências absolvem o arguido do crime do dia 19/06/2021 e dao como provado o episodio do dia 26/10/2021 ou Vossas Excelências , acompanham a posição do Tribunal a quo e dao como provados os dois episódios.

32.ª Considerando as duas primeiras hipóteses, sempre se dira que Vossas Excelências deverão alterar a qualificação jurídica do crime imputado, enquadrando-o à luz do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, como tráfico de menor gravidade, encontrando-se preenchidos os requisitos cumulativos essenciais.

41.ª Parece-nos, então, concluindo nesta parte, que, quer Vossas Excelências deem como provados os factos ocorridos no dia 19/06/2021 e absolvam o arguido dos factos ocorridos no dia 26/10/2021 ou caso contrario, deem como provados os factos ocorridos no dia 26/10/2021 e absolvam o arguido dos factos ocorridos no dia 19/06/2021, em qualquer uma destas hipóteses, estamos, pois, perante factos que, pese embora, ao nível do tipo, preencham os elementos objetivo e subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes, espelham, todavia, uma ilicitude nitidamente diminuída face ao tipo base e, portanto, apenas enquadrável na previsão privilegiada do art. 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ou seja, no crime de Tráfico de Menor Gravidade, devendo, por consequência a pena aplicada ser reduzida.

42.ª Contudo, admitindo que Vossas Excelências em nada acompanhem todo o entendimento sufragado ao longo das presentes motivações de recurso, o que não estamos de todo em crer, sempre se dirá, salvo melhor opinião e o douto suprimento de Vossas Excelências, que o Tribunal recorrido, na determinação da medida concreta da pena, foi excessivamente castigador, ultrapassando a medida da culpa.

43.ª Salvo melhor opinião e o douto suprimento de Vossas Excelências, na operação de fixação da pena, não pode olvidar-se que o grau de culpa do recorrente, aquando da participação do crime, revela-se manifestamente atenuado, pois estão em causa apenas e só dois episódios e somente um único ato de tráfico.

44.ª Apesar da sua notória ilicitude, a verdade é que o arguido apenas colocou produto estupefaciente em circulação uma única vez, aquando do episodio do dia 26/10/2021, pelo que a violação dos bens jurídico protegido foi apenas integralmente violado nessa circunstância.

54.ª Com efeito e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, entendemos, assim, apresentar-se cabalmente evidenciada uma prognose social favorável, que deve conduzir a que o Tribunal corra um risco prudente, um risco moderado, na convicção de que os momentos vividos pelo arguido em contacto com o sistema de justiça, aliados à ameaça de uma pena de prisão serão suficientes para realizar os fins das penas e mantê-lo afastado da criminalidade.


*

2.2. Do recurso da arguida …

“1ª … mal o Tribunal a quo quando declarou perdido a favor do Estado o veiculo de marca ..., com matricula ..-DB-.., bem como do telemóvel de marca ..., modelo ..., com IMEI ...75, porquanto não ficou demonstrada qualquer relação de causalidade adequada entre o uso daqueles objetos e a pratica do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro, caraterizando-se tal declaração de forma injustificada, desadequada e desproporcional.

Contudo, antes de mais, cumpre-nos salientar que a arguida permanecia num completo estado de ignorância desculpável acerca da presença daquele estupefaciente dentro do seu veículo, tal e qual foi louvavelmente dado como provado pelo Tribunal a quo, salientando-se, que na nossa humilde opinião, esse estado desculpável reforça-se tendo em conta o sitio onde o produto estupefaciente se encontrava escondido, francamente de difícil acesso e verificação.

Pelo que, o pleno desconhecimento da arguida, sustento da sua absolvição, coloca-a na posição de terceira de boa-fé, ainda que num plano meramente material, relativamente ao carro e ao telemóvel, para efeitos do disposto no artigo 36º-A do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de janeiro, que justificará a devolução daqueles objetos à aqui arguida.

Porem, admitindo que Vossas Excelências não acompanhem o nosso entendimento, o que não estamos em crer, sempre se dirá que, concretamente, não se verifica qualquer essencialidade e proporcionalidade entre a utilização do veiculo e o telemóvel cujas perdas estão em discussão, ambos propriedade da arguida, e o crime de tráfico de estupefacientes, que justifique a decisão do Tribunal a quo, em declarar tais objetos perdidos a favor do Estado.

Assim, no que toca à essencialidade, relativamente ao veiculo apreendido, parece- nos que, tendo em conta as quantidades apreendidas, arguido AA poderia desenvolver aquela atividade sem qualquer recurso ao veiculo, uma vez que o mesmo conseguiria faze-lo transportar de outra maneira, nomeadamente no seu próprio corpo ou mediante a utilização de transportes públicos, não sendo a sua utilização indispensável ao transporte ou à ocultação do produto estupefaciente, sendo somente um mero meio de transporte que o arguido utilizava no seu dia-á-dia para se deslocar ao seu local de trabalho, à sua residência ou a outros locais do quotidiano.

Para alem disso, dos autos não se apuraram quaisquer atos de venda, pelo que se desconhece a essencialidade do veiculo na prossecução do ilícito, …

10ª O mesmo se diga relativamente ao telemóvel, cujo nexo de causalidade adequada não se verifica, pois, alem do telemovel pertencer à arguida que fora absolvida, a verdade é que das perícias efetuadas, não se apurou qualquer conteúdo que sugerisse a sua ligação àquela atividade ilícita, veja-se que não foram descobertas mensagens, chamadas telefónicas realizadas para números conotados ao trafico, nem sequer fotografias, como é usual nestas atividades, de produtos estupefacientes.

11ª E, mais, não ficou demonstrado que quer o veiculo, quer o telemóvel sejam produto/vantagens da atividade de tráfico de estupefacientes.

12ª De igual modo, existe uma clara desproporcionalidade entre o valor comercial das quantidades apreendidas e o valor comercial do veiculo, sendo este ultimo desproporcionalmente bastante mais elevado.

13ª Pelo que, não havendo qualquer elemento probatório que demonstre que efetivamente quer o veiculo, quer o telemóvel, foram adquiridos com produto da venda de estupefacientes, não poderá isso ser vagamente presumido e considerado.


*

            3. A Digna Magistrada do MºPº junto da primeira instância respondeu aos recursos.

           


*

            4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido … e pela procedência do recurso interposto pela arguida ….

*


        II- FUNDAMENTAÇÃO
A) Delimitação do objeto dos recursos

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelos recorrentes as questões para apreciar são as seguintes:

      - Do recurso do arguido …:

      - A nulidade da busca realizada no dia 19.06.2021 e suas consequências em relação à decisão da matéria de facto referente ao episódio ocorrido nesse dia;

       - A incorrecta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências;

      - O incorrecto enquadramento jurídico-penal;

      - A incorrecta ponderação da medida da pena;

      - A eventual suspensão da execução da pena de prisão.

      - Do recurso da arguida …:

       - A incorrecta ponderação do decretado perdimento a favor do Estado do veículo e do telemóvel propriedade da arguida.


*

            B) Da decisão recorrida

            Para a apreciação das questões que se suscitam nos recursos, importa ter presente o que consta do acórdão recorrido, que, na parte relevante, se transcreve:

            “II – FUNDAMENTAÇÃO:

                    Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:

                    1. Os arguidos CC e BB casaram no dia 15/09/2016.

                    2. No dia 19/06/2021, no período compreendido entre as 22h00m e as 22h26m, os arguidos … circulavam entre a Estrada ..., sita na ..., e a Rua ..., sita na ..., em ..., no veículo ligeiro de passageiros de “marca”, modelo ..., com a matrícula ..-DB-.., o qual era conduzido pelo arguido ….

            3. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra descritas, o arguido detinha na sua posse, mais concretamente, no interior da manete da caixa de velocidades do veículo em que circulava, uma meia de cor preta, contendo no seu interior, dissimulado, um saco de plástico transparente, que, por sua vez, continha dois sacos de plástico, um, com cocaína, com o peso de 14,901 gramas, com um grau de pureza de 30,7%, permitindo 23 doses, e, outro, com heroína, com o peso de 22,102 gramas, com um grau de pureza de 6,7%, permitindo 14 doses, os quais foram apreendidos.

                    4. No interior da referida meia preta, junto ao produto estupefaciente, o arguido detinha ainda um papel manuscrito, o qual foi apreendido, com os seguintes dizeres “23@, 15#, É A ÚLTIMA QUE TENHO, VOU TER MAIS, AGUENTEM COM ISSO, SEGUNA FEIRA ENTREGO MAIS”.

            5. Após, pelas 22h26m, foram os arguidos … detidos em flagrante delito e sujeitos a Primeiro Interrogatório Judicial.

                    6. Desde o dia 19/06/2021, o arguido … abandonou a cidade ... e deslocou-se para a zona de Lisboa, mais concretamente, para ..., ... (Lisboa), onde passou a residir.

                    7. No dia 26/10/2021, pelas 19h51m, DD e a sua companheira, EE, deslocaram-se no veículo ligeiro de passageiros de marca ...”, modelo ..., com a matrícula ..-..-OH, da localidade de ..., pelo Itinerário Complementar nº 2 (IC2) em direção a Lisboa, mais concretamente, a ..., ao encontro do seu “fornecedor” de cocaína, o arguido ….

            8. Na localidade de ..., mais concretamente na Travessa ..., junto a uma estrada de terra batida, após passar o campo de futebol de ..., DD imobilizou a sua viatura.

                    9. Pelas 21h07m, o arguido … chegou ao local supra referido em 8., ao volante do veículo ligeiro de passageiros marca ...”, modelo ..., com a matrícula “..-VC-..”, propriedade da empresa “B..., SA”.

                    10. De imediato, DD dirigiu-se à janela do condutor do veículo conduzido pelo arguido …, que entregou ao primeiro um saco de plástico, contendo no seu interior 19,872 gramas de cocaína, com o grau de pureza de 63,6%, que permitia 63 (sessenta e três) doses para posterior revenda, e mais um saco de plástico, contendo no seu interior 0,890 gramas de cocaína, com o grau de pureza de 50%, que permitia 14 (catorze) doses, em troca da respetiva contrapartida monetária.

                    12. Pelas 22h45m, na Rua ..., na localidade de ... (...), a viatura em que DD e EE seguiam foi intercetada pelas autoridades policiais, estando DD e EE na posse do produto estupefaciente supra referido em 10, que haviam acabado de adquirir ao arguido ….

                    13. O arguido … pretendia vender os produtos estupefacientes que detinha e transportava, e que lhe foram apreendidos, a terceiros consumidores e revendedores, sendo que as quantidades que detinha e que lhe foram apreendidas excediam as necessárias ao consumo médio individual, previsto na Tabela Anexa ao DL nº 15/93, de 22/01.

                    14. O arguido conhecia as características, natureza e efeitos das substâncias supra descritas que detinha e que vendia, bem sabendo que a sua aquisição, detenção, venda e cedência a qualquer título são proibidas e criminalmente punidas, e ainda que o seu consumo afecta gravemente a saúde, pelo que a respectiva difusão lesa a saúde pública.

                    15. O arguido … agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

                    16. Do certificado de registo criminal do arguido onstam as seguintes condenações:

            Por decisão de 15.3.2018, no âmbito do processo 71/16.... do Juiz ... do JCC de ..., pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, que foi extinta;

                    Por decisão de 30.5.2018, no âmbito do processo 104/14.... do Juiz ... do JCC de ..., pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade na pena de 2 anos de prisão suspensa por igual período;

                    Por decisão de 15.3.2018, no âmbito do processo 78/16.... do Juiz ... do JLC ..., pela prática de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio na pena de 70 dias de multa à taxa legal de 5€ o que perfaz o total de 350€, que pagou;

            Por decisão de 23.5.2022, no âmbito do processo 177/20.... do Juiz ... do JLC ..., pela prática de um crime de consumo de estupefacientes na pena de 4 meses de prisão, suspensa pelo período de um ano;

            17. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta.

            …

            Matéria de facto não provada

                    Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

                    1. A arguida detinha na sua posse, dissimulado, um saco de plástico transparente, que, por sua vez, continha dois sacos de plástico, um, com cocaína, com o peso de 14,901 gramas, com um grau de pureza de 30,7%, permitindo 23 doses, e, outro, com heroína, com o peso de 22,102 gramas, com um grau de pureza de 6,7%, permitindo 14 doses.

                    …

            14. A arguida conhecia as características, natureza e efeitos das substâncias supra descritas que detinha e que vendia, bem sabendo que a sua aquisição, detenção, venda e cedência a qualquer título são proibidas e criminalmente punidas, e ainda que o seu consumo afecta gravemente a saúde, pelo que a respectiva difusão lesa a saúde pública.

            15. Mais, sabia a arguida que todos os supra referidos efeitos resultavam significativamente aumentados pela circunstância de distribuir aqueles produtos por elevado número de pessoas, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e logrou.

                    16. A arguida agiu com intenção de obter avultada compensação remuneratória através do tráfico de estupefacientes, o que efetivamente logrou, no período compreendido entre 19.6.2021 e 26.10.2021.

                    17. A arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


*

            …


*

                    Motivação da decisão de facto

                   


*

                    Enquadramento jurídico-penal:

                    Crime de tráfico de estupefacientes:

                    …

                    O artigo 21º, nº 1 do DL 15/93, sendo o tipo-base do crime de tráfico deestupefacientes, pressupõe, a avaliar pelos elevados limites da moldura penal aplicável, actos de tráfico de significativo relevo, de média e grande escala, ou, por outras palavras, de uma expressão de ilicitude de assinalável dimensão, pondo em perigo (visto que se trata de um crime de perigo abstracto) em grau médio ou elevado, os bens jurídicos protegidos com a incriminação: a saúde e a integridade física e psíquica dos cidadãos, ou, em termos sintéticos, a saúde pública.

                    …

                    O artigo 25.° trata-se, como tem sido entendido na jurisprudência e na doutrina, de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação ao tipo fundamental do art. 21.°, pressupondo, por referência a este tipo fundamental, que a ilicitude se mostre consideravelmente diminuída, em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, qualidade ou a quantidade dos produtos.

                    …

                    Duvidas não existem que se mostram preemchidos os elementos objetivos e subjetivos de um crime (e não de dois crimes) de trafico de estupefaciente, p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22.1 no que respeita ao arguido.

                    Escolha e determinação da medida da pena:

                    …

                    O crime de tráfico de estupefacientes apenas admite pena de prisão.

                    …

            Atendendo às circunstâncias que já se analisaram, afigura-se adequado aplicar ao arguido, à luz do regime vigente, aplicar a pena de 5 (cinco) anos e 1 (um) mês de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.


*

                    Destino dos objectos apreendidos:

                    Determina-se a destruição de todas as amostras cofre relativas a estes autos, ao abrigo do disposto no artigo 62.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

                    Nos termos do artigo 35.º, n.ºs 1, e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, determina-se o perdimento a favor do Estado de todos os objectos relacionados com o tráfico de estupefacientes, apreendidos aquando das buscas realizadas nos presentes autos, incluindo o veículo que os respectivos arguidos utilizavam para a execução das suas actividade de venda de estupefaciente, por terem servido para a prática do crime de tráfico imputado aos arguidos.”


*

            B) Apreciação dos recursos

           


*

            I- Questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido AA

            Antes de entrarmos na análise das questões suscitadas pelo recorrente AA no recurso por este interposto, impõe-se proceder, por um lado, à correcção de um lapso de escrita que se detecta no acórdão recorrido, e, por outro, ao conhecimento de um vício que o acórdão recorrido evidencia e que é de conhecimento oficioso (cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95).

               Com efeito, patenteia-se do próprio contexto da decisão, …, um lapso de escrita respeitante à condenação do arguido nele decidida pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº1 do Dec. Lei 15/93, de 22.01, quando aí se escreveu“ por referência à tabelas I-A e I-C, anexo aquele diploma legal “, quando deveria constar “ por referência às tabelas  I-A e I-B anexas a tal diploma legal “,

                    …

            Já quanto ao vício que o acórdão evidencia, decorre o mesmo da circunstância do Tribunal a quo ter dado como deu como provado que constam do certificado de registo criminal do arguido as quatro condenações que elenca no ponto 16. do elenco factual provado.

            Matéria essa que, conforme decorre da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, resultou demostrada com base no certificado de registo criminal junto aos autos.

            Contudo, o conteúdo do referido ponto 16., decisivo, como veremos, para a determinação da pena concreta que constitui uma das questões suscitadas pelo recorrente no presente recurso, não contém elementos que, pese embora constem do documento considerado para o efeito - certificado de registo criminal do arguido junto aos autos – não se mostram ali transcritos.

            Na enumeração dos factos provados [e não provados], que o artigo 374.º, nº2 do CPP impõe, a indicação dos antecedentes criminais deve conter uma referência expressa às condenações ou processos ou condenações relevantes para a decisão a tomar na sentença que se profere, identificando os elementos distintivos do crime, data de cometimento, pena aplicada, data da respectiva condenação e data do trânsito em julgado da decisão condenatória.

            Ora, a indicação feita no acórdão recorrido quanto aos antecedentes criminais do arguido AA omite, a propósito de todas as condenações ali descritas, a data de cometimento dos crimes que as determinaram, a data do trânsito em julgado das decisões condenatórias e a data de extinção das mesmas, traduzindo-se, deste modo, numa insuficiência dos factos provados para os termos da condenação jurídica determinada pelo tribunal a quo, mais concretamente, no que à medida da pena diz respeito.

            Neste contexto, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), tem lugar quando a factualidade dada como provada não se revela suficiente para fundamentar a solução de direito alcançada, ou então quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material (artigo 340.º, n.º 1 do CPP) não investigou toda a matéria contida no objecto do processo que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado-  neste sentido, vide Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-10-2018, in www.dgsi.pt.

            Noutras palavras, como se assinala no Acórdão do STJ de 04-10-2006, in wwdgsi.pt, existirá insuficiência, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando “os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (…)”.

               No caso dos autos, como vimos, a falta verificada ao nível da descrição da matéria que resultou provada vertida no ponto 16. revela um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme prevê o citado artigo 410.º, n.º 2, alínea a), que este Tribunal de recurso pode suprir, face aos elementos que constam dos autos [artigos 426.º, n.º 1 (a contrario) e 431.º, alínea a), ambos do CPP], …

            Pelo que se determina que ao ponto 16. dos factos provados sejam aditados os elementos acima indicados, passando o referido ponto 16. a ter a seguinte redacção:

               “ 16. Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:

            Por decisão de 15.3.2018, transitada em julgado em 21.11.2018, no âmbito do processo 71/16.... do Juiz ... do JCC de ..., pela prática, em 2016, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, que foi extinta;

            Por decisão de 30.5.2018, transitada em julgado em 29.06.2018, no âmbito do processo 104/14.... do Juiz ... do JCC de ..., pela prática, em 2014, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade na pena de 2 anos de prisão suspensa por igual período;

                    Por decisão de 23.10.2018, transitada em julgado em 22.11.2018, no âmbito do processo 78/16.... do Juiz ... do JLC ..., pela prática, em 5.06.2016, de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio na pena de 70 dias de multa à taxa legal de 5€ o que perfaz o total de 350€, que pagou;

            Por decisão de 23.5.2022, transitada em julgado em 22.06.2022, no âmbito do processo 177/20.... do Juiz ... do JLC ..., pela prática, em 6.03.2020, de um crime de consumo de estupefacientes na pena de 4 meses de prisão, suspensa pelo período de um ano”

               Aqui chegados e nada obstando a que se conheça do recurso interposto, passemos, então, a apreciar as questões suscitadas no recurso.


*

      - Da nulidade da busca realizada no dia 19.06.2021 e suas consequências em relação à decisão da matéria de facto referente ao episódio ocorrido nesse dia

      Pretende o arguido … que a busca realizada, no dia 19.06.2022, ao veículo pelo mesmo conduzido, na sequência da qual veio a ser feita a apreensão de cocaína e heroína e que, subsequentemente, determinou a sua detenção, é nula, configurando, por isso, prova proibida.

      A argumentação aduzida pelo mesmo para o efeito é que tal busca não integra as situações excepcionais previstas no nº5 do art. 174º e na alínea a) do nº1 do art. 251º, ambos do CPP.

            Diferente entendimento sufraga o Ministério Público junto da 1ª instância e deste Tribunal da Relação, para o qual, não se tratando de uma busca domiciliária, havendo fundadas razões para crer que no veículo conduzido pelo arguido se ocultavam objectos relacionados com o crime de tráfico de produtos estupefacientes, a busca ao mesmo se apresenta válida à luz do disposto no art. 251º, nº1, al. a) do CPP, porquanto, se prevê em tal normativo legal a possibilidade da mesma.

            Prescreve-se em tal normativo legal que “ …”.

           

            Dispõe o artº 249º do CPP:

            “1. Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.

            2. Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:

            a. (…)

            b. (…)

            c. Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos.

            (…)”

            No que respeita à revista e busca dispõe o artº 174º do CPP na sua actual redacção: ( emergente da Lei Nº 94/2021, de 21/12) que:

            “…”

            Por seu lado o artº 251º do CPP estatui que:

            “…

            Portanto, de acordo com o disposto no artº 174º nº 2 do CPP, a busca tem lugar quando houver indícios de que objectos relacionados com um crime, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.

            Em regra as buscas não domiciliárias têm que ser autorizadas ou ordenadas por despacho, pela autoridade competente (artº 174º nº 3). Excepcionalmente, podem realizar-se sem precedência desse despacho.

            Essas excepções encontram-se previstas no nº 5 do artº 174º do CPP e no artº 251º do CPP.

            No caso em vertente os agentes da PSP, ao efectuarem a busca ao veículo onde os arguidos se faziam transportar, actuaram – conforme decorre do auto de notícia junto aos autos - na sequência da informação recebida no dia 19.06.2021 que dava conta que dois indivíduos (casal) iriam deslocar-se à ... para proceder à entrega de substâncias estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, referenciando-se, ainda, nessa informação que tal deslocação seria feita no veículo de marca ..., com a matrícula ..-DB-.., e, tratando-se de busca não domiciliária, não necessita de prévia autorização das autoridades judiciárias.

            A busca aqui em causa integra-se, pois, na alínea a) do artº 251º do CPP, o qual permite a realização de buscas como acto de natureza cautelar, sem serem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente desde que haja fundada razão para crer que em determinado lugar reservado ou não livremente acessível ao público e onde se encontrem suspeitos, se ocultem objectos relacionados com o crime ou susceptíveis de servirem de prova e que de outra forma poderia perder-se.

            Conforme refere Manuel Monteiro Guedes Valente, in “Revistas e Buscas”, pag 67, nos termos da referida disposição é necessário:

            a) que a busca se não enquadre no âmbito das buscas domiciliárias;

            b) que recaia sobre suspeito em caso de fuga iminente ou sobre detido;

            c) que exista fundada razão de que naquele local se ocultam objectos relacionados com o crime,

            d) que esses objectos sejam susceptíveis de servirem de prova;

            e) que se a busca se não efectivasse esses objectos se poderiam perder e, dessa forma, desaparecesses a utilidade da diligência;

            Ora, no caso vertente, a PSP tinha a informação de que iria haver uma deslocação à cidade ..., no veículo nela identificado, para entrega de produtos estupefacientes. 

            Portanto, havia fundadas e legítimas razões para que a PSP suspeitasse que os indivíduos, ora arguidos no processo, que se faziam transportar no veículo referenciado em tal informação poderiam ocultar no mesmo algum objecto relacionado com a actividade criminosa de tráfico de produtos estupefacientes, susceptível de servir de prova e que, caso não se realizasse de imediato a busca, poderia perder-se.

            E, foi, com base nessas fundadas razões, que os agentes da PSP intervenientes na abordagem feita ao veículo onde os arguidos se faziam transportar procederam à busca no interior desse veículo, ao abrigo do disposto no art. 251º, nº1 al. a) do CPP, e, não, como pretende o recorrente ao abrigo do disposto na alínea c) do nº5 do art 174º do CPP.

            Aliás, tais suspeitas vieram a concretizar-se, pois, no interior do veículo foram encontrados os produtos estupefacientes que, na sequência da mesma vieram a ser apreendidos, a saber: cocaína, com o peso de 14,901 gramas, com um grau de pureza de 30,7%,. Permitindo 23 doses, e heroína, com o peso de 22,102 gramas, com um grau de pureza de 6,7%, permitindo 14 doses.

            A lei exige, ainda, para além dos pressupostos acima referidos um de natureza formal – que a busca seja imediatamente comunicada ao juiz ( art 174º nº 7, aplicável por força do artº 251º nº 2, ainda que este normativo mantenha a remissão feita para o nº6 daquele Art. 174º, quando é certo que a redação deste, emergente da Lei Nº 94/2021, de 21/12, passou a prescrever no nº7 o que anteriormente se prescrevia no nº6.

            Conquanto o texto legal indique como destinatário da comunicação o JIC, sufraga-se o entendimento de que deve interpretar-se em conformidade com as normas que regulam a quem compete ordenar as buscas e revistas, e, consequentemente, deve restringir-se a exigência de intervenção do JIC, na fase do inquérito, às buscas domiciliárias (artigo 269.º, n.º 1, alínea c) do Código Processo Penal), devendo admitir-se que, nessa fase processual, a fiscalização do procedimento levado a cabo pelo OPC, quanto a buscas não domiciliárias, seja realizado pelo Ministério Público (artigos 53.º n.º 2, alínea b), 263.º, n.º 1 e 267.º do Código Processo Penal)- Neste sentido, vide, Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Processo Penal, p. 692-693; Conselheiros Santos Cabral e Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, pag.739 e 939.

            Ora, no caso vertente, a detenção dos arguidos ocorrida na sequência dessa busca e da apreensão dos produtos estupefacientes foi comunicada ao Mº Pº, vindo este a validar as mesmas, por despacho proferido no dia 21.06.2021 ( fls. 33), e, no mesmo dia, igualmente pelo Mmo. Juiz de Instrução que sobre a mesma se pronunciou, no sentido da respectiva validade, no despacho que proferiu na sequência do 1º interrogatório judicial dos arguidos.

            Termos em que se nega provimento ao recurso neste segmento recursivo.


*

            - Da incorrecta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências

            a. Ao colocar em causa a factualidade decidida pelo tribunal recorrido, o arguido … insurge-se contra tal decisão, considerando que a mesma padece de erro de julgamento na valoração dos meios de prova produzidos.

            …

            A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

            …

            Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

            Com efeito, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.

            Esta especificação deve fazer-se, quando se trate de declarações gravadas, por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

            O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

            O erro de julgamento, ínsito no citado artigo 412º, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

            Pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

            O que se visa com a impugnação ampla é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

            Tal reapreciação por parte do tribunal de recurso deverá, porém, ser feita com a necessária ponderação, atentos os princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova que nortearam a decisão do tribunal recorrido.

            …

            A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados e só se se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

            Como bem defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134 -1135, «… o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado»

            A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

            Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

            Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo destas, quais as particulares passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem aos factos impugnados.

            A concretização das passagens da prova por declarações pode ser feita, designadamente, pela indicação dos tempos de gravação dos segmentos em causa, ou pela transcrição destes.

            O recorrente terá pois de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

            Exige-se que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

            No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão de que se recorre, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

            Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 4/5/2016, proferido no processo 721/13.8TACLD.C1, “Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras da experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”.

            Ao Tribunal da Relação, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, cabe, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado ou por não provado o que se deu por não provado.

            E só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – neste sentido, Acórdãos do STJ de 15/5/2009,10/3/2010,25/3/2010, in www.dgsi.pt./stj.


*

      b. Como já deixámos adiantado, da análise da argumentação recursiva exarada na motivação e nas conclusões do recurso apresentadas pelo recorrente resulta patente que o mesmo envereda pela impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na incorrecta análise e valoração dos elementos probatórios carreados para os autos, os quais, em seu entender deveriam conduzir à não prova de alguns dos factos constantes da acusação a cuja concreta indicação procede …

      Sendo esse, como é, o desiderato do recorrente, incumbia-lhe o cumprimento dos ónus de impugnação especificada previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, …

      E, essa especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.

      Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças, «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).

      Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão» - in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.

      …

      A concreta indicação feita pelo recorrente em relação à factualidade que entende ter sido incorrectamente apreciada, quer no corpo da motivação, quer nas conclusões do recurso, respeita:

- Quanto ao episódio ocorrido no dia 19.06.2021, aos factos vertidos nos pontos 3., 4., 13., 14. e 15., do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido; e

- Quanto ao episódio ocorrido no dia 26.10.2021, aos factos vertidos nos pontos 7., 10., 12., 13., 14. e 15. do elenco dos factos provados constantes do acórdão recorrido. 

     

Quanto à exigência de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, convoca o recorrente os seguintes meios de prova, a saber:

Relativamente ao episódio ocorrido no dia 19.06.2021:

- Relativamente ao episódio ocorrido no dia 26.10.2021:

Procedendo o recorrente, em relação aos meios de prova por declarações do arguido e por depoimentos das testemunhas que convoca, procedido à transcrição de algumas passagens dos mesmos, indicando, ainda, os momentos dos ficheiros do registo da respectiva gravação, conexionando, com maior ou menor acuidade, o conteúdo desses meios de prova especificados com o teor dos pontos de facto impugnados, entendendo que os mesmos impõem decisão diversa.

Tal pressuposto de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal recorrido.

Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente, exigência esta que, de algum modo, corresponde àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, pois, do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido ao recorrente. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio destes para, em seu entender, dizer ou afirmar que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida.

E, tal assim é, porque, como se salienta no Ac. do STJ, de 19.05.2010 ( processo nº 696/05.7TAVCD.S1), disponível in www.dgsi.pt, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.”

Havendo, ainda, que considerar, como aspecto relevante na apreciação da impugnação da matéria de facto, a que vem estando atenta a jurisprudência, que a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, se destina, apenas, a remediar erros pontuais de procedimento ou de julgamento, pois, tal como se salienta no Ac. do STJ de 15.12.2005, ( Proc.  05P2951), igualmente disponível in www.dgsi.pt, “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Donde, como bem se sintetiza, no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30.04.2008, proferido no proc. nº 105/06.4GCPMS.C, disponível in www.dgsi.pt., “O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº07P4203, em http://www.dgsi.pt).

Por isso, como neste se adianta, no que concerne à valoração da prova testemunhal e da prova por declarações, existe uma enorme diferença entre a apreciação e valoração feita na 1ª instância e a que pode ser efectuada pelo tribunal de recurso, com base na transcrição dos depoimentos ou mesmo, na audição das respectivas gravações.

É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal e por declarações, e que se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação ou seja, do contacto próximo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais.

Daí que, quando o julgador atribui ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.

Neste sentido, aliás, se pronunciou já o Tribunal Constitucional, ao aceitar que o verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância, onde regem os princípios da imediação e da oralidade, onde são produzidas todas as provas e o tribunal contacta directamente com os intervenientes processuais (Ac. nº 59/2006, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).

Nada impedindo, pois, o conhecimento da impugnação deduzida, por via do recurso amplo ou efectivo, com o objecto e limites que lhes assinalou e que acabamos de explanar, vejamos, pois, os factos dados como provados relativamente aos quais o recorrente discorda do juízo de valoração das provas feito pelo Tribunal recorrido para o efeito.

       

           

            Sendo certo que, quanto à ocorrência do episódio do dia 19.06.2021, a prova documental e pericial convocada pelo recorrente não permite, por si só, imputar diretamente ao arguido a posse e propriedade do produto estupefaciente que veio a ser apreendido, porquanto, a mesma, como o mesmo propugna, permite apenas sustentar:

             i.) o Auto de noticia por detenção, fls. 4 a 5 –a sequência factual dos acontecimentos;

            ii.) o Auto de apreensão, fls. 6 e folhas de suporte, fls. 15 a 16 – a formalização da apreensão do produto estupefacientes, presente no veiculo de marca ..., com matricula ..-DB-..;

            iii.) os Autos de pesagem e despistagem, fls. 7 a 8 – o tipo de substancia apreendida e o seu peso;

            iv.) a reportagem fotográfica, fls. 17 a 20 –a aparência e modo de acondicionamento do produto estupefacientes;

            v.) consultas da base de dados da segurança social, fls. 30 a 32 –  informações pessoais do arguido;

            vi.) certidão de nascimento do arguido, fls.183 e 184 – a sua data de nascimento e filiação

            …

            A verdade é que o Tribunal a quo não deixou de levar em conta o conteúdo probatório de todos esses meios de prova na ponderação da factualidade que vem posta em causa pelo recorrente em relação aos dois episódios, conjugando-os entre si e com os demais elementos probatórios carreados para os autos, e, analisando-os à luz das regras da experiência comum, concluiu pela demonstração da factualidade que o recorrente pretendem ver alterada para não provada. 

            E, adiantando já, a valoração que deles se impõe fazer não poderá ser diferente da que foi feita pelo Tribunal recorrido à luz das regras da experiência comum como impõe o princípio da livre apreciação da prova, previstos no art. 127º do CPP.

            É que, correspondendo, embora, o conteúdo probatório dos meios de prova convocados pelos recorrentes ao que por estes deles vem extraído em sede recursiva, correspondendo ao que efectivamente neles se contém, a verdade é que os mesmos não têm a virtualidade de impor decisão diversa em relação à factualidade que vem impugnada.

            …

            É que, “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência” – cfr. Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ nº 112, pg. 190.

Aliás a associação que a prova indiciária entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova direta testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho – cfr. Mittermayer, Tratado de la Prueba em Processo Penal, p. 389.

No entanto, para que a prova indireta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exige-se: - pluralidade de factos-base ou indícios; precisão de tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; - que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; - a expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 39, fazendo a síntese da doutrina e jurisprudência sobre o tema. No mesmo sentido, desenvolvidamente, cfr. CARLOS CLIMENT DURÁN, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch p. 626 e segs., em especial p. 633.

Como decidiu o Ac. do T. Constitucional de 24.03.2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. «A decisão da matéria de facto não constitui uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo”»

 Por outro lado, em termos de valoração da prova, a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615. Ou como ponderava Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, pp. 48 e 49) “a verdade a que se chega no processo não é a verdade absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática», em que a sua modalidade «não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações, como tudo o que nestas de material e de espiritual participa”.

Por último, a dúvida razoável, que determina a impossibilidade de ter como provada a realidade de um facto, por um lado, não é a dúvida abstrata, meramente possível ou hipotética. Mas antes a dúvida concreta, que resulta da discussão exaustiva da prova, devidamente objetivada na fundamentação da decisão. Devendo ainda apresentar-se como séria e razoável em face da análise da prova efetuada. A dúvida deve ser argumentada, coerente e razoável – cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), p. 25.

Assim, se o princípio da livre apreciação exige a formação, objectivada na motivação da decisão, de uma convicção para lá da dúvida razoável, o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável – devendo também ser objectivada na motivação da decisão. Assim o princípio da livre convicção e o princípio in dubio pro reo constituem a face e o verso da mesma realidade, constituindo o critério da decisão judicial sobre a prova do facto. Em ambos os casos, quando a apreciação não é vinculada, é a razoabilidade dessa apreciação, à luz dos critérios da experiência comum, objetivada na motivação da decisão, que constitui o critério da decisão.

     No caso sob apreciação, as circunstâncias em que os produtos estupefacientes vieram a ser encontrados no veículo conduzido pelo arguido, acompanhados de um bilhete escrito com os dizeres que constam do ponto 4. da factualidade dada como provada, faz pressupor não  só, que o arguido, enquanto condutor do veículo sabia da existência dos mesmos naquele local, e, também, que tais produtos se destinavam a ser entregues a um concreto destinatário, mediante acordo e encomenda prévios para o efeito, retratando até esses dizeres que tal quantidade seria inferior à pretendida por esse destinatário, circunstâncias essas que, no seu conjunto, nunca poderão pressupor que tivessem sido escondidas naquele local do interior do veículo por pessoa que a este não tivesse acesso livre e directo, como é o caso do arguido que, na altura, o conduzia.

E a convicção alcançada pelo tribunal recorrido em relação a todos esses elementos de prova– e não apenas aos convocados pelo recorrente - não merece censura, porquanto, se mostra sustentada nos meios probatórios por aquele valorados e mencionados na motivação da decisão de facto, os quais, no seu conjunto, sedimentam, à luz do princípio da livre apreciação da prova, a convicção que o tribunal recorrido alcançou ao dar como provados os factos que agora o recorrente veio impugnar, …

Agora quanto aos factos vertidos nos pontos 7., 10., 12., 13., 14. e 15. do elenco dos factos provados constantes do acórdão recorrido, reportados ao episódio ocorrido no dia 26.10.2021, impugnados igualmente pelo recorrente com base nas declarações prestadas pelo arguido e nos depoimentos prestados pelas testemunhas …, militares da GNR, convocados pelo recorrente em sede de impugnação, nenhuma censura nos merece a valoração de que deles foi feita pelo tribunal recorrido, porquanto, ao contrário do que pretende o recorrente, os depoimentos das referidas testemunhas, militares da GNR – a cuja audição da respectiva gravação este Tribunal de recurso igualmente procedeu -, na sua totalidade e não apenas nas passagens das mesmas assinaladas pelo recorrente- sustentam, inequivocamente a prova de tais factos.

Tudo para dizer, pois, que a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base nos elementos probatórios para o efeito valorados se mostra feita de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e segundo os ditames das regras da experiência.

            Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.

            Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186.

            O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. É aí, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º 5.

            Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.». Obra citada, páginas 233 a 234.

            Na verdade, a convicção do Tribunal é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

            Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova resulta o acerto dessa opção sobre a matéria de facto impugnada, nos termos do art.127.º do C.P.P., por não impor decisão diversa, deve manter a decisão recorrida.

Ora, na motivação da decisão de facto que fez constar na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção a respeito da factualidade que considerou demonstrada e que o recorrente vem pôr em causa, indicando os aspectos da mesma que, conjugadamente, o levaram a concluir no sentido de a considerar provada, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que, no seu entendimento, justificam a credibilidade que reconheceu e a força probatória que conferiu a esses elementos de prova, beneficiando, como já referido, da oralidade e da imediação que o julgamento em primeira instância lhe permitiu.

E, tal raciocínio analítico da 1ª instância feito com base nos elementos probatórios que para o efeito valorou,  como já se adiantou, não nos merece reparo, bem pelo contrário, mostra-se suportada plenamente pelos elementos probatórios para o efeito valorados, de forma segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do C.P.P.

            Para além disso, também quanto à prova dos factos atinentes ao elemento subjectivo, embora a esse respeito nada se adiante em concreto na motivação, lançando mão das presunções judiciais assentes nas regras da experiência comum, a partir da objectividade da acção desencadeada, permitem as mesmas sustentar a factualidade provada que, a esse respeito, vem posta em causa pelo recorrente.

            Na verdade, o dolo, legalmente definido no art. 14º do C. Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude.

            O dolo, enquanto facto subjectivo, enquanto facto da vida interior do agente, não pode ser apreendido ou percepcionado directamente por terceiros pelo que a sua demonstração, tem que ser feita por inferência, através da conjugação da prova dos factos objectivos, em particular, dos que integram o tipo objectivo do crime, pelo que relativamente à prova dos factos subjectivos esta é alcançável por recurso a presunções naturais e às regras da experiência comum.

            …

            E, com base em tal inferência, com recurso a presunções naturais e às regras da experiência, também não nos merece reparo a decisão do tribunal recorrido a respeito da demostração, igualmente, da factualidade que integra os pontos da factualidade provada contida nos pontos 13. e 15. que vêm impugnados.

Importa, por fim, referir a respeito da globalidade da matéria que vem impugnada pelo recorrente no presente recurso, que, nada resulta da fundamentação sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida a respeito de qualquer dúvida que tenha pairado na convicção dos julgadores da primeira instância a propósito da factualidade que estes consideraram como provada e que vem posta em causa no presente recurso que justifique equacionar-se ter sido postergado o principio in dubio pro reo, aflorado pelo recorrente na motivação e nas conclusões do recurso.

Com efeito, o princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

Trata-se de uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Ou seja, se produzida a prova subsiste no espírito do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, impõe-se proferir uma decisão favorável ao arguido.

A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.

Nesta fase do recurso, a demonstração da sua violação passa pela respectiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, ou seja, têm que resultar da fundamentação desta, de forma clara, que o juiz, pese embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou que, sendo favorável ao agente, o considerou não provado.

Como resulta, entre outros, do acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177, o Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

Refere Roxin, in “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.

Assim, se na fundamentação aduzida na decisão o Tribunal não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

No caso vertente, o recorrente invoca o princípio in dubio pro reu essencialmente como corolário da sua apreciação da prova.

Para o recorrente, de acordo com a sua própria apreciação/valoração, a prova produzida nos autos não permite concluir no sentido decidido quanto aos pontos da factualidade provada que indica como incorrectamente julgados, por entender que a prova carreada para os mesmos se mostra insuficiente para os poder sustentar, impondo, por isso, uma dúvida razoável que deveria ter sido valorada positivamente aseu favor, em conformidade com o princípio in dubio pro reo consagrado no art. 32º, nº2, 1ª parte da CRP.

Porém, em parte alguma da decisão recorrida resulta que, que relativamente à mencionada factualidade, o tribunal a quo se tenha defrontado com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.

Ao invés, a opção do tribunal recorrido relativamente à factualidade posta em causa no presente recurso, e em relação a toda esta, mostra-se segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do C.P.P.

            Pelo que não se detecta que tenha sido violado o princípio in dubio pro reo.


*

      - Do incorrecto enquadramento jurídico-penal     

            …, insurge-se também o arguido …  em sede recursiva contra o enquadramento jurídico-penal ponderado no acórdão recorrido a respeito dos factos nele considerados apurados, pugnando que a sua conduta deverá enquadrar-se no tipo legal do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º do referido Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro.

            …

Visto que, ao contrário do propugnado pelo recorrente, lograram provar-se os factos respeitantes às duas actuações imputadas ao mesmo na acusação contra o mesmo deduzida, afigura-se-nos correcto o enquadramento jurídico-penal ponderado no acórdão recorrido, que, nessa perspectiva, parece nem sequer vir posto em causa pelo recorrente.

Ainda assim, sempre diremos o seguinte.

O crime de tráfico, tutelando o bem jurídico saúde e integridade física dos cidadãos ou, melhor dito, a saúde pública, é um crime comum – pode ter por autor qualquer pessoa –, de perigo abstracto – consuma-se com a mera criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido, não sendo o perigo elemento do tipo, mas apenas, motivo da proibição – e exaurido ou de empreendimento – a protecção do bem jurídico recua a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa.

Não obstante o grande desvalor social da actividade do tráfico de estupefacientes e a sua elevada danosidade, o legislador reconheceu que nela podem distinguir-se distintos graus, a exigirem diferenciadas reacções penais. E assim, o Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, para além do tipo base (art. 21º), prevê um tipo especial agravado (art. 24º), um tipo especial privilegiado (art. 25º) e ainda o tipo de tráfico-consumo (art. 26º).

Na nota justificativa enviada à Assembleia da República, na parte relativa ao art. 25º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, foi realçado o propósito de, com ele, permitir “ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo do tráfico menor, que apesar de tudo não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os dealers de rua representam na cadeia do tráfico. Haverá, assim, que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial.”.

Dispõe o citado art. 25º:

O tipo privilegiado fica, pois, preenchido quando, preenchido o tipo do art. 21º ou do art. 22º, se mostre consideravelmente diminuída a ilicitude do facto.

Tal preceito, apelidado por Lourenço Martins de “válvula de segurança do sistema” consagra um tipo privilegiado relativamente ao tipo matricial p. e p. no art. 21º do diploma legal citado ( in Nova Lei Anti-Droga: Um Equilíbrio Instável).

Não é, porém, uma qualquer diminuição da ilicitude do facto que possibilita a aplicação do tipo privilegiado. A lei exige que essa diminuição seja considerável, portanto, que seja uma diminuição notável.

A requerida considerável diminuição da ilicitude do facto deve resultar de uma avaliação global da situação de facto, pela ponderação, entre outros factores [o advérbio “nomeadamente”, na previsão legal, significa poderem e deverem ser consideradas todas as circunstâncias que, concorrendo no caso, sejam relevantes para aferir se, objectivamente, a ilicitude da acção tem menor relevo que a tipificada para os arts. 21º e 22º], dos meios utilizados [a organização e a logística], da modalidade e circunstâncias da acção [em função do grau de perigosidade para a difusão do estupefaciente], e da qualidade e/ou quantidade das substâncias, plantas ou preparados [em função da intensidade do ‘ataque’ ao bem jurídico protegido].

No que respeita às circunstâncias tipificadas no art. 25º, cumpre dizer:

i) quanto aos meios utilizados, traduzidos na organização e na logística de que o agente se serve, que eles podem ser nulos, incipientes, médios ou de grande dimensão e sofisticação, aqui figurando ainda a posição relativa do agente na pirâmide da rede do tráfico;

ii) quanto à modalidade ou às circunstâncias da acção, que releva, essencialmente, o grau de perigosidade para a difusão da droga designadamente, a maior ou menor facilidade de detecção da sua penetração no mercado, e o número de consumidores fornecidos;

 iii) quanto à qualidade das plantas, substâncias ou preparações, relacionada com a respectiva perigosidade, que ela pode ser aferida pela sua colocação em cada uma das tabelas anexas ao Dec. Lei nº 15/93, e pelos resultados da investigação científica relativamente à capacidade aditiva de cada uma e às consequências do respectivo uso e; e, por último;

iv) quanto à quantidade das plantas, substâncias ou preparações, que há que ponderar, em função dela, o maior ou menor risco para os valores tutelados pela incriminação.

Para além das circunstâncias atinentes aos fatores de aferição da ilicitude indicados no texto do art. 25.º do DL 15/93, há que ter em conta todas as demais circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da ação e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) ao tipo privilegiado do art. 25º do DL 15/93, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir, como já atrás se consignou, os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade justificativa do crime tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência (ausência) daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e atividades contemplados no crime tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para integração da norma que prevê e pune o crime tipo.

Ao estabelecer uma moldura penal menos severa, o art. 25º impõe ao intérprete verificar se a imagem global do facto se enquadra ou não, dentro dos limites das molduras penais dos arts. 21º e 22º, sob pena de a reacção penal ser, à partida, desproporcionada pois, a concretização da considerável diminuição da ilicitude em cada caso, exige a aplicação de critérios de proporcionalidade que são pressupostos da definição das penas e depende, em grande parte, de juízos essencialmente jurisprudenciais ( vide a este propósto, Maria João Antunes, in Droga, Decisões de Tribunais de 1ª Instância, 1993, Comentários, pág. 296).

É que, conforme defende Lourenço Martins, in “Droga e Direito”, 1994, pág.151, o interesse tutelado com a previsão do crime de tráfico de menor gravidade, também ele de perigo abstrato, foi a exigência de “atribuir menor relevo à menor periculosidade presumida dos factos, na sua globalidade de mais escassa relevância”, pretendendo-se com o mesmo evitar que situações efetivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 17.03.2010, in www.dgsi.pt,  o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.ºdo DL 15/93,de 22-01, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, ou seja, ao crime do art. 21.º, do citado DL 15/93.Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude do facto, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como fatores aferidores de menorização da ilicitude do facto, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações. É, pois, a partir do tipo fundamental, concretamente da ilicitude nele pressuposta, que se deve aferir se uma qualquer situação de tráfico se deve ou não qualificar como de menor gravidade.

Ainda segundo o mesmo acórdão, tal aferição, consabido que a ilicitude do facto se revela, essencialmente, no seu segmento objetivo, com destaque para o desvalor da ação e do resultado, deverá ser feita a partir de todas as circunstâncias que, em concreto, se revelem e sejam suscetíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito, quer do ponto de vista da ação, quer do ponto de vista do resultado.

Conforme jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, a diferença entre os arts. 21º e 25º do D.L.15/93, de 22/1, assenta numa escala de danosidade social centrada no grau de ilicitude, a aferir caso a caso, com base na ponderação das condições especificamente apuradas e que devem ser globalmente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativamente contida no último desses preceitos (cfr. entre muitos outros Ac. do S.T.J. de 18/2/1999, CJ –S.T.J., Tomo I, pág.220 e segs. ).

Não sendo a enumeração legal taxativa, tem-se ainda entendido que o critério a seguir para qualificar o facto como menos grave ou leve, deverá ser o da valorização global da ocorrência e das concretas e específicas circunstâncias em que a mesma se desenvolveu.

Assim, para além das referências à quantidade e qualidade das substâncias traficadas, pode e deve atender-se ao seu grau de pureza ou perigo que representam em razão da sua natureza mais ou menos viciante e, no tocante à modalidade ou circunstâncias da ação, devem ponderar-se, entre outras, as finalidades e as razões que lhe presidiram – vide, entre outros, Acórdãos do STJ de 12/3/2003 e 24/10/2007, disponíveis em wwwdgsi.pt.


*

Considerando, desde logo, as quantidades dos produtos estupefacientes por ele detida ( cocaína e heroína ) e por ele entregue ( cocaína ) e os respectivos grau de pureza, entendemos que a imagem global do facto não é compatível com um quadro de ilicitude consideravelmente diminuída, …

Assim, se julgando improcedente nesta parte o recurso pelo mesmo interposto.


*

      - Da incorrecta ponderação da medida da pena


*

*


…       

Como factores agravantes da medida da pena a aplicar ao arguido e ora recorrente, ponderou-se no acórdão recorrido:

            - as “elevadíssimas” necessidades de prevenção a nível geral que no caso se impõem;

            - o elevado grau de ilicitude dos factos, atento o modo de prática e a gravidade dos mesmos, espelhado nas várias modalidades da conduta; 

            - a intensidade do dolo: tida por a mais grave, por ser directo;

            -a conduta processual;

          - as necessidades de prevenção especial;

          - os antecedentes criminais do arguido.

          E, como atenuantes, apenas a sua regular inserção social e familiar.
E, na verdade, como agravantes da medida da pena a decidir:
São efectivamente elevadas as exigências de prevenção geral neste tipo de crime de tráfico de produtos estupefacientes, pela frequência com que tal criminalidade continua, ao longo dos anos, a ser praticada, e, pela necessidade de satisfação do interesse geral de restabelecer a segurança na comunidade e a saúde pública, elevando, por isso, a fasquia da prevenção (geral) e consequente necessidade da pena, embora a sua medida não possa ultrapassar a medida da culpa do agente.

Concordamos igualmente com a 1ª instância quanto ao à intensidade do dolo com que o arguido actuou, por ser directo, revelador de considerável energia criminosa e também quanto ao elevado grau da ilicitude, destacando quanto à dimensão da actividade por ele desenvolvida a quantidade e as diversas características dos produtos estupefacientes nela envolvidos - cocaína e heroína – ambas consideradas drogas duras.

Outrossim, as anteriores condenações já sofridas pelo arguido, em número de duas, por crimes de tráfico de droga de menor gravidade, são reveladoras de particulares exigências ao nível da prevenção especial, denotando que, apesar dessas anteriores condenações, oéstas não constituíram advertência para que o arguido arrepiasse caminho na prática de crimes de idêntica natureza, sendo, por isso, demonstrativas de que o mesmo apresenta uma personalidade desconforme com o direito, a demandar fortes exigências ao nível de prevenção especial.

Também a postura processual do arguido ora recorrente assumida na audiência de julgamento, salientada no acórdão recorrido, é demonstrativa da sua falta de consciência crítica para os factos e da ausência de arrependimento por parte do mesmo.

E, embora a circunstância considerada pelo tribunal recorrido, estribada na regular inserção social e familiar do arguido, acrescida, ainda, da sua inserção a nível profissional, possa assumir pendor atenuativo na pena a aplicar-lhe pela prática do crime por ele cometido, a verdade é que as mesmas já se verificavam aquando da prática dos factos a que se reportam os presentes autos e não foram impeditivas do cometimento dos mesmos.

            Como vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, a intervenção daquele tribunal superior tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada - neste sentido, citam-se apenas alguns dos arestos da vastidão jurisprudencial que emana do STJ respeito de tal questão processo - processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 29-06-2011.

Deste modo, tendo sido respeitados os parâmetros legais, cremos que se não justificará no caso intervenção correctiva deste Tribunal da Relação, considerando as mencionadas exigências de prevenção geral e especial, as circunstâncias agravantes em número muito maior do que as atenuantes verificadas e também ponderadas pelas 1ª instância, perante uma moldura penal abstracta que varia entre os quatro anos e os doze anos de prisão, cominada para o crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, cometido pelo arguido, mostra-se adequada, proporcional e justa à culpa do arguido ora recorrente e às prementes exigências de retenção, de defesa do ordenamento jurídico e da paz social que se fazem sentir nesta sorte de crimes, sem deixar de lado as necessidades de ressocialização do mesmo, a pena que foi fixada pela 1ª instância, a qual, por isso, é de manter.

Tal medida concreta da pena, assim decidida, não permite a sua substituição pela suspensão da respectiva execução, como é pretendido pelo recorrente, desde logo, pela não verificação do pressuposto objectivo de aplicação desta pena de substituição, previsto no nº 1, do art. 50º do C. Penal [que a pena de prisão aplicada não seja superior a cinco anos].


*

            …

            Termos em que se julga totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.


*

*


      II- Do recurso da arguida BB

Insurgindo-se contra o acórdão recorrido na parte em que neste se decidiu o perdimento a favor do Estado do veículo …, bem como do telemóvel …, ambos de sua propriedade, pretende a arguida … que, nessa parte, a decisão proferida pelo Tribunal a quo padece do vício a que alude al. a) do n.º 2 do art.º 410º do Cód. do Processo Penal ( insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ), por entender que não ficou demonstrada qualquer relação de causalidade adequada entre o uso daqueles objetos e a prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro, caraterizando tal declaração de perda dos referidos objectos a favor do Estado como injustificada, desadequada e desproporcional.

A primeira observação a fazer é a de que a declaração de perda a favor do Estado assim decidida no acórdão recorrido, indiscriminadamente em relação “a todos os objectos relacionados com o tráfico de estupefacientes apreendidos aquando das buscas realizadas nos presentes autos, incluindo o veículo que os respectivos arguidos utilizavam para a execução das suas actividade de venda de estupefaciente, por terem servido para a prática do crime de tráfico imputado aos arguidos “, para além de abranger todos os objectos apreendidos nos autos, sem densificação  daqueles que serviram para a prossecução da actividade de tráfico de estupefacientes que veio a resultar provada em relação a cada um dos arguidos, deixa antever que nela se olvidou que a actuação imputada à arguida BB na acusação relacionada com essa actividade não logrou provar-se.

Daí que, e desde logo, se nos afigure de difícil alcance a decisão do Tribunal recorrido relativa ao perdimento dos bens apreendidos na posse da arguida …, com base no disposto no artigo 35.º, n.ºs 1, e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, estribada em que tais bens foram por ela utilizados para a execução da sua actividade de venda de estupefaciente, por terem servido para a prática do crime de tráfico que lhe vinha imputado na acusação e do qual a mesma veio a ser absolvida.

Como bem salienta, o Exmo. Procurador junto deste Tribunal da Relação no parecer emitido no processo, haverá que cotejar a pertinente factualidade que resultou provada e não provada para decidir do perdimento a favor do Estado do veículo …, bem como do telemóvel …, apreendidos nos autos aquando do episódio ocorrido no dia 19.06.2021.

A factualidade para tanto a ter em conta é a seguinte:

Da factualidade que resultou provada:

“1. …

2. …

3. …

4. …

13. …

14. …

 Da factualidade que resultou não provada:

“1. …

14. …

15. …

16. …

17. …

          E, perante tais factos provados e os não provados, ainda que deles não decorra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no nº2 do art. 410º do CPP, …, afigura-se-nos que o decidido no acórdão recorrido a respeito do perdimento a favor do Estado do veículo …, bem como do telemóvel … aprendidos aquando da detenção dos arguidos pelos factos em discussão nos autos não poderá manter-se.

            Desde logo, e como bem refere a recorrente, para que o perdimento de tais bens a favor do Estado pudesse ser declarado tornava-se necessário que do factualismo provado resultasse a existência de uma causalidade adequada entre a utilização desses bens e a prática do crime de tráfico de estupefacientes em causa nos autos.

            O que, indubitavelmente, não acontece em relação ao telemóvel …, porquanto, para além de a mesma ter sido absolvida da prática do referido crime, também não resulta minimamente da factualidade provada que o referido telemóvel tenha sido utilizado na prática desse crime pelo qual foi unicamente condenado o arguido …

            Razões essas que, no seu conjunto, demandam a conclusão de que não estão preenchidos os pressupostos para decretar o perdimento do referido telemóvel a favor do Estado.

            Já quanto ao veículo …, comprovadamente propriedade da arguida …, de acordo com o certificado de matrícula que se evidencia da foto Nº 6 junta com a participação,  posto que resulte da factualidade provada a respectiva utilização pelo arguido … na actividade de tráfico de estupefacientes por ele desenvolvida e pela qual foi condenado, …, sufragamos o entendimento perfilhado pelo Sr. Procurador no parecer emitido nos autos sobre a densificação normativa que o preceituado no artigo 35.º, n.ºs 1, e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, comporta e que passamos a citar:

          “A jurisprudência tem enveredado por uma interpretação de tal preceito, de acordo com a qual a perda dos objetos do crime só é admissível quando entre a utilização do objeto e a prática do crime, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada.

            Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objeto e a infração, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objeto.

            A jurisprudência tem vindo a conformar o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que importa sufragar, por isso, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade – citado art.º 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – princípio que preside a toda a providência sancionatória – a significar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objeto e a gravidade do ilícito – neste sentido vide o Ac. desta Relação de Coimbra, de 7/3/2012, no processo 23/11.4GAAGD.C1.

            …

            Num caso de idênticos contornos aos do presente caso,  pronunciou-se o Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 2.965/11.8 TAVNG.C1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se anotou: “No caso vertente, como resultou provado, muito embora o arguido … tenha conduzido a sua viatura até Coimbra, transportando na mesma as substâncias estupefacientes que vieram a ser apreendidas, condução essa que terá facilitado a deslocação, tornando-a também mais cómoda, discordamos que a viatura seja instrumento do crime, e que exista uma relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do crime, como foi considerado pelo tribunal a quo.

            Com efeito, o produto apreendido, atendendo ao seu peso e volume, era facilmente transportável, por qualquer outra forma, não sendo a utilização da viatura essencial para o cometimento do ilícito. Não foi, pois, a viatura indispensável ao transporte ou à ocultação de tal produto, constituindo apenas mero meio de transporte do seu proprietário, o arguido FF”.

          Não podemos ainda esquecer que a arguida, ora recorrente, foi absolvida da prática do crime de tráfico de estupefacientes de que vinha acusada, não se tendo também provado que sabia que o arguido, seu marido, detinha na sua posse, mais concretamente, no interior da manete da caixa de velocidades do seu veículo, os estupefacientes apreendidos aquando da actuação do mesmo ocorrida no dia 19.06.2021.

           E, para além disso, também não resultou demonstrado que o referido veículo seja produto/vantagens da atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelo arguido …

          Razões estas que, no seu conjunto, levam à conclusão de que não se verificam os pressupostos do perdimento a favor do Estado do referido veículo apreendido nos autos.

            Assim sendo, na procedência do recurso interposto pela arguida …, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que nele se decidiu a perda a favor do Estado do veículo …, bem como do telemóvel …, ordenando-se a restituição do veículo à arguida …, que para o efeito deverá ser notificada para proceder ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se o não fizer, se considera o mesmo perdido a favor do Estado ( art. 186º, nº3 do CPP ) e a restituição do referido telemóvel a quem comprovar ser seu legítimo proprietário, uma vez que dos autos não decorre que o mesmo pertença à recorrente … ( art. 186º, nº2 do CPP).

           


*


            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            I- Proceder à correcção do lapso de escrita detectado no acórdão recorrido nos termos decididos supra.

            II- Suprir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aditando ao ponto 16. dos factos provados os elementos resultantes do certificado do registo criminal do arguido AA indicados supra.

III- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente:

a. Manter, quanto à condenação do mesmo, tudo o decidido no acórdão recorrido.

b.  Condenar o arguido recorrente AA nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em 5 UCs (artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).

IV- Julgar procedente o recurso interposto pela arguida BB, e, consequentemente:

a. Revogar o acórdão recorrido na parte em que nele se decidiu a perda a favor do Estado do veículo de marca ..., com matricula ..-DB-.., e do telemóvel de marca ..., modelo ..., com IMEI ...75.

b. Ordenar a restituição do veículo apreendido nos autos, de marca ..., com a matrícula ..-DB-.., à arguida BB, que para o efeito deverá ser notificada para proceder ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se o não fizer, se considera o mesmo perdido a favor do Estado.

c. Ordenar a restituição do telemóvel apreendido nos autos, de marca ..., modelo ..., com IMEI ...75, a quem comprove ser o seu legítimo proprietário.

d. recurso sem tributação, dada a sua procedência.

                                                                 *

                                                                 *

                                                                 *

                                                                                  

                                                                                   Coimbra, 11 de outubro de 2023

               ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

(Maria Teresa Coimbra – 1ª adjunta)

(Jorge Jacob – 2º adjunto)