Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | ACEITAÇÃO DA HERANÇA CADUCIDADE INVENTÁRIO ILEGITIMIDADE ABUSO DO DIREITO RECONHECIMENTO DO DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 542 E SEG.S, DO CPC ARTIGO 36.º, 4, DA CRP ARTIGOS 328.º; 331.º; 2031.º; 2032.º, 1 E 2; 2046.º, 1; 2050.º, 1 E 2; 2051.º; 2052.º, 1; 2053.º; 2056.º; 2059.º, 1 E 2; 2061.º, 2085.º, 1; 2133, 1, A) E 2157.º, DO CÓDIGO CIVIL | ||
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Sumário: | 1. A aceitação da herança é um ato jurídico unilateral, indivisível e irrevogável, que corresponde ao exercício do direito de suceder conferido a um sucessível através da manifestação de vontade de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até ser levada a efeito de modo tácito (art.ºs 2056º, n.º 1 e 217º, do CC).
2. O prazo fixo de caducidade por 10 anos (de inação) previsto no art.º 2059º, n.º 1, do CC, inicia-se a partir do momento variável do conhecimento que o sucessível tenha de haver sido chamado à herança, e não no momento fixo da abertura da herança (art.º 2031º do CC). 3. O direito de aceitar a herança não está sujeito a qualquer regime especial que o sujeite à suspensão ou interrupção, sendo aplicável o regime regra estabelecido nos art.º 328º e seguintes do CC. 4. Em princípio, para afirmar a caducidade, basta o mero decurso do prazo de 10 anos sobre a data do conhecimento do direito de aceitar a herança, exceto se tiver havido reconhecimento do direito (n.º 2 do art.º 331º do CC). | ||
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Decisão Texto Integral: | Relator: Fonte Ramos Adjuntos: Luís Cravo Fernando Monteiro * * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 15.12.2021, AA, invocando a qualidade de herdeiro, instaurou o presente processo de inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária por óbito de BB, falecido a 24.6.2003, tendo indicado como interessados, respetivamente, filhos e viúva do autor da sucessão, CC, DD e EE. Os requeridos opuseram-se ao inventário, invocando a caducidade do direito a aceitar a herança por parte de AA, atendendo a que o requerimento inicial deu entrada decorridos mais de 18 anos após a morte do de cujus, sendo que o requerente, por ter marcado presença nas exéquias fúnebres, tomou nesse momento conhecimento do direito que, enquanto herdeiro, lhe assistia, de aceitar a herança. Em resposta, o requerente disse que pese embora tenha estado no funeral do inventariado e soubesse ter direito a aceitar a herança desde a cerimónia fúnebre, o prazo de caducidade conta-se desde o ato de aceitação da herança e não desde a data da abertura da herança, sendo certo que deveria ter sido chamado e habilitado conjuntamente com os demais herdeiros, na escritura pública outorgada em 11.7.2003, concluindo, por isso, pela improcedência da exceção invocada. Tendo como referência a posição assumida pelo requerente e os documentos juntos aos autos, a Mm.ª Juíza do tribunal a quo[1], por sentença de 15.6.2024, julgou verificada a caducidade do direito de aceitar a herança e procedente a exceção de ilegitimidade processual ativa do requerente, com a consequente absolvição dos requeridos da instância - art.ºs 576º, n.º 1, e 577º, alínea e), e 1085º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Civil (CPC). Dizendo-se inconformado, o requerente apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - Requereu o processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito do seu pai, BB, falecido em 24.6.2003, indicando como interessados, o cônjuge sobrevivo[2], EE e os filhos de ambos, CC e DD (...). 2ª - Os Recorridos sempre tiveram conhecimento que o Recorrente era filho de BB, mas fora da constância do seu matrimónio, com a referida EE, facto não contraditado e considerado assente nos autos. 3ª - Facto que o Tribunal “a quo” ignorou por completo, mas legal e suficientemente comprovado em face da escritura pública de habilitação de herdeiros outorgada em 11.7.2003, no Cartório Notarial, onde a Recorrida EE declarou perante a Notária que no dia 24.6.2003, faleceu sem testamento, nem disposição de última vontade, BB, no estado de caso em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral de bens, tendo deixado como únicos herdeiros, sua esposa – a declarante –, e dois filhos, CC e DD, que não conhecia quaisquer outras pessoas que segundo a lei prefiram aos nomeados herdeiros ou que com eles possam concorrer na sucessão à herança. 4ª - Nesta escritura de habilitação notarial, a Recorrida foi advertida de que incorria nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se dolosamente, e em prejuízo de outros, prestasse ou confirmasse declarações falsas. 5ª - Da confrontação deste documento com a certidão do assento de nascimento do Recorrente, resultou provado que a Recorrida EE prestou falsas declarações perante notário, porquanto, à data conhecedora de que o Recorrente também era herdeiro legitimário do falecido BB e que deveria concorrer, “em pé de igualdade” com os demais herdeiros habilitados, e não excluído. 6ª - A autenticidade e genuidade da escritura em apreço, não foi posta em causa pelos Recorridos, nem impugnada a eficácia das declarações de vontade nela prestadas pela cabeça de casal e declarante, EE, nos termos gerais de direito. 7ª - De referir que, nos termos dos art.ºs 35º, n.º 2 do Código de Notariado e 363º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil (CC), a escritura de habilitação de herdeiros assume a natureza de um documento autêntico que faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (art.º 371º, n.º 1, do CC). 8ª - Pelo que, ao não tomar em consideração na matéria assente, os factos vertidos na escritura de habilitação de herdeiros de 11.7.2003, cometeu igualmente o Tribunal “a quo” erro de julgamento, prolatando uma sentença que está em notória contradição com os factos contantes de um documento que se encontra nos autos e goza de plena prova. 9ª - Acresce que, a reconhecida identidade dos fundamentos das três oposições foi sufragada no despacho datado de 03.5.2024 que admitiu, por razões de agilidade e economia processual, fosse apresentada, pelo Requerente, um único articulado de resposta às peças autónomas das oposições. 10ª - Leva-nos a concluir que os demais interessados, CC e DD, nesta ação, adotaram uma defesa concertada com a Recorrida, conformando-se com os efeitos da conduta ilícita por esta praticada, em desfavor e prejuízo do Requerente, visando o seu afastamento da herança, não habilitando este herdeiro na escritura celebrada no Cartório Notarial, ainda não decorridos trinta dias da data do decesso do autor da herança, não obstante, todos eles saberem da existência e vocação sucessória do Requerente. 11ª - Não se aceita que, possam esses mesmos interessados, vir agora ao processo, suscitar que se encontra decorrido o prazo de 10 anos do direito do Requerente aceitar a herança, a contar do momento da morte do inventariado, como estabelecido no art.º 2059º, n.º 1 do CC, para almejarem a caducidade da ação, 12ª - Quando, e logo no início do decurso desse mesmo prazo preclusivo de 10 anos, foi praticado ato denegatório e incompatível com o referido direito de aceitação da Herança (escritura de habilitação de herdeiros de 11.7.2003). 13ª - Comportamento que nos remete para o instituto legal do ABUSO DE DIREITO do direito, do art.º 334º do CC, na modalidade do princípio da proibição do tu quoque: o teor e alcance das falsas declarações prestadas pela Recorrida na escritura pública de habilitação de herdeiros datada de 11.7.2003 (fato ilícito – crime de falsas declarações praticado no decurso do prazo do direito do Requerente aceitar a herança) não poderá viabilizar o benefício de invocação da extinção do direito do Requerente aceitar a herança aberta por morte do inventariado, porque decorrido o prazo de 10 anos sobre a data do seu falecimento [como alegado pelos Recorridos] e/ou das exéquias do de cujus [como sentenciado pelo Tribunal a quo] – (fato sancionatório – a caducidade da ação e consequente ilegitimidade processual ativa do Requerente). 14ª - Todos esses factos estão documentados nos autos, não foram sequer postos em causa pelos Recorridos, mas não pronunciados pelo Tribunal a quo. 15ª - A C.R.P. de 1976, quebrou de vez, com a distinção entre filhos “legítimos” e os filhos “ilegítimos” que vigorava no ordenamento jurídico, derrogando todas as normas que consigo eram inconciliáveis, na distinção dos efeitos pessoais e efeitos patrimoniais, maxime, conferindo ao “novo” filho a competente vocação sucessória, ou seja, o direito a suceder, ou o direito, após a morte do pai, a comungar na sucessão a par dos outros herdeiros (cf. art.ºs 2157º do CC e 36º, n.º 4 da CRP). 16ª - O abuso do direito é uma exceção perentória de direito material, e uma exceção perentória de direito adjetivo (cf. art.º 576º, n.º 3 do CPC), que impede e afasta os efeitos jurídicos pretendidos pela invocada caducidade. 17ª - É de conhecimento oficioso, podendo ser conhecido no tribunal de recurso, ainda que o tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre ele, nem tenha sido invocada pela parte interessada, por se tratar de uma questão de direito e de matéria de interesse e ordem pública, sendo, pois, permitido o seu conhecimento oficioso, num quadro fatual disponível que permita obviar uma solução do pleito clamorosamente injusta. 18ª - Os Recorridos agiram de manifesta má fé e com claro abuso do direito, pois tendo também vendido um imóvel, sem a intervenção do Recorrente, que sabiam ser filho do inventariado (facto assente e não impugnado nos autos), agiram a título de dolo e fraude à Lei, 19ª - E porque o bem que foi dissipado do património da herança, ocorreu ainda no decurso do prazo para o Recorrente aceitar a herança, não poderia ser invocada a caducidade da ação. 20ª - A má fé dos Recorridos decorre das condutas previstas nas alíneas a), b) e d), do n.º 2 do art.º 542º do CPC, pois, os Recorridos almejaram uma decisão claramente injusta, que causou profunda indignação no Recorrente, que nesta causa pleiteou movido pela convicção que o seu direito de ação não se encontrava extinto. 21ª - A forma como o fizeram, é claramente demonstrativa que agiram com condenável abuso de direito e de manifesta má fé, devendo, assim, ser condenados no pagamento de condigna multa de € 1 500 e uma indemnização fixada num montante nunca inferior a € 2 500. Remata dizendo que deverá ser revogada a decisão do Tribunal a quo, e substituída por outra que declare procedente a exceção perentória do abuso do direito invocado, e em consequência, declare tempestiva a ação de inventário intentada, e reconhecida a legitimidade processual ativa do requerente para intentar a ação, e bem assim que condene os requeridos em litigância de má fé. Requereu, ainda, que seja admitido o documento da “escritura pública de compra e venda”, de 31.8.2024, pela sua comprovada superveniência e relevância. Os requeridos/recorridos responderam concluindo pela improcedência do recurso e pela inadmissibilidade legal da junção do aludido documento. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[3], importa apreciar e decidir, principalmente, se caducou, ou não, o direito de aceitar a herança. Relativamente ao documento junto à alegação de recurso, considera-se admissível a junção atendendo à posição feita valer na mesma alegação, face à decisão recorrida proferida em 1ª instância e ao regime dos art.ºs 425º e 651º, n.º 1, do CPC.[4] * II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: 1) AA está registado como filho de BB.[5] 2) BB faleceu a 24.6.2003. 3) Tendo sido sepultado a 25.6.2003. 4) AA esteve presente nas exéquias fúnebres de BB. 2. Decorre ainda dos documentos juntos aos autos:[6] a) Por escritura pública de habilitação de herdeiros outorgada em 11.7.2003, no Cartório Notarial ..., sito na ..., a Recorrida EE declarou perante a Notária que BB faleceu a 24.6.2003, sem testamento nem qualquer disposição de última vontade, no estado de casado em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral de bens, tendo deixado como únicos herdeiros, sua esposa ELA OUTORGANTE, e dois filhos, CC e DD. Mais declarou que não conhecia quaisquer outras pessoas que, segundo a lei prefiram aos nomeados herdeiros ou que com eles possam concorrer na sucessão à herança do dito BB. b) Por escritura pública de compra e venda, realizada a 04.8.2008, os Recorridos declararam vender a FF, o prédio rústico sito em Ribeiro ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art.º ...14; declararam ainda, nomeadamente, que o referido bem pertencia à herança de BB, de quem os vendedores são únicos herdeiros e meeira, habilitados por escritura de 11.7.2003. c) Os bens da herança relacionados a fls. 70 verso/80 e a que respeitam as certidões matriciais e prediais de fls. 72 e seguintes e 81 e seguintes, em 15.5.2023, têm como “titular” “BB - Cabeça de Casal da Herança de”. 3. Cumpre apreciar e decidir. A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (art.º 2031º do CC[7]). Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (art.º 2032º, n.º 1). Se os primeiros sucessíveis não quiserem ou não puderem aceitar, serão chamados os subsequentes, e assim sucessivamente; a devolução a favor dos últimos retrotrai-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2). Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º, n.º 1). O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (art.º 2050º, n.º 1). Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2). Sendo vários os sucessíveis, pode a herança ser aceita por algum ou alguns deles e repudiada pelos restantes (art.º 2051º). A herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário (art.º 2052º, n.º 1). A aceitação a benefício de inventário faz-se requerendo inventário, nos termos previstos em lei especial, ou intervindo em inventário pendente (art.º 2053º). A aceitação pode ser expressa ou tácita (art.º 2056º, n.º 1). A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2). Os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3). O direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado (art.º 2059º, n.º 1, sob a epígrafe “caducidade”). No caso de instituição sob condição suspensiva, o prazo conta-se a partir do conhecimento da verificação da condição; no caso de substituição fideicomissária, a partir do conhecimento da morte do fiduciário ou da extinção da pessoa coletiva (n.º 2). A aceitação é irrevogável (art.º 2061º). Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082º, os interessados na elaboração da relação dos bens; b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta (art.º 2085º, n.º 1, do CPC, na redação conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13.9). 4. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se correto o assim exarado na fundamentação da decisão recorrida: «Sabendo que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e que, em consequência, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (desde que tenham a necessária capacidade) - art.º 2032º, n.º 1, Código Civil - importa unicamente decidir, num primeiro momento, se houve aceitação da herança pelo requerente e, na negativa e num segundo momento, se o direito que o requerente se arroga caducou, ou não. A aceitação da herança jacente[8] é um negócio jurídico singular, unilateral, indivisível, irrevogável e, não recetício, traduzido na vontade do sucessível de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até levada a efeito de modo tácito – art.ºs 2056º, n.º 1 e 217º, do Código Civil. A lei não estabelece prazo, nem para a declaração de repúdio da herança, nem para a declaração da sua aceitação. Consagra, isso sim, um prazo de caducidade do direito de aceitar a herança, fixando-o em dez anos, a contar do momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão – cf. art.º 2059º, do CC. Considerando a forma como pode ser aceite a herança – já que o art.º 2056º, do Código Civil, só esclarece como se leva a cabo a aceitação expressa – fazendo recurso das regras gerais sobre a declaração negocial para averiguar do valor do silêncio e dos termos que permitem concluir que se está diante de uma declaração tácita, há que começar por afirmar que o silêncio não vale aqui como declaração negocial, por exclusão do art.º 218º, do Código Civil. A ser assim, será que a presença em exéquias fúnebres é, sem mais, passível de se traduzir num facto que, com toda a probabilidade revele a intenção do sucessível de aceitar a herança? Segundo C. A. Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, Maio de 2005, pág. 423), “a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido do auto-regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade (…) deve entender-se que a concludência de um comportamento, no sentido de permitir concluir a latere um certo sentido negocial, não exige a consciência subjetiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objetivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante”. Seguindo estes ensinamentos, entende-se que a presença do requerente no funeral do inventariado, sem qualquer ato, ou demonstração posterior que pudesse inequivocamente reforçar a intenção de aceitação da herança – v. g. de tentativas de contacto com os demais herdeiros do de cujus – não se reveste de força suficiente que permita inferir que pretendia adquiri-la. Pense-se que nem os atos de administração praticados pelo sucessível implicam a aceitação tácita da herança – cf. art.º 2056º, n.º 3, do CC. E ainda que a jurisprudência do STJ se encaminha no sentido de que, nem a participação do óbito junto da AT, nem a celebração da escritura de habilitação de herdeiros são atos inequívocos de aceitação da herança – neste sentido, o Acórdão do STJ de 30.5.2023-processo n.º 28471/17.9T8LSB.L1.S1, dgsi. Pelo que é de afastar a aceitação tácita da herança. Assim sendo, avance-se para o patamar seguinte: o do momento a partir do qual se conta o prazo para aceitar a herança. A caducidade pode definir-se, em moldes genéricos, “como a extinção ou perda de um direito ou de uma ação pelo decurso do tempo, ou ainda, pela verificação de uma natural circunstância que, naturalmente (v.g. a morte), faz desencadear a extinção do direito” – neste sentido, o Acórdão do STJ de 06.4.2017-processo 1161/14.7T2AVR.P1.S1, dgsi. O art.º 2059º, do CC concede ao herdeiro, sob pena de caducidade, um prazo de 10 anos para aceitar, ou repudiar a herança. Não há dúvidas de que o prazo de caducidade do direito de aceitar a herança – art.º 2059º, do Código Civil – se conta desde o momento em que o herdeiro teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão (Neste sentido, entre outros Acórdãos, o da RG de 16.02.2012-processo 219/09.9TCGMR.G, da RL de 24.6.2008-processo 10557/2007-1 e da RP de 29.01.2013-processo n.º 9638/07.4TBMAI-B.P1, dgsi). Posto isto, atendendo à factualidade apurada em 2. a 4., considerando que, pelo menos no dia das exéquias fúnebres – 25.6.2003 – do inventariado, o requerente tomou conhecimento de que seria seu herdeiro e que, por isso, estaria em condições de aceitar a herança, é forçoso concluir que o seu direito de aceitação da herança caducou 26.6.2013 – considerando o disposto no art.º 279º, alínea b), do Código Civil. Cabe agora aquilatar das consequências da falta de aceitação da herança, designadamente ao nível processual. Dita o art.º 1085º, n.º 1, que pode requerer a instauração do inventário, nele intervindo como parte principal, genericamente, os herdeiros, ou seja, quem tenha aceitado a herança – art.ºs 2050º, n.º 1 e 2056º, n.º 1, do CC. Pela negativa, padecem de falta de legitimidade ad actum todos aqueles que, ainda que fossem, em abstrato, herdeiros aos olhos da lei substantiva, não tenham aceitado a herança. É o caso. O requerente do inventário não aceitou a herança, tendo caducado o seu direito a fazê-lo. Assim sendo, e ao abrigo do disposto nos art.ºs 576º, n.º 1, e 577º, alínea e), do CPC, tem-se por verificada a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa do requerente, importando, em consequência, a absolvição dos requeridos da instância.» 5. O requerente/recorrente diz que a Mm.ª Juíza não ponderou adequadamente a documentação junta aos autos e o que nela revela a atuação dos requeridos, em detrimento da pretensa posição e do interesse daquele. Importa, assim, analisar o que possa contender com a descrita apreciação do incidente de oposição ao inventário. 6. A submissão do direito de aceitação da herança a um prazo de caducidade constitui uma inovação do Código Civil de 1966, evidenciando o interesse público da definição da posição dos chamados.[9] 7. Relevando a (conhecida) posição e atuação dos requeridos/recorridos, e ainda que porventura exata a alegada inexistência de relações de proximidade e de contactos entre o Recorrente e Recorridos, em vida e após falecimento do inventariado e a posse e domínio dos bens da herança pelos Recorridos, que, em exclusivo, têm administrado o acervo sucessório, sem qualquer informação ou prestação de contas ao Recorrente - como se refere na alegação de recurso (fls. 138) -, antolha-se evidente que importava, sobretudo, indagar a atuação do requerente/recorrente, por ação e/ou por omissão, obviamente, se e na medida em que interessa à dilucidação da problemática da caducidade do direito de aceitar a herança. Ora, se aquela invocada posse e domínio dos bens da herança pelos Recorridos, a par, diga-se, do negócio mencionado em II. 2. b), supra, traduzem, inequivocamente, a aceitação da herança, da sua parte, ao invés, e relativamente ao recorrido, os demais elementos disponíveis não evidenciam qualquer ato de aceitação da mesma herança (qualquer ato ou comportamento do requerente donde se possa inferir que se comportou como titular de direitos e obrigações sobre a herança aberta por óbito de seu pai)[10], pelo que, chamado à herança por lei (como herdeiro legitimário/art.º 2157º) e transcorridos mais de 18 (dezoito) anos desde a data do falecimento de BB, seu pai, não resta alternativa à afirmação da caducidade do direito de aceitar a herança (art.º 2059º, n.º 1).[11] 8. E, cremos, esta a resposta a dar, independentemente de os recorridos saberem, ou não, desde há muito (quiçá, antes da escritura pública de habilitação de herdeiros outorgada em 11.7.2003), que o recorrente era filho de BB, mas fora do matrimónio do falecido com a interessada EE, sendo que decisivo para o que se dilucida é o momento do conhecimento de tais factos pelo recorrente [máxime, que o inventariado era seu pai e que falecera - cf. II. 1. 1) a 4), supra]. Ademais, o declarado na escritura pública dita em II. 2. a), supra, por si só, nunca poderia ter o condão de afastar o requerente do direito que à data lhe assistia ou sequer violar o princípio da proibição de não discriminação de filhos nascidos fora do casamento consagrado no art.º 36º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa[12] e tutelado na lei ordinária [cf., v. g., art.ºs 2133º, n.º 1, alínea a) e 2157º do CC].[13] 9. Sabendo-se que o requerente/recorrente não alegou e provou a aceitação da herança, antes do termo daquele prazo (10 anos), dir-se-á, ainda, que os factos descritos em II. 1. e 2., supra e o apontado regime jurídico [cf. II. 3., supra] não permitem vislumbrar atuação abusiva dos requeridos/recorridos que tenha de algum modo dificultado ou impedido o efetivo exercício dos direitos do requerente/recorrente (máxime, o direito do recorrente aceitar herança), e também nada se apurou suscetível de determinar a suspensão ou interrupção do (há muito transcorrido) prazo de caducidade. O mais - v. g., a eventual prática de factos ilícitos (“falsas declarações”) - não afasta aquele quadro normativo e, por falta do adequado e necessário suporte fáctico, também não sugere a aplicação do instituto do abuso do direito, em qualquer das suas manifestações,[14] mormente o invocado “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes) que, como ato ilegítimo, tivesse por consequência, por exemplo, o alongamento do invocado prazo de caducidade.[15] 10. O direito de aceitação da herança por parte do requerente/recorrente caducou porquanto verificados os pressupostos previstos no art.º 2059º, n.º 1: o conhecimento pelo sucessível de haver sido chamado à herança, e o facto de esse conhecimento se ter dado há mais de dez anos, ou seja, de terem decorrido mais de dez anos entre a data do facto do conhecimento e a data em que é invocada a caducidade do direito; in casu, o conhecimento do decesso do inventariado por parte do recorrente ocorreu de imediato (junho/2003) e a presente ação entrou em juízo a 15.12.2021. Estão, pois, reunidos os elementos de facto que suportam a alegação de que o direito que o recorrente pretende ver reconhecido caducou.[16] 11. O art.º 2059º não prevê qualquer regime especial que sujeite a caducidade (do direito de aceitação) à suspensão ou interrupção, pelo que há que recorrer ao regime regra estabelecido nos art.º 328º e seguintes para a caducidade. Ora, no art.º 331º indicam-se as causas impeditivas da caducidade, referindo o n.º 1 que só impede a caducidade a prática de ato que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo. No caso em análise, o prazo foi estabelecido por lei, pelo que não há lugar a fixação convencional do mesmo. E da lei não consta a indicação de qualquer ato a que seja atribuído o efeito impeditivo. Por isso, em princípio, bastaria o mero decurso do prazo de 10 anos sobre a data do conhecimento do direito de aceitar a herança, para que a caducidade desse direito se desse. Porém, dispõe ainda o n.º 2 do art.º 331º que impede a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, quando se trate de prazo fixado por disposição legal relativa a direito disponível. O requerente não disse que os requeridos em algum momento durante os 10 anos subsequentes à morte do pai o reconheceram como titular do direito de aceitar a respetiva herança. Consequentemente, não é juridicamente possível afastar o mero decurso do tempo como fator único que releva para a verificação do fenómeno jurídico da caducidade do direito do recorrente.[17] 12. Por via da caducidade de tal direito, não são apenas os bens da herança que se perdem; é a própria qualidade de herdeiro. Não pode aquele, cujo direito de aceitar caducou, vir declarar-se herdeiro.[18] Daí, a ilegitimidade do requerente para instaurar o presente inventário, por caducidade do direito de aceitar a herança. 13. Salvo o devido respeito, não se vê como sustentar a condenação dos recorridos como litigantes de má fé, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 542º e seguintes do CPC, pese embora, ainda, a compra e venda mencionada em II. 2. b), supra, concretizada “no decurso do prazo para o Recorrente aceitar a herança”, sem interferir com o decurso desse prazo... 14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violados quaisquer princípios jurídicos ou disposições legais. * III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo requerente/apelante. * 11.12.2024
[1] Havendo também invocado o disposto no art.º 1105º, n.ºs 1 a 3, Código de Processo Civil. [3] Admitido «a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (cf. art.ºs 627º, n.º 1, 629º, n.º 1, 631º, n.º 1, 638º, n.º 1, 644º, n.º 1, al. a), 645º, n.º 1, al. a) e 647º, n.º 1 e 1123º, n.º 1 do CPC)». [10] Relativamente à aceitação da herança e sua concretização, vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 4ª edição, 1991, págs. 447 e seguintes e, de entre vários, acórdãos do STJ de 10.12.1997, 18.4.2006-processo 06A719, 28.6.2007-processo 07B2233, 19.3.2019-processo 384/17.1T8GMR-A.G1.S1, 10.9.2020-processo 3379/18.4T8LRS.L1.S1 e 30.5.2023-processo 28471/17.9T8LSB.L1.S1, da RP de 29.01.2013-processo 9638/07.4TBMAI-B.P1 e RL de 24.6.2008-processo 10557/2007-1, publicados, o primeiro, no BMJ 472º, 443 e, os restantes, no “site” da dgsi. Cf., ainda, acórdãos da RC de 05.5.1987 e 22.10.1991, in CJ, XII, 3, 12 e XVI, 4, 115, respetivamente. [13] Sobre a matéria, cf., de entre vários, acórdão da RL de 18.01.1996-processo 0006666 [tendo-se concluído: «A aceitação de herança caduca no prazo de 10 anos contados a partir do conhecimento de verificação de haver sido a ela chamado. Incumbe à parte que invocar a caducidade, fazer prova, a partir de quando o titular do direito à herança teve conhecimento de a ela ter sido chamado.»], publicado no “site” da dgsi. Com uma outra perspetiva, vide Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2017, 9ª edição, 2017, Almedina, pág. 212 e acórdão da RE de 08.3.2012-processo 536/09.8TBSTB [com o sumário: «I - A habilitação de herdeiros feita por um interessado direto na partilha, nos termos do art.º 83º, n.º 1, Cód. do Notariado, deve ser entendida como aceitação da herança quando não existam outros elementos que façam presumir o contrário. (...)»], publicado no “site” da dgsi. [14] O abuso do direito (art.º 334º do CC) aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo - vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8ª edição, págs. 552 e seguintes e RLJ, 128º, 241. Manuel de Andrade e Vaz Serra, para definir ou caracterizar o instituto, falam em direitos exercidos em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” - Teoria Geral das Obrigações, pág. 63 e BMJ, 85º, 253, respetivamente. O abuso de direito constitui uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais que permitem ao julgador poder obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido. [16] Tratando-se de matéria não excluída da disponibilidade das partes, insuscetível de apreciação oficiosa, nos termos dos art.ºs 333º, n.º 2 e 303º do CC - cf., designadamente, o cit. acórdão do STJ 18.4.2006-processo 06A719 e os acórdãos da RL de 10.4.2008-processo 313/2006-2 e da RG 16.02.2012-processo 219/09.9TCGMR.G1, publicados no “site” da dgsi. [17] Cf. o cit. acórdão da RL de 24.6.2008-processo 10557/2007-1. [18] Vide J. Oliveira Ascensão, Sucessões, 1967, pág. 101. |