Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ NOGUEIRA | ||
Descritores: | CRIMINALIDADE ORGANIZADA E ECONÓMICO-FINANCEIRA PERDA ALARGADA DE BENS ARRESTO FINALIDADE DO ARRESTO PERICULUM IN MORA | ||
Data do Acordão: | 11/10/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 10.º DA LEI N.º 5/2002, DE 11-01, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELA LEI N.º 30/2017, DE 30-05 | ||
Sumário: | I – No domínio da criminalidade organizada e económico-financeira, no caso de perda alargada de bens, o decretamento do arresto (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11-01, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 30/2017, de 30-05), não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente. II – A nova redacção conferida ao n.º 2 do artigo 10.º pela Lei n.º 30/2017 deve ser entendida como uma exigência adicional, especial no confronto com a que decorre da norma geral constante do n.º 3 do mesmo artigo, restrita ao arresto requerido antes da liquidação. III – O arresto previsto naquela norma (artigo 10.º), tendo como única finalidade garantir o pagamento do valor que se presuma constituir vantagem da actividade criminosa, incide, sem qualquer limitação, sobre os bens da titularidade do arguido, os quais não são eles próprios objecto da declaração de perda alargada. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. No âmbito do processo comum (coletivo) n.º 294/18.5GAACB do Tribunal Judicial de Leiria, Leiria – JC Criminal-Juiz 1, por acórdão de 22.01.2021 foi decidido [transcrição parcial do dispositivo]: “Em face do exposto, decide este Tribunal Coletivo julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação pública deduzida e, em consequência: ARGUIDA E. a) de resposta a todas as convocatórias do juiz responsável pela execução do plano e do técnico de reinserção social; b) de recebimento de visitas do técnico de reinserção social e de comunicação ou colocação à sua disposição, com a máxima prontidão possível, de informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; c) de informação ao técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação com duração superior a oito dias, indicando a data previsível do regresso. ARGUIDO O. d) de resposta a todas as convocatórias do juiz responsável pela execução do plano e do técnico de reinserção social; e) de recebimento de visitas do técnico de reinserção social e de comunicação ou colocação à sua disposição, com a máxima prontidão possível, de informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; f) de informação ao técnico de reinserção social sobre as alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação com duração superior a oito dias, indicando a data previsível do regresso. (…) ARGUIDA E. ARGUIDO O. (…) DOS OBJETOS APREENDIDOS: Nos termos do artigo 109.º do Código Penal e do artigo 35.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, declara-se perdido a favor do Estado todos os produtos estupefacientes apreendidos nestes autos, que oportunamente deverão ser destruídos, já que valor algum têm e é esse o destino legal da droga (artigo 62.º, n.º 6, do DL 15/93, de 22.01). * Declara-se ainda a perda a favor do Estado: a) Do dinheiro apreendido; b) Dos demais objetos apreendidos, relacionados com a prática do ilícito descrito por banda dos arguidos. (…).”
2. Inconformados recorreram os arguidos, formulando as seguintes conclusões: 1 – Entende a recorrente que o douto acórdão padece de nulidade por não conter as menções referidas no artigo 374 nº 2 e por omissão de pronúncia, ambos nos termos do artigo 379 nº 1 al. a) e c) do C.P.P. 2 – Sustenta a sua posição nas razões aduzidas nos pontos 7 a 23 do Item A da motivação de recurso, que aqui se dão por reproduzidas. 3 – Em súmula, alegam os recorrentes que a decisão de declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 103.047,37 em relação à arguida E. e a quantia de € 33.672,58, em relação ao arguido O., padece de nulidade, por se entender que a decisão recorrida não explicita o raciocínio lógico que leva a tal ilação, bastando-se com a mera explicação de se ter baseado na conjugação das declarações prestadas pelos arguidos com os documentos e a análise financeira constante do anexo A dos presentes autos, inexistindo dúvida quanto aos rendimentos auferidos pelos arguidos em tais períodos (nos 5 anos anteriores à apreensão), aos bens adquiridos pelos mesmos e aos fluxos financeiros apresentados. 4 – O tribunal, não faz menção a qualquer conteúdo das declarações prestadas pelos arguidos, não discrimina, quais os documentos do anexo A, que sustentam a sua convicção, sendo certo que, no caso concreto, o M.P. nem sequer indicou como prova a audição do inspetor da PJ responsável pela análise da documentação do referido anexo. 5 – Ora, a fundamentação indicada, salvo o devido respeito, não preenche os requisitos invocados pelos preceitos legais supra citados, uma vez que não explicita, o percurso lógico da decisão, nem efetua o exame crítico dos elementos probatórios elencados, bastando-se com a mera indicação destes. 6 – Ademais, no caso concreto os arguidos quando notificados do incidente de perda alargada deduzido pelo M.P, deduziram oposição e juntaram documentos. Oposição que foi aceite e sobre a qual o tribunal se pronunciou, elevando à categoria de factos provados e não provados o seu teor, conforme descriminado nos pontos 10 e 11 da motivação de recurso do Item A, que aqui se dão por reproduzidos. 7 – A recorrente coloca a questão da falta de ponderação pelo tribunal, dos documentos que foram juntos no requerimento de oposição por si deduzido, atinentes à venda de um imóvel em Inglaterra, porquanto parte do produto dessa venda, foi utilizado na aquisição do prédio rústico sito em (…), e que o tribunal veio a arrestar. (documento comprovativo da venda de um imóvel em Inglaterra pelo montante 76,279,27 libras). 8 – O tribunal não valorou os documentos supra indicados, uma vez que, os mesmos foram apresentados em língua estrangeira. 9 – Posição com a qual a recorrente não se conforma, atento as razões indicadas nos pontos 17 a 23 da motivação de recurso Item A, que aqui se dão por reproduzidas. 10 – Alega em síntese que o disposto no artigo 166 do C.P.P., não impede a junção de documentos de língua estrangeira, sendo ordenado sempre que necessário à sua tradução. 11 – No caso concreto, o tribunal aceitou a junção dos documentos e nunca ordenou a sua tradução. Os arguidos são de nacionalidade estrangeira, nessa medida, foi nomeado nos autos, um tradutor e um intérprete. A arguida prestou declarações, sobre a questão controvertida, foi confrontada com documentos, e foi ordenado pelo Tribunal a pesquisa de bens móveis sujeitos a registo por parte da mesma. 12 – Os factos relativos à perda ampliada constituem objeto do processo, e nessa medida devem ser analisados todos os elementos probatórios indicados quer pela acusação, quer pela defesa – cfr. artigo 9 nº 1 e 2 da Lei nº 5/2002, de 22/01. 13 – Os documentos juntos, ainda que em língua inglesa, eram essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o direito de defesa dos arguidos e à garantia da equidade do processo, uma vez que, o tribunal na decisão apenas valorou os documentos constantes do anexo A. A sua tradução revela-se essencial à boa decisão da causa, pois versa sobre um imóvel que foi adquirido em data muito anterior ao período que é indicado no artigo 7 al c) da Lei 5/2002 de 22-01, e põe em risco o próprio local onde habita o arguido O.. 14 – A arguida tomou posição quer em sede de oposição ao incidente de perda alargada, quer em sede de audiência de julgamento, sobre esta matéria. Cfr. Depoimento da arguida E., registado na gravação áudio da audiência de julgamento, entre as 11h 28m 18s e as 12h 28m 37s do dia 11-01-2021, no ficheiro 20210111112818_3994821_2870943.wma, questionada do minuto 21:48 ao minuto 24:22: 15 – O tribunal tinha na sua disponibilidade a prova documental supra indicada, estava presente um tradutor, e era relevante concatenar esse elemento probatório com a demais prova existente nos autos, e em concreto com as declarações da arguida atinentes a esta matéria, cuja valoração estava dependente dessa prova documental. 16 – Impunha-se nessa medida que o tribunal ordenasse a tradução dos documentos com vista a garantir todos os direitos de defesa do arguido (artigo 32 da CRP) e em obediência ao artigo 340 do C.P.P. 17 – Encontrando-se o Douto Acórdão em crise, no que a esta parte respeita ferido de Nulidade, na medida em que o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre questões fundamentais que deveria ter apreciado e concretizado. 18 – Nulidade que aqui expressamente se deixa invocada, nos termos e para os efeitos do Art. 379º nº 1 al. c) e n.º 2 do C.P.P. 19 – Violou-se o disposto nos arts 374 nº 2 e 379 nº 1 al c) do C.P.P. e 32 da CRP. 20 – Pelas razões vertidas nos pontos 1 a 10 do Item B da motivação de recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, a decisão viola n.º 2 do Art. 7º 9 e 12 da Lei 5/2002 de 11/01 e os princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade. 21 – Sustenta a sua pretensão no facto do imóvel ter sido adquirido em período anterior aos 5 anos antes da constituição como arguida (16 anos antes) E, pelo facto de ser este imóvel desde 2003, a morada indicada como casa e morada de família. Inicialmente do agregado familiar e atualmente do filho, o arguido O. e da sua namorada. A manter-se a decisão recorrida, o arguido fica em risco de perder o local onde habita tal como resulta da factualidade dada como provada, conjugada com o teor do relatório social cfr. pontos 44, 52 e 59 dos factos provados e ainda do teor da escritura pública junta aos autos, que comprova que o imóvel foi adquirido por um valor relativamente baixo, € 20.000,00. 22 – Impõe-se assim, face às razões aduzidas, o levantamento do arresto decretado do imóvel supra identificado. 23 – Nos termos do artigo 10 da Lei 5/2002, exige-se que se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição das garantias patrimoniais. 24 – No caso concreto, o tribunal não concretizou nenhum facto que permita concluir pela existência desse fundado receio. Os arguidos foram constituídos arguidos em 22 de maio de 2019. A arguida adquiriu o imóvel supra indicado há mais de 18 anos. O imóvel foi sempre utilizado como local adstrito à casa de morada de família. De acordo com a factualidade dada como provada, os arguidos apresentam atualmente uma situação económica estável. 25 – O tribunal determina o arresto do imóvel, porém não alegou qualquer facto concreto suscetível de permitir extrair a conclusão de que os recorrentes praticaram ou se preparavam para praticar atos com vista ao extravio ou delapidação do seu património de forma a subtrair os seus bens, designadamente o imóvel cujo arresto se decretou. 25 – E, nessa medida padece o acórdão de nulidade, nos termos dos arts 374 nº 2 e 379 nº 1 al a) do C.P.P., violando-se o disposto no artigo 10 da lei supra indicada.
3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.
4. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu: 1. No âmbito dos presentes foi proferido Acórdão onde se decidiu, para além do mais: decidido julgar procedente, por provada, a liquidação efetuada pelo Ministério Público contra a arguida E. e declarar perdida a favor do Estado: A quantia de € 103.047,37 (cento e três mil e quarenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), referente à arguida (artigo 7º, nºs 1 e 2 e artigo 12º, nº 1 da Lei 5/2002, de 11.01). Para garantir o pagamento da quantia referida, decretar o arresto: Dos valores depositados na conta bancária n.º (…), na Caixa de Crédito Agrícola de Leiria; Do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…); do veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula …. (de 1999, registado a ….), marca Mercedes Benz, modelo Sprinter, Gasóleo 2.9; Do motociclo, de matrícula …. (de 2015, registado em ….), de marca Honda, modelo CRF 250, Gasolina 0.25; do motociclo de matrícula …. (de 2017, registado em …), de marca Honda, modelo CBR 500, Gasolina 0,5. Quanto ao arguido O. foi ainda decidido: Julgar procedente, por provada, a liquidação efetuada pelo Ministério Público contra O. e declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 33.672,58 (trinta e três mil seiscentos e setenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), referente ao arguido (artigo 7º, nºs 1 e 2 e artigo 12º, nº 1 da Lei 5/2002, de 11.01). Para garantir o pagamento da quantia referida, foi decretado o arresto: Dos valores depositados na conta bancária n.º (…), do Banco Millennium BCP; Do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …. (de 1993, registado a ….), marca BMW, modelo 325 tds, Gasóleo 2.5; Do motociclo, de matrícula …. (de 1999, registado a ….), de marca Honda, modelo CBR 600, Gasolina 0.6. 2. Recorrem os arguidos, alegando haver nulidade do acórdão (arts 374 nº 2 e 379 al a) e c) do CPP); violação dos requisitos exigidos no artigo 7 nº 2 al c) da Lei 5/2002e não verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial requisito do artigo 10 nº 2 da lei 5/2002, assim concluindo: 3. A decisão mostra-se fundamentada de facto e de Direito, tendo sido retirada a única consequência acertada: de ser julgado procedente o pedido de perda alargada de bens apresentado nos autos pelo Ministério Público e ao abrigo do disposto no artigo 12º da referida lei, e porque peticionado, determinar o arresto dos bens elencados no Acórdão. 4. Os pressupostos de aplicação da perda alargada são: - a condenação por um dos crimes do catálogo (art.º 1º al. a) da Lei 5/2002) - a existência de um património que esteja na titularidade ou mero domínio e beneficio do condenado, património esse em desacordo com aquele que seria possível obter face aos seus rendimentos lícitos; - a demonstração de que o património do condenado é desproporcional em relação aos seus rendimentos lícitos; - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-09-2014, processo 1653/12.2JAPRT.P1. 5. Havendo uma presunção de constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, que não foi afastada pelos arguidos. 6. Estamos perante um regime especial, regulado na Lei nº 5/2002, sendo que o art. 10.º nº 3 apenas refere: “O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227º do Código de processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de crime.” 7. Diversamente ao que sucede com o arresto preventivo, o arresto previsto no artigo 10.º da Lei 5/2002 é decretado independentemente da comprovação de um justificado receio de garantia patrimonial. 8. No mais, o Acórdão mostra-se fundamentado de Facto e de Direito, fazendo uma exposição, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, em obediência ao n.º 2 do artigo 376.º do CPP. 9. Termos em que não merece recurso provimento, não tendo sido violadas quaisquer normas ou preceitos legais, concretamente os invocados pelos arguidos. Vossas Excelências, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre, Justiça.
5. O Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento, defendendo a correção do acórdão recorrido.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, os recorrentes, certamente por lapso, vem “dar por reproduzida a sua resposta à motivação de recurso apresentado pelo MP”.
7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.
II. Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se (i) o acórdão padece de nulidade por violação do dever de fundamentação e, ainda, por omissão de pronúncia; (ii) foi violado o artigo 340.º do CPP, bem como os direitos de defesa do arguido; (iii) ocorreu erro de julgamento; (iv) por ausência de concretização do periculum in mora não se mostram reunidos os pressupostos para ser decretado, como foi, o arresto dos bens; sem embargo não deveria o mesmo ter incidido sobre o prédio rústico identificado no dispositivo.
2. A decisão recorrida Ficou a constar do acórdão em crise [transcrição parcial]: FACTOS PROVADOS: Discutida a causa, com relevo para a boa decisão da mesma [e expurgada a matéria probatória da mesma constante], resultaram provados os seguintes factos constantes DA ACUSAÇÃO: 1. Desde data não apurada mas anterior a 22 de Maio de 2019, os arguidos E. e O., conjuntamente com o arguido M. (declarado contumaz), de comum acordo e na execução de um plano para obterem ganhos monetários, têm vindo a dedicar-se à plantação e exploração, com fim comercial, de plantas de cannabis. 2. Para esse efeito, os arguidos semearam plantas de cannabis, adubaram-nas, regaram-nas, até as mesmas atingirem a idade adulta, prontas para serem cortadas e transformadas em cannabis, sob as formas de pólen, resina de haxixe e folhas. 3. Os arguidos, de comum acordo e unidos por laços familiares – M. é casado com a arguida E. e pai do arguido O. – e residindo no mesmo local, decidiram proceder à exploração das referidas plantas, com o intuito de obterem para si ganhos monetários. 4. Assim, no dia 22 de Maio de 2019, na Estrada Nacional (…), nº (…), (…), os arguidos tinham, no local onde residem, as seguintes quantidades de cannabis, nos mais variados estados de desenvolvimento e já transformadas: a. No interior da habitação/roulotte, de matrícula (…), utilizada pelo arguido O.: i. 37,400 gramas de cannabis (cabeças/folhas e sumidades), suficiente para 63 doses; ii. Um grainer/moinho, com vestígios de cannabis; iii. Uma folha de papel manuscrita com o projeto/planta do espaço, com a localização das estufas de cannabis; iv. € 180,00 (cento e oitenta euros), em notas de € 20,00 (vinte euros) do BCE; v. Uma nota de 500 (quinhentos) floris e duas notas de 10 (dez) Kuna; vi. € 29,35 (vinte e nove euros e trinta e cinco cêntimos) em moedas; b. No interior da habitação/roulotte, de matrícula (…), utilizada como residência da arguida E. e de M.: i. Uma placa de cannabis (resina), com 25,916 gramas, suficiente para 126 doses; ii. 9, 546 gramas de cannabis (folhas/sumidades), suficiente para 17 doses; iii. Duas balanças digitais pretas, de marca Factory Weigh Scale; iv. € 53,60 (cinquenta e três euros e sessenta cêntimos), em notas e moedas; v. 388,200 gramas de pólen de cannabis (folhas/sumidades), suficientes para 1878 doses; vi. 348, 300 gramas de cannabis (resina), suficiente para 1455 doses; vii. 63,560 gramas de pólen de cannabis (folhas/sumidades), suficiente para 270 doses; viii. 49,61 gramas de cannabis (resina), suficiente para 219 doses; ix. Uma prensa hidráulica adaptada para prensar placas de haxixe/cannabis, contendo na parte de prensar, uma placa de pólen de cannabis (resina) com 49,136 gramas, suficiente para 242 doses; c. No interior de um contentor azul localizado na propriedade dos arguidos: i. Um expositor de madeira, equipado com três prateleiras, e lâmpadas de aquecimento, contendo 100 plantas de cannabis (folhas/sumidades), em vasos/cuvetes, com a altura variável entre 6 cm e 25 cm, com o peso total líquido de 128,800 gramas, suficiente para 30 doses; ii. Duas plataformas em plástico, de cor preta, para cultivo/rega de plantas, com sistema de gota a gota, com 34 plantas, com altura variável entre 25 cm e 35 cm, com o peso total líquido de 27,000 gramas, suficiente para 4 doses; iii. Estufa pequena, com 45 plantas de cannabis no seu interior, com altura entre 5 cm e 10 cm, com o peso total líquido de 13,700 gramas, suficiente para 5 doses; iv. Uma plataforma em plástico, de cor preta, para cultivo/rega de plantas, com sistema de gota a gota, com 2 plantas, com altura variável entre 0,80 m e 1,30m, com o peso total líquido de 283,900 gramas, suficiente para73 doses; v. Duas plataformas de plástico, de cor preta, para cultivo/rega de plantas, com sistema de gotas a gota, com 8 plantas, com altura variável entre 0,90 m e 0,95 m de altura, com o peso total de 959,200, suficiente para 2513 doses; vi. 17 recipientes de produtos fertilizantes para plantas; vii. 10 sacos de terra fertilizada; viii. Uma folha de papel manuscrita, afixada na porta do anexo nº 1 do contentor, com a inscrição ‘Oscar Outdoors’ e escritas várias frases em inglês referentes a datas de produção das plantas de cannabis; ix. Uma bomba de calor, em funcionamento, localizada no anexo nº 1 no interior do contentor; x. Quatro projetores com lâmpadas de aquecimento, localizado no anexo nº 1 no interior do contentor; xi. Ventoinha de cor branca, localizada sob o expositor, no anexo nº 1 do interior do contentor; xii. Vários metros de cabo elétrico e tomadas com temporizador digitais, constituintes do equipamento elétrico montado no referido anexo nº 1 do contentor; xiii. Uma ventoinha de cor preta, uma ventoinha branca pequena, dois projetores de aquecimento, um sistema de ventilação de ar e uma tomada com temporizador; d. No interior da habitação/roulotte de matrícula (…), localizada no interior da propriedade dos arguidos: i. Expositor de rede verde, com cabeças/flores floridas de cannabis (folhas/sumidades), com o peso líquido de 61,400 gramas, suficiente para 178 doses; ii. Oito sacos plásticos (pretos e roxos), contendo cannabis (folhas/sumidades), com o peso de 11.200,00 gramas, suficiente para 14.112 doses; iii. Conjunto de cinco sacos de plástico, com cabeças/flores de cannabis (folhas/sumidades), com o peso total líquido de 661,300 gramas, suficiente para 2.235 doses; iv. Um moinho/triturador industrial, metálico, com vestígios de cannabis, encontrado no chão da roulotte; v. Um expositor de rede verde, com cabeças/flores de cannabis (folhas/sumidades), com o peso líquido de 580,800, suficiente para 917 doses; vi. Uma caixa em plástico transparente, contendo no interior cabeças/flores floridas de cannabis (folhas/sumidades), com o peso líquido de 561,500, suficiente para 1.246 doses; vii. Um balde plástico, contendo no interior cabeças/flores floridas de cannabis (folhas/sumidades), com o peso líquido de 715,600, suficiente para 1.903 doses; viii. Um desumidificador branco, em funcionamento, em cima do móvel no interior da roulotte; ix. Duas balanças digitais, em funcionamento, por cima da bancada do contentor; x. Um aquecedor branco, no chão no interior da roulotte; e. No terraço do terreno pertencente e utilizado pelos arguidos: i. Oito plantas de cannabis (folhas/sumidades), em vaso, com a altura variada entre 1,20 m e 1,40 m, com o peso total líquido de 3.004,900 gramas, suficiente para 6.009 doses; f. Na estufa/estrutura para produção de cannabis, localizada no interior do terreno: i. Doze plantas de cannabis (folhas/sumidades), em vaso, com um metro de altura, com o peso líquido de 893,400, suficiente para 1.429 doses; ii. Dois projetores com lâmpadas de aquecimento, em funcionamento; iii. Um aparelho de ar condicionado branco, em funcionamento e montado na parede da estufa; iv. Uma ventoinha branca, no chão da estufa; v. Quadro elétrico com temporizador, afixado na parede da estufa. 5. Para além do descrito, os arguidos, em data não apurada, fizeram construir, no interior do terreno que lhes pertence e escavado na terra, em buraco de cimento e com todo o seu interior forrado e isolado, vulgarmente designado de bunker. 6. Para aceder ao referido local, os arguidos fizeram construir um alçapão, através do qual, descendo uns degraus, se acede a uma porta, disfarçada de parede. 7. No interior do referido bunker, os arguidos tinham guardadas, em fase de produção: i. Seis vasos com seis plantas de cannabis (folhas/sumidades), com altura de 0,80m, com o peso líquido de 403,700, suficiente para 791 doses; ii. 16 plantas de cannabis (folhas/sumidades), com 0,95 m de altura, com o peso líquido de 236,800 gramas, suficiente para 75 doses; iii. 16 plantas de cannabis (folhas/sumidades), com 0,95 m de altura, com o peso líquido de 870,000 gramas, suficiente para 713 doses; iv. 16 plantas de cannabis (folhas/sumidades), com 0,95 m de altura, com o peso líquido de 794,400 gramas, suficiente para 842 doses; v. 16 plantas de cannabis (folhas/sumidades), com 0,95 m de altura, com o peso líquido de 329,300 gramas, suficiente para 177 doses; vi. 24 plantas de cannabis (folhas/sumidades), com 0,95 m de altura, com o peso líquido de 3.084,000 gramas, suficiente para 7.895 doses. 8. No interior do referido bunker, construído com o propósito de ocultar as plantas de cannabis, o arguido M. fez construir um sistema elétrico e de rega, para que as plantas se desenvolvessem, para depois serem transformadas, nas mais variadas formas – desde folhas e sumidades de cannabis, pólen de cannabis e em resina, vulgarmente designada de haxixe. 9. Para esse efeito, estavam no interior do bunker: a. Dois moinhos/trituradores industriais, com vestígios de utilização; b. Um prato com 14 tesouras, com vestígios de cannabis; c. Um aparelho de ar condicionado branco, em funcionamento e montado no interior de uma parede falsa, no interior da estufa; d. Uma ventoinha preta; e. Um projetor de luz e aquecimento; f. Uma ventoinha branca; g. Três depósitos de água (plásticos), oito frascos de fertilizante, uma lâmpada de aquecimento, um caderno (com inscrições de idades e datas referentes às plantas de cannabis), equipamento de extração de ar; h. Oito projetores de luz e aquecimento, e três ventoinhas; i. Um aparelho de ar condicionado, em funcionamento, no interior da estufa; j. Um depósito de água (plástico), com parte do sistema de abastecimento de água montado de forma a abastecer as plantas de cannabis localizadas no 2º anexo do bunker; k. Quatro projetores de luz e aquecimento, no 2º anexo do bunker; l. Sistema elétrico composto por três diferenciais/transformadores, um temporizador, e uma tomada elétrica, na parede do 2º anexo do bunker. 10. Todos os elementos elétricos se encontravam a funcionar e com temporizadores, de modo a que os arguidos não necessitassem de estar permanentemente no local para prover às necessidades de crescimento das plantas de cannabis. 11. De fato, todo o sistema montado destinava-se a maximizar a produção de cannabis, com o mínimo de intervenção humana. 12. Pela natureza da instalação elétrica utilizada, os aparelhos elétricos pela mesma servidos, o fato de estarem a ser utilizados durante 24 horas, de forma contínua, pelo número de plantas apreendidas, em diferentes fases de crescimento, o consumo de energia elétrica total mensal era de pelo menos € 1.000,00 (mil euros). 13. Na data e locais supra mencionados, os arguidos detinham cannabis (resina) em quantidade suficiente para 2.042 doses e cannabis (folhas/sumidades) em quantidade suficiente para 43.375 doses, com o peso global total de 25.781,368 gramas. 14. Os arguidos destinavam o estupefaciente apreendido, nas suas várias formas, à venda e distribuição por terceiros, com o fito de obter ganhos económicos. 15. Os arguidos conheciam as caraterísticas estupefacientes das substâncias que tinham consigo e sabiam que não tinham autorização legal para comprar, vender, deter, ceder, transportar, ou, por qualquer forma, manusear produtos estupefacientes, mas não se abstiveram de agir do modo descrito, o que quiserem e fizeram de comum acordo, e com o intuito de obter lucros monetários. 16. Os arguidos E. e O. agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. DA PERDA ALARGADA DE BENS: Da Arguida E.: 17. E. foi constituída arguida em 22 de Maio de 2019. 18. No período compreendido entre 22 de Maio de 2014 e 22 de Maio de 2019, a arguida não exercia qualquer atividade profissional remunerada que lhe permitisse assegurar o nível de vida que tinha, vivendo dos proventos que auferia com a venda de cannabis. 19. Durante o mencionado período, a arguida não apresentou quaisquer rendimentos junto da administração tributária. 20. No referido período, a arguida adquiriu os seguintes bens móveis sujeitos a registo: a. Veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula …. (de 1999, registado a ….), marca Mercedes Benz, modelo Sprinter, Gasóleo 2.9, no valor de € 4.000,00; b. Motociclo, de matrícula ….. (de 2017, registado a …..), de marca Honda, modelo CBR 500, Gasolina 0.5, no valor de € 5.000,00; c. Veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …. (de 2002, registado a …., com fim de propriedade em 23.08.2019), de marca Mini, modelo R 50, Gasolina 1.6, no valor de € 1.582,91; d. Motociclo, de matrícula …. (de 2015, registado em ….), de marca Honda, modelo CRF 250, Gasolina 0.25, no valor de € 8.200,00; e. Veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …. (do ano de 1965, registado a 18.01.2017), de marca Anglia, modelo De Luxe, Gasolina 1.0, de valor não apurado; f. Veículo ligeiro de passageiros, de matrícula … (do ano de 1995, registado a …., com fim de propriedade a ….), de marca Rover, modelo 418 SLD, Gasóleo 1.8, no valor de € 1.282,14; g. Veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula …. (do ano de 1996, registado em …., com fim de propriedade em ….), de marca Mercedes Benz, modelo Sprinter, Gasóleo 2.3, no valor de € 1.042,22, no valor total de € 21.107,27 (vinte e um mil cento e sete euros e vinte e sete cêntimos). 21. Apesar de não declarar qualquer valor, a título de rendimentos, à administração tributária a arguida possuía poderes de movimentação da conta bancária com o nº (….), domiciliada na CCAM de Alcobaça, possuindo os seguintes valores de entradas (créditos): a. No ano de 2014: € 10.931,91, a que acresce uma transferência de fundos por empresa especializada, no valor de € 384,00; b. No ano de 2015: € 15.630,25; c. No ano de 2016: € 9.922,76; d. No ano de 2017: € 10.949,21; e. No ano de 2018: € 17.055,87; f. No ano de 2019: € 17.066,07. 22. Assim, no período compreendido entre 22.05.2014 e 22.05.2019, a referida conta bancária possuiu o valor total de créditos de € 81.556,074. 23. A que acresce, no ano de 2014, uma transferência de fundos por empresa especializada, no valor de € 384,00. 24. É assim de € 103.047,34 o valor do património calculado da arguida no mencionado período. 25. Só através do recurso à venda de cannabis a arguida conseguiu deter a mencionada quantia de € 103.047,34. 26. A arguida não justificou nos autos a proveniência da referida quantia de € 103.047,34 (cento e três mil e quarenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos). Do Arguido O.: 27. O. foi constituído arguido em 22 de Maio de 2019. 28. Não comunicou rendimentos à autoridade tributária nos anos de 2015, 2017 e 2018. 29. Em oito meses de 2014, em 2016 e em três meses de 2019, o arguido exerceu atividade profissional remunerada mas que não lhe permitia assegurar o nível de vida que ostentava, vivendo dos proventos que auferia com a venda de estupefacientes, conforme quadro que segue: a. 2014: rendimento líquido declarado no valor de € 50,00; b. 2015: sem rendimentos declarados; c. 2016: rendimento líquido declarado no valor de € 75,00; d. 2017: sem rendimentos declarados; e. 2018: sem rendimentos declarados; f. 2019: rendimento líquido declarado de € 1.140,96; Num total de € 1.265,96. 30. No período em referência, o arguido adquiriu os seguintes bens móveis sujeitos a registo: a. Veículo ligeiro de passageiros, de matrícula … (de 1993, registado a …), marca BMW, modelo 325 tds, Gasóleo 2.5, no valor de € 3.000,00; b. Motociclo, de matrícula …. (de 1999, registado a …), de marca Honda, modelo CBR 600, Gasolina 0.6, no valor de € 2.100,00; c. Veículo ligeiro de passageiros, de matrícula … (do ano de 1996, registado a …), de marca Opel, modelo Vectra, Gasolina 1.6, no valor de € 437,76; No valor total de €5.537,76 (cinco mil quinhentos e trinta e sete euros e setenta e seis cêntimos). 31. O arguido era titular ou possuía poderes de movimentação da conta bancária com o nº (…), domiciliada no Millennium BCP, possuindo os seguintes valores de entrada (créditos): a. No ano de 2014: € 4.320,00; b. No ano de 2015: € 745,00; c. No ano de 2016: € 6.934,79; d. No ano de 2017: € 11.890,50; e. No ano de 2018: € 2.434,00; f. No ano de 2019: € 1.885,53, no total de € 28.259,82 (vinte e oito mil duzentos e cinquenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos). 32. É assim de € 32.672,58 [€ 33.797,58 referente ao património calculado – € 125,00, referente a rendimento lícito declarado pelo arguido à AT] o valor do património calculado do arguido no mencionado período. 33. Só através do recurso à venda de cannabis o arguido conseguiu deter a mencionada quantia. 34. O arguido não justificou nos autos a proveniência da referida quantia de € 32.672,58 (trinta e dois mil seiscentos e setenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos). Da Contestação Dos Arguidos Ao Pedido De Perda Alargada De Bens: 35. A arguida deslocou-se para Portugal no Verão de 2002, com o marido e os dois filhos menores, em férias, tendo a família decidido aqui passar a residir. 36. No dia 19 de Fevereiro de 2003, a arguida adquiriu, pela quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), o prédio rústico em causa nos autos. 37. Em 2017, o marido da arguida abriu atividade em Portugal, na categoria de ‘atividades de apoio às artes do espetáculo’. 38. Após o falecimento da progenitora, ocorrido em Fevereiro de 2019, em Junho de 2019, a arguida auferiu trinta mil libras. Mais se apurou: Da Situação Pessoal da Arguida E: (…).
Da Situação Pessoal do Arguido O.: (…). * FACTOS NÃO PROVADOS: Com relevo para a boa decisão da causa [e igualmente expurgada a matéria probatória constante da acusação], não se logrou provar: DA ACUSAÇÃO: DA PERDA ALARGADA DE BENS: Da Oposição: * MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO: (…).
3. Apreciação §1. Da nulidade do acórdão (…).
§2. Da violação do artigo 340.º do CPP e, bem assim, dos direitos de defesa dos arguidos. (…)
§3. Do erro de julgamento (…). §4. Da necessidade da verificação do periculum in mora como condição do arresto; da indevida incidência do arresto sobre o imóvel identificado nos autos. Insurgem-se os recorrentes contra a decisão enquanto decretou o arresto dos bens identificados no dispositivo, defendendo a necessidade de demonstração do fundado receio da diminuição das garantias patrimoniais, circunstância que o tribunal a quo não teria concretizado. Não é a primeira vez que somos chamados a decidir a questão de saber se constitui ou não requisito da decretação do arresto para perda alargada (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01) a verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente. Assim foi no acórdão, proferido em recurso, no âmbito do proc. n.º 10/13.8PELRA-B.C1, no qual, a propósito, deixámos consignado: Na redação do citado artigo 10.º anterior à introduzida pela Lei n.º 30/2017, afigura-se-nos inequívoco não depender o arresto da demonstração, ainda que em termos sumários, tão pouco da alegação de semelhante requisito. Com efeito, à luz do seu n.º 3, existindo fortes indícios da prática do crime (integrante do catálogo – cf. artigo 1.º), independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, precisamente o “fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias …” o arresto podia ser decretado. Nesse sentido pronunciou-se José Conde Correia, transcrevendo a seguinte passagem do acórdão do TRP de 11.06.2014 (proc. n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1): «para garantir a efetiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido (sem que caiba qualquer discussão sobre a sua origem lícita ou ilícita), podendo o aresto ser decretado “independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal”, o que é dizer que o decretamento do aresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição das garantias de pagamento do montante incongruente». Entendimento este que já havia sustentado na sua obra “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, INCM, 2012, pág. 186 e ss., onde se lê: «O arresto para efeitos de perda alargada constitui como uma garantia processual cautelar da efetivação do confisco, que é decretada pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º, do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 (artigo 10.º, n.º 2, da Lei)”. A mesma orientação é perfilhada por Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição, pág. 627, e, bem assim, por Jorge Godinho, in “Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, pág. 1346. Idêntica posição foi adotada no acórdão do TRL de 21.03.2017 (proc. n.º 143/11.5JFLSB-A.L2-5), enquanto identifica como pressupostos do decretamento do arresto para garantia da perda alargada (…) (i) a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 e (ii) fortes indícios da desconformidade do património do arguido, ou seja, o património do arguido tem de ser incongruente com o rendimento licito, concluindo que «Não há que alegar factos suscetíveis de integrarem o justo receio de perda ou descaminho dos bens a arrestar, sendo este um requisito exigido pela lei processual civil para a providência cautelar do arresto, mas já não pela lei n.º 5/2002 … para decretar o aresto para efeitos de perda alargada» - [cf. no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do TRP de 15.04.2015, TRE de 06.12.2016]. Será que a redação introduzida pela Lei 30/2017 ao artigo 10.º, atrás transcrito, alterou neste domínio alguma coisa? Não o cremos. Com efeito, apesar de o n.º 2, enquanto dispõe “A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bem do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa”, ser suscetível de induzir a necessidade do periculum in mora, sempre uma análise completa do preceito, concretamente do seu n.º 3, na parte em que dispensa a verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do CPP – onde se inscreve o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento - nos leva a concluir em sentido diferente. Aderimos, no que a tal concerne, ao pensamento expresso por Cruz Bucho, no trabalho publicado no “Novo Regime de Recuperação de Ativos”, da Imprensa Nacional, quando, para o efeito, estabelece a distinção entre a situação em que o arresto é requerido antes da apresentação da liquidação, daquela outra em que o é após esse momento. Como evidencia o Autor a questão de saber se o arresto para perda ampliada podia ter lugar antes da liquidação foi objeto de controvérsia, não reunindo unanimidade quer na doutrina, quer no seio da jurisprudência. Contudo, a problemática mostra-se hoje ultrapassada pois foi o próprio legislador que expressamente o veio esclarecer, admitindo que o arresto seja decretado ainda antes da própria liquidação. A propósito escreve Cruz Bucho: «O acrescento a que o texto da Proposta de Lei foi sujeito [“quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime”], suscita-nos, porém, algumas reservas. Prima facie o legislador, para de algum modo atenuar os perigos que podem resultar de um arresto decretado numa fase preliminar do inquérito, parece formular duas exigências adicionais. Simplesmente, a exigência de “fortes indícios da prática do crime” é perfeitamente desnecessária na medida em que constitui um requisito do arresto. Tanto assim que o n.º 3 do citado artigo 10.º, o qual não foi objeto de alteração, continua a dispor que o arresto “é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime”. (…) Importa reconhecer que a nova redação conferida ao n.º 2 do artigo 10.º não foi particularmente feliz, já que uma primeira leitura do preceito poderá inculcar a ideia de que o arresto está sempre dependente da verificação do periculum in mora (…), em aparente contradição com o estatuído no n.º 3 do mesmo preceito legal. (…) Afigura-se-nos, porém, que a referida contradição é meramente aparente. Conforme parece resultar do elemento literal, lógico (racional, sistemático e histórico) e teleológico, a exigência da demonstração do periculum in mora apenas ocorre quando o arresto é requerido em momento anterior à liquidação. Os requisitos gerais do arresto constam do n.º 3 do artigo 10.º que se mantem inalterado: o arresto é decretado pelo juiz se existirem fortes indícios da prática do crime “independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal”, o que quer dizer que o decretamento do arresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente. (…) A alteração legislativa entretanto ocorrida ao nível do n.º 2 daquele preceito legal consagrou expressamente a possibilidade de o Ministério Público requerer o arresto antes da liquidação. Esta última possibilidade legal está, porém, condicionada à existência de periculum in mora. A nova imposição, constante do n.º 2, deve ser entendida como uma exigência adicional, especial no confronto com a que decorre da norma geral constante do n.º 3, por conseguinte restrita ao arresto requerido antes da liquidação». Não se descortina qualquer razão para alterar semelhante entendimento, que no essencial se vem revelando pacífico no seio da jurisprudência dos tribunais superiores. Na verdade, os motivos supra transcritos, não tendo o arresto sido requerido antes da apresentação da liquidação para perda alargada, mantém validade. * Ainda nesta sede manifesta-se a recorrente contra o arresto do imóvel (prédio rústico), invocando haver sido o mesmo adquirido há mais de 18 anos, sendo certo que a constituição de arguido ocorreu em 22.05.2019, com o que parece pretender fazer funcionar, neste domínio, a alínea b), do n.º 3, do artigo 9.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01, ou seja ilidir a presunção estabelecida no n.º 1, do artigo 7.º do mesmo diploma. Mas, salvo o devido respeito, é nítida a confusão em que incorre. Como, desde logo, é realçado no acórdão embora o prédio rústico em questão haja sido adquirido em 2003 “encontra-se registado em nome da arguida, pelo que se integra na previsão do artigo 10.º, n.º 1 da referida Lei, a arrestar”. E, efetivamente assim é! Pois, ao determinar que “Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido”, o legislador não estabelece qualquer outra condicionante, o que significa que um bem que está na titularidade do arguido há mais de cinco anos, contadas da respetiva constituição nessa qualidade, pode ser objeto de arresto. Se tivermos presente que apesar da Lei se referir à “perda de bens” (artigo 7.º da Lei n.º 5/2002) do que realmente se trata é da perda do valor correspondente à diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que se apresente congruente com o seu rendimento lícito, assim se alcançando o valor do património incongruente, sobre o qual incide a presunção prevista no artigo 7.º, então faz todo o sentido que o arresto de que se ocupa o artigo 10.º, cuja finalidade exclusiva é a de garantir o pagamento do valor que se presuma constituir vantagem da atividade criminosa, incida, sem outra limitação, sobre os bens da titularidade do arguido, os quais não são eles próprios objeto da declaração de perda alargada, funcionando, repete-se, como garantia do pagamento do valor da incongruência patrimonial objeto da declaração de perda. Isto mesmo se retira das palavras de Conde Correia, quando escreve: “O arresto para perda alargada insere-se noutro universo axiológico. Já não está em causa (…) garantir o confisco do valor da vantagem decorrente da prática de um crime, mas apenas assegurar a perda do valor do património incongruente do arguido, rectius daquele património que não é compatível com os seus rendimentos lícitos.” - [cf., RPCC/25]. Neste sentido, vide o acórdão do TRG, de 17.12.2019 (disponível em www.dgsi.pt.), enquanto refere: “É para garantia do pagamento do valor da incongruência patrimonial (determinando nos termos do n.º 1 do artigo 7.º) que é decretado o arresto de bens do arguido, podendo, dessa forma, ser arrestados quaisquer bens que estejam na titularidade do arguido, ainda que tenham origem comprovadamente lícita e ainda que não possam integrar o conceito de património relevante para efeitos de cálculo do património incongruente”. Também assim, o acórdão do TRP, de 11.04.2019 (disponível em www.dgsi.pt), onde se consigna: “Na referida Lei n.º 5/2002, o legislador assumiu a preocupação de garantir a efetividade das decisões de perda, e nesse sentido, introduz um regime especial de arresto, prevendo ainda a possibilidade de, no âmbito do regime prescrito nessa mesma Lei, se aplicar a medida cautelar referida no artigo 10.º, com a única e exclusiva finalidade de garantir a futura decisão de perda, independentemente de os bens arrestados possuírem algum relevo probatório” – [cf. no mesmo sentido, o acórdão do TRG, de 19.06.2017, disponível in www.dgsi.pt]. Revela-se, assim, no contexto, destituído de fundamento o apelo aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade, bem como à violação dos artigos 7.º, 9.º e 12.º, todos da Lei n.º 5/2002, de 11.01, posto que não só imóvel em questão não integra o elenco dos bens e valores reportados nos itens 17 a 23 dos factos provados, como o seu arresto (e o dos demais bens e valores) se destina a garantir a perda do valor do património incongruente, não havendo, como já referido, obstáculo legal a que assim seja, não sendo igualmente, nesta sede, de convocar os preceitos em referência (artigos 7.º e 9.º da Lei 5/2002), revelando-se, em face do acervo factual apurado, prematuro a formulação do juízo a que alude o n.º 2, do artigo 12.º do mesmo diploma.
Em suma, improcede, também nesta parte, o recurso, sendo de manter o arresto decretado.
III. Dispositivo Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso. Custas, com taxa de justiça, individual, que se fixa em 4 (quatro) UCs, a cargo dos recorrentes – (artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III).
Coimbra, 10 de Novembro de 2021 Texto processado e revisto pela relatora.
Maria José Nogueira (relatora)
Frederico Cebola (adjunto) |