Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1321/22.7T9CLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CERTIDÃO DE DÍVIDA EMITIDA PELA SEGURANÇA SOCIAL REFERENTE ÀS CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS E NÃO PAGAS
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELO INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL PELAS CONTRIBUIÇÕES NÃO PAGAS
LITISPENDÊNCIA
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 535.º, N.º 1 E 2, ALÍNEA C), 580.º, N.º 1 E 2, E 581.º, N.º 1 A 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/C.P.C.
Sumário: I – A lei não veda ao credor que já tenha um título executivo de deduzir pedido de indemnização civil no processo penal contra o mesmo devedor e por valor que se contém nos limites daquele título, apenas determinando que no caso as respectivas custas ficarão a seu cargo, nos termos do artigo 535.º, n.º 1 e 2, alínea c), do C.P.C.

II – As causas repetem-se, não sendo admissível a segunda, quando há identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir: há identidade de sujeitos quando são os mesmos os sujeitos e nas mesmas qualidades jurídicas, de entidade que recebe quotizações de segurança social e empregadora vinculada a descontos nos salários dos trabalhadores e à entrega àquela entidade; há identidade de pedido quando o que se pretende é o pagamento das quantias cuja entrega foi omitida e respectivos juros; no caso da execução a causa de pedir documentada pelo título é o incumprimento da obrigação legal de entrega das quotizações descontadas e no pedido de indemnização enxertado no processo criminal é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, pelo que não existe identidade de causas de pedir porque, apesar dos factos serem coincidentes, ocorre diferença de regimes e seus alcances.

III – «O facto de existir a possibilidade legal de a administração fiscal ou a Segurança Social dispor de duas vias de cobrança, uma com base no título executivo por si emitido e outra com base no título executivo civil, não significa que possa haver um duplo recebimento».

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. … foi a 21/03/2023 proferido despacho no qual, recebendo-se a acusação deduzida pelo Ministério Público (MP) contra a arguida AA, por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos art. 107.º e 105.º, n.º 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), do mesmo passo decidiu-se não admitir o pedido de indemnização civil que a 27/02/2023 contra aquela arguida deduzira o lesado “Instituto da Segurança Social, IP (Centro Distrital de Leiria)”, pedindo a respectiva condenação a pagar-lhe a quantia de 3.403,80 €, correspondente a quotizações que descontou em salários de trabalhadores mas lhe não entregando, apoderando-se delas, acrescida da de 675,42 €, a título de juros de mora vencidos à data da dedução do pedido, e ainda dos mais daí e até pagamento vincendos.      

2. Dessa decisão veio aquele demandante recorrer, … Das motivações desse recurso extrai as conclusões seguintes:

« I – O tribunal a quo decidiu não admitir o pedido de indemnização civil (…) por, em seu entender, dever ser considerado um acto inútil, atendendo a que corre processo executivo tributário contra a arguida e, ao existir um título executivo, não se justificaria a obtenção de outro (…) por via da sentença condenatória.

II – Ora, o que pretende (…) o recorrente com a apresentação do pedido de indemnização civil é a verificação da responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social e a consequente indemnização.

III – Ainda que esteja a correr termos uma execução na secção de processo executivo de Leiria, o lesado mantém o interesse em agir em sede de pedido de indemnização civil num processo por crime, visto que o pedido e a causa de pedir são distintos.

IV – A indemnização civil pedida em processo-crime não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social. Pese embora os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem coincidir, não podem os seus fins e regimes ser confundidos.

V – … O facto de impender sobre o arguido um processo de execução fiscal, não deverá prejudicar o interesse em agir do lesado.

VI – O recorrente foi lesado no seu património, uma vez que não deram entrada nos cofres da segurança social quotizações no montante global de 3.403,80 €, às quais devem ser acrescidos juros de mora vencidos, reportados a Fevereiro de 2023, no valor de 675,42 €, tudo no montante global de 4.079,22 €, razão pelo qual deduziu o pedido de indemnização.

VII – A conduta ilícita da demandada, omitindo a entrega das quantias descontadas das remunerações pagas aos trabalhadores, foi causa directa e necessária de um prejuízo patrimonial ao demandante (…).

VIII – Encontram-se integralmente preenchidos os requisitos legais que constituem a arguida na obrigação de indemnizar, designadamente os previstos nos art. 562.º, 563.º e 566.º, n.º 1 e 2, do Código Civil (CC).

IX – Constitui o pedido de indemnização civil um mecanismo legal que [o lesado] pode utilizar no âmbito de um processo crime, tratando-se de meio idóneo e eficaz para (…) poder ressarcir-se do seu crédito, pelo prejuízo sofrido pela não entrega dos montantes retidos (…), referentes a quotizações.

X – Ainda que exista uma execução fiscal a correr os seus termos, onde se pretenda cobrar os créditos correspondentes à indemnização reclamada, é nosso entendimento, salvo melhor opinião, de que tal facto não retira à segurança social o interesse em agir.

XI – Por força do princípio da adesão e da suficiência do processo penal, a indemnização por perdas e danos de facto ilícito criminal é, em regra, deduzida no processo penal (cfr. art. 7.º e 71.º, do Código de Processo Penal [CPP]), prescrevendo o art. 129.º, do CP, que a indemnização, a ser devida, deverá ser regulada pela lei civil, ou seja, de harmonia com as regras constantes dos art. 483.º, 562.º, 563.º e 566.º, do CC.

XII – Entendemos que, ao não admitir o pedido de indemnização civil, o tribunal a quo priva o lesado de exercer um direito legítimo, o de reclamar uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

XIII – Não concedendo, mas admitindo por hipótese que o pretendido seria a obtenção de um título executivo por via da sentença condenatória, ainda assim não nos parece que tal deva ser considerado um acto inútil pelo facto de existir uma certidão de dívida, que também ela é um título executivo.

» 

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe apenas o MP, pugnando pela integral manutenção da decisão recorrida, …

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto limitou-se à aposição do respectivo visto, …

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e a esta luz, nenhuma destas se suscitando, a questão a conhecer, como daquelas conclusões se colhe, consiste simplesmente em determinar dispondo o demandante de título executivo, consistente em certidão de dívida,  para executar os valores das quotizações descontadas aos trabalhadores mas não entregues à segurança social, e respectivos juros, pode a segurança social, sem reclamar outros danos indemnizáveis além daqueles valores, deduzir por eles pedido de indemnização civil contra a arguida no processo criminal pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social e cometido precisamente com a omissão de entrega daquele as quantias – ou se pelo contrário isso importa uma inutilidade da demanda declarativa enxertada no processo penal ou, com ela, uma duplicação de meios processuais inadmissível; da resposta a essa questão dependendo, está bom de ver, a conclusão pelo desacerto ou não do despacho recorrido. 

1.2. Não foi requerida e nem se mostra caber renovação de prova e, não tendo sido interposto de decisão que a final conhecesse do objecto do processo, nos termos do art. 97.º, n.º 1, al. a), do CPP, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º, n.º 3, als. b) e c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP), como foi.   

2. O despacho recorrido

É o seguinte, no que aqui pode importar, o teor do despacho sob recurso, de 21/03/2023:

« (…)

Pedido de indemnização civil:

Vem o ISS, IP, deduzir pedido de indemnização civil pelas contribuições não pagas pela arguida à segurança social e respectivos juros de mora.

… a certidão de dívida emitida pela segurança social referente, designadamente, a contribuições devidas e não pagas àquela entidade, integra título executivo e é exequível, sem a necessidade de decisão judicial prévia, junto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Com o pedido formulado, pretende a demandante, procedendo a sua pretensão, que seja proferida sentença condenatória, de modo a obter título executivo.

Porém, a demandante é já detentora de tal título, pelo que o acto praticado é um ato manifestamente inútil.

Nesta conformidade e atento o exposto, não admito o pedido de indemnização civil de fls. 113 e ss..

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Comecemos por observar que nos precisos termos em que foi proferido, o despacho sob recurso não se funda em rigor na prévia pendência de uma execução, que apenas dos argumentos de recurso se retira que com efeito estará em curso na Secção de Processos Executivos do Instituto de Segurança Social (adiante SPE). O directo fundamento do sentido decisório daquele despacho é simplesmente o de que, por dispor já de título executivo que é a certidão de dívida por si mesmo emitida (o que não sofre dúvida, face ao disposto pelo art. 7.º, n.º 1, do DL 42/2001, de 09/02), o demandante não carece para a cobrança do valor em dívida de prévia decisão judicial, e assim, sendo a sua pretensão a de obter (outro) título executivo, a dedução do pedido mostrar-se um acto manifestamente inútil, por isso não devendo ser admitido.

3.2. E a este respeito, diremos desde logo que a não pender sequer execução fundada naquele título, a prévia disponibilidade dele não teria o alcance que lhe lobriga o tribunal recorrido, quando é certo que de modo expresso a lei (art. 535.º, n.º 1 e 2, al. c), do Código de Processo Civil (CPC), não assinala ao recurso à dedução de acção declarativa, por quem dispõe já de título, outra consequência senão a de as custas dessa acção ficarem a cargo do autor. Naturalmente, sendo o pedido de indemnização cível formulado no contexto do processo penal um enxerto declarativo que neste é feito, a regra não pode deixar de também aqui valer: se o credor que tem já um título executivo formula ainda assim pedido de indemnização civil (contra o mesmo devedor e por valor que se contém nos limites daquele título), então decerto as custas respectivas ficarão a seu cargo, mas a lei não lhe veda essa opção.

3.3. Tanto bastaria, cremo-lo, para em face dos expressos termos respectivos, concluir já pela natureza indevida da não admissão do pedido civil formulado pelo demandante contra a arguida e, consequentemente, pela procedência do recurso daquele, mas afigura-se-nos útil e porventura mesmo necessário ir um pouco mais longe, tecendo algumas considerações sobre a substância do problema e na assunção, de resto em linha com o que refere o próprio demandante no seu recurso (e o MP na correspondente resposta), que com efeito e à data da dedução daquele pedido cível pendesse já execução na SPE, titulada pela referida certidão, por ele mesmo movida contra a aqui arguida e por iguais valores (o das contribuições deduzidas aos salários dos trabalhadores mas não entregues, acrescido do dos pertinentes juros). Ainda assim, julgamos que não poderia afirmar-se uma suposta inutilidade do pedido, como o faz o Sr. juiz recorrido no despacho em crise, ou uma putativa duplicação processual inadmissível, na expressão empregue pelo MP em resposta ao recurso.

3.4. Na verdade, a figura processualmente operante que por detrás de qualquer das expressões pode descortinar-se, não é outra, a despeito de não explicitamente referida, senão a da litispendência, de que todavia não cabe afirmar-se a integralidade dos pressupostos, como definidos nos art. 580.º, n.º 1 e 2, e 581.º, n.º 1, 2, 3 e 4, do CPP. As causas apenas se repetem, não sendo admissível a segunda, quando há identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, e se aqui o demandante e a demandada seriam os na execução exequente e executada (os mesmos sujeitos e nas mesmas qualidades jurídicas de entidade que recebe quotizações de segurança social e empregadora vinculada a descontos nos salários dos trabalhadores e à entrega àquela entidade), de igual modo sendo o mesmo o pedido (obtenção do pagamento das quantias cuja entrega foi omitida e respectivos juros), do que seguramente não há já identidade é das causas de pedir.

3.5. No caso da execução, a causa de pedir documentada pelo título é o incumprimento da obrigação legal de entrega das quotizações descontadas, enquanto no pedido de indemnização enxertado no processo criminal é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social. Apesar de os factos (a não entrega dos descontos) serem coincidentes, não pode com isso perder-se de vista a diferença de regimes e seus alcances. Afigura-se-nos que melhor se explicará a ideia aqui avançada com recurso, precisamente, à jurisprudência que o na sua resposta ao recurso cita o MP, em concreto ao Ac. STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2013, de 15/11/2012, publicado a 07/01/2013 (Diário da República n.º 4/2013, Série I, de 2013/01/07), tirado aliás por unanimidade e o qual, sem prejuízo de ter directamente versado questão conexa mas diversa, também sobre da que aqui especificamente nos ocupa tratou.

3.6. Com efeito, preponderou ali a matéria da própria admissibilidade da dedução de pedido cível, em processo criminal, pelas contribuição não entregues à segurança social e à luz do art. 71.º, do CPP, tendo em conta a competência dos tribunais criminais, em razão da matéria, para conhecer tema próprio da jurisdição administrativa/tributária, que era o que se questionava – e sendo a conclusão, no essência, a de que a responsabilidade civil emergente da prática do crime imputado, coisa diversa da responsabilidade emergente da relação tributária, essa é sempre, nos termos do art. 129.º, do CP, e segundo os moldes dos art. 71.º e ss. do CPP, da competência do tribunal criminal. Daí o estrito teor da formulação final de uniformização: «Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no art. 107.º, n.º 1, do RGIT, é admissível, de harmonia com o art. 71.º, do CPP, a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social».

3.7. Sucede que, com o dissemos, naquele aresto foi também equacionada a questão das supostas “inutilidade” do pedido de indemnização ou “duplicação processual”, e em moldes de repudiá-las. Acompanhando o então decidido, passamos a transcrever os passos dele que a esse respeito nos parecem aqui mais azados à cabal explicação do ponto de vista adiantado.

« (…)

O facto de existir a possibilidade legal de a administração fiscal ou a Segurança Social dispor de duas vias de cobrança, uma com base no título executivo por si emitido e outra com base no título executivo civil, não significa que possa haver um duplo recebimento, que constituiria então enriquecimento sem causa, uma vez que o decidido numa poderá constituir oposição à execução na outra, requerendo-se a extinção da dívida pelo pagamento, não beliscando a harmonia com a unidade do sistema jurídico.

Aliás, como refere Germano Marques da Silva, "A indemnização corresponde sempre ao pagamento do imposto evadido e consequentemente pago o imposto não é mais devida a indemnização ou paga a indemnização não é mais devido o imposto. Tenha-se em conta que o credor da obrigação é o mesmo e que a responsabilidade civil se destina a satisfazer o interesse do credor da prestação tributária que foi frustrado pela prática do facto ilícito criminal." (82 – ‘Direito Penal Tributário’, Universidade Católica Editora, p. 326)

A competência material exclusiva da jurisdição criminal para o julgamento de processos penais, além de convocar o princípio da adesão, afirma o princípio da suficiência penal, nos termos do art. 7.º, do CPP.

O princípio da suficiência do processo penal consagra a autonomia da jurisdição penal para conhecer de todas as questões, mesmo que não penais que possam influir na apreciação da causa penal, uma vez que "O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”. (83 – n.º 1 do art. 7.º do CPP)

(…)

O objecto do pedido de indemnização civil não é a dívida tributária qua tale, mas o prejuízo, gerador de responsabilidade civil e do dever de indemnizar, nela fundamentado, emergente da conduta danosa e imputada, integrante da prática do crime de abuso de confiança fiscal, constitutiva de responsabilidade por factos ilícitos, submetida ao regime dos art. 129.º, do CP, e 483.º, e ss., do CC, e consubstanciada na não entrega à Segurança Social, entrega essa legalmente obrigatória, de determinada quantia integrante da prestação tributária, e que, por omissão dolosa, lhe provocou, assim, o prejuízo correspondente.

A responsabilidade por factos ilícitos, decorrente da prática de um crime, não se confunde assim, com a responsabilidade administrativa-tributária.

O pedido de indemnização civil em processo penal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não tem por objecto a definição e exequibilidade de acto tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que o integra, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos que daí surge nos termos dos art. 483.º e ss. do CC.

(…)

O título executivo na (…) SPE e a sentença condenatória não se referem à mesma obrigação, pois a responsabilidade pelo pagamento das contribuições não se confunde com a responsabilidade civil emergente da eventual prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, como sustenta o Prof. Germano Marques da Silva (‘Direito Penal Tributário - Sobre as Responsabilidades das Sociedades e dos seus Administradores Conexas com o Crime Tributários’, Lisboa 2009).

Ainda que esteja a correr termos uma execução numa SPE, o ISS, IP, mantém o interesse em agir em sede de pedido de indemnização civil num processo por crime de abuso de confiança.

A causa de pedir subjacente ao título no processo executivo é o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, enquanto que a causa de pedir subjacente ao pedido de indemnização civil é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social.

Não se pode dizer que o demandante ISS, IP, pretende usar o processo declarativo para definir um direito que já se encontrava estabelecido em termos idênticos num título com manifesta força executiva, como o que está presente nas execuções nas SPE.

Como se sustenta nos Ac. do STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009, a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.

(…)

Na execução baseada em título emitido pela segurança social, os fundamentos de oposição são muito mais alargados do que os previstos no CPC em oposição à execução baseada em sentença, que só pode ter por base algum dos fundamentos do art. 813.º [actualmente, art. 729.º] do CPC – v. art. 286.º, do CPT.

(…) »

3.8. É claro que na eventualidade de o valor do pedido de indemnização exceder o das contribuições cuja entrega fora omitida (e respectivos juros), isto é, se abrangesse ainda o correspondente a outros hipotéticos danos que, além do mero não recebimento das quantias devidas, igualmente resultassem do mesmo facto ilícito (criminal), tornar-se-ia ainda mais evidente que a existência de título executivo relativamente àqueles e até porventura a pendência de execução por eles em nada prejudicariam a dedução do pedido de indemnização no processo criminal. Mas o facto de nenhum desses eventuais danos adicionais ter no caso concreto sido sequer alegado, muito menos por eles se pedindo o que quer que fosse, não deve alterar o critério geral de a indemnização por perdas e danos emergentes de crime ser regulada pela lei civil (art. 129.º, do CP), e conhecida no contexto do processo criminal segundo o princípio da adesão (art. 71.º, do CPP) e nos respectivos limites, normas essas que afinal e nos termos expostos resultaram com efeito violadas pela decisão recorrida – impondo-se por conseguinte dar provimento ao recurso, com a inerente admissão e ulterior conhecimento do pedido de indemnização, o que como é óbvio não implica necessariamente a respectiva procedência, podendo até dar-se o caso de o pagamento porventura já obtido na execução (o que terá de apurar-se), vir isso sim a importar a absolvição total ou parcial da demandada por ele.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do demandante “Instituto da Segurança Social, IP (Centro Distrital de Leiria)”, e nessa conformidade revogar o despacho de 21/03/2023, na parte em que não admitiu o pedido de indemnização civil que a 27/02/2023 o mesmo formulara contra a arguida AA, pedido que assim deve agora ser admitido, para oportuna tramitação e conhecimento subsequentes.

Sem custas.

Notifique.


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Coimbra, 13 de Setembro de 2023
Pedro Lima (relator)

João Novais (1.º adjunto)

Jorge Jacob (2.º adjunto)