Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | PAGAMENTO ÓNUS DE ALEGAÇÃO CUMPRIMENTO CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO FORÇA PROBATÓRIA DOCUMENTO PROVA TESTEMUNHAL | ||
Data do Acordão: | 06/03/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DO BAIXO VOUGA, JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ÁGUEDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.º 376.º E 393.º/2 DO CC | ||
Sumário: | I. Não cumprem o ónus de alegação do facto extintivo pagamento os executados/opoentes que se limitam a afirmar que nada devem. II. Não faz prova do cumprimento o extracto emitido pelo Banco exequente relativo a contrato de abertura de crédito em conta corrente (caucionada), no qual foi lançado a crédito o montante disponibilizado, assim anulando o movimento inicial a débito de igual valor, por não ser de lhe reconhecer a natureza de documento de quitação ou liberatório, antes correspondendo, tal como foi esclarecido pela prova testemunhal produzida, a mero acerto contabilístico. III. Fixada embora a força probatória do documento nos termos do art.º 376.º do CC, não está vedada a produção da prova testemunhal, em ordem a permitir a interpretação do contexto em que o mesmo documento foi produzido (I. Não cumprem o ónus de alegação do facto extintivo pagamento os executados/opoentes que se limitam a afirmar que nada devem. II. Não faz prova do cumprimento o extracto emitido pelo Banco exequente relativo a contrato de abertura de crédito em conta corrente (caucionada), no qual foi lançado a crédito o montante disponibilizado, assim anulando o movimento inicial a débito de igual valor, por não ser de lhe reconhecer a natureza de documento de quitação ou liberatório, antes correspondendo, tal como foi esclarecido pela prova testemunhal produzida, a mero acerto contabilístico. III. Fixada embora a força probatória do documento nos termos do art.º 376.º do CC, não está vedada a produção da prova testemunhal, em ordem a permitir a interpretação do contexto em que o mesmo documento foi produzido (art.º 393.º, n.º 2 do mesmo diploma legal). do mesmo diploma legal). | ||
Decisão Texto Integral: | I. Relatório Na Comarca do Baixo Vouga, Juízo de execução de Águeda, O Banco A..., SA, sediado na (...), em Lisboa, instaurou contra B... e C..., acção executiva para cobrança coerciva da quantia de € 170 836,64 (cento e setenta mil, oitocentos e trinta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos), respeitando € 158 520,21 a dívida de capital e o restante a juros vencidos, e ainda os vincendos, dando à execução duas livranças, subscritas pela sociedade B..., Lda. e avalizadas pelos executados. Citados, os executados, e para o que ora releva, deduziram oposição à execução, o que fizeram com os seguintes fundamentos: - não devem à exequente a quantia exequenda; - na sua qualidade de únicos sócios e gerentes da B..., engenharia e construções, de B..., Lda, celebraram com o banco exequente contrato de abertura de crédito por conta corrente até ao montante de € 150 000,00, garantido por livrança aceite pela sociedade e avalizada pelos oponentes a qual, com excepção das assinaturas, foi entregue em branco; - a tal conta corrente o banco atribuiu o n.º 0000.37038667175 e dela ia dando conhecimento à sociedade através de extractos que emitia com regularidade; - como suporte desta conta corrente existia no banco exequente a conta de depósitos à ordem titulada pela B..., Lda., na qual eram reflectidos os movimentos a débito e a crédito efectuados pela titular, e à qual os oponentes eram estranhos; - a B..., Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em Março de 2010, há muito transitada; - nas vésperas dessa declaração, o banco enviou à referida sociedade o extracto por si emitido com o n.º 236 e referente ao período de 09.01.2008 a 25.02.2010, comunicando que o saldo final daquela conta corrente era de zero, estando perfeitamente regularizada e nada sendo devido; - por assim ser, devia o banco exequente -que até já havia denunciado o contrato em 13/1/2009- ter devolvido às oponentes a livrança em seu poder, sendo assim abusivo o seu preenchimento; - também nada devem à exequente no que concerne à segunda livrança dada à execução. Com tais fundamentos pretendem que, na procedência da oposição, seja decretada a extinção da execução. * Regularmente notificada, a oponida contestou e, chamando a atenção para o facto de, em lado algum, os oponentes terem invocado o pagamento, explicitou que o extracto invocado reflecte mero movimento contabilístico consubstanciado na contrapartida a crédito do saldo negativo, em ordem a permitir encerrar o contrato e transferir o crédito para a rubrica de “crédito mal parado”, com reflexos junto do BP e passagem da respectiva cobrança para o contencioso. Tais factos não são desconhecidos dos oponentes, dada a sua reconhecida e invocada qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade executada, até porque lhe foram devidamente explicados mediante carta envida em 14 de Dezembro de 2010, de que juntou a respectiva cópia. Concluiu pela improcedência da oposição e prosseguimento da execução. * Tabelarmente saneado o processo, prosseguiram os autos para julgamento, com dispensa da fixação da base instrutória, conforme consentido pelo disposto no art.º 787.º, n.º 1 do CPC, ex vi do art.º 817.º, n.º 2 do mesmo diploma legal. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e, proferida decisão sobre a matéria de facto sem reclamação das partes, foi de seguida proferida sentença que, na improcedência da oposição, determinou o prosseguimento da execução. Irresignados, os oponentes interpuseram o presente recurso e, tendo-o expressamente limitado à parte da decisão que versou sobre a livrança no valor de € 150 000,00, apresentaram as suas alegações, que remataram com as seguintes necessárias conclusões: “A) O devedor que diz que nada deve ao seu credor quando este lhe reclama o pagamento da sua alegada dívida, cumpre o seu ónus de prova do pagamento se juntar declaração do seu credor em que este afirma inequívoca e claramente que a conta corrente que espelha os movimentos a débito e a crédito de cada um se encontra a zero; B) No caso dos autos, estando assente que a livrança de 150.000,00 Euros foi avalizada pelos ora recorrentes para garantia de pagamento de um contrato de abertura de crédito em conta corrente e não para garantia de outra qualquer conta corrente, se o credor, aqui recorrido, por escrito seu, declara que aquela conta corrente apresenta um saldo final de zero, manifesto é ter-se aquela garantia extinguido; C) Se nada é devido – a conta garantida apresenta um saldo zero – extinguiu-se a garantia; D) E não pode a garantia ser utilizada para obrigar os avalistas, aqui recorrentes, a pagar solidária e pessoalmente o saldo de outra qualquer conta corrente que porventura o banco, aqui recorrido, tenha entretanto aberto e estabelecido para espelho e melhor controlo de outras operações comerciais desenvolvidas com a sociedade comercial de que os avalistas, aqui recorrentes, eram sócios; E) Ademais, o banco exequente, aqui recorrido, nem sequer provou, como lhe competia, a alegação de que aquela declaração liberatória não passava de um documento meramente contabilístico”. Indicando como violadas as disposições legais contidas nos artigos 342.º do Código Civil e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, pretendem, com os fundamentos referidos, que, na procedência do recurso, seja julgada procedente a oposição, no que à livrança agora em causa diz respeito, com a consequente extinção da execução. A apelada contra alegou, sustentando naturalmente a manutenção do julgado. * Sabido que pelo teor das conclusões se define e delimita o âmbito do recurso, única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em determinar se se desincumbiram os apelantes do ónus da alegação e prova de que se encontra extinta pelo cumprimento a obrigação avalizada, o que implica a prévia e necessária determinação do valor probatório do documento cuja cópia faz fls. 16 destes autos. * II. Fundamentação De facto Da 1.ª instância chegam-nos os seguintes factos: A- Foram pela exequente Banco A..., SA dadas à execução as livranças cujas cópias digitalizadas se encontram a fls. 5 e 6 dos autos principais (PP), agora certificadas a fls. 89-90 destes autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido. B- A livrança de fls. 5 PP foi subscrita pela B..., Lda, tendo-lhe sido aposto o valor de 150.000,00€, com data de emissão de 19.08.2005 e data de vencimento de 22.07.2009, dela constando expressamente tratar-se de “livrança-caução ao contrato c/c n.º 37038667175”. C- No verso da livrança os executados ora apelantes apuseram as suas assinaturas, precedidas da expressão “dou o meu aval à firma subscritora”. D- A livrança de fls. 6 PP foi subscrita pela B..., Lda, tendo-lhe sido aposto o valor de 50.000,00€, com data de emissão de 24.07.2007 e data de vencimento de 25.07.2009. E- No verso da livrança, foi dado o aval à firma subscritora pelos ora opoentes. F- Por conta do valor inscrito nesta livrança foi efectuado o pagamento de 41.479,79€, encontrando-se em dívida, quanto à mesma, o valor de 8.520€. G- A livrança referida em B-) foi emitida para garantia de um contrato de abertura de crédito celebrado entre os oponentes e o exequente até ao montante de 150.000,00 €. H- Tal contrato, que as partes reduziram a escrito e dataram de 19 de Agosto de 2005, regia-se pelas cláusulas dele constantes, tendo as partes estipulado, nomeadamente, que: “Cláusula 1.ª 1. O Beneficiário [a B..., Lda.] solicitou e obteve do Banco crédito, sob a forma de abertura de crédito por conta corrente. 2. Esta conta corrente tem o limite de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros) e destina-se a apoio de tesouraria. 3. A referida conta corrente será movimentada por débito e crédito da conta de depósitos à ordem abaixo indicada, aberta em nome do beneficiário. (…) Cláusula 2.ª 1. Esta abertura de crédito é contratada para vigorar pelo período de 6 (seis) meses a contar s data aposta no final do presente contrato, caducando no próximo dia 19 de Fevereiro de 2006, se não se verificar renovação do respectivo prazo de vigência nos termos do parágrafo seguinte. 2. O presente contrato renovar-se-á automaticamente, por iguais períodos de tempo, se qualquer das partes (Banco ou Beneficiário) não obstar a essa renovação, pela comunicação escrita de denúncia do contrato, expedida com a antecedência mínima de trinta dias de calendário relativamente ao termo do prazo em curso. (…) Cláusula 8.ª (Conta a movimentar) 1. As quantias mutuadas serão creditadas pelo Banco na conta de depósitos à ordem n.º 0000 37038667001, domiciliada no Balcão (...), da qual o beneficiário é titular. 2. O Banco fica desde já autorizado a efectuar na referida conta todos os débitos resultantes para o beneficiário da presente abertura de crédito, bem assim como a proceder a eventuais correcções de lançamentos sempre que tal se mostre necessário, comprometendo-se este a provisionar a conta para o efeito na data dos respectivos vencimentos. 3. A falta de provisão dos fundos necessários ao pagamento das prestações nas datas previstas será considerada como incumprimento do contrato imputável ao beneficiário. 4. Os débitos porventura efectuados a descoberto na referida conta de depósitos não significam a regularização das prestações a que o Beneficiário está obrigado, antes constituem uma situação de incumprimento (…). Cláusula 9.ª (Caução) 1. Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da presente abertura de crédito, designadamente reembolso do capital, pagamento de juros e outros encargos a liquidar nos termos deste contrato, beneficiário e garantes, respectivamente, subscrevem e avalizam uma livrança em branco, a qual desde já autorizam o preenchimento pelo Banco, pelo valor que estiver em dívida à data do seu preenchimento e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data do vencimento de qualquer das prestações convencionadas, as mesmas não forem integralmente pagas. 2. Os garantes declaram estar cientes que o presente contrato poderá ser renovado por uma ou mais vezes, por acordo entre o Banco e o Beneficiário, nos termos previstos na Cláusula 2.ª (Prazo e amortização), aceitando que a garantia por eles prestada subsista na sua plenitude para as sucessivas renovações, prescindindo de qualquer comunicação ou da necessidade de manifestarem expressamente a sua pontual concordância com as renovações e alterações das condições contratuais (…)”, tudo conforme consta do doc. de fls. 9 a 14 subscrito por exequente e executados, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o seu teor. H- A tal conta corrente atribuiu o banco exequente o n.º 0000.37038667175 e dela ia dando conhecimento à B... Lda através dos extractos por si emitidos com regularidade. I- Como suporte desta conta corrente existia uma conta à ordem no banco exequente aberta em nome e movimentada pela B..., Lda, a qual tinha o nº 0000.3703.8667001. J- No extracto nº 236, emitido pelo banco exequente em 25/2/2010 e referente ao período compreendido entre 09.01.2008 a 25.02.2010, consta que o saldo final da conta corrente nº 0000.37038667175 era zero -por contrapartida a crédito do montante de € 150 000,00 de saldo inicial devedor de igual montante- conforme consta do doc. cuja cópia consta de fls. 16, cujo teor aqui se dá, quanto ao mais, por reproduzido. K- O contrato de conta corrente referido em F) foi denunciado pelo exequente em 13.01.2009. L- Mediante carta datada de 9/11/2010, enviada pela exequente ao oponente marido, com a Ref.ª “Livrança-caução ao contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º 0000.37038667175, tendo ocorrido uma alteração em 25/11/2008”, aquela comunicou que “No seguimento da n/carta de 13 de Janeiro de 2009, na qual este Banco procedeu à denúncia do contrato acima indicado, informamos que se encontra vencida a dívida respeitante ao mesmo, pelo que iremos proceder ao completo preenchimento da livrança-caução subscrita por B..., Lda e avalizada por V. Ex.ª pelo valor de € 150 000,00, com data de vencimento de 22/7/2009 de acordo com as instruções constantes da cláusula 9:º do citado contrato (…)” (doc. de fls. 17). M- Por carta dirigida aos oponentes em 14/12/2010, mediante correio registado com a/r, que estes recepcionaram, a exequente informou o seguinte: “A carta recebida de V.ªs Ex.ªs, datada de 18 de Novembro último, apenas se justifica como fruto de alguma desatenção ao contrato que referem e cujo cumprimento se imputa a mero movimento contabilístico processado em conta à ordem do mutuário, nos termos expressamente contratados. De facto, permitimo-nos chamar aqui à colação o disposto no n.º 3 da cláusula 1.ª do contrato e cláusula 8.ª do mesmo documento. Da leitura daquele n.º 3 inequivocamente se alcança que a conta suporte do empréstimo concedido seria a conta à ordem do mutuário, ali se espelhando tudo o que viesse a respeitar à C/C/C de cujo cumprimento V. Ex.ªs se constituíram garantes, mediante aval prestado na livrança oferecida em caução. Assim sendo, os movimentos processados na dita conta à ordem, maxime em situação de descoberto, de modo algum podem ser entendidos como pagamento do contrato, no caso, renascimento de uma nova dívida, alheia, agora, aos avalistas. Aliás, o que vai tudo expressamente salvaguardado naquela cláusula 8.ª acima invocada. Isto posto, resta concluir não poder colher o que vem invocado, pelo que se mantém a responsabilidade de V. Ex.ªs no cumprimento da dívida avalizada” (docs. de fls. 32 e 33 dos autos). N- Quanto à livrança referida em D-), para garantia do pagamento da mesma, o opoente marido deu de penhor ao exequente o fundo autónomo de investimento ligado ao seguro de vida - seguro rendimento campeão, constituído por 10.000 unidades de participação, no valor global de 50.000,00€. O- Tal fundo, na data do seu termo, pressupunha um reembolso nunca inferior ao capital investido, “in casu”, um reembolso mínimo de 50.000,00€. P- No documento de constituição de beneficiário de apólice de seguro e penhor sobre unidades de participação, exequente e opoente marido, designadamente na cláusula nº2, ficou acordado o seguinte: “O penhor ora constituído poderá ser imediatamente executado, desde que se verifique mora no cumprimento, por parte do devedor de qualquer obrigação emergente do contrato acima identificado”. Q- E através da cláusula n.º 5, acordaram as partes que “Pelo presente instrumento, confiro igualmente poderes ao BANCO para, a seu favor, proceder ao resgate parcial ou total antecipado da referida Apólice e/ou Unidades de Participação empenhadas, de acordo com as Condições Gerais do Contrato de Seguro, em caso de não cumprimento pontual e integral por parte do Devedor de qualquer das obrigações emergentes do contrato acima identificado e, bem assim, para em meu nome e representação apresentar e subscrever todos os documentos necessários para o efeito junto da identificada seguradora”. * De Direito Está em causa nos autos uma livrança no valor de €150 000,00, de que a apelada é portadora, em cujo verso os apelantes apuseram a sua assinatura precedida da menção “dou o meu aval à firma subscritora”. A livrança é o escrito datado e assinado, que leva a denominação de livrança inserta no próprio texto, mediante o qual alguém se compromete a pagar determinada quantia a outrem (cf. art.º 75.º da LULL). Atenta a sua natureza de título de crédito, estando o direito incorporado no título, participa das características da literalidade, exprimindo que “esse direito tem unicamente a entidade concreta, a dimensão, as qualidades e a relação que as palavras do título descrevem”; autonomia, enquanto afirmação de que “o direito do dono do título é independente do de um titular antecedente e não pode ser prejudicado por qualquer defeito que na relação anterior se tenha alojado”, e abstracção, “através da qual, antes de mais, o direito impregnado no título não é uma parte da relação fundamental, mas uma realidade nova, um quid distinto; depois, e por isso, que não tem comunicação com a relação fundamental, não pode ser afastado ou afectado por qualquer defeito desta”[1] que constituem seus atributos. Estando em causa uma obrigação cambiária, o devedor vincula-se pela sua assinatura no título, que faz prova bastante da obrigação (cartular) assim assumida. Por assim ser, o portador do título não carece de alegar a causa da sua subscrição pelo obrigado cambiário. No caso em apreço, os ora apelantes foram demandados na sua qualidade de avalistas da sociedade subscritora da livrança dada à execução. O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores (art.º 30.º da LULL), efectivando-se através da assinatura no verso do título (art.º 31º). É um acto estritamente formal, participando da característica de literalidade do título, e é um negócio jurídico abstracto, cuja validade não depende da validade da relação causal: através do aval o avalista assume uma obrigação cambiária de garantia, garantindo ao portador da livrança o pagamento da quantia nela inscrita por parte de um dos seus subscritores, o avalizado (cf. art.º 32.º, §1.º e 2.º, aplicável às livranças por força do disposto no art.º 77.º, ambos os preceitos da LULL). O avalista vincula-se em termos de solidariedade perante o respectivo portador, passando a ser um devedor cambiário, sujeito de uma obrigação cambiária autónoma, embora dependente no plano formal da do avalizado (artigos 47.º, primeira parte, e 77.º, da LULL). A obrigação assim assumida é materialmente autónoma em relação à do avalizado, embora dela dependa no plano formal, aproveitando ao avalista, nessa medida, limitação da responsabilidade expressa no título que proceda em relação ao primeiro por vício de forma (aquele que diz respeito aos requisitos externos da obrigação cambiária avalizada – cf. artigos 32.º, segunda parte, e 77.º da LULL). Diversamente, a obrigação do avalista mantém-se mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer outra razão que não seja um vício formal. Não obstante o avalista não possa opor ao portador da livrança os meios pessoais de defesa do avalizado, vem sendo persistentemente entendido que a independência das obrigações cambiárias não obsta a que o primeiro oponha ao portador da letra ou da livrança a excepção da extinção da obrigação do avalizado, nomeadamente pelo pagamento.[2]’[3] Mediante a oposição que deduziram à oposição, os aqui apelantes pretenderam demonstrar a insubsistência do direito exequendo, dada a extinção da obrigação avalizada. Tendo alegado que nada deviam à exequente, tese que não encontrou acolhimento na decisão apelada, insistem que tal facto resultou demonstrado pelo oferecimento do documento cuja cópia se encontra a fls. 16 dos autos, e que qualificam de documento liberatório. Do excurso argumentativo feito pelos apelantes, e conclusões que a final formulam, extrai-se que aquilo que ao fim e ao cabo pretendem pela via do recurso é a consideração como facto assente da alegação de que nada devem ao Banco apelado, o que se imporia face ao conteúdo do aludido documento, ao qual se reporta a al. J). Vejamos da valia de tal argumentação. Nos termos do disposto no art.º 607.º do CPC, aplicável aos acórdãos ex vi do artigo 663.º, n.º 2 (reproduzindo sem alterações de vulto, para o que ora releva, a disciplina do defunto n.º 3 do art.º 659.º do CPC 1961), na fundamentação da sentença, o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência. Conforme se assinala na decisão recorrida, a oposição, na sua estrutura processual, configura-se como uma acção declarativa que é, simultaneamente, um meio de defesa colocado à disposição do executado. Tomando assim o carácter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da acção que nele se baseia, sobre o oponente/executado recai o ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o exequente pretende coercitivamente exercitar através da execução. Neste contexto, cumpre desde logo fazer notar que, conforme o Banco apelado chama a atenção, não ousaram os oponentes invocar em lado algum o pagamento, enquanto facto extintivo do direito de crédito que aquele pretende fazer valer, tendo-se limitado a alegar que “O que é certo é que quase nas vésperas daquela declaração de insolvência [da sociedade avalizada}, o banco exequente deu conhecimento através de extracto por si emitido com o n.º 236 e que abrangia o período de 9/1/2008 a 25/2/2010, que o saldo final daquela conta corrente n.º 0000.37038667175 – conta garantida pelos aqui embargantes através dos seus avais – era de zero euros, estando, por isso, perfeitamente regularizada, nada sendo devido”(cf. art.º 12.º da oposição), alegação que agora reproduziram nas alegações. Todavia, analisado o documento para que remetem, a verdade é que nem ali consta que a conta se encontra perfeitamente regularizada, nada sendo devido, nem tal conclusão dele pode ser extraída, em contrário do que pretendem os apelantes. Os documentos, cumpre precisá-lo, à semelhança do que ocorre com a confissão, são meios probatórios, destinando-se por isso a demonstrar a realidade dos factos (cf. art.º 341.º do Código Civil)[4]. E que factos são estes? Constitutivos do direito, recaindo o ónus da prova sobre aquele que o invocar; impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, cabendo a prova dos mesmos àquele contra quem a invocação é feita (cf. art.º 342.º), não sendo sua função colmatar a ausência de alegação. Ora, analisado quanto foi pelos apelantes alegado na oposição que ofereceram, cujos termos se deixaram transcritos, não secundamos a tese de que equivale à invocação do facto extintivo pagamento, já que a afirmação de que nada se deve pode até, em última instância, radicar em acordo de remissão, firmado entre devedor e credor, também ele extintivo do direito de crédito (cf. art.º 863.º). Não tendo invocado de forma expressa o pagamento, defendem todavia os apelantes que o devedor satisfaz o ónus da respectiva prova “se juntar declaração do seu credor em que este afirma inequívoca e claramente que a conta corrente que espelha os movimentos a débito e a crédito de cada um se encontra a zero”. A este respeito, não podemos deixar de concordar com o banco apelado quando refere que, de forma involuntária (ou não), parecem os apelantes não distinguir entre contrato de [abertura de crédito em] conta corrente e a conta (de depósitos) de suporte, na qual foram reflectidos os movimentos a débito e a crédito relativos ao uso da quantia disponibilizada através daquele, conforme estava contratualmente previsto e se demonstrou ter verificado. Com efeito, a livrança caução subscrita pelos avalistas aqui apelantes destinava-se a garantir o cumprimento pela sociedade avalizada das obrigações contraídas no âmbito do contrato de abertura de crédito, e não “a conta à ordem”, conforme sem rigor alegaram. A abertura de crédito, referida no art.º 362.º do Cód. Comercial como uma operação de banco, é um contrato atípico (ainda que nominado), nos termos do qual o banqueiro se obriga a ter à disposição do cliente determinada soma em dinheiro por um dado período ou por tempo indeterminado. Pode ser simples, caso em que a quantia acordada é disponibilizada de uma só vez, ou em conta corrente, situação em que o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta corrente com o banqueiro. Quando acompanhada de uma garantia, que pode ser pessoal, como ocorreu no caso vertente, fala-se comummente em “conta corrente caucionada”.[5] Do elenco factual apurado resulta demonstrado que a quantia de € 150 000,00 contratualmente acordada foi, na íntegra, disponibilizada à avalizada e por ela utilizada, donde nascer para esta a obrigação de a restituir nos termos estipulados. Todavia, e antecipando a conclusão, já não resultou demonstrado que o montante mutuado tenha sido restituído ao banco exequente ou que tenha ocorrido extinção da obrigação de restituição por algum outro modo, não servindo à prova do facto o documento invocado pelos apelantes. Vejamos com detalhe: Assim, e desde logo, não reveste o mesmo a natureza de documento de quitação. Nos termos do art.º 787.º do Código Civil “Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provido de reconhecimento notarial se aquele que cumpre nisso tiver interesse legítimo” (vide n.º 1). “A quitação ou recibo é um documento particular no qual o credor declara ter recebido a prestação. Supõe, portanto, a indicação do crédito, a menção da pessoa que cumpre, a data do cumprimento e a assinatura do credor”[6]. Com efeito, tratando-se de uma declaração de ciência, certificativa do cumprimento, só a identificação do crédito e a inequívoca declaração de que a prestação foi realizada cumpre tal finalidade. Do que vem de se expor, e feito o confronto entre os assinalados requisitos e o conteúdo do documento a que se reporta a al. J), logo se conclui não poder o mesmo valer como recibo de quitação. Acresce que em parte alguma a lei atribui ao documento de quitação valor probatório superior àquele que concede ao documento que incorpora a declaração, sendo de lhe fixar, no caso, a força probatória consagrada no art.º 376.º, ou seja, estabelecida a autoria do documento, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor mas os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (cf. o n.º 2 do preceito). Não obstante o assim consignado, a força probatória do documento aqui estabelecida não impede que as declarações dele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de as invalidarem, aqui sem limitações quanto aos meios de prova admissíveis.[7] Aplicando quanto se deixou dito ao caso dos autos, estabelecida, por não impugnada, a autoria do documento, sendo portanto de atribuir à apelada as declarações dele constantes, já não é de todo claro e inequívoco que sejam contrárias ao interesse da declarante, ali se espelhando apenas um movimento inicial, a débito, de €150 000,00, compensado por um outro, a crédito, de igual valor. E isto tanto mais quando se considere que, nos termos do contrato celebrado, os movimentos a crédito e a débito relativos à utilização da quantia disponibilizada eram reflectidos na conta à ordem que lhe servia de suporte, pelo que, muito naturalmente, era no extracto relativo a esta conta que o saldo devedor se encontrava expresso. Acresce que estando a interpretação do contexto do documento subtraída, nos termos do n.º 3 do art.º 393.º, à proibição de prova ali prescrita, não há dúvida quanto ao facto da prova testemunhal a este respeito produzida ter sido esclarecedora, permitindo que o seu sentido fosse fixado em termos que, de modo algum, corroboram a pretensão dos alegantes. Numa outra perspectiva ainda, defendem os apelantes que se trata de um documento liberatório, dele resultando nada ser devido ao banco por força do aludido contrato de abertura de crédito garantido pela livrança dada à execução. Assim vistas as coisas, estaríamos perante confissão (enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, nos termos do art.º 352.º do CC), nos termos da qual o banco exequente teria reconhecido que a obrigação se encontrava extinta. Todavia, ainda por esta via será de recusar razão aos recorrentes, e isto desde logo face à exigência formulada pelo n.º 1 do art.º 357.º no sentido de que a declaração confessória há-de ser inequívoca, atributo que, como vimos, claramente falece ao documento que se aprecia. Depois, porque a força probatória da confissão extrajudicial escrita é fixada por remissão para o valor probatório do documento que a contenha (cf. n.º 2 do art.º 358.º), valem os considerandos antecedentemente expendidos, nomeadamente quanto à possibilidade de ser produzida prova testemunhal em ordem a interpretar o contexto em que o documento foi produzido. E a verdade é que, contrariamente ao que defendem os apelantes, não deixou a Mm.ª juíza “a quo” de consignar na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto “não resultar dos autos qualquer prova de que os opoentes ou a firma subscritora da livrança referida em B-) procederam ao pagamento da quantia por ela titulada”, acrescentando que “não obstante o teor do extracto n.º 236, foi explicado pela testemunha D..., bancário, que o saldo zero tem por base a movimentação da conta, com transferência do valor negativo para a conta à ordem, de forma a poder seguir para o contencioso, sendo certo de que por carta datada de 14 de Dezembro de 2010, o exequente informava os opoentes de que tal movimentação foi meramente contabilística. Acresce que, pelos opoentes, a quem incumbia o ónus da prova do pagamento, não foi junto qualquer documento que comprove a transferência de fundos para tal conta, de forma a liquidá-la. E as testemunhas inquiridas quanto tal matéria, E..., F... e G... não demonstraram ter qualquer conhecimento de qualquer pagamento efectuado, limitando-se tais depoimentos à análise do extracto nº236 e à conclusão a que chegaram, referindo que entendiam que as responsabilidades estariam regularizadas, mas sem extrair dali que tivesse havido pagamento”. Flui da motivação que se deixou transcrita que, tendo interpretado a alegação dos oponentes como invocação da excepção peremptória do pagamento, a Mm.ª juíza “a quo” deu o facto como não provado, explicitando com clareza porque motivo o documento em causa não era idóneo a demonstrá-lo. E fê-lo com apelo a prova testemunhal que, de forma igualmente clara, tendo esclarecido o contexto em que tal documento foi produzido e com que finalidade, permitiu fixar o seu sentido, sendo firmemente de arredar a sua consideração como documento de quitação ou de conteúdo liberatório que importe reconhecimento da inexistência da dívida. Deste modo, atenta a factualidade apurada e que em sede própria se deixou consignada, logo se conclui não terem os oponentes logrado fazer prova da extinção da obrigação garantida, mantendo-se portanto as obrigações decorrentes do aval prestado. Daí que improcedam todas os argumentos trazidos ao recurso. * III Decisão Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo a sentença apelada. Custas a cargo dos apelantes. *
Maria Domingas Simões (Relatora) Nunes Ribeiro Helder Almeida
[1] v. Pinto Furtado, “Títulos de crédito”, Almedina 2000, pág. 64.
[2] Assim o vem entendendo o STJ sem divergência conhecida – cf, por todos, ac. de 19/10/2004, processo n.º 04B3470, acessível em www.dgsi.pt. [3] Acresce que, tratando-se, como ocorria no caso vertente, de livrança subscrita em branco, conforme decorre do facto especificado em H), não tendo a livrança entrado em circulação, antes se tendo conservado em poder do credor originário, e tendo os avalistas participado no pacto de preenchimento, é nosso entendimento que àquele poderiam por estes ser opostas excepções fundadas em eventual divergência entre o convencionado e o que ficou a constar do título, isto ao abrigo do disposto nos art.ºs 10.º e 17.º, aplicáveis às livranças ex vi do art.º 77.º LULL) [4] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem. [5] Menezes Cordeiro, “Manuel de Direito Bancário”, 3.ª Ed., págs. 540 e seguintes. [6] Profs. Pires de Lima/A. Varela, CC anotado, vol. III, comentário ao art.º 787.º. [7] Acórdão da Relação de Guimarães de 22/1/2009, proferido no processo n.º 2793/08-1, acessível em www.dgsi.pt |