Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
328/23.1PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CRIME DE COACÇÃO
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 154.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - O bem jurídico protegido pelo crime de coacção é a liberdade individual de resolução e procedimento relativamente a determinado objecto, incluindo a liberdade de movimento, protegendo-se, assim, a liberdade de determinação e de acção ou de omissão.

II - O crime de coacção é um crime de dano, quanto ao bem jurídico, e de resultado, quanto ao objecto da acção, pressupondo o constrangimento de outra pessoa a praticar ou omitir uma acção, ou a suportar uma actividade, operando-se o constrangimento através de violência ou de uma ameaça, caso em que o crime de coacção consome o eventual crime de ameaça cometido pelo agente como meio para a prática do constrangimento que constitui elemento típico do primeiro crime.

III - A ameaça que o crime de coacção exige tem que ser de um mal importante em sentido social e não jurídico, muito menos jurídico-criminal, bastando o temor criado pelo agente da ocorrência de um facto futuro, socialmente nocivo para a vítima, mesmo que não seja criminoso.

IV - A utilização de violência ou ameaça com a prática de mal importante como meio para o cumprimento de uma obrigação é inaceitável para os padrões morais e sociais vigentes em qualquer sociedade moderna.

V - A consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta, no caso com a ameaça com a prática de mal importante.

VI - Na apreciação da pena aplicada não cabe ao tribunal de recurso efectuar nova operação de determinação da medida da pena concreta, mas apenas controlar a existência de erro na consideração ou desconsideração de um ou vários pressupostos a que a lei manda atender.

Decisão Texto Integral:

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

Relatório


1. Decisão recorrida:

Por sentença proferida a 29 de fevereiro de 2023 no processo abreviado n.º 328/23.1PBCLD.C1, do Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – J1, comarca de Leiria, foi decidido (transcrição):

A.1. - Condenar o Arguido … pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de coação agravado, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

A.2. - Condenar o Arguido … pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de coação agravado, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

A.3. - Condenar o Arguido … pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de coação agravado, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

A.4. - Condenar o Arguido … pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do RJAM, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

A.5. – Fixar a pena única, em cúmulo jurídico, em 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de 1.375,00 € (mil, trezentos e setenta e cinco euros);

A.6. – Condenar o Arguido na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas pelo período de 1 (um) ano

A.7. - Condenar o Arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, reduzida a metade, atenta a confissão integral e sem reservas do Arguido.


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2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente):

30. Entende o Arguido que não houve uma efetiva prática de três crimes de coação, mesmo na forma tentada.

31. O que sucedeu foi mais uma aparência de coação causada pelo espalhafato exibicionista provocado pelo Arguido ao abordar as pessoas nos restaurantes.

32. Na realidade, o Arguido não tinha qualquer intuito criminoso, que pudesse preencher o elemento subjetivo do tipo de crime.

33. O Arguido encontrava-se etilizado e tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto …

34.

35. Porém, ainda que assim não se entenda, o Arguido considera que as penas parcelares aplicadas foram excessivas face à pouca gravidade das ocorrências.

36. Do mesmo modo, o Arguido considera que a pena de multa aplicada ao crime de detenção de arma proibida é igualmente excessiva face à sua atitude colaborante e às circunstâncias atenuantes já analisadas pela douta sentença recorrida.

37. Deste modo, foi violado o artigo 154º nº 1 do C.P., pelo facto de não ter sido preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime de coação, e, ainda que assim não se entenda, foi violado o princípio constitucional da proporcionalidade relativamente às penas parcelares de multa aplicadas e, reflexamente, à pena resultante do cúmulo jurídico.

38. Assim, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Arguido dos três crimes de coação e, ainda que assim não se entenda, reduza as multas parcelares e a que resulte do cúmulo jurídico pelas razões acima mencionadas.

39. O mesmo critério de proporcionalidade deverá ser aplicado à pena pelo crime de detenção de arma proibida, com reflexos óbvios no cúmulo jurídico final.


*


3. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão, …

*


4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.

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II.

QUESTÕES A DECIDIR


… ([1]).

Assim, o recurso incide sobre as seguintes questões:

a) Prova do elemento subjetivo do tipo de crime de coação;

b) Preenchimento dos elementos do crime; e

c) Medida das penas aplicadas.


*

III.

FUNDAMENTAÇÃO


1. Transcrição da sentença de primeira instância (parte relevante):

Em julgamento e com relevo para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

1. No dia 03-06-2023, cerca das 21h00m, o Arguido dirigiu-se à esplanada do estabelecimento comercial designado «restaurante …», sito na Rua …, local onde esteve à conversa com duas jovens, que ali se encontravam sentadas e cuja identidade não foi possível apurar, tendo convidado as mesmas para se sentarem consigo numa mesa.

2. Como as referidas jovens recusaram a proposta do Arguido este disse-lhes «ai é já vão ver como eu resolvo as coisas», ausentou-se do local e dirigiu-se ao prédio de habitação, sito no número de polícia ..., local onde o Arguido fixa a sua residência quando se encontra na cidade …, e a qual se situa imediatamente ao lado da porta do estabelecimento comercial identificado em 1.

3. Cerca de 10 minutos depois, o Arguido regressou novamente ao estabelecimento comercial referido em 1, desta feita levando consigo a arma de fogo longa, abaixo identificada no ponto 13, § 1.º, apontando-a na direção das jovens, mas com o cano virado para baixo, ao mesmo tempo que lhes disse: «tão a ver, tão a ver, e lá em cima tenho mais, tenho cinco no total», querendo desta forma convencer as referidas jovens a sentarem-se numa mesa com ele e fazerem-lhe companhia.

4. Após alguns momentos, porque as referidas jovens não se sentaram junto do Arguido este voltou a sair do referido estabelecimento e voltou a entrar no prédio de habitação onde se situa a sua residência, levando consigo a referida arma.

5. Passado algum tempo o Arguido voltou a sair do referido prédio e dirigiu-se novamente ao restaurante …, local onde apontou às referidas jovens a arma de fogo curta, abaixo identificada no ponto 13, § 2.º, querendo, mais uma vez, desta forma, convencer as referidas jovens a sentarem-se numa mesa com ele e fazerem-lhe companhia.

6. Nessa ocasião, porque as referidas jovens não se sentaram junto do Arguido, este pediu a …, funcionária do referido estabelecimento, para lhe servir uma cerveja, o que a mesma recusou fazer, tendo o Arguido saído do referido estabelecimento e seguido em direção à Rua ….

7. No mesmo dia 03-06-2023, cerca das 21h30m, o Arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial designado Casa …, e pediu a …, funcionário do referido estabelecimento, que lhe servisse uma cerveja, tendo tal pedido sido recusado uma vez que o Arguido se encontrava alcoolizado.

8. Face a tal recusa o Arguido iniciou discussão com …, ao mesmo tempo que lhe dirigiu as seguintes palavras: «então mas há algum problema?», e simultaneamente retirou do bolso traseiro das calças que envergava, um objeto em tudo semelhante a uma arma de fogo, de pequenas dimensões, idêntica a uma pistola e colocou-a em cima do balcão do referido estabelecimento, ao mesmo tempo que disse: «já dei uns disparos na rua e tenho mais balas em casa», querendo com tal atuação obrigar o referido funcionário a servir ao Arguido uma cerveja.

9. Não obstante a conduta do Arguido, … não serviu ao Arguido a cerveja por si pedida e, após alguns momentos, o Arguido abandonou o estabelecimento, tendo seguido em direção à estação dos caminhos de ferro, da cidade …, local onde efetuou pelo menos um disparo para o ar com a referida arma.

10. Na sequência dos factos descritos em 8 foi encontrado na área pertencente ao referido estabelecimento, um invólucro de uma munição, com 6.35mm.

11. Algum tempo depois de terem ocorrido os factos acima descritos o Arguido voltou a entrar no prédio de habitação da sua residência, dirigiu-se à sua habitação e do interior da mesma efetuou vários disparos para o ar.

12. Na sequência dos factos acima descritos foram encontrados no chão na área pertencente às varandas do prédio de habitação da residência do Arguido, a uma distância de 8 e 10 metros de alinhamento das varandas do referido prédio, dois cartuchos, de 16mm, da marca Fiocchi.

13. No dia 05-07-2023, cerca das 12h20m, o Arguido guardava, no interior da sua residência sita … no quarto de hóspedes:

13.1. uma arma de fogo longa, de tiro a tiro, sem depósito ou carregador, de dois canos laterais, calibre 16GA, com número de cano 1537, interior de cano liso, carregada mediante a introdução manual de munição (cartucho) em cada câmara situada à entrada dos canos, de percussão central, com sistema de ignição de uma munição em que o percutor atua sobre a escorva ou fulminante aplicado no centro da base do involucro, a qual se encontrava enrolada num tapete debaixo da cama.

13.2. uma arma de fogo curta, pistola, semiautomática, da marca Tanfoglio Guiseppe, modelo GT28, calibre 6.35 Browning, de cano estriado, que ao ser introduzida uma munição da câmara após cada disparo se recarrega automaticamente e que não pode mediante uma única pressão no gatilho fazer mais do que um disparo, de percussão central, com sistema de ignição de uma munição em que o percutor atua sobre o fulminante aplicado no centro da base do invólucro, a qual se encontrava guardada no interior do guarda roupa, oculta debaixo da gaveta de baixo do lado esquerdo.

13.3. uma munição de arma de fogo, com a marca S&B, de calibre 6.35 Browning (.25) de origem Checa, com projétil único de percussão central, própria para arma de fogo curta, de cano de alma estriada, a qual se encontrava guardada no interior do guarda roupa, oculta debaixo da gaveta de baixo do lado esquerdo.

14. Ao atuar da forma descrita em 1 a 6 o Arguido agiu com intenção de obrigar as duas jovens ali referidas a sentar-se numa mesa consigo e a fazerem-lhe companhia, o que só não sucedeu por razões alheias à vontade do arguido.

15. Ao atuar da forma descrita em 7 a 9 o Arguido agiu com intenção de obrigar …, funcionário do estabelecimento comercial ali identificado a servir-lhe uma cerveja, o que só não sucedeu por razões alheias à vontade do arguido.

16. O Arguido não possuía nenhum documento que o habilitasse a usar, deter e guardar as armas e as munições acima identificadas.

17. O Arguido conhecia todas as características das armas e munições acima identificadas e sabia que não estava autorizado a usá-las, detê-las ou a guardá-las consigo a ainda assim quis e conseguiu detê-las e guardá-las da forma acima descrita.

18. O Arguido agiu sempre de forma livre deliberada e esclarecida apesar de saber que tais comportamentos não eram permitidos pela Lei.

Mais se provou:

19. À data dos factos, referida em 1 a 9, o Arguido teria as condições cognitivas necessárias para avaliar a ilicitude dos factos descritos e de se autodeterminar perante tal avaliação.

20. O Arguido, em sede de audiência de julgamento, confessou os factos anteriores de forma livre, integral e sem reservas, tendo demonstrado arrependimento na sua conduta.

- Motivação da matéria de facto:

A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada fundou-se na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com destaque para:

- Auto de apreensão de fls. 18, 22 e 23;

- Auto de apreensão de fls. 69 e seguintes;

- Exames perícias realizados aos objetos apreendidos, de fls. 81 e seguintes;

- Relatório pericial de exame médico-legal realizado ao Arguido sobre a sua imputabilidade, de fls. 173 a 177;

- Declarações do Arguido prestadas em sede de audiência de julgamento.

De referir que, no que concerne às características das armas e munições apreendidas na habitação do Arguido, e descritas no ponto 13 da factualidade demonstrada, tal ficou provado por força do teor relatório de exame realizado às mesmas, de fls. 81 e seguintes, que não foi impugnado ou colocado em causa por qualquer outro meio de prova.


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2. CONHECIMENTO DO RECURSO:


2.1.  Do elemento subjetivo do tipo legal de crime de coação:

Admitindo embora no ponto 21 ter confessado integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação, pretende o recorrente que não pode ter-se como provado o elemento subjetivo dos crimes de coação (crime que reveste a natureza dolosa), pelas seguintes razões:

31. O que sucedeu foi mais uma aparência de coação causada pelo espalhafato exibicionista provocado pelo Arguido ao abordar as pessoas nos restaurantes.

32. Na realidade, o Arguido não tinha qualquer intuito criminoso, que pudesse preencher o elemento subjetivo do tipo de crime.

33. O Arguido encontrava-se etilizado e tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto que não pretendia constranger nem tão pouco assustar ninguém; tratou-se de um desacato sem consequências.

No entanto, consta da factualidade provada que:

14- Ao atuar da forma descrita em 1 a 6 o Arguido agiu com intenção de obrigar as duas jovens ali referidas a sentar-se numa mesa consigo e a fazerem-lhe companhia, o que só não sucedeu por razões alheias à vontade do arguido.

15- Ao atuar da forma descrita em 7 a 9 o Arguido agiu com intenção de obrigar AA, funcionário do estabelecimento comercial ali identificado a servir-lhe uma cerveja, o que só não sucedeu por razões alheias à vontade do arguido.

17- O Arguido agiu sempre de forma livre deliberada e esclarecida apesar de saber que tais comportamentos não eram permitidos pela Lei.

E ainda:

19-À data dos factos, referida em 1 a 9, o Arguido teria as condições cognitivas necessárias para avaliar a ilicitude dos factos descritos e de se autodeterminar perante tal avaliação.

20-O Arguido, em sede de audiência de julgamento, confessou os factos anteriores de forma livre, integral e sem reservas, tendo demonstrado arrependimento na sua conduta.

Assim, para afastar a verificação do elemento subjetivo dos crimes teria primeiro o recorrente de lograr a alteração dos factos provados relativamente ao mesmo.

Ora, como é sabido o recurso sobre a matéria de facto pode processar-se por duas vias:

1º - através da arguição de vício de texto da decisão recorrida, nos termos do art. 410º, n.º 2, do CPP; ou

2º - através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.

No segundo caso, o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância. O recurso deve então especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

            Na verdade, a reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado possa obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto através do reexame parcial da prova.

            Concluindo, só haverá erro de julgamento da matéria de facto, suscetível de ser modificado em sede de recurso, naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade de certo facto é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos) ou que existem outras hipóteses dadas pelas provas tão ou mais plausíveis do que aquela adotada pelo tribunal recorrido ([2]).

            Na peça recursiva, é mister verificar que não se mostra efetuada qualquer impugnação da matéria de facto, nem foi arguido qualquer vício da decisão – pelo contrário, sendo os vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal de conhecimento oficioso, sempre se refere que analisada a sentença proferida não enferma esta de nenhuma das patologias previstas na norma mencionada.

Deste modo, a matéria de facto dada como provada, nomeadamente com base na confissão integral e sem reservas dos factos declarada pelo arguido, é imodificável.


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2.2. Preenchimento do crime tentado de coação:

Afirma ainda o recorrente que não decorre dos factos provados que as vítimas se tenham sentido perturbadas com a ameaça da arma.
O art. 154º, n.º 1, do CP estabelece que comete o crime de coação “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade”.
O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a liberdade individual de resolução e procedimento relativamente a determinado objeto (liberdade de decisão e de atuação/realização da vontade), incluindo a liberdade de movimento. Objeto da tutela penal é o interesse individual da independência do poder de outrem na formação e desenvolvimento da vontade em relação a uma determinada atividade exterior. Protege-se, assim, a liberdade de determinação e de ação (ou de omissão).
O crime de coação é um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), pressupondo o constrangimento de outra pessoa a praticar ou omitir uma ação, ou a suportar uma atividade. O constrangimento opera-se através da violência ou de uma ameaça. Neste caso, naturalmente que o crime de coação consome o eventual crime de ameaça cometido pelo agente como meio para a prática do constrangimento que constitui elemento típico do primeiro crime referido – naufragando em consonância a argumentação em contrário defendida pelo recorrente.
Exige o tipo legal de crime que a ameaça seja de um mal importante, ou seja, na comunicação de um mal em sentido social e não jurídico, nem muito menos jurídico-criminal, bastando o temor criado pelo agente da ocorrência de um facto futuro, socialmente nocivo para a vítima, mesmo que o mesmo não seja criminoso ([3]).
Assim, a utilização de violência ou ameaça com a prática de mal importante como meio para o cumprimento de uma obrigação não é de todo acolhida pela nossa ordem social e pela ordem jurídica. É, pois, inaceitável para os padrões morais e sociais vigentes em qualquer sociedade moderna o entendimento de que não prejudica a liberdade de determinação de um qualquer indivíduo a utilização de uma arma de fogo como meio de obter o propósito do agente (que as jovens se sentassem na sua mesa para lhe fazerem companhia, e que o funcionário lhe servisse uma cerveja - retirou do bolso traseiro das calças que envergava, um objeto em tudo semelhante a uma arma de fogo, de pequenas dimensões, idêntica a uma pistola e colocou-a em cima do balcão do referido estabelecimento, ao mesmo tempo que disse: «já dei uns disparos na rua e tenho mais balas em casa», querendo com tal atuação obrigar o referido funcionário a servir ao Arguido uma cerveja). A intimidação com uma arma de fogo não é, manifestamente, um meio que se possa considerar uma “brincadeira” que não seja para levar a sério.
Por outro lado, a consumação do crime de coação basta-se com o simples início da execução da conduta – no caso, a ameaça com a prática de mal importante. E, nos termos gerais previstos no art. 22º, n.º 2, al. b), do CP, são atos de execução do crime, para efeitos da punibilidade da tentativa, os que sejam idóneos a produzir um resultado típico. Ora, o arguido, ao exibir uma arma e ao proferir as expressões provadas, pretendia constranger os ofendidos a procederem da forma que exigia, sendo a sua conduta idónea à obtenção do resultado pretendido.
Tanto basta para concluir pelo preenchimento dos elementos do crime de coação na forma tentada por cuja prática foi, e bem, condenado.


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2.3. Penas concretas aplicadas:

O recorrente afirma serem as oenas aplicadas a cada um dos crimes manifestamente excessivas, em face da confissão integral e sem reservas, da sua postura processual, do tratamento da dependência do álcool que prossegue, e ainda da inexistência de danos materiais ou morais de relevo.
Ainda quanto ao crime de detenção de arma proibida, defende que a pena deve ser diminuída, em face da sua atitude de colaboração com as autoridades.

 Importará, nesta matéria, não esquecer as limitações que se colocam à controlabilidade do quantum exato de pena em sede de recurso, que já no acórdão de 25-11-2004 ([4]) o Senhor Conselheiro Carmona da Mota assinalava: “depois de controladas [e julgadas corretas] as operações de determinação da pena, não restará ao tribunal ad quem (a Relação ou o Supremo), num recurso limitado às correspondentes questões de direito, senão verificar se a quantificação operada nas instâncias, respeitando as respetivas «as regras de experiência», se não mostra «de todo desproporcionada». Aliás, «o Código assume claramente os recursos como remédios jurídicos» e não como «meio de refinamento jurisprudencial», pois que «o julgamento em que é legítimo apostar como instrumento preferencial de uma correta administração da justiça é o de primeira instância” ([5]).

Ou seja, não cabe ao tribunal de recurso efetuar nova operação de determinação da medida da pena concreta, mas apenas controlar a – invocada – existência de erro na consideração ou desconsideração de um ou vários pressupostos a que a lei manda atender nessa determinação.

Dito de outra forma, “o Código assume claramente os recursos como remédios jurídicos» e não como «meio de refinamento jurisprudencial», pois que «o julgamento em que é legítimo apostar como instrumento preferencial de uma correta administração da justiça é o de primeira instância” ([6]).

No caso, a ausência de antecedentes criminais, a confissão integral e sem reservas e o arrependimento do arguido, bem como as suas condições pessoais, foram consideradas pelo tribunal a quo em benefício do arguido, conforme consta expressamente na sentença.

Não se retira da sentença que tenham sido violados os passos a que a lei manda atender para o achamento da medida concreta das penas parcelares e da pena única, sendo as mesmas proporcionais aos factos e à culpa do arguido.

Tanto basta para concluir pela improcedência da pretensão do arguido.


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IV.

Decisão

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, e confirma-se integralmente a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando em 3 UC’s a taxa de justiça (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 25 de setembro de 2019

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Alcina da Costa Ribeiro (1ª adjunta)

Cristina Pêgo Branco (2ª adjunta)


[1] neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336
[2] cf. Ac. da Relação do Porto proferido no proc. 404/13.9TAFLG.P1, em 8.2.2017, publicado em www.dgsi.pt
[3] cf. Atas e Projeto da Comissão de Revisão do Código penal, 1993, pág, 234; Acs. da Relação do Porto de 27.11.2013, no proc. 107/12.1GDVFR.P1, e da Relação de Coimbra de 20.9.2017, no proc. 1408/12.4PBVIS.C1, em www.dgsi.pt, e ainda Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª ed., págs. 604-605
[4] Proc. n.º 3991/04 - 5.ª, in www.stj.pt
[5] V. ainda o acórdão do STJ de 29-01-2004, proferido no Proc. n.º 1874/03 - 3.ª, in www.dgsi.pt, reafirmando entendimento reiterado desse Tribunal e, após, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-2009, proferido no Proc. n.º 484/09 - 3.ª, ibidem, com indicação de vasta jurisprudência no mesmo sentido
[6] - Cf. Ac. cit. na nota 2.