Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TELES PEREIRA | ||
Descritores: | CRÉDITO HOSPITALAR PRAZO DE PRESCRIÇÃO TAXA DE JUROS DE MORA EMPRESA PÚBLICA ENTIDADE PÚBLICA EMPRESARIAL | ||
Data do Acordão: | 09/14/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TOMAR – 2º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTº 3º DO D. L. Nº 218/99, DE 15/06; DL Nº 73/99, DE 16/03 | ||
Sumário: | I – O artigo 3º do DL nº 218/99, de 15 de Junho, referente ao prazo de prescrição dos créditos resultantes de despesas hospitalares, não inovou relativamente ao regime pregresso (artigo 9º do DL nº 194/92), no que respeita à contagem de tal prazo a partir da data em que cessou o tratamento hospitalar. II – O DL 73/99, de 16 de Março, respeitante à determinação da taxa de juros de mora aplicável às dívidas ao Estado e a outras entidades públicas, não visa as dívidas a entidades integrantes do sector empresarial do Estado, designadamente às dívidas respeitantes a cuidados de saúde prestados, no âmbito do serviço nacional de saúde, por uma instituição hospitalar revestindo a forma de “entidade pública empresarial” (EPE) ou de “sociedade anónima” (SA). III – Qualquer destas duas formas de estruturação de uma entidade hospitalar pública (EPE; SA) constituem sucedâneos de uma empresa pública, estando excluídas da aplicação do referido DL 73/99, pelo respectivo artigo 1º. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – A Causa
1. Em 7 de Julho de 2005[1], o Centro Hospitalar …, SA, posteriormente transformado no Centro Hospitalar …, E.P.E. (A. e Apelado no presente recurso), demandou a Companhia de Seguros …, S.A. (R. e Apelante), pedindo a condenação desta seguradora a satisfazer-lhe os valores respeitantes aos diversos cuidados de saúde prestados a A…[2], vítima de acidente de viação ocorrido em 16/08/1996, em Tomar, evento infortunístico cuja responsabilidade pertenceu exclusivamente (atribui-a desde logo o A.) à condutora de um veículo (…-EQ), cujos riscos de circulação eram, no momento do acidente, cobertos pela R. ao abrigo de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel[3].
Citada em 13 de Julho de 2005, contestou a R., invocando, nos termos do artigo 498º, nº 1 do Código Civil (CC), a prescrição dos créditos hospitalares peticionados pelo A.
1.1. Efectuado o julgamento, foi a acção decidida através da Sentença de fls. 252/260 – esta integra a decisão objecto do presente recurso – que fixou a responsabilidade indemnizatória da R., atribuindo a culpa do acidente à condutora da viatura …-EQ, julgando improcedente a prescrição invocada e condenando a R. a satisfazer à A. a quantia de €30.395,71, acrescida de juros calculados por referência ao Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março.
1.2. Inconformada, interpôs a R. o presente recurso, restringindo-o à questão da prescrição e do cálculo dos juros, motivando-o a fls. 267/269, formulando as seguintes conclusões: O Apelado respondeu, pugnando pela confirmação da decisão apelada.
II – Fundamentação
2. Encetando a apreciação do recurso, importa ter presente que as conclusões formuladas pelos Apelantes operaram a delimitação temática do respectivo objecto [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)].
Numa primeira aproximação a esse objecto, constata-se que a R. não impugna os factos fixados na primeira instância, centrando a sua discordância na questão da prescrição do direito à indemnização fixada (este é o primeiro fundamento do recurso) e, caso se estabilize a condenação nessa indemnização, na questão da taxa de juro aplicável (este constitui o segundo fundamento do recurso).
Os factos a considerar mostram-se, assim, definitivamente fixados, sendo eles – transcritos do texto da Sentença – os seguintes: 2.1. Apreciando o fundamento do recurso referente à prescrição[4], dir-se-á pretender a Apelante a consideração dos diversos tratamentos prestados ao sinistrado como actos isolados (praticados e esgotados nas suas potencialidades jurídicas)[5], pugnando por uma interpretação do artigo 3º do Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho[6], que desvalorize o elemento aglutinador de uma prestação de cuidados de saúde que se apresente como continuada no tempo (o concreto evento que causalmente determinou essa prestação de cuidados nas suas múltiplas incidências), por sucessivos episódios clínicos, aferindo o elemento prescricional face a cada um desses episódios, entendendo-os como actos distintos a tratar individualmente para efeitos de prescrição.
Este entendimento defende-o a Apelante remetendo – e nisso se esgota o respectivo argumento – para o entendimento do Tribunal da Relação de Évora expresso no Acórdão de 24/05/2007[7]. Coloca-se assim uma questão interpretativa sobre a qual esta Relação já teve ensejo de se pronunciar, num sentido distinto da decisão indicada pela Apelante. Com efeito, através do Acórdão de 03/03/2009, desta secção, relatado pelo Exmo. Desembargador Artur Dias[8], entendeu-se – e reproduzimos aqui o sumário da decisão – “[não existir] qualquer indício, seja na letra do artigo 3º do DL 218/99, de 15/06, seja no preâmbulo deste diploma, no sentido de que o legislador tenha, no tocante à contagem do prazo de prescrição dos créditos por dívidas hospitalares, querido adoptar qualquer mudança de regime relativamente ao que já constava do DL 194/92, diploma este que foi revogado pelo primeiro”. E acrescentou-se – e continuamos a citar o sumário – que, “[p]or isso, a solução mais acertada, sobre tal contagem, é a de manter o regime já existente à data da publicação do DL 218/99, isto é, de que «os créditos por dívidas hospitalares prescrevem no prazo de 3 anos, contados da data em que cessou o tratamento hospitalar”[9].
É este entendimento, ao qual aderimos, que aqui se pretende aplicar, com a consequência, face às incidências fácticas do caso concreto (última prestação de cuidados de saúde peticionada já ocorrida na pendência da acção), de julgar, concordantemente com a decisão recorrida, não prescrito o direito feito valer na presente acção.
Improcede o recurso, pois, quanto a este primeiro fundamento.
2.2. Interessa-nos agora, enquanto segundo fundamento do recurso, a questão da taxa de juro, especificamente na incidência, decorrente da Sentença, correspondente à sujeição da mora ao regime do Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março, respeitante à determinação da taxa de juros de mora aplicável às dívidas ao Estado e outras entidades públicas[10].
A aplicação deste diploma à situação de cobrança de uma dívida respeitante a cuidados de saúde prestados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, por um hospital, integrado no sector empresarial do Estado[11], dotado da estrutura societária organizacional da A. (actualmente uma “entidade pública empresarial”, sucessora de uma “sociedade anónima”), a aplicação do DL 73/99 a uma pessoa colectiva com esta natureza, dizíamos, não se justifica, ofendendo mesmo, ao que julgamos, o disposto no artigo 1º, nº 1 deste diploma[12].
Com efeito, para além da aparente não correspondência de uma dívida referente a cuidados de saúde à enumeração das quatro alíneas do nº 1 do artigo 1º do DL 73/79, há que considerar a expressa exclusão das situações de dívidas a pessoas colectivas públicas que tenham forma, natureza ou denominação de empresa pública. Ora, é este o caso de um centro hospitalar “entidade pública empresarial”, por transformação de uma “sociedade anónima” de capitais exclusivamente públicos, como sucede com o aqui A.[13].
Vale a este respeito, e para ele remetemos, o percurso interpretativo enunciado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, votado na sessão de 06/04/2000[14], cujas conclusões aqui transcrevemos (sendo que delas emerge a correspondência do A. à estrutura sucedânea de uma empresa púbica): 2.2.1. Excluída a aplicação a uma dívida respeitante a cuidados de saúde prestados pelo A. do regime previsto no DL 73/99, perde sentido a determinação constante da Sentença apelada no trecho aqui especificamente em causa. A questão da taxa de juros devidos pela R., ressalvadas as referências temporais indicadas na Sentença (que são correctas), deve ter em conta os sucessivos valores referenciais decorrentes do regime atinente aos juros civis estabelecido no nº 1 do artigo 559º do CC, através da aplicação aos períodos e valores aqui em causa das sucessivas taxas decorrentes desta disposição.
Procede, pois, este fundamento do recurso.
2.3. Importa, assim, formular decisoriamente o resultado antes explanado, não sem que antes deixemos nota, em sumário elaborado pelo relator, do antecedente percurso argumentativo:
III – Decisão
3. Assim, na parcial procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida no trecho decisório respeitante aos juros devidos, excluindo-se a aplicação ao caso da taxa respectiva calculada nos termos previstos no Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março, devendo os juros devidos pela R. ser calculados nos termos indicados supra no item 2.2.1. deste texto.
Em tudo o mais, designadamente na questão da prescrição, confirma-se a Sentença.
Custas pelo Apelado (20%) e a Apelante (80%).
19º A prestação de serviços por parte do Hospital ao A…, em consequência do acidente relatado, tem vindo a prolongar-se ao longo dos anos, tendo a última consulta ocorrido em Outubro de 2002,20º Desconhecendo-se se o mesmo ainda necessitará de outros tratamentos e/ou assistência em virtude do acidente relatado.[…]” [transcrição de fls. 3] [4] Refere-se este fundamento à seguinte passagem da Sentença: “[…] Em contestação e, posteriormente, na resposta ao requerimento de ampliação do pedido, a R. veio arguir a excepção peremptória de prescrição do direito de crédito do A. O artigo 3º do DL 218/99 de 15 de Junho, estatui no sentido de que os créditos de que são titulares as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, em virtude dos cuidados de saúde prestados, prescreverem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes de origem. No caso concreto apurou-se que o último tratamento ou serviço de saúde prestado [à vítima do acidente], em virtude do embate sofrido, foi prestado em 21/11/2007, já depois da propositura da presente acção e subsequente citação da R. Pelo exposto, julga-se improcedente a invocada excepção peremptória de prescrição. […]” [transcrição de fls. 256/257] [5] Fazendo nascer direitos de crédito autónomos, iniciando contagens autónomas de prazos prescricionais. [6] “Os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação de serviços que lhe deu origem”. [7] Colectânea de Jurisprudência, 2007/III, p. 246. Lê-se no sumário deste aresto: “[o] artigo 3º do Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho, que revogou o Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, alterou o regime que vigorava em matéria de prescrição de dívidas hospitalares, remetendo o início da contagem do prazo prescricional para o momento de cada prestação de serviço, individualmente considerada, em que se consubstancia um tratamento médico e não – como acontecia antes – desde a data em que terminava o tratamento ou assistência, no âmbito de um processo continuado, que lhes dava origem”. [8] Acórdão proferido no processo nº 41123/03.8YXLSB.C1 (descritores: crédito hospitalar; prescrição; contagem dos prazos), disponível no sítio do ITIJ no seguinte endereço (ou através da pesquisa nos campos indicados): http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3f405e1c55b7faea. [9] No texto do Acórdão esta asserção interpretativa é justificada nos seguintes termos: “[…] É nosso entendimento que, para além da óbvia redução do prazo de prescrição de cinco para três anos, a diferença entre o artigo 9º do Decreto-Lei nº 194/92 e o artigo 3º do Decreto-Lei nº 218/99 se situa apenas ao nível da linguagem técnico-jurídica, mais aprimorada neste do que naquele. No restante, nomeadamente no que concerne ao termo inicial da contagem do prazo de prescrição, afigura-se-nos que as expressões «contados da data em que cessou o tratamento», usada pelo Decreto-Lei nº 194/92 e «contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem», utilizada pelo Decreto-Lei nº 218/99, se equivalem. Com efeito, não é estranha ao direito a figura do facto continuado ou duradouro, o qual, não se esgotando num único acto material e sendo constituído por um conjunto de actuações concretas ligadas por um elemento comum, frequentemente recebe um tratamento jurídico unitário, como se de uma unidade se tratasse. De acordo com o artigo 9º do Código Civil, na interpretação da lei deve o intérprete partir da respectiva letra, não se limitando a ela mas também nunca a abandonando completamente, em busca do pensamento legislativo, tendo presentes os elementos sistemático, histórico e teleológico e presumindo sempre que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. No caso presente não se colhe qualquer indício, seja na letra do artigo 3º seja mesmo no preâmbulo do Decreto-Lei nº 218/99, no sentido de que o legislador tenha, no tocante à contagem do prazo de prescrição, querido a mudança de regime defendida pela recorrente. E, presente o elemento aglutinador comum de todos os cuidados e serviços prestados no espaço temporal que começou em 14/05/2000 (data do acidente e da entrada do assistido nos Serviços de Urgência do A.) e terminou em 21/05/2001 (data da última consulta) – encontrarem a sua origem e causa no mesmo acidente – afigura-se-nos que a solução mais acertada, por isso querida pelo legislador, é a de se manter o regime anterior quanto à contagem do prazo de prescrição. A não se entender assim, prolongando-se no tempo a prestação dos serviços, correr-se-ia o risco de, para evitar a prescrição, terem as entidades prestadoras dos cuidados de saúde de ir intentando sucessivas acções, com evidente prejuízo para a economia processual e para a aplicação da justiça em geral. Acresce que, devendo presumir-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, seria expectável que, se quisesse mudar o termo inicial da contagem do prazo de prescrição, não utilizasse uma fórmula tão semelhante á anterior ou, usando-a, manifestasse a vontade legislativa por qualquer outra forma inequívoca, nomeadamente fazendo à alteração uma referência no preâmbulo. […]” [10] A este aspecto se refere o seguinte trecho da Sentença: “[…] A A. peticionou que o montante indemnizatório fosse acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da propositura da acção até integral pagamento. No que respeita aos juros, de harmonia com o disposto nos artigos 804º, 805º, nº 1 e 806º, nº 1 do CC, uma vez que estamos perante obrigações pecuniárias, são devidos, à taxa prevista no Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março, a contar desde tal data – 07/07/2005 (porque assim foi pedido pelo A.), sobre a quantia de €4.429,49 (pedido inicial) e a contar desde 14/04/2008/19/12/2007 sobre a quantia de €25.187,97 (data da notificação à R. do requerimento de ampliação), até cabal pagamento. […]” [transcrição de fls. 259/260] [11] V. o Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro (alterado pelo Decreto-Lei nº 300/2007, de 23 de Agosto e pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro). [12] Estabelece este: Artigo 1º 1 – São sujeitas a juros de mora as dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas que não tenham forma, natureza ou denominação de empresa pública, seja qual for a forma de liquidação ou cobrança, provenientes de:Incidência a) Contribuições, impostos, taxas e outros rendimentos quando pagos depois do prazo de pagamento voluntário; b) Alcance, desvios de dinheiros ou outros valores; c) Quantias autorizadas e despendidas fora das disposições legais; d) Custas contadas em processo de qualquer natureza, incluindo os de quaisquer tribunais ou de serviços da Administração Pública, quando não pagas nos prazos estabelecidos para o seu pagamento. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- [13] Essa transformação decorreu do disposto nos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 93/2005, de 7 de Junho, por referência à lista anexa ao mesmo diploma. [14] Correspondente ao nº convencional PGRP00001224; Relator: Alberto Augusto Oliveira; descritores (entre outros): sector empresarial do Estado, empresa pública, entidades públicas empresariais, instituto público, sociedade anónima; disponível no sítio do ITIJ no seguinte endereço (ou através da pesquisa nos campos indicados): http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/0/ec45782f21339f948025686500583cbc. |