Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
814/16.0T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
GRAVAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/19/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.155, 195, 196, 662 CPC, DL Nº39/95 DE 15/2
Sumário: 1. - O art.º 9.º do DLei n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (art.º 4.º desta), que aprovou o NCPCiv., nem, de forma tácita, pelo preceituado no art.º 155.º do NCPCiv., constituindo, ao invés, um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do NCPCiv..

2. - A admissão da revogação legal (tácita) levaria a que a nulidade processual decorrente da falta ou deficiência da gravação da prova oralmente produzida nunca pudesse ser conhecida oficiosamente, em 1.ª instância ou em recurso (o art.º 196.º do NCPCiv. prescreve que da nulidade prevista no art.º 195.º, n.º 1, do mesmo Cód., só pode conhecer-se mediante reclamação dos interessados), com o resultado de não poder haver correção oficiosa do vício da gravação, como se estivessem em causa interesses meramente particulares.

3. - À luz do disposto, conjugadamente, nos art.ºs 9.º daquele DLei n.º 39/95, 195.º, n.º 1, 196.º, in fine, e 662.º, n.º 2, al.ª c), estes do NCPCiv., e vista a filosofia que subjaz a este Código, dando prevalência a soluções de justiça material, é de perfilhar o entendimento jurisprudencial no sentido de as anomalias na gravação da prova consubstanciarem uma irregularidade especial, com aplicação de um regime também especial, particularmente expedito e oficioso, justificado por um interesse de ordem pública, que visa alcançar-se com a gravação da audiência, permitindo a efetivação do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.

4. - Nesse âmbito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante no contexto da impugnação da decisão de facto.

5. - Se o recurso assenta, desde logo, na impugnação da decisão de facto, com invocação de provas gravadas, e o Tribunal de recurso não logra ter acesso a parte desses meios de prova por inaudibilidade da gravação, impossibilitando uma decisão conscienciosa da impugnação e, por consequência, do recurso, deve este Tribunal, oficiosamente, socorrendo-se dos dispositivos legais aludidos, anular o julgamento, na parte afetada, e a decisão recorrida, com vista ao suprimento do vício existente.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***
I – Relatório

H (…) e esposa, M (…), com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa de condenação com processo comum contra

BANCO (…), S. A.”, também com os sinais dos autos,

peticionando nos seguintes termos:

a) Ser o Réu condenado a pagar aos AA. o capital e juros vencidos e garantidos que, nesta data, perfazem a quantia de 935.000,00€, bem como os juros vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento;

Ou assim não se entendendo:

b) Ser declarado nulo qualquer eventual contrato de adesão que o R. invoque para ter aplicado os 850.000,00€ que aos AA. entregaram ao R., em obrigações subordinadas SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006;

c) Ser declarado ineficaz em relação aos AA. a aplicação que o R. tenha feito desses montantes;

d) Condenar-se o R. a restituir aos AA. 935.000,00€ que ainda não receberam dos montantes que entregaram ao R. e de juros vencidos à taxa contratada, acrescidos de juros legais vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral cumprimento;

E sempre,

e) Ser o R. condenado a pagar aos AA. a quantia de € 25.000,00, a título de dano não patrimonial.

Após convite para o efeito, os AA. vieram concretizar, em sede de audiência prévia, que as al.ªs b) e c) do petitório assumiam a seguinte redação:

b) Ser declarado nulo o contrato de adesão que está na origem da aplicação dos autores em obrigações SLN rendimentos mais 2004 e SLN 2006.

c) Ser declarado ineficaz em relação aos autores a sobredita aplicação.

€Alegaram ([1]):

- terem sido clientes do R., na sua agência da (...) , cujo gerente disse à A. esposa que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo (...) e rentabilidade assegurada, bem sabendo aquele funcionário que os AA. não possuíam qualificação que lhes permitisse conhecer os diversos tipos de produtos financeiros e avaliar os riscos de cada um deles, a não ser que lhos explicassem, tendo um perfil conservador e até então sempre haviam feito aplicações em depósitos a prazo;

- o dinheiro dos AA. foi assim colocado: € 500.000,00 em obrigações SLN Rendimento Mais 2004 e € 350.000,00 em obrigações SLN 2006;

- sem que os AA. soubessem em concreto o que era, desconhecendo que a SLN era uma empresa, tendo sido motivados por lhes ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco R., com juros semestrais e que poderiam levantar o capital e respetivos juros quando o entendessem, bastando avisar com a antecedência de 3 dias;

- a A. esposa agiu na convicção de colocar o dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, num produto com risco exclusivamente do banco;

- se tivessem percebido que se tratava de produtos de risco e que o capital não era garantido pelo (...) , jamais o teriam feito, pois nunca foi sua intenção investir em produtos de risco, o que era do conhecimento do gerente e funcionários do R., e os AA. sempre estiveram convencidos que o R. lhe restituiria o capital e os juros, quando solicitado;

- os AA. nem sequer foram informados sobre a compra das obrigações subordinadas SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006 e nunca lhes foi lido ou explicado o que eram obrigações, sendo assim o R. depositário de € 850.000,00, que mantém aplicados em obrigações SLN, que deveria ter aplicado em depósitos a prazo;

- pretenderam levantar o seu dinheiro na data de vencimento contratada, o que não foi satisfeito pelo R..

Este contestou, defendendo-se por exceção e impugnação e concluindo pela total improcedência da ação.

Os autos prosseguiram a sua legal tramitação, vindo a ocorrer audiência final, com produção de provas, incluindo por declarações de parte e testemunhal, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto e nos termos referidos supra, julgando-se a presente ação parcialmente procedente, o Tribunal decide:

- condenar o Réu B (…), S.A. a pagar aos Autores (…) €850000,00 (oitocentos e cinquenta mil euros) de capital acrescido dos juros vencidos e garantidos vertidos nas obrigações provadas em 2. e 3. dos factos provados (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), descontando os juros já recebidos, no montante final que vier a ser liquidado (nos termos dos artigos 609º, n.º2 e 358º e ss. do CPC), bem como no pagamento dos juros vincendos sobre aquele capital, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;

- condenar o Réu B (…), S.A. a pagar aos Autores (…) a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, no mais se julgando improcedente o peticionado neste particular, assim se absolvendo o Réu em conformidade.».

Inconformado, recorre o R., apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões:

(…)

Os AA. apresentaram contra-alegação, pugnando pela improcedência do recurso.


***

Tal recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa decidir, em matéria de facto e de direito, no essencial, sobre as seguintes questões:

a) Quanto à impugnação da decisão da matéria de facto:

- se ocorreu erro de julgamento de facto do Tribunal a quo, devendo ser alterada a decisão, ante as provas convocadas e produzidas;

- ou se, antes disso, se impõe a anulação do julgamento ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 9.º do DLei n.º 39/95, de 15-02, 196.º, parte final, e 662.º, n.º 2, al.ª c), estes do NCPCiv., por via de inaudibilidade/impercetibilidade de provas gravadas e consequente impossibilidade de reapreciação dessas provas no âmbito da impugnação da decisão fáctica;

b) Quanto à impugnação da decisão de direito – a não resultar prejudicada, por ora –, se ocorre demonstração de violação de deveres de informação (pelo R.) e demais pressupostos da obrigação indemnizatória.


***

III – Fundamentação

A) Matéria de facto

É a seguinte a factualidade julgada provada na sentença recorrida ([2]):

«1. Os Autores eram clientes do Réu, na sua agência da (...) , com a conta ordem no 1015378610001, onde movimentavam parte dos dinheiros, realizavam pagamentos e efetuavam poupanças. (artigo 1º da petição inicial)

2. Em 19 de Outubro de 2004 o gerente do Banco Réu da agência da (...) disse à A. esposa que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo (...) e com rentabilidade assegurada (cfr. fls. 21 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (artigo 2º da petição inicial)

3. De forma igual em 13 de Abril de 2006, o dito gerente, disse à A. esposa que tinha uma nova aplicação em tudo igual à anterior e, por isso, igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo (...) e com rentabilidade assegurada (cfr. fls. 22, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (artigo 3º da petição inicial)

4. O dito funcionário do Banco Réu sabia que os Autores não possuíam qualificação ou formação técnica que lhes permitisse à data conhecer integralmente os diversos tipos de produtos financeiros e avaliar, por isso, os riscos de cada um deles, a não ser que lhos explicassem devidamente. (artigo 4º da petição inicial)

5. E que por isso, tinham um perfil essencialmente conservador no que respeitava ao investimento do seu dinheiro. (artigo 5º da petição inicial)

6. Na sequência do referido em 2. e 3., 850.000,00€ do seu dinheiro viria a ser colocado em obrigações SLN Rendimento Mais 2004 500.000,00€ e SLN 2006 350.000,00€, sem que os AA. soubessem em concreto o que era, desconhecendo inclusivamente que a SLN era uma empresa. (artigo 6º da petição inicial)

7. O que motivou a autorização, por parte dos Autores foi o facto de lhes ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco Réu, com juros semestrais e que poderiam levantar o capital e respetivos juros quando assim o entendessem, bastando avisar a agência com a antecedência de três dias. (artigo 7º da petição inicial)

8. A Autora esposa atuou convicta de que estava a colocar o dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, por isso, num produto com risco exclusivamente Banco. (artigo 8º da petição inicial)

9. Se a A. esposa tivesse percebido que com a assinatura daquele papel que lhes fora apresentado pelo gerente do R. poderia estar a dar uma ordem de compra de obrigações SLN rendimento Mais 2004 e SLN 2006, produtos de risco e que o capital não era garantido pelo (...) , jamais os teria assinado. (artigo 9º da petição inicial)

10. Nunca foi intenção dos Autores investir em produtos de risco, como era do conhecimento do gerente e funcionários do Réu, e os AA. sempre estiveram convencidos que o Réu lhes restituiria o capital e os juros, quando os solicitasse. (artigo 10º da petição inicial)

11. O Réu sempre assegurou que a aplicação em causa tinha a mesma garantia de um depósito a prazo. (artigo 11º da petição inicial)

12. Daí a convicção plena com que os Autores ficaram da segurança da aplicação em causa, cujos juros foram sendo semestralmente pagos (embora em montante não concretamente apurado), o que transmitiu segurança aos Autores e nunca os alertou para qualquer irregularidade, face ao que lhes tinha sido dito pelo referido gerente da agência da (...) , o que sucedeu até à maturidade das obrigações SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006, momento em que verificaram que o Banco Réu (ou outrem) não iria pagar. (artigo 12º da petição inicial)

13. Agora o Banco Réu atribui a responsabilidade pelo pagamento à SLN, entidade que os Autores nem sabiam existir. (artigo 13º da petição inicial)

14. Os Autores não sabiam o que era a SLN. (artigo 14º da petição inicial)

15. Os Autores desconheciam que tinham adquirido uma aplicação com diferentes características das de um depósito a prazo, pois caso soubessem que se tratava de produtos de risco, não os teriam adquirido. (artigo 16º da petição inicial)

16. Nunca o gerente ou funcionários do Réu, nem ninguém, leu ou explicou aos Autores o que eram aquelas obrigações. (artigo 18º da petição inicial)

17. O Réu depositário de 850.000,00€ mantém aplicados em obrigações SLN rendimento Mais 2004 e SLN 2006. (artigo 19º da petição inicial)

18. O R. colheu a assinatura da A. esposa, em subscritos preenchidos pelo gerente da (...) . (artigo 21º da petição inicial)

19. Nunca qualquer contrato lhes foi lido nem explicado, nem entregue cópia que contivesse cláusulas sobre obrigações subordinadas SLN, nem que contivesse prazos de resolução unilateral pelos AA; e nem nunca conheceram os AA. qualquer título demonstrativo de que possuíam obrigações SLN, não lhes tendo sido entregue documento correspondente. (artigo 22º da petição inicial)

20. Tais eventuais documentos, a existirem, não correspondem à real vontade dos AA. (artigos 23º e 24º da petição inicial)

21. Os Autores nunca aceitariam, se acaso o Réu lhes tivesse explicado que o dinheiro era para investir em obrigações SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006 sem que o capital fosse garantido pelo Banco Réu. (artigo 25º da petição inicial)

22. Vendo-se agora os Autores confrontados com a subscrição de produtos de risco, sem que o montante de capital investido se encontre garantido no prazo de maturidade. (artigo 28º da petição inicial)

23. Os Autores já pretenderam levantar o seu dinheiro na data de vencimento contratada, no entanto o R. não lhes disponibilizou tal quantia. (artigo 29º da petição inicial)

24. O Réu foi apresentado pelo seu gerente como garante da aplicação financeira em causa. (artigo 31º da petição inicial)

25. Aliás, como constava da própria documentação interna criada, veiculada e distribuída pelo Réu aos seus funcionários. (artigo 32º da contestação)

26. Um dos argumentos invocados pela Direção Comercial do (...) e que os funcionários da rede de balcões do banco R. repetiam junto dos seus clientes, como o fez com a Autora, era o de que se tratava de um investimento seguro e, por isso, este assegurava o reembolso do capital investido e juros. (artigo 33º da contestação)

27. As orientações e comunicações internas existentes no (...) e que este transmitia aos seus comerciais nos respetivos balcões consistiam em afirmar a segurança da aplicação financeira em causa, a sua solidez, a boa rentabilidade e assegurar que o Banco garantia o capital investido. (artigo 34º da contestação)

28. O Réu pretendia que os seus funcionários tivessem especial empenho na colocação destes produtos e passassem a ideia de que aos mesmos não estavam associados quaisquer riscos quanto ao reembolso do capital e juros, garantindo ele próprio a satisfação de tais encargos. (artigo 35º da contestação)

29. As obrigações SLN Rendimento Mais 2004 tiveram um único propósito e que foi o do aumento do capital do Banco Réu. (artigo 36º da contestação)

30. Os Autores, por efeito do incumprimento do Réu, quanto à garantia de capital e juros que tinha dado para data certa, ficaram impedidos de usar o seu dinheiro como entendessem desde então. (artigo 39º da contestação)

31. Com a sua atuação, o Réu colocou os Autores num permanente estado de preocupação e ansiedade, com o receio de não reaverem, ou de não saberem quando iam reaver o seu dinheiro. (artigo 40º da contestação)

32. E tem provocado nos Autores ansiedade e tristeza, uma vez que se trata da sobredita quantia. (artigo 41º da contestação)

33. Pelo que os Autores andam em permanente estado de “stress”, por recearem ser desapossados destas suas economias. (artigo 42º da contestação)

34. Sempre foi garantido e assegurado que os produtos eram garantidos, era a mesma coisa como se fosse um depósito a prazo e que não tinha risco nenhum, pois o Réu sempre garantiu o retorno, ou seja, o reembolso novamente do capital investido na conta aberta no Réu e com juros. (artigos 53º e 54º da resposta dos AA.)

35. O Réu sempre assegurou que tais produtos tinham a mesma garantia de um depósito a prazo. (artigo 57º da resposta dos Autores)

36. Os Autores mantinham‐se no convencimento de que as aplicações feitas eram, tal como lhe havia transmitido o gerente da agência da (...) do Banco Réu, semestrais, tinham liquidez assegurada nas datas dos vencimentos e que o seu risco era igual a um depósito a prazo, com retorno garantido do capital e juros pelo Banco Réu. (artigo 111º da resposta dos Autores)

37. Os Autores desconheciam que o reembolso antecipado da emissão estava vedado à mera iniciativa unilateral do subscritor e que a única forma de liquidar o produto antes do fim do prazo seria transmitindo a um terceiro interessado, mediante endosso, desconhecendo que o Banco Réu estava, na data da negociação, a alienar produtos financeiros de outrem. (artigos 112º e 113º da resposta dos Autores)

38. Além disso, o sobredito funcionário até aquando da maturação das obrigações, embora em momento não concretamente apurado, reconheceu que o Réu iria restituir aos Autores o valor reclamado, assegurando‐lhes o reembolso. (artigo 134º da resposta dos Autores)

39. Os Autores só após a maturação das obrigações, mas em momento não concretamente apurado, é que tiveram conhecimento de que o produto adquirido através do Réu não tinha as caraterísticas que lhes haviam assegurado. (artigo 137º da resposta dos Autores)

40. Os Autores nunca leram, nem lhe foi dado conhecimento de quaisquer panfletos e/ou notas informativas e/ou boletins de subscrição sobre estas aplicações. (artigo 144º da resposta dos Autores)

41. Na sequência do referido em 2., 3. e 6. o Réu cumpriu ordens dadas pelos seus clientes, no sentido de subscrição de obrigações SLN. (artigo 20º da contestação)

42. No extrato de aplicações financeiras da Autora impresso pelo Réu a 23.06.2016, reportado ao período compreendido entre 4.02.2002 e 23.06.2016, aparecem discriminados os seus “títulos” e respetivas operações (cfr. documento de fls. 23 a 25, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (artigo 25º e 31º a 33º da contestação)

43. Os Autores não têm formação específica em área financeira. (artigo 35º da contestação)

44. A Autora veio a subscrever 10 obrigações SLN 2004, no valor global de 500.000,00€ em Outubro de 2004, como subscreveu 7 obrigações SLN 2006, no valor de 350.000,00€, em Maio de 2006. (artigos 36º a 38º da contestação)

45. As Obrigações SLN, de 2004 ou 2006 foram emitidas pela SLN, SGPS, S.A., sociedade titular de 100% do capital social do Banco-R., participação que deteve de forma permanente até Novembro de 2008, altura em que foi nacionalizada. (artigos 40º a 43º da contestação)

46. O Fundo de Garantia de Depósitos tinha à data o valor máximo de 25.000,00€ por conta bancária. (artigo 48º da contestação)

47. O (...) foi separado do restante grupo de empresas. (artigo 50º da contestação)

48. Os Autores foram contactados pelo seu gestor para oferta da possibilidade de subscrever o produto aqui em causa. (artigo 53º da contestação)

49. O gerente do Réu explicou aos Autores a remuneração daquela aplicação, vantajosa relativamente aos depósitos a prazo, e o seu prazo, de 10 anos. (artigos 57º e 58º da contestação)

50. Durante um período de tempo não concretamente apurado mas que abrangeu o período da subscrição, o endosso das obrigações era fácil e rápido. (artigo 61º da contestação)

51. Não foi efetivamente reembolsado o investimento dos Autores. (artigo 70º da contestação)

52. A subscrição de Obrigações SLN intermediada pelo R. foi realizada entre os Autores e a SLN e não se corporizou num qualquer outro escrito, mas apenas e tão-só nas sobreditas propostas da SLN, veiculadas pelo Banco-R. e aceites pelos Autores, vertidas nas ordens de subscrição de títulos. (artigos 74º a 78º da contestação)

53. Destas obrigações foram pagos juros aos Autores em percentagem e montante não concretamente apurado. (artigo 30º da petição inicial)

54. A presente ação deu entrada em juízo em 1.06.2016.».

E foi julgado não provado:

«a) Até às datas referidas em 2. e 3., sempre os Autores aplicaram o seu dinheiro em depósitos a prazo. (artigo 5º da petição inicial);

b) Os Autores pensavam que a SLN era uma mera denominação de conta a prazo, que o Banco Réu utilizava. (artigo 14º da petição inicial);

c) Os Autores nem podiam conhecer o referido em 15. dos factos provados. (artigo 16º da petição inicial);

d) Os Autores nem sequer foram informados sobre a compra das obrigações subordinadas SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006. (artigo 17º da petição inicial);

e) Dinheiro esse que o R. deveria ter aplicado em depósitos a prazo, com capital e juros disponíveis de 6 em 6 meses. (artigo 20º da petição inicial);

f) Tendo contratado uma taxa de 4,5% ao ano ilíquida foram-lhe pagos juros na ordem de 1%, desde Maio de 2015 e até à maturidade. (artigo 30º da petição inicial);

g) O capital do R. em outubro de 2004 se situava em 250.000.000,00€ e passou em Novembro de 2004 para 300.000.000,00€. (artigo 36º da petição inicial);

h) Os Autores sempre estiveram convencidos de que se tratava de um depósito a prazo e que se tratavam de títulos com prazo de emissão de 10 anos. (artigos 52º, 112º e 113º da resposta dos Autores)

i) O referido em 38. dos factos provados sucedeu até ao ano de 2015 (artigo 134º da resposta dos Autores);

j) O referido em 39. dos factos provados ocorreu “em inícios finais do ano de 2015”. (artigo 137º da resposta dos Autores);

k) Os Autores nunca autorizaram que o Réu movimentasse a quantia de 850.000.00€ que este, de motu próprio, aplicou em obrigações SLN Rendimento Mais 2004 – 500.000,00 € e SLN 2006 – € 350.000,00. (artigo 142º da resposta dos Autores);

l) Os Autores não assinaram qualquer boletim de subscrição de obrigações SLN Rendimento Mais 2004 nem de obrigações SLN 2006. (artigo 143º da resposta dos Autores);

m) As ordens e indicações dos Autores eram no sentido de o seu dinheiro ser aplicado só em depósitos a prazo. (artigo 4º do aperfeiçoamento dos Autores);

n) O Banco Réu à revelia dos Autores aplicou o dinheiro destes em obrigações. (artigo 5º do aperfeiçoamento dos Autores);

o) Todas as informações prestadas foram verdadeiras e nunca o Réu agiu perante os Autores com intenção de os enganar ou prejudicar, ou sequer de omitir informação relevante de forma consciente. (artigos 21º e 22º da contestação);

p) Os Autores conheceram desde logo que haviam subscrito obrigações SLN. (artigo 24º da contestação);

q) Eram do conhecimento dos Autores extratos mensais periódicos, onde todas as suas aplicações financeiras apreciam discriminadas e separadas de acordo com a sua natureza. (artigo 25º da contestação);

r) O que lhes permitia destrinçar, na pior das hipóteses, que tinham produtos financeiros diferentes de Depósitos a Prazo, por um lado, e produtos consubstanciados em títulos, em valores mobiliários, semelhantes a outros por si subscritos antes e depois desta subscrição, por outro. (artigos 26º e 27º da contestação);

s) O referido em 42. ocorre desde sempre e que isso mostra uma particular apetência dos Autores. (artigos 31º a 33º da contestação);

u) Os Autores tinham conhecimentos e experiência suficientes para um tal tipo de investimento, com conhecimento da respetiva natureza, riscos e maior rentabilidade relativamente a um vulgar DP. (artigo 35º da contestação);

t) Os Autores subscreveram (apenas) 6 obrigações SLN 2006, no valor de 300.000,00€ e compraram, por tomada de endosso, mais uma obrigação SLN 2006 em Agosto de 2008 e que esta última compra acabou por ser ainda em cumprimento de ordem, renovada, de 2006, em que os Autores não conseguiram subscrever o pretendido montante de 350.000,00€, mas então apenas 300.000,00€. (artigos 37º a 39º da contestação);

u) O incumprimento das obrigações em causa foi determinado por circunstâncias, completamente imprevisíveis e anormais, como uma nacionalização e a forma como foi determinada. (artigo 50º da contestação);

v) O gerente do Réu explicou aos Autores que se tratava de valores mobiliários em representação de dívida da sociedade emitente, acrescentando que se tratava da sociedade-mãe do Banco e mais apresentou todas as condições do produto. (artigos 54º a 56º da contestação);

w) E também explicou as condições de reembolso e de obtenção de liquidez ao longo do prazo de 10 anos, que apenas seria possível por via de endosso. (artigos 59º e 60º da contestação);

x) À data a procura destas obrigações superava inúmeras vezes a oferta. (artigo 61º da contestação);

y) Sempre que solicitado endosso de tais obrigações, era uma questão de minutos até obter um comprador. (artigo 62º da contestação);

z) Os Autores foram total e exaustivamente esclarecidos sobre as condições do produto, aliás de forma acompanhada com a respetiva nota técnica. (artigo 63º da contestação);

aa) Os Autores nunca reclamaram da contratação de qualquer de tais produtos. (artigo 69º da contestação);

ab) O Réu sempre explicou todos os formulários dados a assinar aos Autores. (artigo 71º da contestação);

ac) Os Autores efetuaram transferências de forma propositada para garantir a existência de fundos para as operações por si pretendidas. (artigo 73º da contestação).».

B) Da impugnação da decisão da matéria de facto

Tendo o R./Apelante observado suficientemente os ónus legais a que alude o art.º 640.º do NCPCiv. ([3]), deve a sua impugnação – essencialmente assente em prova gravada, posto que convocou, somente, o depoimento da testemunha A(…), por si referida como a única testemunha que presenciou e tem conhecimento direto dos factos em causa (de que apresentou transcrição parcial da gravação), e as declarações de parte da A. mulher (aqui sem transcrição) – ter-se por admissível quanto à decisão da matéria de facto, pelo que cabe dela conhecer.

Porém, ao proceder à audição da gravação das provas oralmente produzidas em audiência final – seja a gravação que consta do sistema Cituis, disponibilizada na ferramenta Media Studio respetiva, seja a que consta do “CD” junto pela 1.ª instância –, o certo é que apenas o depoimento daquela testemunha A (...) se encontra audível e compreensível.

Toda a demais prova oralmente produzida – declarações de parte da A. mulher e depoimentos testemunhais de (…) – se encontra inaudível/impercetível, pois, embora se note a existência de discurso oral, o seu teor é indecifrável in totum, por via de ruído de fundo permanente que impede por completo a audição/compreensão do que foi dito e gravado.

Donde que este Tribunal da Relação, embora pretendendo efetivar o duplo/segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, se veja na situação de não o poder fazer devidamente, por falta de acesso à maior parte da prova gravada, muito embora o depoimento da testemunha que o Apelante convoca esteja audível, mas sem olvidar que a contraparte refere que esse depoimento é contrariado pela demais prova gravada, a que se não pode aceder.

É certo que as partes, que nada disseram quanto à qualidade da gravação, dispunham do prazo a que alude o art.º 155.º, n.º 4, do NCPCiv., para invocar a sua deficiência, sob pena de já não poderem depois reclamar do vício (preclusão e eventual sanação).

Por isso, é patente que perderam as partes a oportunidade de arguir a nulidade em causa (nos termos do disposto nos art.ºs 195.º, n.º 1, e 196.º, 2.ª parte, ambos do NCPCiv.).

Mas estará a Relação impedida de conhecer, oficiosamente, desse vício e de daí retirar as adequadas consequências, tendo em conta a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, numa palavra, em atenção a soluções de justiça material?

É bem sabido que foi por estas soluções de justiça material que, decididamente, optou o legislador do NCPCiv., sendo que já antes se dava prevalência a tais soluções quanto aos defeitos da gravação da prova em audiência final, atenta a relevância destes e as implicações possíveis sobre a solução do litígio.

Assim, consta do art. 9.º do DLei n.º 39/95, de 15-02:

“Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade” (itálico e sublinhado aditados).

Em atenção a este preceito pode ler-se no sumário do Ac. STJ de 16/12/2010, Proc. 170/06.4TCGMR.G1 (Cons. Nuno Cameira), em www.dgsi.pt ([4]):

«III - Só assim se compreende o disposto nos arts. 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, e 712.º, n.º 3, do CPC, dado que a Relação não pode exercer cabalmente a faculdade legal de determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1.ª instância se, no que toca às provas gravadas, ela própria não tiver procedido à respectiva audição, em ordem a apurar concretamente: a) se existem ou não deficiências no registo dos depoimentos; b) no caso afirmativo, se tais deficiências inutilizam no todo ou em parte o registo efectuado; c) e, por fim, se as falhas detectadas são irrelevantes ou, pelo contrário, incidem em aspectos que possam ser decisivos para a reapreciação das provas que lhe compete levar a cabo.

IV - O citado art. 9.º do DL 39/95, de 15-02, aponta no sentido de se poder considerar as anomalias na gravação das provas como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência.

V - A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se, justamente, na circunstância de a Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição das provas que se encontrem imperceptíveis sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade.

VI - A convicção da Relação acerca da essencialidade da repetição das provas gravadas não pode ser alcançada sem a sua prévia audição.

VII - A inaudibilidade de um ou mais depoimentos – facto que sempre terá de ser constatado pela 2.ª instância – equivale praticamente, quando esteja em causa reapreciar as provas em sede de apelação, à inexistência da prova produzida; e se a inaudibilidade for influente no exame da causa, ela é impeditiva da real concretização do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto (que, no caso, foi precisamente o direito que os recorrentes pretenderam exercer na apelação levada à Relação).

VIII - Sem ouvir os depoimentos e proceder à sua análise crítica segundo o princípio da livre apreciação das provas fixado no art. 655º, n.º 1, do CPC, a Relação não pode optar com inteira segurança por manter ou modificar o julgado em 1.ª instância.

IX - Se a Relação não tiver procedido à audição dos depoimentos gravados, violando, assim, os arts. 690.º-A, n.º 5, e 712.º, n.º 2, do CPC, há lugar à anulação do acórdão recorrido e ao reenvio do processo ao tribunal recorrido para reapreciação da matéria de facto impugnada e posterior conhecimento da apelação de harmonia com os factos que vierem a ser apurados.» ([5]).

No mesmo sentido se pronunciou, inter alia, o Ac. TRL de 12/11/2013, Proc. 1400/10.3TBPDL.L1-7 (Rel. Ana Resende), também em www.dgsi.pt (que se passa a citar, pela sua pertinência):

«Em conformidade, cabe a este Tribunal proceder à reapreciação da prova, com a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, fazendo assim, de forma autónoma, o seu próprio juízo de valoração, que pode ser igual ou diferente do já produzido, procedendo à análise crítica das provas indicadas como fundamento da impugnação, quer testemunhal, quer documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível.

Configura-se, deste modo, que para tanto, deverá este Tribunal ter acesso à prova produzida, na exata medida da sua produção, habilitando-o com todos os elementos probatórios que foram, ou podiam ter sido, atendidos, por disponíveis, para a formulação da necessária convicção autónoma, sem prejuízo da maior ou menor abrangência da reapreciação a realizar.

No caso dos autos, não se questiona que a prova produzida na audiência de julgamento foi gravada, importando em conformidade, que fossem ouvidos os testemunhos, caso dos apontados pela Recorrente, mas também todos os demais produzidos, no atendimento na necessária contextualização, para poder ser percecionada a questão de facto, na dimensão devida, uma vez que, como decorre do enunciado, não foi questionado apenas um aspeto particular da decisão proferida em tal âmbito, e que possa ser atomisticamente considerado, mas sim os factos jurídicos de onde dimana a pretensão formulada pela Recorrente (…), bem como a versão distinta, contrariando-a, fornecida pela Recorrida (…), e nessa medida, compreendendo-se a necessária articulação de toda a prova produzida, como aliás, parece transparecer da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, já referenciada. 

Por outro lado, no concerne ao registo das audiências finais e da prova, importa ter presente o DL 39/95, de 15 de fevereiro, que institucionalizou no direito processual civil a admissibilidade do registo das provas produzidas na audiência de discussão e julgamento, na criação de um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, aditando as normas constantes dos artigos 522.º-A a 522.º-C, do CPC, relativas ao registo e forma de gravação.

O novo Código Processo Civil vem, no seu art.º 155, contemplar a gravação das audiências finais, não resultando da Lei 41/2013, que o aprovou, veja-se o seu art.º 4, que deva considerar-se revogado o regime constante do DL 39/95, no que respeita à regulamentação da gravação, prevista nos artigos 3.º a 9.º com as necessárias adaptações, face à tecnologia disponível.

Deste modo, quanto a tal regulamentação, resulta que a gravação é, em regra efetuada com o equipamento existente no tribunal, pelo funcionário de justiça, de modo a que facilmente se apure a autoria dos depoimentos gravados, e o momento em que os mesmos de iniciaram ou cessaram, incumbido ao tribunal que efetuou o registo facultar cópia a cada um dos mandatários ou partes que o requeiram.

No caso de deficiências ou falhas na gravação prevê-se, expressamente no art.º 9, se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra impercetível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.

Resulta deste normativo que as anomalias na gravação das provas se podem considerar-se como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência. A especialidade mais saliente deste regime legal, traduz-se, justamente, na circunstância da Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade; no seu entendimento, sublinhe-se, que não no da parte apelante, necessário se mostrando que para formar a sua convicção, a Relação proceda à prévia audição da gravação.

Com efeito, visando a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, procedeu-se à audição da prova gravada, verificando-se que enferma de deficiência, nomeadamente por sobreposição de ruído que não permite entender, por vezes algumas palavras, ou mesmo perguntas, mas também respostas, mas sobretudo porque é inaudível em alguns dos depoimentos prestados.

(…)

Porque estamos perante factualidade cuja apreciação se mostra questionada, e não se está, sublinhe-se, por uma palavra aqui ou acolá não audível, configura-se que não pode este Tribunal aceder, com toda a segurança exigível, ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.

Diga-se, aliás, que a ora Recorrente, a fls. 716, veio dizer que pretendendo interpor recurso da matéria de facto, ouvido o CD da gravação, se deparou com um barulho de tal modo intenso que tornava inaudível e impercetível a maioria dos depoimentos das testemunhas, invocando a correspondente nulidade e pedindo a reinquirição, tendo sobre o mesmo recaído o despacho de fls. 719 e seguintes que, embora reconhecendo a existência de deficiências na gravação, indeferiu o requerido, por intempestivo.

Aqui chegados, presente que a apontada inaudibilidade, decorrente das deficiências da gravação apontadas, resulta da convicção que adveio a este Tribunal na sequência da audição realizada, manifesto se torna face ao exposto, mas também não esquecendo o disposto no n.º 4, do art.º 712, agora 662, n.º 2, c), do CPC, que importa proceder à repetição dos depoimentos, relativamente aos quais foram acima indicadas deficiências, na medida necessária para proceder ao suprimento da impercetibilidade existente, anulando-se, em conformidade, o julgamento, bem como a sentença subsequentemente proferida.» ([6]).

No caso dos autos, como dito, nenhuma das partes invocou a inaudibilidade de provas gravadas, convocando o Apelante, no âmbito da sua impugnação da decisão de facto, o depoimento da testemunha (…)– por considerar que esta testemunha é a única que presenciou e tem conhecimento direto dos factos em causa (cfr. conclusão III) –, para além das “declarações de parte da Autora mulher, e cujo depoimento se encontra registado no ficheiro áudio gravado pelo sistema citius com a referência 20161114110848_840759_2870896, mais concretamente aos minutos 12:15 e 22.20 do referido ficheiro”.

A contraparte defende que o “curto excerto do depoimento de (…) transcrito nas alegações, está descontextualizado”, importando, ao invés, ter em conta a “restante prova”, a que “não foi feita referência”, o que “se compreende, pois não era favorável ao recorrente”, sendo que o Tribunal a quo analisou e valorou “os depoimentos das testemunhas (…), estando a “decisão tomada” em “conformidade com os depoimentos prestados e conjugados entre si” (conclusões 9- a 13- da contra-alegação recursória).

E concretiza, neste âmbito conclusivo, que:

“18- Os relatos das testemunhas referidas, foram francos, sinceros e reais, não restando dúvidas quanto à forma como a contratação em causa foi feita, e mesmo dando de barato que possa ter existido alguma explicação sobre o teor das aplicações à A. mulher, pois que ao A. marido tal manifestamente não sucedeu, esta mostrou-se claramente eivada de falsidade na medida em que lhe disseram estar perante um produto idêntico a um depósito a prazo (o que claramente não é o caso);

19- Assim, e por todo o exposto, nenhuma prova significativa foi mobilizada ou requerida pelas partes no sentido de nos permitir, com segurança, concluir seja pela informação cabal das obrigações em causa (antes pelo contrário a mesma foi objetivamente condicionada, seja pela entrega de qualquer ficha técnica que tornasse essa informação acessível à Autora, seja mesmo pelo exato momento do seu conhecimento ulterior (pois a mera existência de extratos bancários com a indicação dos títulos de investimento, atenta esta concreta Autora, não faz presumir o seu conhecimento integral e esclarecido).

20- A decisão da matéria de facto está de acordo com o que resultou da prova produzida e, nomeadamente, de acordo com o que resultou dos depoimentos das testemunhas, conjugado com a análise dos documentos juntos.”.

Ora, o aqui Apelante apresentou impugnação da decisão de facto versando sobre:

- os pontos 2., 3., 5., 6., 7., 8., 9., 10., 11., 13., 14., 15., 16., 20., 21., 22., 24., 25., 26., 27., 28., 29., 30., 34., 35., 36., 37., 38., 39. e 40 do factualismo dado como provado; e

- as nas alíneas o), p), v), w), aa), e ab) da matéria de facto dada como não provada.

Trata-se de factualidade referente, essencialmente, à matéria de informações/esclarecimentos que foram (ou não) prestados pelo R. (através do seu gerente da agência da (...) ) à A. mulher e do relacionamento estabelecido entre as partes nesse plano, alusivo à esfera de conhecimentos, intenções, motivações e convicções das partes neste âmbito. Em suma, matéria fáctica nuclear quanto ao desfecho desta ação indemnizatória, pretendendo o impugnante julgamento em sentido contrário ao proferido.

O Tribunal a quo apresentou assim, desenvolvidamente, a sua fundamentação da convicção probatória, mormente no concernente às provas gravadas ([7]):

«(…) a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e conjugada das declarações de parte, da prova documental e testemunhal produzida nos autos, tendo em consideração as regras de experiência comum e juízos de normalidade.

(…) importa começar por reter as declarações de parte da Autora (…).

Tendo abordado, nomeadamente, a matéria dos artigos 2.º a 14.º, 16.º a 20.º, 22.º a 24.º, 28.º e 30.º a 36.º da petição inicial, a A. explicou que tratava com o (…), funcionário do (...) , como se fosse um filho (sendo que tratava com ele desde os tempos do Banco (...) ), tal era a confiança que tinha com ele, sendo que lhe cabia a ela a gestão do dinheiro do casal, pois o seu marido não tratava destes assuntos.

Neste particular referiu que era o (…) quem, no (...) , “geria” muito do seu património, indo mesmo a sua casa buscar dinheiro para fazer depósitos e tratar dos mesmos.

Demonstrando pouco à vontade com estas matérias e nenhuma preparação técnica particular no que respeita a matérias financeiras, sendo que a sua ocupação profissional se prende com o negócio de óculos que explora com o marido, tornou-se evidente a dependência que tinha nestas matérias (que o marido lhe confiava), relativamente ao gerente e amigo (…).

Instada afirmou que nunca lhe explicaram em que consistiam as aplicações financeiras em causa nos autos, acrescentando nunca ter lido brochuras ou os impressos em causa, até porque nunca preencheu qualquer um deles, apenas tendo assinado os mesmos segundo as instruções do referido A (...) .

Acrescentou que nunca lhe foi explicado o que fossem obrigações ou a SLN, desconhecendo tal situação, até porque sempre frisou junto do (…) que só queria depósitos a prazo e “coisas seguras”.

Explicou que para si aquelas aplicações eram como um depósito a prazo, apenas com um nome diferente, pois que não sendo uma pessoa esclarecida na matéria não arriscaria tanto dinheiro em aplicações não seguras.

Reiterando que as aplicações lhe foram apresentadas como se fossem um depósito a prazo, aludiu a uma situação em que sabendo que tinha dinheiro aplicado em ações insistiu com o sobredito A (...) para “retirar” tal aplicação.

Em particular no que respeita a estas aplicações referiu que o (…) foi a sua casa para o efeito (o que era recorrente), sendo que foi ele quem teve a iniciativa de aplicar aquele montante (o que reforça a ideia de ascendente daquele e de que era quem acabava por fazer uma gestão do património dos autores).

Sublinhando que a aplicação de dinheiro em obrigações era contra a sua vontade, afirmou que até recentemente esperou que o banco cumprisse com o acordado.

Com efeito, e neste particular, mais adiante nas suas declarações, referiu que só depois soube que não se tratava de aplicações do tipo depósito a prazo, não sabendo precisar (sequer por aproximação) esse momento no tempo, mas associando-o com uma altura em que tirou dinheiro que tinha no banco e aquele ficou retido.

Instada assegurou que só nessa altura, e não antes, teve real conhecimento do risco inerente às aplicações em causa, sendo que mesmo depois desse momento o A (...) a tentou convencer a manter as mesmas (o que é consentâneo com as instruções vertidas no e-mail acima aludido).

Questionada sobre o seu historial de investimento afirmou que antes apenas por uma vez tinha adquirido um produto de risco, o que sucedeu há mais de 20 anos, acrescentando que teve todo o seu dinheiro aplicado naquele banco, constituindo estas aplicações 70% ou 80% do seu património, ainda lá tendo €250000,00, que se vão vencer em 2018, e que soube depois que são “obrigações perpétuas”.

Sucede que quando confrontada com a alegada existência de cerca de 310 mil euros em obrigações da C (...) entre outras aplicações no (...) disse desconhecer tal situação (o que aliás vai de encontro ao seu depoimento, no sentido de que o referido (…)era quem fazia estas aplicações, nem sempre lhe fornecendo a informação exata das mesmas, como o próprio depois acabará por reconhecer).

Tendo sido chamada para esclarecimentos complementares, a Autora acrescentou que o sobredito (…) exercia uma grande pressão sobre si, sendo que sem lhe dar explicações conseguia “dar-lhe a volta” e fazer as aplicações que queria (assentindo esta em face de grande confiança que tinha nele).

Sobre as consequências do sucedido explicou que estando o marido doente tal dinheiro lhes faz falta, andando há vários anos preocupados e angustiados, receando perder todo aquele capital.

Trata-se, aliás, de uma situação do foro psicológico perfeitamente compatível com as regras do normal acontecer e de experiência comum.

Incidindo na prova testemunhal produzida, (…) foi considerado o depoimento de (…) (…), disse aos costumes que trabalhou para o (...) , como diretor central de empresas, em junho de 2005 até novembro de 2008 (…).

Instado sobre o correio eletrónico junto aos autos e acima aludido, referiu que o mesmo foi feito por si, em 26.07.2008, sendo que os destinatários (e só estes) foram “falsificados” (!) pois era destinado apenas a 12 gestores, sendo que até apresentou queixa criminal…

Confirmou que naquele e-mail dizia, entre o mais, que estavam a vender um equivalente a depósito a prazo, sendo que o próprio afirmou que naquele contexto não via diferença entre os produtos (...) e SLN (sendo, pois, difícil assumir que os Autores a vissem…).

Instado sobre o caso concreto nada soube esclarecer, afirmando, todavia, que na subscrição destas obrigações era frequente haver uma relação de confiança entre o cliente e o gestor, sendo que nunca tinha havido problemas pois as obrigações tinham fácil colocação e resgate, embora a ficha técnica não o dissesse (desconhecendo-se tal ficha pois a mesma não foi junta) acrescentando que se tratava de produtos com uma remuneração acima dos depósitos a prazo.

Salientando que o produto, na prática, só tinha liquidez no vencimento, sustentou que o gerente estaria certamente de boa-fé e convencido da validade do produto quando o vendeu.

Mais referiu, embora sem concretizar montantes, que as obrigações SLN Rendimento Mais 2004 tiveram o propósito de aumento do capital do Banco Réu.

Mais relevante foi, depois, o depoimento de (…), (…) que aos costumes disse que teve uma relação como bancário com os Autores e ser amigo dos mesmos cerca de 20 anos, esclarecendo que desempenhou funções no (...) desde fevereiro de 2002 até 2012 e atualmente trabalha no (...) .

(…)

Mais considerou o Tribunal o depoimento de (…)(…), o qual esclareceu que foi cliente do (...) e que tem uma ação em Tribunal contra o mesmo réu.

Esta testemunha que referiu estar na mesma situação dos autores assegurou que adquiriu uma aplicação do (...) , que só mais tarde veio a saber tratar-se de obrigações.

Explicou que aquando da subscrição da aplicação apenas lhe referiram que era a prazo e segura, tendo sido a anterior testemunha ( A (...) ) quem lhe vendeu tal aplicação (de 2006, com vencimento em 2016).

Instado referiu que não lhe deram qualquer ficha técnica da aplicação e reiterou que ninguém lhe falou em obrigações ou na SLN (que nem sabia o que era), afirmando que lhe foi assegurado que se tratava de uma aplicação melhor que um depósito a prazo e que o “resgate” do capital era rápido, pois vendia-se facilmente quando quisesse…

À semelhança do referido pelo sobredito funcionário do (...) também esta testemunha referiu que aquele inclusive lhe tinha dito ter feito aquela aplicação para o pai.

Instado sobre as garantias associadas à aplicação em causa afirmou que para si era o (...) que garantia o seu cumprimento, recordando que na altura a DECO inclusive recomendava tal banco.

Especificamente sobre a contratação que fez assegurou que foi ao banco para fazer um depósito a prazo e acabou por fazer esta aplicação, reconhecendo que lhe explicaram algumas coisas mas, como agora percebe, não lhe foi tudo explicado.

Afirmou, ao contrário da Autora, que teve real noção da aplicação que tinha e dos riscos que corria aquando da nacionalização do banco.

Na esteira deste depoimento, foi também considerada a descrição preconizada por (…) (…), que aos costumes disse apenas conhecer os Autores de vista e ser cliente do (...) , acrescentando que também está em litígio judicial com o banco.

Embora reportando-se a um contrato realizado pelo seu pai (falecido em 2012), a testemunha referiu que aquele, com a 4ª classe de escolaridade, e desde sempre um depositante conservador, foi aconselhado pelo (…) a fazer aplicações como as que estão em causa nestes autos, aludindo aos juros mais interessantes que envolvia, sendo que de acordo com o que o seu pai lhe contou tratava-se de um “negócio a prazo”, que a mesma não tem dúvidas que nunca lhe foi devidamente explicado, até porque o seu pai nunca antes havia feito aplicações que não estivessem garantidas.

Neste sentido aduziu que nunca lhe deram o que fosse para ler ou guardar relativamente a estas aplicações, acrescentando que, mesmo depois de 2012, o referido A (...) lhe disse para estar tranquila e não mexer na aplicação porque ia ser tudo pago…

De forma bastante objetiva e isenta a testemunha afirmou que há um ano lhe disseram então para procurar um advogado para tentar ser ressarcida, pois não ia ser reembolsada.

Perante estes relatos não nos restam dúvidas quanto à forma como a contratação em causa foi feita, e mesmo dando de barato que possa ter existido alguma explicação sobre o teor das aplicações à A. mulher, pois que ao A. marido tal manifestamente não sucedeu, esta mostrou-se claramente eivada de falsidade na medida em que lhe disseram estar perante um produto idêntico a um depósito a prazo (o que claramente não é o caso), tendo-lhe sido dadas garantias, pelo gerente do (...) , de capital e taxa remuneratória por aquele banco. (…).».

Perante tal extensa e pormenorizada fundamentação da convicção probatória, alicerçada essencialmente na prova gravada (embora também em prova documental), logo se conclui pela importância da valoração das declarações de parte da A. mulher e dos depoimentos das aludidas testemunhas (…), por decisivamente influentes ([8]) na formação da convicção da 1.ª instância, impondo-se a sua reapreciação pela Relação.

O que agora se mostra impossível, ante o detetado vício da gravação.

Na senda da jurisprudência citada, concordamos – à luz do disposto, conjugadamente, nos art.ºs 9.º do DLei n.º 39/95, 195.º, n.º 1, 196.º, parte final, e 662.º, n.º 2, al.ª c), estes do NCPCiv., e vista a filosofia desde último edifício normativo, dando prevalência a soluções de justiça material – que as anomalias na gravação das provas consubstanciam irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência.

Âmbito em que pode a Relação ordenar – por sua iniciativa, oficiosamente – a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção e mesmo que, na estrita perspetiva das partes, o vício houvesse de considerar-se sanado, por não invocado.

Coloca-se, é certo, a questão de saber se o art.º 9.º do DLei n.º 39/95 – e até este diploma avulso na sua totalidade –, preceito que se assume como decisivo para a solução normativa a encontrar, está em vigor ou foi revogado (tacitamente) pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o NCPCiv. (art.º 1.º), ou por este Cód..

Ora, afigura-se-nos que não se trata de preceito revogado, mas, todavia, em vigor – veja-se o art.º 4.º (norma revogatória) daquela Lei n.º 41/2013, que, revogando vários diplomas avulsos, não revogou o DLei n.º 39/95, nem nenhum dos seus artigos. Se o legislador quisesse revogá-lo(s), tê-lo-ia dito, tanto mais que introduziu um novo art.º 155.º (mais amplo que o anterior art.º 159.º), onde regula matérias inerentes à gravação da audiência final (os n.ºs 1 a 6 do atual art.º 155.º são preceitos novos, sobre a gravação, e os n.ºs 7 a 9 reproduzem o anterior art.º 159.º).

O normativo da art.º 155.º, n.º 4, do NCPCiv., refere-se ao prazo de invocação/reclamação concedido às partes, quanto aos vícios da gravação, sob pena de preclusão.

Todavia, o art.º 196.º, parte final, do NCPCiv. ressalva, quanto ao conhecimento oficioso das denominadas nulidades secundárias, “os casos especiais em que a lei permite” esse conhecimento.

E é aqui que se assume o preceituado no art.º 9.º do DLei 39/95 (para quem, como nós, não o considera revogado), em conjugação com o art.º 662.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv., questionando-se se aquela preclusão (para as partes) impede o conhecimento oficioso do Tribunal (art.º 196.º, parte final, do NCPCiv.).

Sobre a (não) revogação, é de referir que a matéria/disciplina dos art.ºs 3.º a 9.º do DLei n.º 39/95, referente à regulamentação da gravação, não se encontra, parece, totalmente regulada/esgotada, ex novo, pelo art.º 155.º do NCPCiv., em moldes que permitissem concluir dever esse diploma legal avulso – interpretado de forma adequada e atualistica – considerar-se revogado ([9]).

Da conjugação, sem mais, dos art.ºs 195.º e 196.º do NCPCiv. resultaria que a nulidade processual (aqui uma invalidade secundária) não é de conhecimento oficioso, pelo que, por regra, o Tribunal só poderia conhecer dela mediante invocação/reclamação dos interessados/partes (a não ser que haja norma especial que permita o conhecimento oficioso – parte final do art.º 196.º).

Assim, para quem entendesse que o art.º 9.º do DLei 39/95 está (tacitamente) revogado, nunca seria possível o conhecimento oficioso da falta ou deficiência da gravação ([10]), nem que o Tribunal de 1.ª instância imediatamente, ou nos dez dias seguintes à gravação, verificasse que ela estava inaudível/imprestável, o que parece exagerado, já que é o serviço do Tribunal que tem o domínio da gravação e por ela deve velar (as partes são sujeitos estranhos à operação de gravação, efetuada no edifício do Tribunal, por funcionário deste e com meios do Tribunal).

Se, pois, as partes não reclamassem contra o vício, jamais o Tribunal, em momento algum, durante ou após a gravação, poderia conhecer dele, por esse conhecimento lhe estar legalmente vedado (sempre na aludida lógica estrita de nulidade secundária, nos cingidos cânones dos art.ºs 195.º, n.º 1, e 196.º, segunda parte, ambos do NCPCiv.), mesmo que, em 1.ª instância, viesse a necessitar de ouvir a gravação para responder à matéria de facto (pense-se num processo complexo e de longa produção de prova, em que o Tribunal carecesse de “refrescar a memória” quanto a certo depoimento, que verificasse não gravado, por erro dos seus serviços).

Ora, uma tão drástica solução – a que resultaria de uma leitura estrita dos art.ºs 195.º e 196.º do NCPCiv., sem conjugação com o art.º 9.º do DLei 39/95 –, manietando também a Relação, pareceria desproporcionada, impondo-se até ao juiz de julgamento (se a lei diz que de certa nulidade só pode conhecer-se sobre reclamação dos interessados, essa prescrição vale para o julgador, seja ele o da produção das provas e da prolação da sentença, seja o do Tribunal superior).

Não foi, porém, salvo o devido respeito, isto que o legislador de 2013 (que se presume sábio, esclarecido e equilibrado) quis, atentos os interesses não meramente privados em questão (há um claro interesse púbico nesta matéria, ligado ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto e à boa decisão da causa, segundo critérios de justiça material, que ficaria comprometida pela negligente gravação da prova, tarefa cuja realização, e verificação primeira, não cabe às partes mas ao Tribunal).

Pense-se até num depoimento testemunhal muito longo ou numa longa série de extensos depoimentos, os quais, ouvida a gravação, aparentassem estar adequadamente gravados, mas em que, posteriormente, ao serem integral e cuidadosamente ouvidos, apresentassem partes essenciais com vício de gravação (parcialmente impercetíveis, em pontos cirúrgicos), impedindo o controlo quanto a um facto essencial ao desfecho da ação.

Num tal caso – por ex., numa ação de elevado valor e prolongado julgamento –, a não se tratar de matéria de conhecimento oficioso, como poderia o Juiz de julgamento (antes da sentença) ordenar a repetição de um depoimento não gravado (ou parcialmente inaudível), se as partes nada invocassem/reclamassem?

Numa tal matéria (gravação), deixada ao cuidado/realização/guarda do Tribunal, este não pode demitir-se invariavelmente da sua tarefa, em ponto essencial, e do resultado da mesma (mesmo que com o pretexto do silêncio das partes).

Os interesses de ordem pública em questão exigem, na nossa modesta opinião, uma outra abordagem, a possibilidade de conhecimento oficioso, designadamente em casos limite (mormente, quando esteja em causa, de forma relevante, a descoberta da verdade e a justiça material), âmbito em que o art.º 9.º referido – ainda em vigor e conjugado com a parte final do art.º 196.º do NCPCiv. – parece ser crucial.

Por isso, concluímos que o art.º 9.º do DLei n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (art.º 4.º desta), que aprovou o NCPCiv., nem, de forma tácita, pelo preceituado no art.º 155.º do NCPCiv. (ou outro normativo deste Cód.), constituindo, ao invés, um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do NCPCiv..

Ora, in casu, não há dúvidas de que, pela relevância daquelas provas registadas em gravação inaudível, a sua reapreciação é essencial ao apuramento da verdade material, não podendo, por ora, este Tribunal de recurso aceder ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova (duplo grau de jurisdição).

Resta, pois, concluir que, perante aquela inaudibilidade, decorrente de deficiências da gravação da prova, e ao abrigo, conjugadamente, do disposto nos mencionados art.ºs 9.º do DLei n.º 39/95, 195.º, n.º 1, 196.º, in fine, e 662.º, n.ºs 2, al.ª c), e 3, al.ª b), estes do NCPCiv., terá de determinar-se, oficiosamente, a repetição das declarações de parte da A. mulher e dos depoimentos testemunhais de (…), de molde a suprir a impercetibilidade existente ([11]), anulando-se, em conformidade, o julgamento, bem como a sentença subsequentemente proferida.

Prejudicada fica, assim, a apreciação das demais questões suscitadas.
***

IV – Sumário elaborado pelo Relator (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - O art.º 9.º do DLei n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (art.º 4.º desta), que aprovou o NCPCiv., nem, de forma tácita, pelo preceituado no art.º 155.º do NCPCiv., constituindo, ao invés, um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do NCPCiv..

2. - A admissão da revogação legal (tácita) levaria a que a nulidade processual decorrente da falta ou deficiência da gravação da prova oralmente produzida nunca pudesse ser conhecida oficiosamente, em 1.ª instância ou em recurso (o art.º 196.º do NCPCiv. prescreve que da nulidade prevista no art.º 195.º, n.º 1, do mesmo Cód., só pode conhecer-se mediante reclamação dos interessados), com o resultado de não poder haver correção oficiosa do vício da gravação, como se estivessem em causa interesses meramente particulares.

3. - À luz do disposto, conjugadamente, nos art.ºs 9.º daquele DLei n.º 39/95, 195.º, n.º 1, 196.º, in fine, e 662.º, n.º 2, al.ª c), estes do NCPCiv., e vista a filosofia que subjaz a este Código, dando prevalência a soluções de justiça material, é de perfilhar o entendimento jurisprudencial no sentido de as anomalias na gravação da prova consubstanciarem uma irregularidade especial, com aplicação de um regime também especial, particularmente expedito e oficioso, justificado por um interesse de ordem pública, que visa alcançar-se com a gravação da audiência, permitindo a efetivação do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.

4. - Nesse âmbito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante no contexto da impugnação da decisão de facto.

5. - Se o recurso assenta, desde logo, na impugnação da decisão de facto, com invocação de provas gravadas, e o Tribunal de recurso não logra ter acesso a parte desses meios de prova por inaudibilidade da gravação, impossibilitando uma decisão conscienciosa da impugnação e, por consequência, do recurso, deve este Tribunal, oficiosamente, socorrendo-se dos dispositivos legais aludidos, anular o julgamento, na parte afetada, e a decisão recorrida, com vista ao suprimento do vício existente.


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em anular, oficiosamente, o julgamento, e a sentença subsequente – na parte afetada por gravação inaudível de prova relevante, oralmente produzida, e quanto aos factos objeto de impugnação do Recorrente –, para que se proceda à repetição dos depoimentos/declarações acima indicados, nos moldes referidos.

Custas da apelação pela parte vencida a final.

                                                           ***

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 19/12/2017

Vítor Amaral (relator)

         
Luís Cravo

                                      
Fernando Monteiro (com declaração de voto de vencido, em anexo)

Declaração:
Tenho seguido e mantenho posição contrária.
Da conjugação dos nºs 1 a 4 do artigo 155º, bem como do artigo 422º, do NCPC, devem ter-se por tacitamente revogados os artigos 6º, nº 1, 7º, nº 2 e 9º do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro.
O legislador tomou posição sobre a forma e o tempo de arguição da deficiência ou inaudibilidade da gravação, contando-se esse prazo a partir do momento da efectiva disponibilização da gravação. Dado o dissídio que existia na jurisprudência relativamente a esta matéria, parece que o legislador pretendeu pôr cobro a tal controvérsia.
Passou a ser preocupação primária (com especial ónus de verificação do interessado) indagar se o recurso é de facto, se a gravação está disponível e se está em condições.
Deverá verificar toda a gravação que serviu à decisão do julgador.
Caso contrário, prevalece esta decisão.
(Poderia admitir, no caso de anulação da decisão de facto por contradição sobre pontos determinados da matéria de facto, sendo essa contradição factual de conhecimento oficioso, o conhecimento também oficioso da deficiência ou inaudibilidade da totalidade ou de parte da prova, para remover a contradição – art. 662º, nº 2, c), do CPC.).

Fernando Monteiro


([1]) Segue-se, no essencial, por economia de meios, o relatório da sentença recorrida.
([2]) Que se deixa integralmente transcrita.
([3]) O Recorrente poderia ter sido mais perfeito nesse plano, mas parece, ainda assim, cumprir suficientemente os ónus a seu cargo, tendo em conta a perspetiva adotada pela atual jurisprudência do STJ. Com efeito, apresentando transcrição quanto ao depoimento testemunhal que convoca, o qual é fácil de localizar na gravação, também a parte indica os factos impugnados, a prova que pretende ver reapreciada, o sentido decisório pretendido e os motivos da sua discordância. E justifica a indicação apenas de uma testemunha, dizendo que é a única que tem conhecimento direto dos factos (considera que as outras não o têm, pelo que, a seu ver, depõem sobre factos que não presenciaram – os concretos contactos entre a A. mulher e o gerente do R.). Acresce que, nesta parte, não tinha o impugnante de analisar todas as provas, mas apenas os concretos meios probatórios que, a seu ver, impunham decisão diversa da adotada (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.). Não se trata, na verdade, de um segundo julgamento global, mas apenas de concretos pontos de facto, com base em concretos elementos de prova. Importante era que a impugnação se sustentasse em análise crítica desses concretos elementos de prova convocados pelo Recorrente, o que ele fez, observando os ónus formais que lhe cabem (outra coisa é se essa impugnação, em termos de mérito, merece triunfar), posto que explicou os motivos pelos quais deixou de parte os outros depoimentos testemunhais (disse que as outras testemunhas não assistiram aos contactos estabelecidos entre as partes, pelo que não têm conhecimento direto dos factos impugnados). Se o Tribunal recorrido diz que têm esse conhecimento, é matéria de impugnação, suscitando o julgamento da Relação, pelo que, a nosso ver, o recurso da decisão de facto é admissível.
([4]) Reportado ao CPCiv. revogado – o vigente ao tempo – mas com virtualidade aplicativa face à disciplina do NCPCiv..
([5]) Itálico aditado.
([6]) Sobre esta matéria, cfr. ainda os Acs. TRL de 11/09/2012, Proc. 34862/09YIPRT.L1-1 (Rel. Eurico Reis), e de 18/05/2010, Proc. 5098/07.TVLSB.L1-7               (Rel. Graça Amaral), ambos em www.dgsi.pt, não se ignorando, todavia, a existência de outra jurisprudência em sentido contrário, que conclui, em casos semelhantes, pelo não conhecimento da impugnação da decisão de facto – cfr., inter alia, o Ac. TRG, de 11/09/2014, Proc. 4464/12.1TBGMR.G1 (Rel. Heitor Gonçalves), em www.dgsi.pt, porém, com voto de vencido da Desembargadora Helena Melo, os Acs. TRP, de 13/02/2014, Proc. 142046/08.3YIPRT.P1 (Rel. Aristides Rodrigues de Almeida), e de 17/12/2014, Proc. 927/12.7TVPRT.P1 (Rel. Judite Pires), e o recente Ac. TRL de 30/05/2017, Proc. 298/13.4TBSCR.L1-7 (Rel. Luís Filipe Pires de Sousa), todos em www.dgsi.pt –, solução que, a nosso ver, não conjuga cabalmente, salvo o devido respeito, em esfera de interesse público, o âmbito/confluência material dos art.ºs 9.º do aludido DLei n.º 39/95, 195.º, 196.º, parte final, e 662.º, n.º 2, al.ª c), estes do NCPCiv., em termos de prevalência de soluções de justiça material (as pretendidas pelo legislador atual), no uso de poder/dever oficioso do Tribunal de 2.ª instância e perante o imperativo de um eficaz duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
([7]) Para além de diversa prova documental, a que também alude.
([8]) Ao lado do depoimento testemunhal de A (...) , o único a que agora se tem acesso.
([9]) Veja-se os art.ºs 4.º (gravação por funcionários de justiça), 5.º (conservação do suporte da gravação das provas), 6.º, n.ºs 2 a 4 (verificação e prevenção contra gravações acidentais, apensação e guarda), 8.º (interrupção da audiência pelo tempo indispensável sempre que ocorra qualquer circunstância que impossibilite temporariamente a continuidade da gravação), para além do art.º 9.º (válvula de escape/segurança, quando estiver em causa “o apuramento da verdade” e, consequentemente, a justiça material).
([10]) Numa pura lógica de nulidade secundária, que não é de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer por iniciativa alheia, mediante reclamação dos interessados, sob pena de preclusão e sanação.
([11]) Podendo, do mesmo passo, expurgar-se o quadro fáctico da causa, acolhido na sentença, de segmentos marcadamente conclusivos/valorativos.