Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HELENA BOLIEIRO | ||
Descritores: | NUMERAÇÃO DOS FACTOS JULGADOS PROVADOS E NÃO PROVADOS CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO IMEDIAÇÃO E A ORALIDADE PROVA INDIRECTA OU INDICIÁRIA FACTOS DO FORO INTERNO E PSICOLÓGICO CANCELAMENTO DEFINITIVO DO REGISTO CRIMINAL PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO | ||
Data do Acordão: | 05/24/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 374.º, N.º 2, 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), 410.º, N.º 2, ALÍNEA B), 412.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGO 11.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), DA LEI N.º 37/2015, DE 5 DE MAIO | ||
Sumário: | I – A omissão de numeração do elenco factual da sentença não constitui nulidade por insuficiente fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, não revestindo a expressão “enumeração”, contida naquele primeiro normativo, um sentido e alcance que imponham tal exigência.
II – As boas práticas aconselham a que se proceda a tal numeração, por permitir uma melhor e mais fácil referenciação para o conteúdo factual da decisão, evitando a prática de actos inúteis, como seja a reprodução do facto ou factos a que se refere qualquer análise que deles se faça, quer na própria decisão onde se procedeu à sua indicação, quer noutras peças processuais subsequentes, mormente as que se produzem em sede recursória. III – O dever de fundamentação não impõe ao julgador que proceda a uma relacionação exaustiva de cada um dos meios de prova em que se baseou para considerar provado cada um dos factos que assim considerou, bastando que a indicação e exame crítico da prova dê a conhecer com suficiência o percurso lógico e racional que efectuou em sede da sua apreciação e valoração. IV – A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão só conduz à verificação do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal quando não for suprível pelo tribunal ad quem, ou seja, quando a contrariedade detectada se revelar inultrapassável e, por conseguinte, insanável. V – A chamada prova indirecta ou indiciária pressupõe um facto demonstrado através de prova directa, que permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não directamente demonstrado, por via de um procedimento lógico de indução apoiado nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que determinados factos são a consequência de outros, tendo sempre presente que a conexão causal entre o que se conhece e o que se apurou de uma forma indirecta pressupõe uma consistência apta a validar a inferência efectuada, levando fundadamente a um patamar de convencimento para além de toda a dúvida razoável e racionalmente sustentado. VI – Salvo quando há confissão do agente, os factos do foro interno e psicológico são insusceptíveis de directa apreensão, pelo que, em regra, a sua sustentação probatória se obtém por via de prova indirecta, ou seja, extraem-se de factos do foro externo ou objectivo, em termos de os mesmos só serem racionalmente explicáveis como consequência normal e típica do correspondente propósito, constituindo, pois, uma sua manifestação exterior concludente, da qual é possível inferir a indicada demonstração indirecta. VII – Ponto é que a conexão causal entre o que se conhece e o que se apurou de uma forma indirecta seja dotada de consistência apta a validar a inferência efectuada, o que supõe que os factos do foro externo ou objectivo relativos à actuação do arguido que, na decisão, foram dados como provados, conjugados com as regras da experiência comum, constituam base factual directa bastante para concluir no sentido da demonstração, por via indirecta, da presente matéria relativa ao foro interno do agente. VIII – A determinação do cancelamento no registo criminal da decisão que aplicou uma pena, decorrido determinado período de tempo sobre a sua extinção sem que, entretanto, tenha ocorrido nova condenação por qualquer crime, conduz necessariamente ao cancelamento no registo criminal da decisão que a aplicou, levando a que as decisões canceladas se considerem extintas no plano jurídico e não produzam, assim, quaisquer efeitos a esse nível, nomeadamente no que se refere à medida da pena. IX – Em sede de recurso, o uso do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí se extrair que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório … Realizada a audiência de julgamento, a 1.ª instância proferiu sentença em que decidiu: - Condenar o arguido AA, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), numa pena de 6 meses de prisão, e por um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, numa pena de 2 anos de prisão, sendo a pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. - Condenar a sociedade arguida A..., Unipessoal, Lda., em concurso real, por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência aos artigos 255.º, alínea a), e 11.º , n.º 1, numa pena de 100 dias de multa, e por 1 (um) crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do Código Penal, numa pena de 240 dias de multa, sendo a pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, num total de 3 000,00 €. Mais julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por Infraestruturas de Portugal, S.A., e condenou solidariamente os arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., a pagar à demandante a quantia de 54 446,48€ (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos).
2. Na sequência do recurso interposto pelos arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., esta Relação proferiu acórdão em que declarou nula a sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia e determinou a sua substituição por outra que suprisse a decretada nulidade. Os autos baixaram à 1.ª instância para que o tribunal a quo procedesse ao suprimento das nulidades, o qual proferiu nova sentença em que decidiu nos mesmos termos da primeira sentença …
3. Inconformados com a decisão, dela recorreram os arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., os quais finalizaram a respectiva motivação com as seguintes conclusões … … 3- Tal discordância materializa-se nas penas aplicadas propriamente ditas, em decorrência da factualidade indevidamente dada como provada por insuficiência da prova produzida, não tendo sido observado o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, estatuído no art.32.º, n.º 2 da CRP e que determina que a dúvida a que se chega seja valorada em benefício dos arguidos, o que, no caso em apreço, conduziria, também, a uma decisão de absolvição. 4- Sendo nosso entendimento que a douta sentença padece de vários vícios, nomeadamente no que concerne à existência de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação, de acordo com o estipulado no artigo 410.º, n.º 2 do CPP, devendo, em consequência, a mesma ser declarada nula. 5-Devendo ainda dizer-se que o tribunal a quo não supriu, na totalidade, as nulidades da 1.ª sentença proferida, nomeadamente a nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia quanto às questões indicadas no douto aresto do Tribunal da Relação de Coimbra e do art. 374.º, n.º 2 do CPP. 6- O douto tribunal a quo para fundamentar a sua decisão e fazer prova da factualidade dada como provada limitou-se a descrever o que foi dito por cada uma das testemunhas, reproduzindo o que já tinha dito na 1.ª sentença, não enumerando, conforme decorre da lei, cada um dos factos dados como provados, tendo sido os recorrentes obrigados a “atribuir-lhe” uma numeração por parágrafo, para melhor identificação dos mesmos pelo Venerando Tribunal ad quem. … 20- Padecendo a decisão recorrida de erro notório na apreciação da prova, bem como de contradição insanável na sua fundamentação, ao considerar como verdadeiro um facto que, na própria fundamentação, refere o seu oposto, não tendo a testemunha conhecimento do local nem teve acesso ao material, o que configura a nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), com referência ao art. 374.º, n.º 2, ambos do CPP. … 36- Ora, no caso dos autos, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou a 1.ª sentença nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, o que continua a verificar-se em alguns dos seus segmentos, não obstante as alterações introduzidas pelo tribunal recorrido no que à fundamentação da decisão diz respeito, a sentença ora recorrida continua ferida de nulidade, de acordo com o estipulado no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, porquanto, a fundamentação das decisões é essencial para permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e garantir a transparência e reflexão decisórias. … 38- Por outro lado, o Tribunal a quo tomou ainda em consideração, para formar a sua convicção, documentos que não foram examinados e produzidos em sede de audiência de julgamento, designadamente as Guias de transporte de fls.36 a 40 e o contrato de fls.311 a 320, em claro prejuízo da contraditoriedade imposta pelo art.327.º, n.º 2 do CPP que dispõe que os meios de prova apresentados no decurso da audiência, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal, são submetidos ao princípio do contraditório, acolhido na segunda parte do nº 5 do art.32.º da CRP, estando, pois, a douta sentença recorrida em clara violação do preceituado nos arts.355.º, n.º 1 e 327.º, n.º 2, ambos do CPP e arts.18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5, ambos da CRP. 39- Neste conspecto, a douta sentença padece de inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5 da CRP e, por tal motivo, Vossas Excelências retirarão as devidas consequências. 40- Relativamente aos factos não provados, com todo o respeito que é devido, o Tribunal a quo continuou a ignorar toda a prova (produzida e não produzida) ao longo das várias sessões de julgamento, ao arrepio do preceituado no art. 355.º do CPP e que o mesmo devia observar, não tendo sido cumprido o determinado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos presentes autos. … 43- Havendo contradição insanável entre os factos provados no parágrafo 11 e o parágrafo 13 dos factos não provados no que respeita ao aluguer de uma carrinha, de um camião grua e de uma máquina retroescavadora. 44- Bem como, há contradição insanável entre o facto provado no parágrafo 42 dos factos provados, “considerando que todas as despesas inerentes ao corte e desmantelamento dos carris apreendidos foram suportadas pela sociedade arguida” e o parágrafo 26 dos factos não provados: “Até porque foi investido dinheiro da sociedade “A...” para a realização desta obra – desmantelamento de linha férrea” 45- Havendo ainda contradição insanável entre os parágrafos 42 e 43 dos factos provados e os parágrafos 29 em parte, 32 em parte e 43 dos factos não provados … 46- Bem como, há contradição insanável entre o facto provado vertido no parágrafo 42 da sentença recorrida e o facto não provado vertido no parágrafo 36 dos factos não provados … 47- Havendo ainda contradição insanável entre os parágrafos 38, 39, 40 e 41 dos factos provados e o parágrafo 30 dos factos não provados … 48- E, bem assim, há contradição insanável entre os parágrafos 11, 12, 13 e 14 dos factos provados … … 51- Em boa verdade, toda a prova produzida em julgamento e toda a prova documental junta aos autos (toda, conjugada entre si) impunha, necessariamente que esses factos fossem dados como não provados, tendo existido aqui, por parte do Tribunal a quo, erro de julgamento consagrado no art. 412.º, n.º 3 do CPP. … 120- Concatenando tudo o que se vem de expor, dúvidas não restam da violação manifesta do Princípio In Dubio pro Reo, na apreciação feita pelo Tribunal a quo da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente quanto à prova documental e testemunhal, o que conduziria necessariamente a decisão diversa da proferida nos presentes autos, entendendo os recorrentes que foram violadas proferida nos presentes autos pelo Tribunal a quo várias normas, mormente o art.127.º do CPP e ainda os arts. 32 .º, n.º 2 e 205.º n.º1 da CRP, fazendo-se, deste modo, uma interpretação inconstitucional do principio da livre apreciação da prova. … 136- … para a determinação da pena aplicada ao arguido AA, bem como a medida da mesma, o Tribunal a quo teve em consideração o relatório emitido pela DGRSP, bem como os CRC´s de fls. 484-486 (conforme consta da fundamentação da sentença), bem como quanto aos antecedentes criminais foi tida em conta a certidão relativa ao processo no âmbito do qual foi condenado, dado que no último CRC junto não consta já o averbamento de tal condenação. 137- Ora, tal averbamento não consta do CRC do arguido AA junto aos autos em 2/07/2021, como já não constava aquando da prolação da 1.ª sentença pelo tribunal a quo, como foi decidido pela Relação no ponto 3.2 do douto Acórdão. 138- Porém, estando o registo criminal do arguido “limpo”, o tribunal a quo entendeu solicitar uma certidão do processo que constava no CRC anterior, no qual consta que o arguido AA foi condenado em 04/09/2012 por um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral de Infrações Tributárias, transitado em julgado a 04/10/2012 e com data de emissão do boletim a 30/10/2012, continuando a ser referido pelo Tribunal a quo para fundamentar a aplicação da pena de prisão ao arguido AA, ao invés da pena de multa (art.70.º do CP) que, “Atendendo ao antecedente criminal do arguido não se pode optar pela pena de multa por esta não satisfazer de modo adequado e suficiente as finalidades da punição, já quanto á sociedade arguida aplica-se pena de multa. (…) No que respeita à prevenção especial, que se prendem com a necessidade de conformação do arguido com os valores jurídico penais protegidos pelo tipo legal, as mesmas são medianas, pois o arguido tem um antecedente, não tendo a sociedade quaisquer antecedentes.” 139- Ora, tal não pode obter acolhimento … 140- E se o CRC mais antigo não pode ser considerado pelo tribunal para determinar a medida da pena aplicada ao arguido, por maioria de razão, não pode uma certidão do processo anteriormente referido nesse CRC ser utilizada de forma arbitrária para o mesmo fim. 141- … desde a data da extinção da pena aplicada pela prática do crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, ou seja, desde 05/11/2012, já decorreram mais de cinco anos, e portanto, ocorreu cancelamento definitivo do seu registo, conforme decorre do art.11.º, n.º1, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio (Lei da Identificação Criminal), prazo de 5 anos que já tinha decorrido, quando se deu início às sessões de julgamento que nos presentes autos tiveram lugar em 06/04/2018. …
3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio apresentar resposta em que pugna pela sua improcedência … 4. Respondeu também a demandante Infraestruturas de Portugal, S.A., desta feita por referência às conclusões do recurso aperfeiçoadas (artigo 417.º, n.º 5 do CPP), tendo pugnado pela improcedência do recurso …
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do CPP, pronunciou-se no sentido do convite ao aperfeiçoamento das conclusões … 6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência. Cumpre agora decidir. * II – Fundamentação. … são as seguintes as questões suscitadas no recurso: - Nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia. - Contradição insanável da fundamentação. - Valoração de prova não produzida ou examinada em audiência de julgamento. - Erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento: a incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e a consequente modificação da decisão e necessária absolvição dos recorrentes. - Violação do princípio in dubio pro reo. - A ausência de antecedentes criminais e a opção pela pena de multa. - Erro de julgamento relativamente ao quantum indemnizatório fixado. * 2. A sentença recorrida. Antes de se passar à transcrição do elenco de matéria de facto constante da sentença recorrida, importa assinalar que, no primeiro acórdão que proferiu nos autos, a Relação conheceu de uma nulidade arguida pelos recorrentes, tendo então justificado que a omissão de numerar o elenco factual da sentença não constitui motivo de nulidade por insuficiente fundamentação, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP, não revestindo a expressão “enumeração”, contida naquele primeiro normativo, um sentido e alcance que imponham uma tal exigência. Contudo, como também se disse naquele aresto, as boas práticas aconselham a que se proceda a tal numeração, pois permite uma melhor e mais fácil referenciação para o conteúdo factual da decisão, evitando a prática de actos inúteis, como seja a reprodução do facto ou factos a que se refere qualquer análise que deles se faça, quer na própria decisão onde se procedeu à sua indicação, quer noutras peças processuais subsequentes, mormente as que se produzem em sede recursória. Lamentavelmente, a 1.ª instância persistiu em não seguir tais boas práticas e omitiu de novo a numeração do enunciado de factos que levou à sentença recorrida. Resta, pois, fazer o que já podia ter sido feito nessa sede. * 2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância consta a seguinte matéria de facto provada (transcrição, sendo a numeração nossa): 1.- A sociedade arguida A..., Unipessoal L.da, … é uma sociedade por quotas que se dedica à comercialização, importação, exportação e recuperação de produtos siderúrgicos e sucatas, desmantelamento de navios e prestação de serviços de manutenção e reparação de equipamentos mecânicos e eléctricos. 2. O arguido AA é desde o dia .../.../2013, o único gerente da referida sociedade, actuando sempre em nome e representação daquela sociedade. 3. Em data não concretamente apurada mas situada em momento anterior a 11 de Fevereiro de 2013, o arguido AA decidiu, por si e em representação da sociedade arguida de que é gerente, elaborar um documento que designou por “Minuta de Contrato de Prestação de Serviços”. 4. No referido documento constam como primeiro outorgante “Rede Ferroviária Nacional – Refer, E.P.E.”, … ali representada pelo Presidente do Conselho de Administração, Engenheiro BB, e como segundo outorgante “B..., SL”, … ali representada pelo Presidente do Conselho de Administração, Eng. CC. 5. Consta ainda do referido documento que o contrato de prestação de serviços acordado era-o à luz do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, com a redacção do Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de Outubro. 6. De acordo com o mesmo, o contrato era celebrado pelo período de 36 meses, e o segundo outorgante obrigava-se a prestar a sua actividade de vigilância privada, desmontagens, montagens industriais de instalações activada, desactivadas, incluindo acondicionamento dos materiais em estaleiro oficial da contratante … … 8. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 11 de Fevereiro de 2013, o arguido AA, em representação da sociedade arguida, e tendo em vista a execução factual do supra referido contrato de prestação de serviços, contratou DD, EE, FF, GG, HH e II, para desempenharem funções naquela empresa, este último na qualidade de responsável pela frente de trabalho, sendo que as funções seriam a de desmantelar, cortar e transportar vigas em ferros pertencentes à linha de caminho-de-ferro ... – ..., na zona do concelho .... 9. Para tanto, o arguido AA exibiu a II o supra referido “minuta de contrato de prestação de serviços”, … explicando-lhe que a empresa constante do mesmo como segunda outorgante - B..., SL” – havia ganho o concurso público para desmantelamento daquela linha férrea e que, por sua vez, havia adjudicado esse serviço à sociedade aqui arguida, A..., Unipessoal L.da, de que aquele é gerente. 10. O arguido AA deu ainda indicações a II para que as vigas de ferro, depois de cortadas, fossem transportadas para o estaleiro da empresa C..., Unipessoal, L.da”, de que é legal representante JJ, sito na Estrada ..., na localidade da ..., em .... 11. Em momento não concretamente apurado, mas anterior a 11 de Fevereiro de 2013, data da início dos trabalhos, o arguido AA contactou o referido JJ, seu conhecido, solicitando-lhe o aluguer de uma carrinha, um camião grua e de uma máquina retroescavadora para efectuar um trabalho, bem como autorização para depositar no supra referido estaleiro material pertencente aos trabalhos de desmantelamento de uma linha férrea, ao que este último acedeu. 12. Entre os dias 11 e 17 de Fevereiro de 2013, os supra identificados trabalhadores da sociedade arguida, procederam ao corte, desmantelamento, remoção e transporte dos carris da linha férrea do ramal da ... – ... entre o quilómetro 39,851 e 41,600, para o supra referido estaleiro em .... 13. No dia 18 de Fevereiro de 2013, os supra referidos trabalhadores encontravam-se a desenvolver aqueles trabalhos no quilómetro 42,790, …, por forma a fazer o seu transporte para o supra referido estaleiro. 14. Na execução das ordens transmitidas pelo arguido AA, por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida A..., os supra referidos trabalhadores cortaram e transportaram cerca de 3.109 metros de carris de ferro, para o estaleiro da firma “D...”, em ... … tudo no valor global de 68.246,48€ (sessenta e oito mil, duzentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos). 15. Desse material foi recuperado o melhor descrito no - Auto de exame e avaliação de fls. 41 e 70 no valor global de 13.800€. …
2.2. Por sua vez, o tribunal considerou não provados os seguintes factos (transcrição, sendo a numeração nossa): … * 2.3. A sentença apresenta a seguinte fundamentação da convicção do tribunal (transcrição): “… ”. * 3.1. Alegam os recorrentes que o tribunal a quo não cumpriu o determinado no primeiro acórdão que a Relação proferiu nos autos, continuando a sentença recorrida a enfermar de nulidade por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nos termos previstos nos artigos 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), e 374.º, n.º 2, … Por outro lado, a sentença recorrida omitiu na sua fundamentação qualquer referência ao documento consubstanciado na acta da Câmara Municipal ... … Por outro lado, relativamente à sociedade arguida, também não foi cumprido o determinado em 3.3. do aresto proferido pela Relação, sendo a sentença recorrida completamente omissa quanto à sua situação económica e financeira. Vejamos. * No primeiro acórdão que proferiu nos autos a Relação considerou nula a sentença então sob recurso por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nulidade que relativamente à indicação e exame crítico das provas se circunscrevia unicamente às razões de ordem probatória ligadas ao concreto aspecto factual das características e valor dos carris de ferro retirados à lesada Infraestruturas de Portugal, S.A., constante do parágrafo 14 do elenco de factos provados. … Em relação a esta factualidade, a Relação concluiu que a explanação efectuada na sentença então sob recurso ficou aquém do patamar indispensável para a correcta compreensão do que levou o tribunal a quo a optar por um determinado sentido probatório, em detrimento de outro, dando, assim, a conhecer de forma bastante as provas e as razões que estiveram na base da formação da sua convicção. Quanto ao mais, entendeu-se que o teor da motivação então em análise permitia extrair com suficiência bastante o percurso lógico e racional efectuado pelo julgador em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à sustentação da matéria objecto da decisão recorrida, não se divisando a existência de outras faltas de fundamentação determinantes das restantes invalidades que os arguidos invocavam no recurso. Por outro lado, a Relação também entendeu que, ao contrário do sustentado no recurso, não constitui motivo de nulidade a alegada circunstância de o tribunal a quo não ter especificado, de toda a prova produzida, qual dela serviu, em concreto, para formar a sua convicção relativamente a cada um dos “parágrafos” da factualidade dada como provada. É que, como então se disse e agora se reitera, o dever de fundamentação não impõe ao julgador que proceda a uma relacionação exaustiva de cada um dos meios de prova em que se baseou para considerar provado cada um dos factos que assim considerou, bastando que a indicação e exame crítico da prova dê a conhecer com suficiência o percurso lógico e racional que efectuou pelo julgador, em sede da sua apreciação e valoração. * Na nova sentença que proferiu, agora sob recurso, o tribunal a quo veio aditar à fundamentação um segmento de exame crítico com o seguinte teor: … Ora, independentemente do mérito do que assim entendeu o julgador, mérito esse susceptível de sindicância à luz dos critérios legais do erro de apreciação da prova ou do erro de julgamento, a verdade é que no plano das exigências de fundamentação ditadas pelo artigo 374.º, n.º 2 do CPP, a conclusão que se impõe extrair é a de que as mesmas se encontram satisfeitas e que a nulidade identificada em 3.1.3. do primeiro acórdão se mostra suprida. * No que concerne à invocada omissão de referência e exame crítico relativamente aos exclusivos meios de prova apresentados e produzidos a requerimento dos recorrentes, em concreto, o documento consubstanciado na acta da Câmara Municipal ..., datada de 23 de Abril de 2013 (junto aos autos pelo requerimento com a ref.ª Citius 29942882), há que referir que, como se assinala no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 27/2007[3], “o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou”. Ora, na senda do que acima foi dito e resultava já do primeiro acórdão proferido por esta Relação, verifica-se que na fundamentação vertida na sentença recorrida foram efectivamente mencionadas as provas em que o tribunal a quo se baseou para formar a sua convicção, para além de que se indicou o essencial dos depoimentos assim considerados e se fez referência à sua valoração e credibilidade que o julgador lhes reconheceu. A circunstância de não ter feito menção específica aos documentos que os arguidos juntaram, na medida em que tal não reflecte deficiente explicitação do juízo decisório tomado pelo tribunal a quo, não pode, só por si, considerar-se violador da exigência de fundamentação da decisão judicial aqui em causa. * … * … Em suma, atendendo ao acima exposto, conclui-se que a nulidade da sentença recorrida, que os arguidos vieram invocar no recurso, deve improceder. * 3.2. Dizem ainda os recorrentes que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação, pois não obstante o tribunal a quo tenha elencado, um por um, os factos dados como não provados, conforme determinado no primeiro aresto da Relação, a verdade é que há factos provados e não provados que estão em contradição entre si, factos esses que os recorrentes indicam na motivação, na qual expõem também as razões para assim entenderem. … * Como é sabido, os vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP devem resultar do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo, pois, estender-se a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte da decisão. Neste contexto, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão encontra-se prevista na alínea b) e desdobra-se nas seguintes vertentes: Por um lado, a contradição da fundamentação pode consistir na incompatibilidade entre os factos provados (consideram-se como provados dois factos contraditórios), ou entre os factos provados e os não provados (o mesmo facto é, simultaneamente, considerado provado e não provado), como ainda na oposição entre a fundamentação da matéria da facto e a solução factual encontrada.[4] Por outro lado, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão, quando, após a realização de um raciocínio lógico, se conclui que a fundamentação conduz a uma decisão contrária à que foi tomada, ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, a decisão não fica suficientemente esclarecida pois os fundamentos invocados são incompatíveis entre si.[5] A contradição com a decisão poderá emergir da própria fundamentação de direito, apontando-se com exemplo a sentença que se espraia em considerações direccionadas para a irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final conclui, se nada mais explicar, por uma condenação penal, ou então quando sucede a hipótese inversa.[6] De notar, porém, que a contradição só conduz à verificação do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, quando não for suprível pelo tribunal ad quem, ou seja, quando a contrariedade detectada se revelar inultrapassável e, por conseguinte, insanável. De resto, o regime legal aplicável a este vício decisório não prevê a reapreciação da prova, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à sua detecção no acórdão ou sentença sob análise e, quando não for possível saná-lo, a ordenar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, nos termos estipulados no artigo 426.º, n.º 1 do CPP. * … * Em suma, atendendo ao exposto é forçoso concluir que a pretensão dos recorrentes quanto ao alegado vício de contradição insanável deve improceder, porquanto as situações invocadas e por nós acima analisadas, bem como todas as demais referências feitas a uma tal contradição, ao longo da extensa motivação recursória, não configuram oposição inconciliável para os efeitos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP. * 3.3. Alegam os recorrentes que para formar a sua convicção o tribunal a quo tomou em consideração documentos que não foram produzidos ou examinados em audiência de julgamento, designadamente as guias de transporte de fls.36 a 40 e o contrato de fls.311 a 320, em claro prejuízo da contraditoriedade imposta pelo artigo 327.º, n.º 2 do CPP, que dispõe que os meios de prova apresentados no decurso da audiência, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal, são submetidos ao princípio do contraditório, acolhido na segunda parte do n.º 5 do artigo 32.º da CRP. Estando, pois, a sentença recorrida em clara violação do preceituado nos artigos 355.º, n.º 1 e 327.º, n.º 2, ambos do CPP e artigo 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5, ambos da CRP. Vejamos. * A prova documental invocada no recurso (guias de transporte de fls.36 a 40 e contrato de fls.311 a 320) foi, a par de outra, considerada relevante pelo tribunal a quo, nos termos explanados na motivação da sentença recorrida, sendo que a mesma consta do processo e dela os arguidos tomaram conhecimento em momento anterior ao julgamento, tendo, assim, a possibilidade de a contraditar. O entendimento que nesta matéria prevalece e que subscrevemos pode-se resumir nos seguintes termos: “é permitida a valoração da prova documental constante do processo (aqui se incluindo o certificado de registo criminal, o relatório social, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e intercepções telefónicas), independentemente de leitura, visualização ou audição em audiência, quando indicada como meio de prova na acusação deduzida, quando referenciada no requerimento acusatório, quando contraditada pelo arguido em fase anterior do processo ou quando se conclua que o arguido conhece ou tem obrigação de conhecer”.[7] Com efeito, na acusação que deduziu contra os arguidos, o Ministério Público indicou a título de “prova documental”, “a constante dos autos, designadamente”, as referidas guias de transporte de fls.36 a 40 e o contrato de fls.311 a 320. Acresce que a fls.480 a Ilustre Defensora do arguido veio requerer a consulta dos autos, o que o Ministério Público deferiu, por despacho proferido a fls.481, comunicado à Ilustre causídica a fls.482. Assim sendo, atendendo a que os meios de prova em questão se encontram referenciados na acusação (onde, de resto, pela formulação utilizada, a prova documental é a constante dos autos, sem prejuízo de os concretos elementos invocados no recurso até ali estarem expressamente identificados), sendo certo que os arguidos tinham a obrigação de os conhecer (veja-se a consulta dos autos requerida pela Ilustre Defensora), é manifesto as exigências de contraditório foram asseguradas e não existe, pois, impedimento legal à utilização da referida prova para o julgador formar a sua convicção. Donde, face ao supra exposto, há que concluir que não se verificou a invocada violação da proibição de valoração de prova, estatuída no artigo 355.º do CPP, improcedendo, pois, o recurso também nesta parte. * 3.4. No recurso perante a Relação a decisão sobre a matéria de facto é susceptível de ser sindicada por duas vias: por um lado, no contexto mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP e, por outro, no âmbito da impugnação ampla regulada no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do mesmo diploma. … * 3.4.1. Conforme sucede com todos os vícios regulados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), deve resultar unicamente do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Neste contexto, segundo se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, o erro notório “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova”.[8] Trata-se, pois, de um vício em que as provas em que o tribunal se baseou não poderiam manifestamente levar à decisão que tomou sobre a matéria de facto, provas essas que são as que constam indicadas na fundamentação da convicção formada, segundo a valoração que o julgador delas fez, já que o erro é de decisão e tem de resultar do seu texto, sem recurso a elementos extrínsecos. In casu, os recorrentes alegam que houve erro notório na apreciação da prova em que o tribunal a quo se baseou para considerar assente a matéria dos parágrafos 14 e 15 da sentença recorrida, invocando a este respeito as passagens dos depoimentos das testemunhas que indicaram para a impugnação de tais factos, bem como fizeram apelo ao teor de documentos juntos ao processo … Verifica-se, pois, que ao suscitarem a existência de erro notório na apreciação da prova os recorrentes se ancoram, no essencial, em fundamentos que extravasam os limites da sindicância prevista no artigo 410.º, n.º 2, remetendo para um juízo sobre a valoração da prova produzida em audiência, efectuada pela 1.ª instância, que é próprio do mecanismo consagrado no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do CPP, do qual nos ocuparemos a seguir (3.4.2.). Ainda assim, sempre se dirá que da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer erro ostensivo que evidencie o desacerto da opção tomada relativamente à matéria que o julgador considerou provada. Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto dada como assente, acima transcrita (cf. 2.3.), o tribunal a quo explanou de forma compreensível a valoração que efectuou e as razões de assim ter valorado a prova, identificando a prova pessoal e documental que relevou para formar a sua convicção e indicando os aspectos de tal prova que, conjugadamente, o levaram a concluir no sentido de considerar apurada a factualidade da acusação que os arguidos vêm agora questionar no recurso. Do quadro descrito na motivação quanto à matéria de facto provada, em conjugação com o teor global da decisão recorrida, não se divisa, pois, qualquer erro na valoração probatória resultante da violação das regras da experiência ou de outros princípios a considerar, que seja patente para um observador médio que lê a decisão, em função do que se impõe concluir que a sentença recorrida não enferma do erro notório invocado pelos recorrentes, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP. Isto sendo certo que nas situações em que invocaram erro notório, nos termos acima referidos, os recorrentes fazem-no sobretudo com base em elementos que extravasam o texto da sentença recorrida, mormente os documentos atrás indicados e o conteúdo gravado de prova pessoal produzida em audiência de julgamento, pelo que nessa parte ficou desde logo arredada a hipótese de se estar perante o vício decisório do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP. * 3.4.2. … ….[9] * Da posição assumida no recurso resulta que as razões da divergência em relação ao que concluiu a 1.ª instância se prendem, sobretudo e no essencial, com a diferente valoração da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, sendo que os impugnantes defendem uma outra convicção que não aquela a que chegou o tribunal que julgou a causa. Sucede que na presente matéria vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, nos termos do qual, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1 do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção. Livre apreciação que, embora não sujeita a regras legais que pré-determinem o valor das provas, tem de se traduzir “em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.[10] Levando-se ainda linha de conta que, em matéria de prova pessoal, a imediação e a oralidade que caracterizam a actividade da 1.ª instância em audiência de julgamento permitem o contacto directo com os elementos de que tem de extrair a sua convicção (os depoimentos das testemunhas) e fornecem importantes contributos para a sua formação com base na livre apreciação, conduzindo ao resultado probatório acolhido na decisão. Pese embora a sindicância da matéria de facto pelo tribunal de recurso se funde no mesmo princípio da livre apreciação da prova, certo é que a análise efectuada com base nas declarações e depoimentos gravados não permite apreender os elementos percepcionados no apontado contexto de imediação que revestem importância no processo de formação da convicção do julgador (os aspectos da comunicação não verbal como a postura mantida ao longo das declarações ou depoimentos, as reacções comportamentais de quem depõe ou de outros, presentes em julgamento, as hesitações, as pausas, os gestos, as expressões faciais, os olhares, em suma, “as particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir”[11]). Daí que a credibilidade e o valor que a 1.ª instância atribuiu a certas declarações ou depoimentos, na medida em que se inscrevem num resultado de imediação sujeito à livre apreciação, só deverão ser objecto de censura pelo tribunal de recurso quando ficar demonstrado que a opção tomada viola as regras da experiência comum consideradas válidas e legítimas dentro de um determinado contexto histórico e jurídico e, portanto, dotadas de razoabilidade (Acórdão do STJ de 19-12-2007[12]), pelo que, “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova” (Acórdão do STJ de 12-09-2013[13]). Temos, assim, que a impugnação da decisão tomada em sede de matéria de facto não se destina a suprir ou substituir o juízo que, apoiada na imediação, a 1.ª instância formulou sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade a reconhecer ao declarado pela arguido, assistente e testemunhas. A que acresce que, como atrás já foi dito, para a procedência da impugnação e consequente modificação da decisão de facto, não basta que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo, sendo necessário que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida – artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP * … * A Relação analisou o documento de fls.51 a 54, ou seja, a cópia do contrato intitulado “Minuta de Contrato de Prestação de Serviços” a que se refere parágrafo 3 da sentença recorrida. Por outro lado, fez uso da faculdade prevista no artigo 412.º, n.º 6 do CPP e ouviu na íntegra o registo gravado dos depoimentos das testemunhas BB, II e EE, que correspondem à prova pessoal em que se apoia a impugnação deduzida no recurso, assim invocada expressamente na respectiva motivação e conclusões [cf. artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP]. Para além disso, levou em linha de conta a restante prova pessoal que serviu de base à formação da convicção do tribunal a quo, tal como consta indicada na motivação da sentença recorrida, nos termos acima enunciados. Teve também em consideração o teor dos documentos com informação relativa a sociedades espanholas, juntos a fls.338 a 342 e 437 a 438 (estes últimos obtidos através de carta rogatória enviada à autoridade judiciária de Espanha, com tradução a fls.443 a 446), cuja valoração é admissível, nos termos explanados em 3.3. (documentos constantes dos autos, à data da acusação neles deduzida, que o arguido conhece ou tem obrigação de conhecer pelas razões referidas no indicado ponto 3.3.). Da audição do referido registo gravado, em conjugação com a análise dos demais elementos probatórios acima referidos, não resulta qualquer elemento que ponha em causa a valoração que o tribunal a quo fez desta prova, conforme expôs na motivação da sentença recorrida, que fundadamente o convenceu quanto à prática dos imputados actos de falsificação, pelo arguido AA, do documento “Minuta de Contrato de Prestação de Serviços”, descrito na factualidade em questão, revelando-se, pois, a referida prova apta a suportar por via indirecta a demonstração da factualidade levada aos indicados pontos impugnados da sentença recorrida. O apuramento dos actos referidos foi obtido através da chamada prova indirecta ou indiciária, a qual, conforme já havia sido referido no primeiro acórdão desta Relação, pressupõe um facto demonstrado através de prova directa que permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não directamente demonstrado, por via de um procedimento lógico de indução apoiado nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que determinados factos são a consequência de outros. Isto tendo sempre presente que a conexão causal entre o que se conhece e o que se apurou de uma forma indirecta [numa relação factos-base → factos-consequência] pressupõe uma consistência apta a validar a inferência efectuada[14], levando fundadamente a um patamar de convencimento para além de toda a dúvida razoável e racionalmente sustentado[15]. … * Por outro lado, no plano subjectivo, os factos do foro interno e psicológico do arguido, por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, constantes dos parágrafos 16, 17, 18 e 19 da sentença recorrida, encontram sustentação probatória nos elementos objectivos descritos nos parágrafos 2 a 14 da mesma sentença. Esta matéria é normalmente insusceptível de directa apreensão, salvo quando há confissão do agente, pelo que, em regra, a sua sustentação probatória se obtém por via de prova indirecta, ou seja, extrai-se de factos do foro externo ou objectivo, em termos de os mesmos só serem racionalmente explicáveis como consequência normal e típica do correspondente propósito, constituindo, pois, uma sua manifestação exterior concludente, da qual é possível inferir a indicada demonstração indirecta. Ponto é que a conexão causal entre o que se conhece e o que se apurou de uma forma indirecta seja dotada de consistência apta a validar a inferência efectuada, o que supõe que os factos do foro externo ou objectivo relativos à actuação do arguido que, na decisão, foram dados como provados, conjugados com as regras da experiência comum, constituam base factual directa bastante para concluir no sentido da demonstração, por via indirecta, da presente matéria relativa ao foro interno do agente. … A conclusão a que o julgador chegou, ao dar como demonstrada essa matéria do foro subjectivo do arguido, mostra-se consentânea com a prova indirecta que indicou, conforme às regras da experiência e ficando, pois, afastada qualquer hipótese de na decisão tomada quanto aos sobreditos factos, resultar que o julgador errou na ponderação probatória que efectuou em relação a eles, considerando-os assentes.
»« … * 3.5. Alega-se ainda no recurso que, em sede de escolha e determinação da medida da pena, quando se pronunciou sobre os antecedentes criminais do arguido AA, o tribunal a quo teve em conta a certidão relativa a um processo de 2012 em que foi condenado, em vez de atender ao último CRC no qual não consta já o averbamento de tal condenação. Desde a data da extinção da pena aplicada nesse processo, ou seja, desde 05-11-2012, já decorreram mais de cinco anos e, portanto, ocorreu o cancelamento definitivo do seu registo, conforme resulta do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio (Lei da Identificação Criminal), prazo de cinco anos esse que, aliás, já tinha decorrido, quando se deu início audiência de julgamento nos presentes autos. * Nesta parte há que reconhecer total razão ao recorrente … uma vez que o tribunal a quo não só ignorou o certificado de registo criminal (CRC) do referido arguido, junto aos autos em 05-04-2018, no qual nada consta acerca da pessoa indicada, como ao arrepio do que foi determinado no primeiro acórdão proferido pela Relação, depois de requisitar novo CRC, junto em 21-04-2021 (ref.ª 85227032), o julgador ignorou novamente o que nele se diz quanto a nada constar acerca do arguido e, recuperando a informação de um CRC mais antigo, com data de emissão de 05-01-2017, junto a fls.484 a 485, mandou requisitar a certidão da sentença condenatória nele averbada e que, como ressalta de dois certificados posteriores, já havia sido, entretanto, objecto de cancelamento definitivo no registo. A Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, invocada no recurso, estabelece o regime jurídico da identificação criminal e prevê, no seu artigo 11.º, as situações em que há lugar ao cancelamento definitivo das decisões que constam do registo criminal. Assim, para o que importa considerar no presente recurso, o n.º 1, alíneas a) e b), do citado normativo determina que as decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos: a) Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respectivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza; b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza; Como claramente resulta deste normativo, o decurso de um determinado período de tempo sobre a extinção de uma pena sem que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por qualquer crime, conduz necessariamente ao cancelamento no registo criminal da decisão que a aplicou. Trata-se da chamada “reabilitação”, para a qual o referido decurso de tempo sem que o agente volte a delinquir afasta qualquer conexão entre o seu passado e posteriores infracções que o mesmo venha a cometer, levando a que as decisões canceladas se considerem extintas no plano jurídico e não produzam, assim, quaisquer efeitos a esse nível, nomeadamente no que se refere à medida da pena.[16] Neste contexto, conforme se sublinha no Acórdão da Relação de Évora de 21-02-2017[17], sendo o cancelamento uma imposição legal, sempre que se verifique a hipótese contemplada na previsão da norma o registo da condenação deixa de poder ser considerado, a qualquer título, contra o arguido, o que deve suceder independentemente de a entidade administrativa incumbida de o fazer ter ou não procedido prontamente à real efectivação de tal cancelamento. Ora, no caso dos autos o cancelamento do registo foi devidamente realizado e o que ocorre é que o tribunal a quo, em violação das normas acima referidas, valorou contra o arguido AA uma condenação que lhe era vedado considerar. Assim sendo, atendendo à prova decorrente dos CRC juntos aos autos em 05-04-2018 e 21-04-2021, que vincula a decisão a proferir nos presentes autos, impõe-se determinar que o parágrafo 20 do elenco assente da sentença recorrida seja modificado para o seguinte teor: “A sociedade arguida e o arguido AA não têm antecedentes criminais”, considerando-se não provada a matéria que daqui foi agora excluída. * 3.6. Como é sabido, o in dubio pro reo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República, e dá resposta às situações de dúvida quanto à verificação de determinado facto, impondo que o non liquet em matéria de prova seja valorado a favor do arguido. Em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí se extrair que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio. Por outro lado, havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, importa aferir se a concreta prova invocada no recurso para suportar essa impugnação impõe resultado diverso do alcançado pela 1.ª instância, o que, inclusive, poderá ser fruto de um estado de dúvida que a prova reexaminada forçosamente suscita e em que, por efeito do princípio in dubio pro reo, o sentido favorável ao arguido deve prevalecer. … Fica, deste modo, afastada a invocada violação do principio in dubio pro reo, bem como a violação do princípio da presunção de inocência a ele associado, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República. * 3.7. … * 3.8. Como é sabido, na operação de escolha da pena, a lei estabelece que o tribunal dê preferência à pena não privativa da liberdade aplicável ao caso, sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 70.º do Código Penal). Feita a opção, a determinação da medida concreta da pena deve obedecer aos critérios da prevenção e da culpa (artigos 40.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.º 1, ambos do Código Penal), tendo presente que a prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e que a culpa, dirigida ao agente do crime, funciona como “limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas”[18]. A medida da pena deverá, pois, resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração –, conjugada com a necessidade de prevenção especial positiva ou de socialização, dentro da referida fronteira intransponível ditada pela culpa, em que a prevenção geral constitui a finalidade primordial a prosseguir e funciona como limite à prevenção especial. Assim, no processo de determinação da pena concreta há que ponderar as circunstâncias apuradas que relevam para a culpa do agente e para as exigências de prevenção e que funcionam como factores de medida da pena. Nessa determinação, a operar dentro dos limites da moldura abstracta estabelecida para o crime praticado, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o respectivo modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando se destina a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, tudo conforme previsto no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal. * 3.8.1. O crime de falsificação de documento praticado pelo arguido AA é punível com pena de prisão até três anos ou multa de 10 a 360 dias (cf. artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e) do Código Penal e, quanto aos limites mínimo e máximo da multa, cf. artigo 47.º, n.º 1 do mesmo diploma). Na operação da escolha da pena, a efectuar em conformidade com o disposto no artigo 70.º do Código Penal, há que atender a que o arguido AA não tem antecedentes criminais e não se divisam particulares necessidades de prevenção especial a exigir a aplicação da pena de prisão em detrimento da multa prevista em alternativa, sendo certo que, relativamente à prevenção geral, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico se mostram salvaguardadas. Assim, considerando que as referidas exigências de prevenção resultam suficientemente asseguradas com a punição em pena de multa, será essa a opção tomar no presente caso. Na determinação da medida concreta da pena, há ponderar os seguintes factores: - O comportamento do arguido é merecedor de um juízo de censura, na medida em que actuou com dolo directo pois representou que, com a sua conduta, preenchia um tipo de crime e actuou com intenção de o realizar (artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal). - O grau de ilicitude é médio, atendendo a que o desvalor da conduta, consubstanciado nos concretos actos de fabricação e de abuso de assinatura perpetrados, bem como no uso que foi dado do documento assim criado (sem entrar na valoração que pertence já ao crime de burla), não apresenta exigências de particular monta. - As necessidades de prevenção especial não são significativas, dada a ausência de antecedentes criminais e uma vez que, conforme se provou, o arguido não apresenta especiais necessidades ao nível da reinserção social (cf. parágrafo 37). - Ao nível das necessidades de prevenção geral, há que considerar que estas são acentuadas, dada a enorme frequência com que ocorrem os crimes de falsificação, pondo em causa as relações comerciais e pessoais bem como a fé nos documentos e no tráfego jurídico, tanto mais que o perigo criado diz respeito a bens e interesses que integram o domínio público (domínio público ferroviário), o que naturalmente suscita por parte da comunidade uma necessidade acrescida de restabelecimento da confiança na validade das normas infringidas, a exigir por parte do tribunal uma resposta punitiva firme. Assim, tudo ponderado, atentos os referidos factores que relevam para a presente operação de determinação, a ilicitude global do facto, o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido AA e as exigências de prevenção, entende a Relação que é adequado, suficiente e proporcional às finalidades da punição, aplicar a pena de 200 dias de multa pela prática do imputado crime de falsificação de documento.
* No que concerne à taxa diária, estabelece o artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5,00 € a 500,00 €, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. O critério geral assim consagrado dá realização ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios e, por conseguinte, à eficácia preventiva da multa[19], uma vez que a avaliação diferenciada em função das possibilidades de cada um assegura maior uniformidade no impacto que a pena exerce nos condenados. A eficácia político-criminal da pena de multa pressupõe que esta represente um sacrifício económico para o condenado, sem que, contudo, seja posto em causa o mínimo indispensável à satisfação das necessidades básicas próprias e do respectivo agregado familiar. No caso sub judice, resulta da factualidade apurada que o arguido AA se encontra separado da esposa, reside sozinho no andar que possui na ..., está reformado por invalidez e recebe uma pensão que ronda os 2 400,00 € mensais líquidos, valor ao qual é descontado 770,00 € mensais respeitantes a uma penhora pelas dividas da empresa. Tem outras penhoras pendentes e que pondera pedir a insolvência pessoal. Tem despesas de saúde que rondam os 400,00 € mensais e cerca de 160,00 € em despesas de electricidade, água, gás e condomínio, pelo que o rendimento disponível lhe permite alguma qualidade no quotidiano. Ora, analisado o referido quadro factual, à luz dos critérios subjacentes ao artigo 47.º do Código Penal, tem-se por adequado fixar o quantitativo diário em 10,00 € (dez euros). * No que concerne à pena relativa ao imputado crime de burla qualificada, previsto no artigo 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal e punido com pena de prisão de dois a oito anos, na sentença recorrida o tribunal a quo decidiu condenar o arguido AA na pena de dois anos de prisão, cuja execução suspendeu por período de tempo igual ao da duração da pena (então uma pena única que englobava a pena parcelar de seis meses de prisão pelo crime de falsificação de documento, agora punido com pena de multa, nos termos acima expostos). Como se observa, a duração da pena de prisão fixada para o crime de burla qualificada corresponde ao mínimo da moldura penal aplicável, razão pela qual, em obediência à proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º, n.º 1 do CPP), está vedada a possibilidade de modificação do assim decidido pela 1.ª instância, devendo apenas a Relação determinar que, em consonância com o sentido da sentença recorrida, a execução da pena de dois anos de prisão fique suspensa por igual período de dois anos. * 3.9. Na sentença recorrida a 1.ª instância decidiu condenar a sociedade arguida A..., Unipessoal, Lda., em concurso real, por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência aos artigos 255.º, alínea a), e 11.º , n.º 1, numa pena de 100 dias de multa, e por um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do Código Penal, numa pena de 240 dias de multa, sendo a pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, num total de 3 000,00 €. Sucede que no caso da multa aplicada às pessoas colectivas, rege o artigo 90.º-B do Código Penal, o qual no seu n.º 5 estabelece que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 100 e 10 000 euros, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores. Ou seja, o tribunal a quo fixou um quantitativo diário para a multa que não cumpre as exigências legais ditadas pela referida norma, o que constitui um erro jurídico. Seja como for, atendendo a que na presente sede recursória a correcção do erro verificado passaria por fazer coincidir aquele quantitativo com um valor necessariamente superior ao fixado pelo tribunal a quo, o que resultaria em prejuízo para a sociedade arguida, sendo certo que apenas esta e o seu representante legal vieram interpor recurso da sentença, impõe-nos a proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º, n.º 1 do CPP) que não se modifique o decidido pela 1.ª instância, nada mais havendo, pois, a determinar pela Relação quanto a esta parte. E porque assim é, fica também prejudicado o conhecimento da eventual invalidade por omissão de pronúncia quanto à situação económica e financeira e encargos com os trabalhadores da sociedade arguida A... Unipessoal, Lda., identificada no primeiro acórdão da Relação (cf. 3.3. do referido aresto) e não suprida pelo tribunal a quo, mas que nesta fase uma nova declaração dos seus efeitos redundaria na prática de um acto inútil e, como tal, não permitido. Termos em que, também aqui, nada mais há ordenar pela Relação. * 3.10. Na sentença recorrida, o tribunal a quo decidiu julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por Infraestruturas de Portugal, S.A., e condenou solidariamente os arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., a pagar à demandante a quantia de 54 446,48 € (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos). Para fundamentar o assim decidido, o tribunal a quo fez constar que a responsabilidade civil e consequente indemnização por perdas e danos que resultem da prática de um crime é regulada quantitativamente e nos pressupostos pela lei civil, nos termos do artigo 129º do Código Penal, sendo que, in casu, dos factos provados decorre o preenchimento de todos os pressupostos legais do dever de indemnizar, ou seja, a prática de facto ilícito por parte dos arguidos, a culpa, os danos sofridos e o nexo de causalidade, pelo que procede o pedido civil formulado. Procedência que é, no entanto, apenas parcial, pois tal como foi decidido pela 1.ª instância, no que concerne aos valores peticionados pela demandante que extravasam os quantificados no parágrafo 14 da sentença recorrida, não foi produzida prova do exigido nexo de causalidade, porquanto a linha em causa até acabou por ser desmantelada, pelo que as despesas de transporte de carril sempre teriam lugar, nem se fez prova dos concretos custos da mão de obra elencados, inexistindo, portanto, base que os suporte. Ao montante quantificado no sobredito parágrafo 14 da sentença recorrida – 68 246,48 € – deverá deduzir-se o valor do material apreendido, o qual foi, assim, recuperado pela demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. Valor esse que, conforme foi determinado em 3.4.2. e resulta dos modificados factos dos parágrafos 15 e 38 da sentença recorrida, se cifra em 15 451,80 €, pelo que é de 52 794,68 € o quantum indemnizatório a atribuir à sociedade lesada. * III – Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente, decidem: 1. Modificar a decisão sobre a matéria de facto na parte relativa aos parágrafos provados 14, 15, 38 e 20, nos precisos termos determinados em 3.4.2. e 3.5., para onde se remete. 2. Revogar a sentença recorrida na parte em condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), numa pena de 6 meses de prisão, e, em cúmulo com a pena de dois anos de prisão aplicada pelo crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, numa pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na execução por igual período. 3. Condenar o arguido AA na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 € (dez euros), o que perfaz o total de 2 000,00 € (dois mil euros). 4. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida, na parte penal, relativamente ao arguido AA, incluindo a sua condenação como autor material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução por igual período, resultando, em cúmulo jurídico com a pena aplicada em 3., nos termos do artigo 77.º, n.º 3 do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução por igual período, e de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 € (dez euros), o que perfaz o total de 2 000,00 € (dois mil euros). 5. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida, na parte penal, relativamente à arguida A..., Unipessoal, Lda. 6. Revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou os arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. na quantia de 54 446,48 € (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos). 7. Condenar os arguidos AA e A..., Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. a quantia de 52 794,68 € (cinquenta e dois mil setecentos e noventa quatro euros e sessenta e oito cêntimos), absolvendo-os do demais peticionado pela demandante. Recurso sem tributação, na parte penal, relativamente ao arguido AA (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP). Custas da parte penal pela recorrente A..., Unipessoal, Lda., fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa). As custas do recurso quanto à parte cível serão a cargo dos recorrentes, na proporção do decaimento. Coimbra, 24 de Maio de 2023 (Elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP) Helena Bolieiro – relatora Rosa Pinto – adjunta Luís Teixeira – adjunto
[1] … [2] … [3] Aresto publicado no Diário da República, 2.ª SERIE, n.º 39, de 23-02-2007, pág.4791 [4] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág.77. [5] Ibid. [6] Cf. António Henriques Gaspar et al, Código de Processo Penal Comentado (anotação de Pereira Madeira ao artigo 410.º), 2.ª ed., Almedina, 2016, págs.1274-1275. [7] Cf. Cf. António Henriques Gaspar et al, Código de Processo Penal Comentado (anotação ao artigo 355.º, por António Jorge de Oliveira Mendes), 2.ª ed., Almedina, 2016, pág.1071. Cf. ainda o Acórdão do STJ de 17-09-2009, proferido no processo 169/07.3GCBNV.S1, o Acórdão desta Relação de 10-10-2012, proferido no processo 19/11.6TAPBL.C1, e o Acórdão da Relação do Porto de 09-01-2013, proferido no processo 220/08.0GBETR.P1, todos disponíveis na Internet em <http://www.dgsi.pt>. Cf. também os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 87/99, de 09-02-1999, e 110/2011, de 02-11-2011, ambos disponíveis na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt>. [8] Aresto proferido no processo n.º 06P363 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. [9] … [10] Cf. Acórdão n.º 1165/96 do Tribunal Constitucional, proferido em 19-11-1996 e disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt>. [11] Cf. Acórdão do STJ de 29-10-2008, proferido no processo n.º 07P1016 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. [14] Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, de 12-08-2015, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt>. [15] Cf. Acórdão do STJ de 07-01-2004, proferido no processo n.º 03P3213 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. [16] Assim, cf. António Almeida Costa, O Registo Criminal – História, Direito comparado, Análise Político-Criminal do Instituto, Coimbra Editora, 1985, citado no cf. Acórdão da Relação de Évora de 21-02-2017 (processo n.º 22/16.0GBODM.E1), disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. [17] Aresto identificado na nota anterior. No mesmo sentido nele exposto, cf. a demais jurisprudência aí citada. |