Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MOURAZ LOPES | ||
Descritores: | REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA ERRO SOBRE OS PRESSUPOSTOS DA LEGÍTIMA DEFESA | ||
Data do Acordão: | 05/18/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DA GUARDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 16º, 31º,32º E 143º DO CP | ||
Sumário: | 1. Assumida a legitima de defesa como «direito de legitima defesa», existem requisitos objectivos para que este direito possa ser exercido, tipificados no artigo 32º do C. Penal: i) a ocorrência ou iminência de uma agressão (a interesses juridicamente protegidos); ii) a actualidade da agressão; iii) a ilicitude da agressão; iv) a necessidade de defesa à agressão; v) a necessidade do meio de defesa (proporcionalidade entre os bens jurídicos defendidos e sacrificados) 2.Na situação de erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação, o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existir excluiriam a ilicitude, actua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência. 3.A actuação de alguém, que tendo sido algum tempo antes ameaçado por indivíduos que se intitulavam como agentes do «cobrador do fraque», recebe um telefonema da sua mulher referindo que estavam à porta de casa dois indivíduos que vinham cobrar uma dívida, aí se dirige e, sem mais, imediatamente agride voluntariamente um dos referidos indivíduos, não configura a figura do erro sobre os pressupostos da legitima defesa. | ||
Decisão Texto Integral: | 27 I. RELATÓRIO. No processo Comum Singular n.º 275/07.4PJSLB.C1 o Tribunal, em face da acusação formulada pelo Ministério, decidiu: O arguido G não se conformando com a decisão condenatória, veio interpor recurso para este Tribunal. 2 — O Tribunal a quo fundou a sua convicção, designadamente na análise da prova dos autos, e do conjunto da prova produzida em sede de audiência e julgamento, designadamente nas declarações do arguido, nas declarações do assistente e nos depoimentos das testemunhas R e RD. 3 — Sucede que, salvo o devido e merecido respeito, a douta sentença aplica erradamente o artigo 143.° do CP, quando na verdade, os factos provados apontam para a existência de erro sobre a verificação dos pressupostos da legítima defesa prevista no artigo 32.°, do CP. Senão veja-se, 4 — A TK---, LDA. instaurou contra o arguido a acção executiva que correu termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco sob o n.° ../03.5TBCTB-A e que foi julgada improcedente, uma vez que a responsável pela dívida em causa naquele processo era AFC — , LDA., e não o arguido, que havia sido apenas gerente daquela. 5 — Não obstante, inconformada com a decisão a TK — LDA contratou os serviços da empresa denominada O HOMEM DO FRAQUE, cuja actividade consiste em ‘ dívidas difíceis”, para proceder à cobrança da dívida da AFC —, LDA junto do arguido. 6 — É do conhecimento público que o método de cobrança dos colaboradores do HOMEM DO FRAQUE passa primeiramente pela realização de telefonemas aos alegados devedores, bem como pelo envio de avisos de cobrança, sendo que, quando tal não se revela suficiente a almejar o objectivo pretendido, os colaboradores do HOMEM DO FRAQUE “visitam” os alegados devedores nos seu próprios lares. 7 - Aos quais chegam trajando de negro e conduzindo viaturas de cor negra com o desenho do homem de fraque no capô, que deliberadamente estacionam à porta das casas dos alegados devedores, de molde a envergonhá-los no meio social e comunitário em que os mesmos se encontram inseridos para, desta forma, os convencer a pagar quantias cujo cumprimento ii importa ser ou não devido nos tern da lei. 8 — Procedendo com base no referido método, no início do ano de 2007 alguém identificando-se como colaborador do HOMEM DO FRAQUE efectuou três telefonemas para o telemóvel do arguido, exigindo-lhe o pagamento relativo à aludida dívida, dizendo-lhe “sabemos da sua vida” ‘ou paga a bem ou paga a mal”, sabemos que a sua filha anda no infantário” (cfr. ponto 5 da matéria provada). 9 — Porém, não tendo o arguido efectuado, porque a tal não era obrigado, o pagamento em causa no dia 22 de Março de 2007, por volta das 10h00, a esposa do arguido telefona-lhe e dá-lhe conta que o ofendido V e a testemunha R, colaboradores do HOMEM DO FRAQUE, entraram na sua residência, sem permissão de quem quer que fosse, e depois de baterem à porta e de serem recebidos por aquela revelaram que o propósito era cobrar a referida dívida. 10 — O arguido ficou de imediato alarmado e apavorado com a situação, associando imediatamente os colaboradores do HOMEM DO FRAQUE aos telefonemas que havia recebido, e receando pela vida da sua filha percorreu de imediato o caminho até à sua casa na esperança de chegar atempadamente a casa e garantir que nada de mal acontecesse. 1 1 — Uma vez que o processo que opunha o arguido à TK —, LDA já tinha transitado em julgado e, portanto, a cobrança daquela dívida por parte dos colaboradores do HOMEM DO FRAQUE, que disso tinham amplo conhecimento, configurava fazer justiça pelas próprias mãos. 12 - O arguido a par do sentimento de medo que sentia pela sua família e por si viu-se obrigado a reagir sobre o ofendido desferindo-lhe, com as próprias mãos um único murro na cara e empurrando-o da sua propriedade para fora. 13 — Porém, atente-se que o arguido apenas cometeu tais actos, porque mediante a sua representação dos factos e as ameaças sofridas, tinha todos os elementos necessários para concluir que os colaboradores do HOMEM DO FRAQUE estavam prestes a agredir a sua filha ou a sua esposa, para desse modo obterem o pagamento por parte do arguido uma dívida que não era sua mas da AFC — LD. (agressão iminente e ilícita). 14 - Pelo que, vendo-se em clara desvantagem numérica a par com dois colaboradores da empresa HOMEM DO FRAQUE, atenta uma imagem não pacifista de que tais colaboradores fruem na comunidade em geral, e uma vez que as autoridades tardavam a chegar, com intenção de defender a família do perigo em que para si se encontravam, desferiu um único murro, com as próprias mãos, na cara do ofendido e o empurrou-o da sua propriedade para fora (agindo assim com aninius defendendi, e utilizando o meio necessário e racional para evitar o perigo iminente, urna vez que era impossível em tempo útil recorrer ao auxílio das forças policiais). 15 — Assim, mediante os factos que se expuseram e ficaram provados em sede de audiência e julgamento, a douta sentença deveria ter concluído, e não concluiu, que a conduta do arguido, pelo menos, se enquadrava na figura do erro sobre as circunstâncias do facto, previsto no artigo 16.° do CP, designadamente sobre a verificação dos pressupostos da legítima defesa prevista no artigo 32.°, do mesmo diploma. 16 — Pois, ainda que objectivamente se entenda não se encontrarem, iii casu, presentes os elementos justificadores exigidos, porquanto não estaria em face de uma agressão por parte do ofendido e portanto a acção defensiva era desnecessária, a verdade é que o arguido — subjectivamente — supôs erroneamente que eles se verificavam — encontrando- se em erro sobre os elementos do tipo justificador. 17 - A legitima defesa putativa exclui o dolo (art. 16.°, n.° 1 e 2 do mesmo código), porém, fica ressalvada a punibilidade da negligência (n.° 3 do mesmo artigo), porém o erro em que o arguido actuou nos presentes autos não censurável. 18 — Pois, não é exigível ao arguido que, em face das circunstâncias em que se encontrava, perspectivasse que o ofendido não estava predisposto a concretizar as ameaças feitas pelo telefone, porque a atitude assumida pelo ofendido e a testemunha Rui, bem como o modo e a postura com que se apresentaram, compatibilizavam-se na integra com o conhecido método utilizado pelos colaboradores do HOMEM DO FRAQUE, que segundo se sabe é intimidativo e pouca pacífico. 19 — Assim, resulta da factualidade provada na própria sentença recorrida, concretamente dos pontos 5, 6, 7 e 9 da matéria provada, que o arguido fez a avaliação da situação que faria qualquer homem médio colocado nas mesmas circunstâncias, 20 — Segundo a qual o ofendido e a testemunha R encontravam-se ali para que no caso do arguido não pagar a referida dívida concretizarem as ameaças lhe tinham feito ao telefone, não sendo, assim, a sua atitude censurável, para efeitos de aplicação do disposto no n.° 3 do artigo 16.° do CP. 21 - Pelo que, deverá entender-se que iii casu verifica-se uma situação de legitima defesa putativa, que exclui a culpa do arguido (cfr. artigos 16°, n°sl e 2 e 31°, 1 e 2, ai. a) do CP), devendo ser este, consequentemente, absolvido do crime pelo qual foi condenado. 22 — Não tendo a sentença recorrida decidido neste sentido, violou o disposto no artigo 1 6.°, n.s° 1 e 2 e no artigo 31.0 ns.° 1 e 2, ai. a) do CP, motivo pelo qual deve a mesma ser revogada e substituída por outra que, com base na exclusão da culpa do arguido no cometimento dos factos, o absolva. Na resposta ao recurso o Ministério Público, pronunciou-se pelo não provimento do recurso, concluindo nos seguintes termos: « 1 - Pelos factos dados como provados não vislumbramos a existência de qualquer agressão na pessoa do arguido ou iminência de agressão, para legitimar qualquer defesa, tão só, que os mesmos se encontravam sozinhos à porta da casa e que, “acto contínuo, após estacionar o seu veículo, o arguido entrou na sua propriedade, caminhou na direcção de V e desferiu-lhe um murro na face e pediu à esposa para ir buscar a espingarda “. 2 - E da conduta do arguido em nenhum dos factos provados se pode subsumir os pressupostos da legítima defesa, - meio necessário para repelir agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. 3 - É que, agressão actual, como foi referido não existia, sendo que o arguido, sem qualquer diálogo agrediu, de imediato, o ofendido e já com este fora do portão voltou-o a agredir. 4 - E, diga-se que o arguido, também, não se encontrava em erro quanto aos pressupostos da legítima defesa, pois, a sua conduta demonstrou, inequivocamente que, a sua única intenção ao se deslocar à residência, não foi para defender o que quer que fosse mas para agredir, pois viu duas pessoas sozinhas à porta de casa e que haviam já falado com a sua esposa e, desde logo, partiu para a agressão. 5 - Sendo certo que o arguido depois de bater uma primeira vez, agrediu o ofendido uma segunda vez e já com este fora da propriedade, pelo que, de forma alguma é possível fazer prolongar o erro até este segundo momento. 6 - Assim não transparece qualquer dúvida de que o ofendido se deslocou à residência do arguido para cobrar uma divida e este, depois de saber que aquele se encontrava à sua porta, deslocou-se à residência para o agredir. 7 - Ora, a prova produzida em audiência de julgamento foi cabal para condenar o recorrente, sendo certo que nenhum reparo nos merece a douta sentença recorrida quanto ao exame crítico da prova que permitiu formar a convicção do Tribunal, que bem andou ao dar como provados os factos e em condenar o arguido pelo referido crime. 8 - Na verdade os factos dados como provados conjugados com as regras da experiência comum, levam a concluir que não resulta nenhum erro na apreciação da matéria de facto e na subsunção dos mesmos ao direito, bem assim nenhuma dúvida quanto à responsabilidade do arguido, daí a sua condenação. 9 - Face a tudo o exposto, por não haver sido violado qualquer preceito legal, afigurando-se-nos correcta a aplicação do direito aos factos dados como provados, bem assim por se ter por correcta a escolha da pena e o seu doseamento, por considerarmos nós, tal pena, justa e equilibrada, entendemos dever ser negado provimento ao recurso ora apresentado e confirmado, pois, a douta sentença recorrida.» O Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação pronunciou-se igualmente pela manutenção do decidido na primeira instância. * II. FUNDAMENTAÇÃO A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, consubstancia-se na eventualidade de estar verificada a legitima defesa putativa do arguido (actuação do arguido em erro sobre os pressupostos da causa de exclusão legitima defesa). * Importa antes de mais atentar na matéria de facto dada como provada na sentença pelo Tribunal, bem como na sua motivação (de facto e de direito atentas as conclusões do recorrente). «II – Fundamentação II.I - Matéria de facto provada De relevante para a discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1) O arguido foi gerente da “AFC – , Lda.”, que, entretanto, cessou a sua actividade. 19) O arguido é divorciado e vive sozinho em casa do seu pai. * Com interesse para a decisão a proferir nada mais resultou assente. * Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente: a) Nas circunstâncias referidas em 12), o arguido disse que a espingarda era para dar um tiro no ofendido. b) Nas circunstâncias descritas em 6) a 12), o arguido desferiu mais do que um murro na face do ofendido V. c) Nas circunstâncias descritas em 6) a 14), o arguido fazendo uso do aludido pau desferiu com tal objecto mais do que uma pancada na zona lombar do ofendido V. d) O arguido actuou bem ciente da especial perigosidade do objecto de agressão utilizado, sabendo que o mesmo, pelas suas características que bem conhecia e ainda pela zona do corpo que atingiu, era susceptível de produzir graves lesões no corpo e na saúde do ofendido. e) Nas circunstâncias referidas em 5) foi referido ao arguido “ou pagas, ou vamos aí e partimos-te todo”. f) Nas circunstancias referidas em 6) a 9), V e R, sem que a mulher do arguido tivesse tido tempo de dizer o que fosse, perguntaram num tom de voz alto e ameaçador “onde está o caloteiro do G”? g) Embora aquela se apressasse a chamar o arguido, aqueles começaram a gritar bem alto “tens de pagar o que deves, que nós vimos cobrar”, “já te avisamos que se for preciso partimos-te todo”. h) Com a gritaria dessas ameaças o arguido compareceu de imediato à porta. i) Os referidos cobradores continuaram alto e bom som a chamar o arguido de caloteiro para que toda a vizinhança pudesse ouvir. j) O arguido disse-lhes que podiam ir lá para fora gritar e fazer as palhaçadas que quisessem, mas que dentro do que era dele não faziam. k) Acrescentando ainda que chamaria policia se continuassem com a gritaria no que era dele. l) E acto continuo empurrou-os para fora da sua propriedade, logrando colocá-los da parte de fora do portão do quintal. m) O arguido permaneceu dentro da sua propriedade de frente para os mesmos algum tempo. n) Como os mesmos não se fossem embora disse “aqui não entram” e voltou costas dirigindo-se para casa. o) Nessa altura o ofendido Vitor abriu o portão e foi atrás do arguido novamente aos gritos. p) Nessa altura o arguido agarrou num velho pau (cabo de uma enxada) que se encontrava no quintal e disse “sai daqui ou levas”. q) Na sequência disso o ofendido V correu para fora da propriedade do arguido, para junto da testemunha Rui. r) Como os cobradores se riam às gargalhadas na cara do arguido, ameaçando entrar outra vez dentro da sua propriedade, o arguido disse-lhes “dentro do que é meu não entram, se for preciso dou-vos com este pau”. s) Foi então que na parte de fora do portão do quintal do arguido, o ofendido V se atirou para o chão e começou a rebolar-se, ao mesmo tempo que gritava por uma ambulância, e dizia que lhe tinham batido. t) O ofendido necessitou de receber tratamento psicológico em virtude do estado de tristeza, depressão e temor resultante das agressões que sofreu. u) Como consequência directa e necessária das agressões acima descritas o ofendido V sofreu estragos nos seguintes bens: - relógio de marca Seiko Sportura, no montante aproximado de € 600,00; - fato da marca Hugo Boss, que ficou rasgado, no montante aproximado de € 400,00; - gravata da marca Gant, que ficou rasgada, no montante aproximado de € 80,00. v) O ofendido aufere vencimento e comissões nunca inferiores a, aproximadamente, € 3000,00 mensais. w) Como consequência directa e necessária das agressões em causa o ofendido sofreu perda de retribuição pelo período de cinco dias, no montante aproximado de € 454,50. x) Como consequência directa e necessária de tais agressões o ofendido suportou despesas hospitalares e farmacêuticas e com fisioterapia. * III – Fundamentação da matéria de factoIII.I - Factos provados: A convicção do Tribunal relativamente à factualidade ínsita nos factos provados assentou na análise crítica e ponderada da prova dos autos, e do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, em particular: A análise do documento de fls. 101 a 107, comprova a factualidade inscrita em 3) e 4). O arguido dissertou sobre a factualidade relacionada com a sociedade AFC, Lda., e a aludida divida e revelou a existência dos telefonemas descritos na matéria assente. Com relevo para a convicção do tribunal o arguido assumiu que nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas desferiu um murro na face do ofendido e o empurrou. No entanto, apesar disso, procurou justificar a sua conduta com recurso a uma intenção exclusiva de defesa, como resposta a uma alegada actuação física do ofendido, não apurada. Em adição, o arguido revelou que após o ofendido se encontrar fora da sua propriedade, afastado de si alguns metros, caminhou na direcção de V, muniu-se com um pau de madeira, com as característica acima descritas, e desferiu movimentos em frente com tal objecto. O arguido começou por referir que não sabe se em resultado de tais movimentos terá atingido o ofendido com o referido pau. Ao mesmo passo afirmou que apenas pegou no referido objecto com intenção de se defender (versão que não logrou convencer, que não encontra eco na matéria assente) e passou a negar a existência de qualquer agressão ao ofendido com o descrito pau. Assim, o arguido desvalorizou parcialmente a sua actuação, tentou justificar a mesma enquanto reacção a um comportamento (não apurado) do ofendido e acabou por negar que o tivesse agredido com o descrito pau em madeira. Porém, a tese apresentada pelo ofendido V foi a que melhor se adequou aos acontecimentos (ofensas físicas) em apreciação e aquela que revelou credibilidade. Com efeito, o ofendido mencionou diversos aspectos com interesse para a fixação da matéria de facto provada, designadamente o tipo de aproximação realizada pelo arguido, as palavras proferidas no desenrolar do episódio agressivo, a forma como este o agrediu e a relação existente entre os danos corporais sofridos e o tipo de intervenção física que G s teve no decurso da agressão que determinou a sua deslocação (conduzido pelo INEM) ao hospital. Neste campo, as suas palavras foram validadas através da análise da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 9 a 11 e 55 a 57 e dos elementos clínicos juntos a fls. 21 a 23. A testemunha R, que presenciou os acontecimentos em discussão, evidenciou isenção e imparcialidade, em essência descreveu a actuação do arguido de forma consentânea com a versão apresentada pelo ofendido e nessa medida reforçou a credibilidade que as declarações de V mereceram ao tribunal. A testemunha R D, que à data dos factos era mulher do arguido, prestou um depoimento claramente proteccionista deste ao omitir os segmentos dos acontecimentos relacionados com a actuação física de G José Torres que deram origem à lesões experimentadas pelo ofendido. O arguido dissertou ainda sobre a matéria relacionada com a sua situação sócio-profissional. A existência de antecedentes criminais conhecidos ao arguido mostra-se certificada nos autos. * Não foi produzida prova quanto à factualidade vertida em a), b), c), d), e), t), v), w) e x). O depoimento prestado pela testemunha indicada ao pedido de indemnização cível não permitiu apurar a matéria vertida em u). Do conjunto da prova produzida resultou como não verdadeira a factualidade inscrita em f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p), q), r) e s). * IV – Fundamentação de DireitoO arguido vem pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, n.º 1, 146º, n.º 1 e 2 e 132º, n.º 2 al. g), todos do Código Penal. A incriminação da ofensa à integridade física confere expressão na lei ordinária à protecção constitucional do direito à integridade física e moral, prevista no artigo 25º, n.º 1 da CRP. Da protecção da integridade física e da integridade moral, consagrada no referido preceito constitucional, a que correspondem na lei penal os artigos 143º a 152º, pode retirar-se que o bem jurídico em causa se mostra composto pela saúde física e pela saúde psíquica ou mental. In casu, o bem jurídico protegido no tipo a que se reportam as disposições conjugadas dos artigos 143º, n.º 1, 146º, n.º 1 e 2 e 132º, n.º 2 al. g), do CP (ofensa à integridade física qualificada) é a integridade física da pessoa humana. Os artigos 143º, n.º 1 e 146º, n.º 1 e 2, por referência ao disposto no artigo 132º, n.º 2 al. g), todos do CP, apresentam-se como um tipo legal de resultado, que se traduz, ao que ora importa, na prática de ofensa(s) à integridade física simples. Tal conduta pode ser perpetrada por acção ou por omissão, mostrando-se forçoso que objectivamente seja imputada à actuação do agente. Com efeito, nos termos do artigo 143º, n.º 1 CP, “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos, ou com pena de multa”. Se o ilícito em apreço for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, deverá operar a qualificação prevista no artigo 146º do citado diploma legal. Agrava-se no referido normativo a pena das ofensas corporais simples (artigo 143º), em função de circunstâncias que revelem uma culpa especialmente grave, uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, tendo o legislador utilizado a técnica dos exemplos padrão para indicar as circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, remetendo o n.º 2 do preceito em análise, para as circunstâncias indicadas no n.º 2 do artigo 132º. Trata, assim, o preceito em análise (artigo 146º do CP) de um tipo de culpa, cuja construção é idêntica à do homicídio qualificado previsto no artigo 132º do CP. Conforme previsto na al. g) do n.º 2 do artigo 132º, do CP (aplicável ex vi do disposto no art. 146º, n.º 2), é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância do agente praticar o ilícito em apreço utilizando de meio particularmente perigoso. Tal circunstância susceptível de conduzir à qualificação do crime de ofensa à integridade física, verificar-se-á (dado não se mostrar de funcionamento automático) caso a culpa do agente se mostre particularmente censurável, tendo em conta a natureza especialmente perigosa do meio utilizado. Assim, para que o meio empregue seja particularmente perigoso, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que revele uma perigosidade muito superior à normal dos meio usados para ofender outrem; em segundo lugar, ser indispensável determinar, se da natureza do meio utilizado, resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Do conspecto factual apurado entende-se que não se mostra verificado o referido binómio, que permita conclui pela responsabilização criminal do arguido pela prática do crime por que vem acusado (ofensa à integridade física qualificada). Com efeito, face à factualidade considerada assente, pese embora a actuação do arguido se considere grave, não pode concluir-se que o meio empregue seja em si mesmo meio particularmente perigoso (a que alude a citada alínea g) do n.º 2 do artigo 132.º), de causar ofensa à integridade física alheia e que a conduta do arguido revele especial censurabilidade ou perversidade, a merecer inteiramente o acrescido juízo de censura previsto no artigo 146.º do Código Penal em relação ao tipo base do crime (artigo 143.º do CP). Posto que, se mostram inverificados os elementos integrantes do crime de ofensa à integridade física qualificada. Todavia, a conduta em apreciação não se enquadra em nenhuma cláusula de exclusão da ilicitude ou da culpa. Estabelece o artigo 32º do CP que constitui legítima defesa o facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de quaisquer interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro». Comummente, ao nível da doutrina e jurisprudência, são tidos como elementos objectivos deste instituto: a existência de uma agressão actual e ilícita ao próprio ou a terceiro, a necessidade da defesa (abstractamente considerada) e um elemento subjectivo habitualmente designado por animus defendendi. Porém, para que uma acção defensiva seja considerada justificada é preciso que seja necessária. De acordo com o saudoso Prof. Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal, Parte Geral, vol. I, pág. 184, Verbo 1992), «a necessidade conecta o facto da defesa ao facto da agressão e essa conexão tem de ser ponderada de um ponto de vista jurídico; tem por isso de ser racional, tem de revelar moderação, temperança, uma medida que se ajuste aos objectivos ou fins do direito». Adianta que «a necessidade só se verificará juridicamente se o facto idóneo para evitar o dano for o meio menos prejudicial entre os meios de defesa possíveis» (ibidem, pág. 185). Ou ainda, como sustenta Jescheck (in Tratado de Derecho Penal, Vol. I, pág. 467), a necessidade tem de ser apreciada segundo a totalidade das circunstâncias em que tem lugar a agressão e a defesa, em particular, a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e a sua forma de proceder, bem como atendendo-se ainda aos meios de defesa de que dispunha em concreto. Ensina Fernanda Palma que a inevitabilidade da defesa afirma-se sempre que a não defesa acarreta lesão de bens jurídicos do defendente, como, designadamente, a honra e a liberdade - ou quaisquer outros que confiram um conteúdo material à salvaguarda da autonomia (A Justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, pág. 834). No caso em apreço, verifica-se que o arguido caminhou na direcção de Vitor Manuel Santos e desferiu-lhe um murro na face e pediu à sua esposa para ir buscar uma espingarda. De imediato V e R saíram da propriedade do arguido e permaneceram junto ao portão, do lado de fora deste. De seguida, encontrando-se os referidos cobradores no lado de fora do portão, o arguido dirige-se a V e fazendo uso de um pau em madeira, com cerca de 1 metro de comprimento e 2/3 cm de largura, e desferiu com tal objecto uma pancada na zona lombar do sobredito ofendido e empurrou-o. Em consequência directa e necessária de tais agressões, o ofendido V sofreu as lesões descritas e examinadas nas perícias de avaliação do dano corporal de fls. 9 a 11 e de fls. 55 a 57 e elementos clínicos de fls. 22, designadamente, trauma torácico, as quais determinaram para a sua cura um período de 5 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional. O arguido agiu com dolo directo (artigo 14º, n.º 1 do CP) e consciência da ilicitude (artigo 17º do CP). E actuou de modo livre e voluntário, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. A valorização absoluta da defesa contra uma agressão ilícita não encontra aqui lugar. Em adição, o circunstancialismo apurado e a actuação do arguido, não encerram qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa. De resto, sublinhe-se que o arguido foi chamado (pela sua mulher) ao local dos acontecimentos e, sabendo da presença do ofendido e da pessoa que o acompanhava, teve oportunidade de chamar as autoridades policiais e de aguardar pela sua chegada ou de aí comparecer apenas na presença daquelas. O que não fez. Inexistem causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa. Deste jeito, face à factualidade apurada, todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples se encontram preenchidos. Em face disso, conclui-se que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples». * Como se referiu, a única questão em apreciação suscitada pelo recorrente prende-se com a eventual verificação, face aos factos apurados em audiência, de uma situação de legitima defesa putativa por parte do arguido que, a funcionar, constituiria uma causa de exclusão da culpa e nessa medida implicaria a absolvição do mesmo. Comece por referir-se o essencial: não é punível quem age em legitima defesa. E não é punível porque na sedimentada construção de Eduardo Correia, «se considera que exclui a ilicitude – até porque constitui o exercício de um direito: o direito de legitima defesa – o uso de um meio necessário e exigido para a defesa contra a agressão actual e ilícita de bens do agente ou de terceiro» (cf. Direito Criminal, II, Coimbra, 1971 p. 35). A prevalência de uma causa de exclusão da ilicitude assente no exercício deste direito decorre da assumpção pela ordem jurídica de que o que está em causa são afinal os princípios da realização da justiça ou da prevalência do justo sobre o injusto e por isso a defesa da própria ordem jurídica (recorde-se que, independentemente dos requisitos e dos problemas que as duas normas suscitam, a legitima defesa está prevista, para além de uma causa de exclusão da ilicitude no artigo 32º do Código Penal, no Código Civil no artigo 337º). Assumida a legitima de defesa como «direito de legitima defesa», existem, no entanto requisitos objectivos para que este direito possa ser exercido, que de uma forma objectiva estão tipificados no artigo 32º do C. Penal. São eles, i) a ocorrência de uma agressão (a interesses juridicamente protegidos); ii) a actualidade da agressão; iii) a ilicitude da agressão; iv) a necessidade de defesa à agressão; v) a necessidade do meio de defesa (proporcionalidade entre os bens jurídicos defendidos e sacrificados). Tem-se entendido, igualmente, não já como elemento objectivo, mas como elemento subjectivo que é necessário demonstrar para que funcione o direito de legitima defesa, a verificação por parte do defendente, do conhecimento da situação de legitima defesa ou «a consciência da situação de legitima defesa» (neste sentido o Ac. STJ de 19-7.2006 in www.dgsi.pt refere que «que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que em face de uma agressão actual e ilícita se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa». Na doutrina, Figueiredo Dias, (in Textos de direito penal, Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, policopiado, 2001, p. 146) refere que isso «constitui a exigência subjectiva mínima indispensável à exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer causa justificativa». Saliente-se, ainda que sendo critérios de justiça, como se referiu que presidem à estabilização normativa da legítima defesa no nosso ordenamento jurídico, «a legitima defesa é subsidiária da intervenção do poder público, em caso de estrita necessidade (nomeadamente quando a força pública não pode ou não quer injustificadamente intervir», cf. Fernanda Palma «Legitima defesa» in Casos e Materiais de Direito Penal, Almedina, Coimbra, 2000,p. 171). Efectuado neste breve excurso sobre a questão, vejamos o problema suscitado pelo recorrente. Em síntese, pretende o mesmo, não negando as agressões cometidas contra o ofendido, ter, no entanto agido ainda no âmbito da legitima defesa, mas agora como causa de exclusão da culpa, (legitima defesa putativa) na medida em que agiu sob o erro sobre as circunstâncias do facto, previsto no artigo 16.° do CP, designadamente sobre a verificação dos pressupostos da legítima defesa prevista no artigo 32.°, do mesmo diploma. O recorrente esclarece que não está em causa a verificação da legitima defesa como causa de exclusão da ilicitude, na medida em que também ele admite que não estaria em face de uma agressão por parte do ofendido e portanto a acção defensiva era desnecessária. O que refere é que ele próprio supôs, erroneamente, e, em face das circunstâncias em que se encontrava, perspectivasse que o ofendido não estava predisposto a concretizar as ameaças feitas pelo telefone, porque a atitude assumida pelo ofendido e a testemunha R, bem como o modo e a postura com que se apresentaram, compatibilizavam-se na integra com o conhecido método utilizado encontrando- se em erro sobre os elementos do tipo justificador. Daí que tenha agido em erro que lhe não sendo censurável exclui a sua culpa e como tal deve ser absolvido. O que está em causa é afinal saber se se verifica uma situação de erro sobre os elementos ou pressupostos de uma causa de justificação, nomeadamente de legitima defesa. Na situação teórica do erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação o que está em causa é, conforme refere Figueiredo Dias, o facto de «objectivamente, não se dão no caso os elementos justificadores exigidos mas (subjectivamente) o agente supõe falsamente que eles se verificam» (ob. cit. p. 152). Nestas situações o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existir excluiriam a ilicitude, actua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência. Trata-se de uma posição dogmática cujo reflexo normativo se encontra estabelecida no artigo 16º n.º 2 e 3 do C. Penal. Ora no caso dos autos da matéria de facto provada temos por certo que o arguido, após o recebimento do telefonema da sua mulher referindo que estavam na sua casa dois indivíduos que vinham cobrar a dívida, aí se dirige e, sem mais, imediatamente agride voluntariamente um dos referidos indivíduos. E fê-lo de modo livre e voluntário, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Da factualidade provada – e é essa que é relevante, até porque não foi posta em causa por nenhum dos sujeitos processuais – resulta que algum tempo antes dos factos que consubstanciam o crime imputado ao arguido, este foi telefonicamente ameaçado por indivíduos que se intitulavam como “cobradores do fraque”. Ameaça que conforme decorre dos factos assumiu um carácter grave e muito incisivo ( “sabemos da sua vida”, “ou paga a bem, ou paga a mal”, “sabemos que a sua filha anda no infantário”). Tratando-se, claramente, nesta situação de uma actuação ilícita, não justificável, não pode ter deixado de incutir no arguido uma dimensão de receio sobre si e a sua família (sobretudo pelo modo suez de envolver uma referência à filha do arguido). Não estando em causa a eventual resposta legitima que o arguido poderia ter dado a essa ameaça, através da competente queixa crime contra quem entendesse serem os suspeitos (que não se sabe se foi ou não efectuada), o certo é que nos factos provados não existe qualquer referência factual à motivação do arguido no momento em que se dirige aos indivíduos que estavam à porta de sua casa e os agride. O que se quer dizer é que não existe qualquer factualidade demonstrada que permita levar à conclusão que efectivamente o arguido «pensou» ou terá pensado» que aqueles indivíduos estariam ali para o ameaçar, coagir ou agredir e por isso a sua actuação estaria ainda no âmbito do direito de defesa. Por outras palavras não há qualquer facto provado que demonstre o «elemento subjectivamente relevante» de que o arguido supôs que estava, naquele momento, a ser objecto de uma ameaça (sobe si ou sobre a sua família). Suscitam-se além disso dúvidas, face à matéria de facto, de que mesmo que assim fosse, se quando o arguido viu os indivíduos, não deveria ter imediatamente apelado ao uso das forças públicas, tendo em conta o referido princípio da subsidiariedade. A configuração jurídica que agora pretende ver aplicada, sendo, em abstracto, uma construção jurídica «atraente», colide, no entanto com a ausência de factos provados que a suportem. Ausência de factos que nem parece que possam ser supridos por uma eventual «correcção» decorrente das possibilidades dadas a este Tribunal pelo artigo 410º do CPP, na medida em que não se vislumbra qualquer vício que resulte do texto da decisão sobre esta matéria, nomeadamente «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» ou «erro notório na apreciação da prova». Nessa medida não pode este Tribunal ultrapassando a factualidade provada nos autos relevar uma teoria que tendo atrás de si alguma factualidade que poderia relevar uma atenuação da conduta do arguido, nomeadamente a nível da medida da pena (que também não é objecto do recurso, diga-se), não é no entanto, de todo suficiente para configurar um erro sobre os pressupostos da causa de justificação legitima defesa. III. DECISÃO. Nesta conformidade acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o recurso. Mouraz Lopes
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