Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1568/08.9TAVIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
PROVA DOCUMENTAL
VALOR PROBATÓRIO
CERTIDÃO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
DECLARAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 355.º, 356.º E 357.º, DO CPP
Sumário: I - Sob pena de subversão da disciplina dos artigos 355.º, 356.º e 357.º, todos do CPP, é insusceptível de valoração, como «documental», a prova traduzida em declarações e depoimentos [provas documentais declarativas] proferidos no decurso da audiência de discussão e julgamento no âmbito de um outro processo [em que o arguido não coincide] - cuja certidão [onde, também, se inclui a transcrição daqueles] integra os autos que agora decorrem.

II - Juízo contrário conduziria a uma insustentável violação, designadamente:

- do princípio da imediação, no sentido de que toda a prova deve, em princípio [cf. as excepções previstas v.g. artigos 356.º e 357.º do CPP], ser produzida na presença do arguido numa audiência pública com vista a uma argumentação contraditória;

- do princípio do contraditório, na dimensão de direito à confrontação das fontes de prova, de efectiva inquirição cruzada [contra-inquirição];

- do direito do arguido ao silêncio; da prorrogativa contra a auto-incriminação; e

- do direito de recusa [válida] de depor como testemunha.

III - Na impossibilidade de valorar a prova resultante da certidão, na parte em que vêm materializadas as declarações e testemunhos produzidos no domínio do “outro processo” [na dimensão de prova do evento narrado na asserção], a consequência, em face da relevância decisiva que assumiram na formação da convicção do tribunal para dar por provados os factos conducentes à responsabilidade jurídico-penal do arguido/recorrente, é a de se considerarem os mesmos como não provados, o que conduz a decisão de absolvição.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 1568/08.9TAVIS do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, mediante acusação pública, foi o arguido A... melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, nº 1, al. d) e n.º 3 do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, por sentença de 02.02.2012, foi o arguido condenado pela prática do sobredito crime na pena de 500 [quinhentos] dias de multa, à taxa diária de € 5,00 [cinco euros].

3. Inconformado recorreu o arguido, recurso que veio a ser apreciado por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.10.2012, o qual julgou nula a sentença recorrida, por violação do artigo 374.º, n.º 2 do CPP, determinando a remessa dos autos à 1.ª instância com vista à sanação do «vício».

4. Na sequência do que, em 21.01.2013, proferiu o tribunal a quo nova sentença, cujo dispositivo, em parte, se transcreve:

«Pelo exposto, na procedência da acusação, decide-se julgar o arguido .A... autor material de um crime de falsificação de documento, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigo 256º, nºs 1, alínea b), e 3, do Código Penal e, actualmente, p. e p. no nºs 1, alínea d), e 3, do mesmo preceito legal, em consequência, condená-lo na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de cinco (5) euros, o que perfaz a importância de 2.500 (dois mil e quinhentos Euros)».

5. Uma vez mais inconformado, recorre o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Os factos dados como provados na sentença e, como consta da sua motivação assentou exclusivamente na prova documental constante da certidão junta a fls. 2 a 157, dos autos;

2. Certidão, essa, de peças processuais extraídas dos autos de processo n.º 3667/06.2TAVIS do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu;

3. Onde constam transcritos entre outros os depoimentos da aí arguida filha do aqui arguido e o depoimento do próprio arguido cuja transcrição consta a fls. 126 a 139, dos autos.

4. A convicção do tribunal sobre os factos provados assentou na nossa modesta opinião no depoimento apenas e tão só na transcrição do depoimento do arguido e sua filha;

5. Não se produziram em audiência de julgamento quaisquer provas cfr. acta de fls. 339 a 340.

6. O arguido remeteu-se ao silêncio e a única testemunha indicada pela acusação invocou a prerrogativa constante do art. 134º do C.P.P., recusando-se a depor em audiência de julgamento.

7. Assim a sentença sob censura deu como provados factos cuja prova só poderia resultar da suposta “confissão” do aqui arguido e das declarações da sua filha – D... – prestados num outro processo;

8. Depoimento esse do arguido prestado num outro processo sem ser sujeito processual, sem estar acompanhado ou aconselhado juridicamente de que embora aceitando prestar depoimento tinha o direito de recusar falar sobre factos que implicassem para o mesmo responsabilidade criminal ou ainda no decurso do seu depoimento de que poderia de imediato solicitar que fosse constituído arguido, podendo assim beneficiar do quadro de direitos que a lei lhe reserva.

9. Aliás, ciente das preocupações de se evitarem auto incriminações involuntárias o legislador criou no nosso ordenamento jurídico mecanismos de salvaguarda previstos não só no processo penal – vide arts. 132º, 134º e 343º do C.P.P., como também no processo civil vide art. 554º, nº 2 do C.P.C.

10. Quer as declarações prestadas pela aí arguida D... , quer as declarações, da aí testemunha e aqui arguido, não podem deixar de ser equiparadas em termos processuais as declarações prestadas por sujeitos processuais e testemunhas em sede de inquérito ou prestadas anteriormente à realização da audiência de julgamento e, como tal, subsumíveis ao regime previsto nos arts. 356º e 357º ambos do C.P.P., cuja leitura em audiência de julgamento só é possível nos casos restritos aí previstos, mesmo que se tratem de declarações ou prestação de depoimento perante um juiz.

11. Não tendo o arguido sido em audiência de julgamento confrontado com tais declarações – atento o seu silêncio – não pode tal depoimento transcrito ser valorado como meio de prova para efeito de formação da convicção do tribunal – arts. 355º, nº 2 “parte final a contrário”.

12. O mesmo se aplica mutatis mutandis às declarações da aqui testemunha D... , que validamente se recusou a depor;

13. Tudo isto sob pena de se institucionalizar o princípio da auto – incriminação involuntária em sede de processo penal, não obstante o direito ao silêncio por parte dos arguidos.

14. Ainda que se pudesse entender que as declarações do arguido prestadas num outro processo judicial pudessem aqui considerar-se como simples declarações de testemunha prestadas perante um juiz, tendo em conta o disposto no nº 2 e 3 do art. 356º do C.P.P. a sua leitura em audiência face ao silêncio do autor das mesmas face à qualidade de arguido seriam estas insusceptível de leitura em audiência e, como tal, insusceptíveis de serem valoradas pelo Tribunal para formar a sua convicção sobre a ocorrência ou não dos factos de que o arguido vinha acusado – vide art. 355º do C.P.P.

15. Mesmo que assim se não entendesse resulta da transcrição do depoimento do aqui arguido a fls. 126 a 139, a prestação de um depoimento condicionado pelo facto da pessoa que estava a ser julgada ser a sua própria filha com a nítida preocupação e intenção de apenas e tão só ir ao encontro da versão dos factos que mais beneficiariam a defesa.

16. Aliás, o teor de tal depoimento, em vários aspectos é manifestamente contraditório e incoerente onde o aqui arguido afirma e ao mesmo tempo nega factos juridicamente relevantes para a prática ou não do crime de que aqui foi condenado, tais como que não sabia ou não tinha consciência de que a conta não se encontrava provisionada.

17. Daí que o tribunal ao ter valorado e formado a sua convicção nesse depoimento deveria ter especificado e fundamentado em que elementos concretos do mesmo formou a sua convicção fazendo a análise crítica que se exige o que não fez.

18. Também não consta da matéria de facto dada como provada, qualquer facto de onde se retire com a certeza exigível ou de onde resulte a consciência por parte do arguido do prejuízo patrimonial e benefício ilegítimo obtido através da conduta tipificada como crime.

19. Tais elementos subjectivos não se presumem antes têm de ser objecto de prova e demonstração por parte da acusação traduzida em factos concretos.

20. Os quais, são pressupostos subjectivos do crime de falsificação de documento – art. 256º do C.P.

21. Na verdade as referências nos pontos 2. e 3. da sentença onde constam os factos dados como provados não deixam de ser meras conclusões de facto e não factos concretos que tenham resultado da produção de qualquer meio de prova de forma a provar-se que o arguido actuou com consciência do prejuízo patrimonial e do ilegítimo benefício.

22. No que se refere à determinação da medida da pena a sentença é também omissa sobre as condições sócio – económicas do arguido exigidas pelo n.º 2 alínea d) do art. 71º do Cód. Penal.

23. Cujo conhecimento cabia ao tribunal apurar, pois o arguido não foi questionado sobre tal factualidade, sendo que, e mesmo que assim não fosse caberia ao tribunal porque tem mecanismos ao seu dispor que lhe permitiriam ter conhecimento das condições sócio económicas do arguido podendo inclusive solicitar o apoio dos serviços de reinserção social – art. 370º do C.P.P.

24. No que se refere à medida da pena aplicada – a pena de multa – o seu quantitativo ultrapassa a medida da culpa pelo que, em última instância deverá ser reduzida.

25. A sentença violou entre outros o disposto nos arts. 125º, 355º, 356º, 357º, 379º todos do C.P.P. e art. 71º do Cod. Penal, em resultado de uma incorrecta interpretação e aplicação dessas normas jurídicas.

TERMOS EM QUE REVOGANDO OU ALTERANDO A SENTENÇA OBJECTO DO PRESENTE RECURSO POR OUTRA EM CONFORMIDADE COM O ALEGADO, V. EXA.(S) E, COMO SEMPRE, FARÃO JUSTIÇA!

6. Ao recurso respondeu a Exma. Magistrada do Ministério Público, concluindo:

1. Os artigos 356º e 357º do CPP reportam-se a declarações (de testemunhas ou de arguidos) prestadas nas fases de inquérito ou de instrução.

2. No caso em apreço, trata-se de prova documental que contém, além do mais, a transcrição da gravação das declarações prestadas por arguida e por testemunhas na fase de julgamento com observância de todas as formalidades legais e que, por isso, não obedece à disciplina dos arts. 356º e 357º

3. Tal prova documental não pode ser confundida com autos de interrogatório de arguido ou com autos de declarações prestadas na fase de inquérito ou de instrução.

4. A jurisprudência é pacífica no sentido de que a prova documental (indicada na acusação) se considera produzida ou examinada em audiência independentemente de ser ou não feita a sua leitura durante o julgamento.

5. A Mm.ª Juiz a quo pronunciou-se sobre todas as questões de facto e de direito relevantes para a boa decisão da causa, tendo fundamentado com acerto a posição assumida na sentença.

6. A sentença recorrida não merece qualquer reparo, não resultando de tal decisão qualquer contradição, insuficiência ou erro na apreciação da prova, apreciação essa que foi devidamente motivada e está em harmonia com as regras da experiência comum.

Nestes termos e nos demais de direito, afigura-se-nos que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Porém, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores farão, como sempre, Justiça.

7. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal.

8. Na Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual secundando, no essencial, a argumentação expendida, na 1.ª instância, pelo Ministério Público, se pronuncia pela improcedência do recurso.

9. Cumprido o artigo 417º, nº 2 do CPP, não houve reacção.

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

                  De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço questiona o recorrente:

- A valoração da prova levada a efeito pelo tribunal a quo;

- A ausência de juízo crítico da prova;

- A omissão de elementos tendentes à determinação da medida da pena.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

Mostram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 31 de Agosto de 2006, o arguido, aproveitando o facto de estar na posse do cheque nº ... , da conta ... , da Caixa Geral de Depósitos, titulado pelo C... , já devidamente assinado pela legal representante do mesmo, D... , filha do aqui arguido que lho havia entregue para que este procedesse ao pagamento da quantia de 70 Euros escreveu, pelo seu próprio punho, em Viseu, no local destinado ao montante: “29.890,00”, no local de emissão: “Viseu”, no local destinado à data de emissão: “2006.08.31”, à ordem de “DGT” e no local destinado à quantia “vinte nove mil oitocentos noventa euros” e entregou-o na Direcção de Finanças de Viseu a fim de efectuar o pagamento da guia de execução fiscal de IRS, do processo nº 3700200401020587, referente ao período de 2001 e 2002, do próprio arguido.

2. O arguido, ao actuar da forma acima descrita, fê-lo livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de obter um benefício que não lhe era devido e de causar prejuízo patrimonial a outrem.

3. Colocou, ainda, em crise a credibilidade e confiança que são devidos aos cheques, causando, deste modo, prejuízo ao Estado.

4. Sabia, além disso, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


*

Quanto aos antecedentes criminais provou-se que:

5. O arguido já foi condenado, no âmbito do processo n.º 470/04.8GCVRL, do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Viseu, por sentença proferida em 24/05/007, pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea b) e nº 3do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 8 Euros, já extinta pelo cumprimento.


*

Convicção do Tribunal:

A convicção do Tribunal, relativamente aos factos dados como provados nos pontos 1 a 4, baseou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos – que faz parte integrante da certidão extraída do processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS, do 2º Juízo Criminal desta Comarca -, designadamente: informação da Direcção de Finanças de Viseu de fls. e respectivos documentos anexos à mesma (ou seja cópia do cheque de fls. 4., guia de fls. 5 e notificações de fls. 6 a 7), bem como os elementos bancários de fls. 13 a 18 – que demonstram que aquele cheque – com o n.º ... , da conta ... 0, da Caixa Geral de Depósitos, titulado pelo C... , se encontra assinado por D... , tendo a data de “31/08/2006”, o valor de “29.890,00” Euros, a quantia por extenso de: “vinte e nove mil oitocentos noventa euros”, o local de emissão: “Viseu”, e à ordem de “DGT” – foi entregue a favor daquela entidade, na referida data, para pagamento de uma guia de execução fiscal de IRS, do processo nº 3700200401020587, referente ao período de 2001 e 2002, do arguido .A... e, tendo sido apresentado a pagamento foi devolvido por falta de provisão. Foi ainda valorado o auto de transcrição das declarações e dos depoimentos que foram prestados na audiência de julgamento realizada no âmbito do referido processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS, do 2º Juízo Criminal desta Comarca de fls. 105 a 157 (cujo suporte digital consta a fls. 158), por: D... (arguida naquele referido processo), B... , .A... (aqui arguido), F... e G... – que foram ali inquiridos na qualidade de testemunhas – cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

Com efeito, a D... (filha do aqui arguido) declarou, em síntese, naquele referido processo, na qualidade de arguida, que antes de ir de férias (o que fez na última quinzena de Agosto de 2006), deixou o cheque em causa assinado, a pedido do seu pai (o aqui arguido), e entregou-o ao mesmo, com vista a este proceder ao pagamento de uma dívida da clínica da Cabo Visão, no montante aproximado de 70 Euros. Confirmou que a assinatura que consta do cheque é sua, e referiu ainda, relativamente ao restante preenchimento, que a letra é do seu pai, e que o mesmo lhe transmitiu mais tarde que utilizou tal cheque para pagar uma dívida que tinha de IRS.

B... , Chefe de Finanças, referiu, em síntese, no âmbito do referido processo, que o cheque em causa foi entregue pelo aqui arguido para pagamento de uma dívida do mesmo de IRS.

O aqui arguido, .A... , confirmou, em síntese, no âmbito do referido processo, e na qualidade de testemunha, que a sua filha, D... , lhe entregou, a seu pedido, o cheque em causa, apenas assinado, para pagamento de uma dívida da Cabo Visão, no montante de cerca de 70 Euros, tendo ele todavia efectuado posteriormente o restante preenchimento conforme consta da cópia do cheque, e entregou-o no Serviço de Finanças para pagamento de uma dívida sua, facto que escondeu à filha.

Por sua vez, F... e G... (irmão e cunhado da referida D... ), referiram, em síntese, no âmbito do referido processo, que o cheque em causa foi entregue por aquela ao aqui arguido, apenas assinado, para pagamento de uma dívida à clínica à Cabo Visão, tendo ainda o primeiro referido que o arguido utilizou tal cheque para pagar uma dívida dele às Finanças.

Ora, em face da prova documental supra referida (incluindo o respectivo auto de transcrição), o tribunal não ficou com qualquer dúvida de que o arguido praticou os factos de que vinha acusado, e isto independentemente de não ter sido produzida qualquer outra prova no decurso da audiência realizada nos presentes autos, já que o arguido não quis prestar declarações e a única testemunha que foi arrolada com a acusação, filha do arguido, recusou-se de igual modo a depor.

Cumpre ainda aqui salientar, atenta a alegação do ilustre defensor do arguido, que o tribunal entendeu que a supra referida prova documental, incluindo o respectivo auto de transcrição das declarações e dos depoimentos que foram prestados na audiência de julgamento realizada no âmbito do referido processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS, do 2º Juízo Criminal desta Comarca de fls. 105 a 157 – a qual foi indicada na acusação e considera-se produzida e examinada em audiência independentemente de não ter sido feita a sua leitura -, não constitui qualquer prova proibida por lei, e como tal pode e deve ser valorada, conforme o foi.

O facto de o arguido não ter prestado declarações em audiência, e de a única testemunha que foi arrolada, filha do arguido, se ter recusado a depor, não constitui qualquer impedimento ou obstáculo para que não possam ser valoradas as declarações que ambos prestaram no âmbito do referido processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS, do 2º Juízo Criminal desta Comarca. Aliás, pense-se por exemplo, quando está em causa a prática de um crime de falsas declarações, em que habitualmente é indicado e valorado um auto de transcrição de um depoimento que um determinado arguido prestou, no âmbito de um outro processo crime, na qualidade de testemunha.

Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal fundou a sua convicção no teor do CRC junto aos autos, bem como na certidão de fls. 279 a 274.

3. Apreciação

a.

Em face das conclusões extraídas da respectiva motivação de recurso, a questão a enfrentar traduz-se em saber se poderia o tribunal a quo valorar contra o arguido, para efeitos de formação da convicção, as declarações e depoimentos prestados no âmbito da audiência de discussão e julgamento realizada num outro processo – após transcritos -, no seio do qual não revestia, o mesmo, tal qualidade [de arguido].

Brevitatis causa, são estes os contornos da questão:

a. No âmbito do processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS, do 2º Juízo Criminal de Viseu, foi, oportunamente, submetida a julgamento D... , então, acusada pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, vindo, a final, a ser absolvida;

b. Na sequência do que foi extraída certidão integral dos ditos autos, integrada, além do mais, pelas declarações da arguida e depoimentos das testemunhas [acompanhados da respectiva transcrição] prestados em sede de audiência de julgamento, para efeito da instauração de procedimento criminal contra a ali testemunha .A... [pai da arguida];

c. Certidão, essa, que deu origem aos presentes autos de processo comum singular n.º 1568/08.9TAVIS do 2º Juízo Criminal de Viseu, no âmbito dos quais, findo o inquérito, foi o ora arguido/recorrente .A... acusado pela prática de um crime de falsificação, pelo qual veio a sofrer condenação;

d. Na acusação deduzida nos autos nº 1568/08.9TAVIS a prova arrolada em sede de acusação, para o que ora releva, cingiu-se – a título de «prova documental» - à certidão de fls. 2 a 158 [correspondente à integralidade do dito processo comum singular nº 3667/06.2TAVIS], indicando, não obstante, como testemunha, D... [arguida no processo nº 3667/06.2TAVIS e filha do ora arguido/recorrente];

e. Em sede de audiência de discussão e julgamento, realizada no âmbito dos presentes autos, o arguido, fazendo uso do direito que lhe assiste [artigos 61.º, n.º 1, al. d) e 343º do CPP], não quis prestar declarações, enquanto a única testemunha arrolada pela acusação, dada a relação de parentesco que a liga ao arguido, recusou depôr [artigo 134.º, n.º 1, al. b) do CPP], seguindo-se, então, as alegações orais – cf. acta de fls. 339/340.

Tendo presente tal universo de contextualização, o julgador encarando a prova pessoal [declarações e depoimentos] - transcrita - produzida no seio da audiência de julgamento do processo nº 3667/06.2TAVIS como «prova documental», utilizou-a – conforme resulta claro da fundamentação da sentença, de forma decisiva – na formação da convicção do tribunal no âmbito destes autos, só, assim, tendo sido possível a condenação do arguido, ora recorrente.

Será de valorar como «documental», a prova traduzida em declarações e depoimentos [provas documentais declarativas] proferidos no decurso da audiência de discussão e julgamento no âmbito de um outro processo [em que o arguido não coincide] - cuja certidão [onde, também, se inclui a transcrição daqueles] integra os autos, agora, em questão - para efeitos de prova dos factos narrados, de forma decisiva, na formação da convicção do julgador?

Independentemente da abrangência do conceito de documento vertido no artigo 164.º do CPP, à luz do qual assume essa natureza «a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer meio técnico, nos termos da lei penal», afigura-se-nos redundar um tal entendimento numa fraude aos princípios que regem na matéria.

Em boa verdade, levado às últimas consequências, dada a amplitude do referido conceito, estava encontrada a forma de subverter a disciplina dos artigos 355.º, 356º e 357º, do CPP, o que não sendo defensável no caso de declarações e depoimentos prestados no âmbito dos autos, também não o será quando os mesmos são transportados de outro processo, no qual nem sequer o arguido coincide.

A propósito, escreve Paulo Pinto de Albuquerque: «O artigo 356.º não distingue entre as declarações prestadas no processo em que são lidas e as declarações prestadas em outro processo. Portanto, nada obsta à junção aos autos de certidão de prova testemunhal prestada noutro processo, à imagem do que prevê o artigo 238.º do CPP italiano. Assim, é permitida a leitura de depoimento prestado noutro processo se:

a. as declarações da testemunha ou do declarante tiverem sido prestadas para memória futura ou na audiência de julgamento e o arguido (do processo onde as declarações sejam lidas) tiver tido oportunidade de intervir na produção da prova no outro processo na qualidade de arguido;

b. se a prova produzida no outro processo for irrepetível (por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira de depor da testemunha ou declarante) e tiver sido produzida perante o MP ou o juiz no outro processo;

c. se o MP, o arguido e o assistente estiverem de acordo na leitura do depoimento da testemunha ou declarante prestado no outro processo, diante do juiz, do MP ou do órgão de polícia criminal;

d. em nenhuma outra circunstância é admissível a leitura de depoimento de testemunha ou declarante prestado noutro processo, mesmo que esse depoimento tenha sido posteriormente invocado na fundamentação da sentença transitada em julgado no outro processo», referindo, agora no que concerne às declarações do arguido, o Autor «A norma do artigo 357.º, nº 1, é excepcional, pois contraria o princípio da imediação … Por isso, não admite aplicação analógica. Podem ser lidas, visualizadas e ouvidas as declarações anteriormente prestadas pelo arguido diante da entidade policial, do órgão de polícia criminal, da autoridade de polícia criminal, do MP ou do juiz se o arguido o solicitar. Nada obsta a que o arguido solicite a leitura de declarações por si prestadas num processo separado, mas se o arguido recusar prestar declarações na audiência não podem ser lidas as declarações que ele prestou em processo separado, tenham-no sido na qualidade de testemunha ou de arguido.» - [cf. “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, págs. 920/921].

No quadro descrito, em termos gerais, não podemos deixar de reconhecer razão ao recorrente, enquanto defende a proibição da valoração da prova levada a efeito pelo julgador.

O contrário, em nosso juízo, conduziria a uma insustentável violação, designadamente:

- do princípio da imediação, no sentido de que toda a prova deve, em princípio [cf. as excepções previstas vg. artigos 356º e 357º do CPP], ser produzida na presença do arguido numa audiência pública com vista a uma argumentação contraditória;

- do princípio do contraditório, na dimensão de direito à confrontação das fontes de prova, de efectiva inquirição cruzada [contra-inquirição];

- do direito do arguido ao silêncio, da prerrogativa contra a auto-incriminação;

- do direito de recusa [válida] de depor como testemunha.

Não pensará, por certo, o tribunal a quo que o ora recorrente exerceu ou podia ter exercido o contraditório num processo em que não revestia a qualidade de arguido; tão pouco o podendo ter exercido, de forma adequada, na dimensão supra referida, no confronto com provas documentais declarativas.

À margem do que já se disse – e que temos por decisivo - realce-se o perigo que constituiria a valoração para efeitos de prova dos factos das declarações da única testemunha arrolada pela acusação, prestadas na qualidade de arguida no âmbito dos autos donde foi extraída a certidão, a qual, atenta essa sua qualidade, no exercício do direito de defesa que assiste a qualquer arguido, pôde, efectivamente, dizer o que bem quis em abono da sua posição processual.

Mais, num processo em que não existe identidade de arguido, vai valorar-se contra o mesmo, o depoimento [como prova do evento narrado na asserção – na terminologia de Paulo Dá Mesquita, in “A Prova do Crime e o que se disse antes do Julgamento”, Coimbra Editora, pág. 634] por si, anteriormente, prestado no âmbito de um processo onde, na qualidade de testemunha [no caso pai da ali arguida!] se auto – incrimina?

A ser, assim, como se nos afigura ser, na impossibilidade de valorar a prova resultante da certidão, na parte em que vem materializadas as declarações e testemunhos produzidos no âmbito do processo n.º 3667/06.2TAVIS [na dimensão de prova do evento narrado na asserção], a consequência, em face da relevância decisiva que assumiram na formação da convicção do tribunal para dar por assentes [provados] os factos, constantes do acervo factual, conducentes à responsabilização jurídico - penal do arguido/recorrente, é a de haver-se os mesmos como não provados, o que conduz à absolvição do arguido recorrente, resultado, contudo, que não se impôs ab initio como uma inevitabilidade, mostrando-se, antes, influenciada pela condução das coisas – na fase de investigação e da introdução do feito em juízo – pelo défice de atenção que um caso com as dificuldades que facilmente se anteviam aconselhava.

Uma última palavra no sentido de não se encontrar fundamento na comparação que o tribunal a quo pretende estabelecer entre a situação dos presentes autos e aquela outra em que está em causa um crime de «falsidade de depoimento», pois que aqui a dimensão probatória do «documento» releva, tão só, no facto de a asserção ter sido feita e na respectiva autoria e não já quanto ao evento narrado na asserção, ou seja circunscreve-se à prova de que determinada pessoa emitiu declarações incompatíveis, sendo que se e quando faltou à verdade é matéria a apurar.

Mostra-se, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III. Decisão

Termos em que, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido .A... da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, nº 1, al. d) e n.º 3 do Código Penal.

Sem custas

(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)