Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS CRAVO | ||
Descritores: | DESERÇÃO DA INSTÂNCIA PRÁTICA DO ACTO EM FALTA ANTES DE DECRETADA A DESERÇÃO PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 3.º, 1; 28.º, 1; 270.º, 1; 276.º, 1, A); 277.º, C); 281.º E 351.º, 1, DO CPC | ||
Sumário: | I – No regime do atual n.C.P.Civil, a sentença de deserção da instância prevista no art. 281º tem alcance constitutivo, no sentido de que enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o andamento do processo.
II – Realizando a deserção uma função compulsória, uma vez praticado o ato em falta e ainda que nesse momento se encontrassem reunidas as condições para tal proferimento nos termos do art. 281º, nº 1 do n.C.P.Civil, se e enquanto o decretamento não tiver ocorrido, deverá tal ato ser aproveitado, admitindo-se o prosseguimento do processo. III – É esta a interpretação que melhor serve princípios básicos do processo civil, nomeadamente da certeza e segurança jurídicas, e da economia processual. | ||
Decisão Texto Integral: | Apelações em processo comum e especial (2013) * Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] * 1 – RELATÓRIO Na ação declarativa comum instaurada em 29.04.2008 por AA contra BB e OUTROS (num total de dezassete demandados[2]), e quando estavam os autos com audiência de julgamento agendada, ao ter sido junto por um dos co-RR. a certidão do Assento de Óbito do co-réu CC, foi em 24.04.2023 proferido o seguinte despacho judicial: «Considerando o decesso do Réu CC, a instância fica imediatamente suspensa, ao abrigo do disposto no art. 270.º, n.º 1, do CPC, até que ocorra a situação prevista no art. 276.º, n.º 1, al. a), do CPC, sem prejuízo do prazo previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC. Em consequência, fica sem efeito a diligência agendada. - Notifique e desconvoque.» * Em 9 de novembro de 2023 o Autor apresentou requerimento a suscitar a colaboração das partes para poder requerer o incidente de habilitação de herdeiros. * Foi então em 5.12.2023 proferido o seguinte despacho judicial: «Atento o lapso de tempo decorrido, a deserção da instância (cfr. art. 281.º, do CPC) verificou-se já em momento anterior ao Requerimento apresentado pelo Autor, em consequência, convidam-se as partes para, querendo e no prazo de 10 dias, exercer o contraditório – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC. - Notifique.» * No exercício do contraditório, pronunciaram-se os co-RR. DD e OUTROS no sentido de que fosse a instância declarada extinta por deserção; por sua vez, o A. pugnou, em síntese, no sentido de que, por ter promovido utilmente o prosseguimento do processo antes de ser declarada a deserção da instância, esse impulso devia ser atendido, impondo-se então o prosseguimento dos autos, e «Uma vez que não foi possível aferir a existência da escritura de habilitação de herdeiros, requer que o tribunal oficie os serviços de Autoridade Tributária para informar os da existência, ou não, de herdeiros, e das suas moradas.» * Por sentença de 23.01.2024, o Exmo. Juiz do tribunal de 1ª instância, considerou, em apertada síntese, que «(…) a necessidade de decisão do tribunal a declarar a verificação da deserção significa apenas que compete ao tribunal verificar os seus pressupostos, mormente a negligência. Importa salientar que depois do decurso objectivo do prazo de seis meses sem a prática de qualquer acto é completamente inócuo ou inútil vir a parte requerer diligências ou justificar os motivos da inércia, ou seja, mesmo neste último caso sempre incumbia à parte fazê-lo dentro do prazo de seis meses», termos em que veio a julgar extinta a instância por deserção, mais concretamente nos seguintes expressos termos: «III. DISPOSITIVO Nos termos e fundamentos expostos, - Considera-se deserta a instância (acção e reconvenção) em 27/10/2023 e, em consequência, - Declara-se a extinção da instância. - Custas a cargo de Autor e Réus, na proporção de metade. - Dispensa-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça que seja devido nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do RCP. - Registe e notifique.» * Inconformado, o A. apresentou recurso de apelação, do qual extraiu as seguintes conclusões: «1. A douta sentença viola o disposto no artigo 281.º do CPC. 2. Nos termos do artigo 281.º do CPC, para se considerar deserta a instância é necessário, não apenas que o processo esteja parado há mais de seis meses a aguardar impulso processual da parte, mas também que tal se verifique por negligência (da parte) em promover o seu andamento. Sendo que como resulta do exposto o Apelante não atuou com negligência. 3. Segundo a mesma previsão legal, a instância declarativa, ou o recurso, não se poderão considerar desertos independentemente de qualquer decisão judicial (despacho do juiz ou do relator). 4. A deserção da instância declarativa opera, necessariamente, mediante decisão judicial e pressupõe a negligência das partes no impulsionamento do processo (carece de ser imputável às partes), pelo que até ser proferida (tal decisão) não pode, pois, a instância ser considerada deserta. 5. A decisão que declara a deserção tem natureza constitutiva, o que significa que para que exista deserção é necessário que seja proferida sentença a decretá-la. 6. A deserção não se produz automaticamente, ´ope legis`, depende de ato do juiz, produz-se ´ope judicis`, visto que demanda uma sentença de declaração. 7. Enquanto to não for proferida tal sentença, é lícito às partes promover utilmente o andamento do processo. 8. A deserção não existe enquanto o juiz a não declara no processo respetivo. 9. Esta é a interpretação que melhor serve princípios básicos do processo civil, nomeadamente da certeza e segurança jurídicas, e da economia processual. 10. O Apelante apresentou requerimento a suscitar a colaboração das partes para poder requerer o incidente de habilitação em 9 de novembro de 2023 - data em que não tinha sido proferida decisão e/ou despacho de deserção. 11. O Apelante só podia desencadear o incidente de habilitação de herdeiros previsto no artigo 353.º do CPC, caso tivesse conhecimento da existência de herdeiros, sua identificação e moradas. 12. O Apelante, com o seu requerimento, não deixou de promover utilmente o seguimento do processo (impulsionando os autos), pelo que ficou desde logo sem efeito, nos termos expostos, a sua eventual inércia, razão pela qual já não seria sequer possível analisar a sua pretérita atuação no que pudesse consubstanciar negligência na promoção do regular andamento dos autos. 13. A deserção da instância encontra o seu fundamento na necessidade ou conveniência (designadamente para a boa ordem dos serviços) de não permitir a pendência nos tribunais de processos que estão parados por longos períodos de tempo e sem solução alguma. Por essa via, libertar-se-ia o tribunal de um “peso morto” ao mesmo tempo que, reflexa e indiretamente, se estimulavam as partes a ser diligentes e ativas, perante a ameaça de extinção do processo. 14. A deserção da instância não tem, portanto, qualquer carácter sancionatório da parte relativamente à sua conduta omissiva durante um certo e determinado período temporal; o que se pretende é libertar o tribunal de processos em relação aos quais nada pode fazer ou decidir porque a atividade jurisdicional está dependente de ato da parte que esta não pratica e em relação aos quais se pode dizer que a sua pendência no tribunal é uma total inutilidade. 15. Assim, nas situações em que a extinção da instância pressupõe ainda a existência de um despacho que a declare, não há razões suficientemente válidas para que tal despacho seja proferido quando a situação que lhe está subjacente - a inércia da parte no que toca ao prosseguimento do processo - foi, entretanto, ultrapassada porque a parte veio impulsionar os autos. 16. A situação que se depara ao juiz, no momento em que profere o despacho, já não é uma situação de inatividade processual porque, apesar de essa inatividade ter existido durante mais de seis meses, ela cessou, entretanto, porque a parte veio impulsionar o processo num momento em que a instância ainda subsistia por não terem sido ainda declarados os efeitos processuais da deserção; estando o processo em condições de prosseguir, a sua extinção não aproveitaria a ninguém e não lograria satisfazer qualquer interesse relevante, determinando apenas o desaproveitamento de toda a atividade processual aí desenvolvida, obrigando as partes e o tribunal a novo e idêntico esforço na repetição desses atos no âmbito de nova ação que viria a ser instaurada. 17. Os autos contêm especificidades/particularidades que apontam para alguma dificuldade, desde logo, aquando da citação (ou tentativas de citação) dos seus (iniciais) 17 (dezassete demandados), e bem assim quanto à identificação e localização dos herdeiros do demandado cujo falecimento foi comunicado aos autos. 18. E se, aparentemente, tais dificuldades dificilmente se compatibilizam com todo o tempo deste processo (instaurado em 29 de abril de 2008) e a insuficiência do que se terá feito visando o seu “normal” prosseguimento, contudo, toda essa realidade, por um lado, continua insuficientemente explicitada, e, por outro lado, as apuradas vicissitudes (inclusive, as circunstâncias da prolação da decisão recorrida) têm no prosseguimento dos autos a solução tida por adequada e conforme ao regime jurídico vigente. 19. Perante os elementos disponíveis, e sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, não se antolha possível afirmar que nada exista no processo “que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte” e/ou que esteja “apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência”, mormente, por não ter ocorrido “qualquer esforço no sentido de suscitar o incidente de habitação ou de identificar os herdeiros.” Termos em que deverá ser revogada a douta sentença, sendo ordenado o prosseguimento dos autos, requerendo-se que o tribunal oficie os serviços de Autoridade Tributária para informar os da existência, ou não, de herdeiros, e das suas moradas. Só assim se fará JUSTIÇA!» * Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações. * Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: - desacerto da decisão de extinção da instância por deserção, porque apesar do processo ter estado parado, por negligência do A., durante mais de seis meses a aguardar o necessário impulso processual do mesmo, sucedeu que antes de ser proferida decisão a julgar verificada e a declarar a deserção da instância, esse A. veio a promover utilmente o prosseguimento do processo, pelo que, tendo-o feito, esse impulso devia ser atendido, ficando prejudicada a prolação de decisão no sentido de declarar a deserção e consequente extinção da instância? * 3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, para além da que consta do relatório que antecede, a que foi alinhada na própria decisão recorrida, a saber: «1- Por Requerimento de 12/04/2023 foi junta aos autos a Certidão do Assento de Óbito do co-réu CC. 2- Em 24/04/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Considerando o decesso do Réu CC, a instância fica imediatamente suspensa, ao abrigo do disposto no art. 270.º, n.º 1, do CPC, até que ocorra a situação prevista no art. 276.º, n.º 1, al. a), do CPC, sem prejuízo do prazo previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC. Em consequência, fica sem efeito a diligência agendada.”. 2- O despacho foi notificado no dia 24/04/2023, considerando-se notificados em 27/04/2023. 3- O prazo de seis meses de deserção da instância completou-se no dia 27/10/2023. 4- Por Requerimento de 09/11/2023, o Autor pediu o seguinte: “AA, Autor nos autos à margem referenciados, vem, ao abrigo do princípio da cooperação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7.º do Código do Processo Civil, requer aos ilustres Mandatários das partes intervenientes no processo a junção aos autos, caso existam, de Escritura(s) Pública(s) de Habilitação de Herdeiros e Assentos de Óbito das partes já falecidas na pendência da instância.”. 5- Em 05/12/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Atento o lapso de tempo decorrido, a deserção da instância (cfr. art. 281.º, do CPC) verificou-se já em momento anterior ao Requerimento apresentado pelo Autor, em consequência, convidam-se as partes para, querendo e no prazo de 10 dias, exercer o contraditório – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.”.» * 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Cumpre então apreciar e decidir sobre o invocado desacerto da decisão de extinção da instância por deserção, porque apesar do processo ter estado parado, por negligência do A., durante mais de seis meses a aguardar o necessário impulso processual do mesmo, sucedeu que antes de ser proferida decisão a julgar verificada e a declarar a deserção da instância, esse A. veio a promover utilmente o prosseguimento do processo, pelo que, tendo-o feito, esse impulso devia ser atendido, ficando prejudicada a prolação de decisão no sentido de declarar a deserção e consequente extinção da instância. Estatui o art. 281º do n.C.P.Civil, sob a epígrafe “Deserção da instância e dos recursos” o seguinte: «1. Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. (…) 4. A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator. 5. No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.» Esta norma veio substituir os anteriores arts. 285º e 291º do C.P.Civil que regulavam a interrupção e deserção da instância, fazendo-o nos seguintes termos: «A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento.» (dito art. 285º ). «Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos.» (dito art. 291º, nº1). Deste modo, de acordo com o disposto no referido art. 291º, nº1, do anterior C.P.Civil, considerava-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esta estivesse interrompida durante dois anos. Temos então que no regime do n.C.P.Civil, além de se ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, que a parte dispunha para impulsionar os autos sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou-se também a figura da interrupção da instância, ficando a instância deserta logo que o processo, por negligência das partes, estivesse sem impulso processual durante mais de seis meses. Isto implicou a consagração de um regime mais rigoroso, reduzindo o prazo de suspensão da instância por acordo das partes, para três meses e sancionando a negligência das partes em promover o andamento do processo, culminando a falta de impulso processual, por mais de seis meses, de acordo com o preceituado na al.c) do art. 277º e art. 281º, ambos do n.C.P.Civil, com a consequente extinção da instância por deserção. Sem embargo, no regime atual, a deserção da instância deixou de ser automática carecendo, portanto, de ser julgada por despacho do juiz – ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual, como acima ficou dito, a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial. Assim, no novo figurino da ação declarativa, a decisão judicial tem que apreciar e aquilatar a conduta da parte, já que a deserção é condicionada pela negligência da parte em promover os termos do processo, questão, esta, em princípio, sujeita ao contraditório, nos termos do disposto no art. 3º, nº 1, do n.C.P.Civil. De referir que, no caso ajuizado não se coloca qualquer questão neste último particular, na medida em que o Exmo. Juiz a quo expressamente convidou as partes para o exercício do contraditório antes de proferir a decisão atinente. Já quanto ao aspeto da verificação da negligência in casu, o A./recorrente afronta a questão sustentando que «Os autos contêm especificidades/particularidades que apontam para alguma dificuldade, desde logo, aquando da citação (ou tentativas de citação) dos seus (iniciais) 17 (dezassete demandados), e bem assim quanto à identificação e localização dos herdeiros do demandado cujo falecimento foi comunicado aos autos», para além de que «(…) não se antolha possível afirmar que nada exista no processo “que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte” e/ou que esteja “apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência”, mormente, por não ter ocorrido “qualquer esforço no sentido de suscitar o incidente de habitação ou de identificar os herdeiros.”» Que dizer? Em nosso entender não é possível dar acolhimento a esta linha acolhimento enquanto centrada no apuramento/verificação da negligência in casu. É que cremos ser claramente maioritário o entendimento de que a negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do n.C.P.Civil não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente), sendo que tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.[3] Ora, no caso dos autos, o A. ora recorrente, que até se encontrava representado por Advogado, foi expressamente alertado que a instância ficava imediatamente suspensa [em virtude da junção da certidão do assento de óbito de uma das partes – ao abrigo do disposto no art. 270º, nº 1, do n.C.P.Civil], até que ocorresse a situação prevista no art. 276º, nº 1, al. a), do mesmo n.C.P.Civil [a saber, até que houvesse sentença de habilitação dos sucessores], «sem prejuízo do prazo previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC» [sublinhado da nossa autoria], isto é, com a advertência de que o não impulso do processo teria como consequência a deserção da instância ao fim de 6 (seis) meses, tal como previsto e determinado legalmente. Donde, ficou o A. ora recorrente ciente da situação processual e poderia ab initio antecipar o enquadramento que faria o juiz e, em consequência, deveria tomar posição adequada… Atente-se que fora ele a instaurar o processo, pelo que, ex vi do disposto no art. 351º, nº1 do mesmo n.C.P.Civil, era ele que tinha natural e primacial interesse no prosseguimento da lide… A esta luz, nada tendo o A. comunicado ou requerido aos autos nos termos e para os efeitos desse contexto dentro do dito prazo de 6 (seis) meses[4], resultava constituída uma situação de injustificada inação imputável a essa parte, que assim não poderia deixar de arcar, à partida, com as inerentes consequências processuais, quais sejam, precisamente a deserção da instância. Este foi também o entendimento perfilhado na decisão recorrida, louvando-se em jurisprudência dos tribunais superiores que expressamente citou e transcreveu, tudo em termos que, nessa vertente da questão, merecem o nosso acolhimento.[5] Na verdade, como já foi sublinhado em douto aresto, «O tribunal não só não está obrigado a inquirir as partes sobre a razão da sua inércia como o não deve fazer por ser um terceiro imparcial que não deve intrometer-se nas decisões que as partes têm liberdade de adoptar como seja, não prosseguir com um processo que instauraram. Criar artificialmente neste procedimento um incidente de prova da negligência da parte, para além da negligência objectiva de deixar o processo pendente sem praticar neles atempadamente os actos devidos, num mau uso, quando não num uso abusivo dos recursos públicos, (…)».[6] Ocorre que aqui chegados, falta aferir o acerto e justeza da decisão recorrida que, em linha com esta posição, concluiu sem mais por “considerar” deserta a instância. Com efeito, contrapõe o A./recorrente, a deserção não se produz automaticamente (“ope legis”), antes depende de ato do juiz (produz-se “ope judicis”, visto que demanda uma sentença de declaração), pelo que, enquanto não for proferida tal sentença, é lícito às partes promover utilmente o andamento do processo, sendo que, fazendo-o, «(…) não há razões suficientemente válidas para que tal despacho seja proferido quando a situação que lhe está subjacente - a inércia da parte no que toca ao prosseguimento do processo - foi, entretanto, ultrapassada porque a parte veio impulsionar os autos». Que dizer? Será que após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico, isto é, não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância? Temos presente que existe uma corrente doutrinal que assim o entende[7], bem como é possível encontrar jurisprudência nesse sentido[8]. Sucede que, salvo o devido respeito, não é esse o nosso entendimento. Com efeito, a devida resposta a uma tal questão não pode ser dissociada do fundamento da deserção da instância, a saber, um efeito compulsório com vista à tutela da celeridade processual. Na verdade, s.m.j., a deserção da instância encontra o seu fundamento na necessidade ou conveniência (designadamente para a “boa ordem dos serviços”) de não permitir a pendência nos tribunais de processos que estão parados por longos períodos de tempo e sem solução alguma. Assim, por essa via, libertar-se-ia o tribunal de um “pêso morto” ao mesmo tempo que, reflexa e indiretamente, se estimulavam as partes a ser diligentes e ativas, perante a ameaça de extinção do processo.[9] A esta luz, a deserção da instância não tem, atualmente, qualquer carácter sancionatório da parte relativamente à sua conduta omissiva durante um certo e determinado período temporal, sendo que o que se pretende é libertar o tribunal de processos em relação aos quais nada pode fazer ou decidir porque a atividade jurisdicional está dependente de ato da parte que esta não pratica e em relação aos quais se pode dizer que a sua pendência no tribunal é uma total inutilidade.[10] É então caso para sustentar que o regime atualmente vigente se assemelha, neste ponto, ao que estava estabelecido no CPC de 1939 e a propósito do qual foram oportunamente tecidas as seguintes considerações: “A deserção não se produz automaticamente, ope legis; depende de acto do juiz, produz-se ope judicis, visto que demanda uma sentença de declaração. Suponhamos então que, tendo passado o lapso de tempo marcado no artigo 296.º, uma das partes dá impulso ao processo antes de o juiz ter declarado a deserção; deverá o tribunal considerar deserta a instância, não obstante o impulso referido, ou ficará, pelo contrário, inutilizado o efeito da inércia durante o período legalmente necessário para se operar a deserção? Entendemos que a inércia fica sem efeito e que deve admitir-se o seguimento do processo. Atenda-se, por um lado, a que o efeito da inactividade das partes não se produz ipso jure. A nossa lei não declara, (…) que a deserção opera de direito os seus efeitos; pelo contrário, segundo o artigo 296.º, não basta o facto da inércia, é necessário uma sentença de extinção. (…) Enquanto a instância não for declarada extinta, as partes podem dar impulso ao processo, pouco importando que tenha estado parado durante mais de seis anos. (…) A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de acto do juiz, produz-se ope judicis. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo. Enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.».[11] Aliás, sobre o sentido e significado dessa função compulsória, importa atentar no que já foi doutamente sublinhado, a saber, «Trata-se de realizar uma função ´compulsória`, de natureza semelhante àquela que, no direito civil, realiza a sanção pecuniária do artigo 829º-A CC: à ordem jurídica interessa que seja praticado determinado ato processual, assegurando o prosseguimento do processo. Por isso não faz sentido declarar deserta a instância depois de praticado, pela parte, ´sponte sua` e ainda que após o prazo de seis meses do art.º 281º CPC, o ato cuja omissão tenha estado na origem da paragem do processo. (...) Conseguida a finalidade compulsória, a subordinação do processo civil à função da realização dos direitos materiais (sempre frustrada quando, em vez dela, o processo desemboca numa decisão meramente processual) impõe que o ato seja aproveitado e o processo prossiga. Algo de semelhante se dirá se, depois de decorrido o prazo de seis meses do art.º 281º-1 CPC, forem praticados no processo atos do tribunal (do juiz ou da secretaria) que importem o prosseguimento do processo (Paulo Ramos de Faria, O julgamento da deserção da instância declarativa/Breve roteiro jurisprudencial, julgar, abril 2015, n.º 4.4, pp. 15 e 16).»[12] Ora se assim é, importa também confrontar o entendimento – que entendemos mostrar-se prevalente! – no sentido de que o julgamento da deserção da instância, no processo declarativo, atualmente tem alcance constitutivo, o que significa que ela não existe enquanto o juiz a não declara no processo respetivo. Com efeito, isto encontra-se em contraposição com o que se passa no processo executivo para o qual o nº5 do art. 281º do n.C.P.Civil expressamente preceitua que «(…) considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial (…)» [com sublinhados da nossa autoria], relativamente ao que se afigura inequívoco que o despacho que declara deserta a instância tem mero efeito declarativo. Do que se extrai, salvo o devido respeito, que no processo declarativo, enquanto não for proferida a deserção da instância, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo. A este propósito já foi salientado em douto aresto que «(…) porque a efectiva extinção da instância pressupõe ainda a existência de um despacho que a declare – não encontramos razões suficientemente válidas para que tal despacho seja proferido quando a situação que lhe está subjacente – a inércia da parte no que toca ao prosseguimento do processo – foi, entretanto, ultrapassada porque a parte veio impulsionar os autos. A situação que se depara ao juiz, no momento em que profere o despacho, já não é uma situação de inactividade processual porque, apesar de essa inactividade ter existido durante mais de seis meses, ela cessou, entretanto, porque a parte que veio impulsionar o processo num momento em que a instância ainda subsistia por não terem sido ainda declarados os efeitos processuais da deserção (a extinção da instância); estando o processo em condições de prosseguir, a sua extinção não aproveitaria a ninguém e não lograria satisfazer qualquer interesse relevante, determinando apenas o desaproveitamento de toda a actividade processual aí desenvolvida, obrigando as partes e o tribunal a novo e idêntico esforço na repetição desses actos no âmbito de nova acção que viria a ser instaurada.»[13] O que tudo serve para dizer que perante o disposto no art. 281º do n.C.P.Civil, o à luz do entendimento vindo de perfilhar e a factualidade que importa considerar no caso vertente, tal como supra alinhada, importa concluir que ao ter o A. ora recorrente em 09/11/2023, ao abrigo do princípio da cooperação, pedido aos Mandatários das demais partes intervenientes no processo, «(…) a junção aos autos, caso existam, de Escritura(s) Pública(s) de Habilitação de Herdeiros e Assentos de Óbito das partes já falecidas na pendência da instância», para assim poder promover a habilitação de herdeiros e fazer cessar a suspensão da instância, ao tê-lo feito antes de declarada a deserção da instância[14], o A. não deixou de promover utilmente o seguimento do processo, pelo que ficou desde logo sem efeito, nos termos expostos, a sua pretensa e eventual inércia, razão pela qual se deve considerar inviabilizada ou prejudicada a análise da pretérita actuação no que pudesse consubstanciar negligência na promoção do regular andamento dos autos. Dito de outra forma: apesar de requerida essa prossecução dos autos já depois de decorrido o prazo de 6 meses[15], na medida em que ainda não estava decretada a deserção da instância, não se concorda com o entendimento de que foi inócuo ou inútil vir a parte requerer diligências. Diligências que, tanto quanto é dado perceber pela tramitação dos autos e dilação que os mesmos evidenciam, mormente pela circunstância de ter a ação sido interposta contra um total de dezassete demandados, se mostram perfeitamente justificadas. Assim, declarar deserta a instância num momento em que se mostra praticado o ato de que dependia o regular andamento do mesmo, implicaria obrigar a parte a instaurar uma nova ação, com perda de eventuais efeitos relevantes decorrentes da iniciação da instância e de se ter logrado que a mesma já se encontrasse na fase de julgamento, é algo que não se nos afigura digno de tutela, desde logo à luz do que presidiu ao estabelecimento do normativo do art. 281º, nº 1, do n.C.P.Civil. Impõe-se, pois, concluir, que a decisão recorrida violou, por erro de interpretação, a norma do artigo 281º, nº 1, do n.C.P.Civil, pelo que deverá proceder a apelação, com o consequente prosseguimento da instância, nomeadamente com o objetivo de se obterem informações sobre a existência, ou não, de herdeiros, e das suas moradas. (…) * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, decide-se a final, julgar a apelação interposta procedente, revogando-se a sentença recorrida, devendo o processo prosseguir os seus termos. Custas pela parte vencida a final. Coimbra, 18 de Junho de 2024 Luís Filipe Cravo Alberto Ruço Vítor Amaral [1] Relator: Des. Luís Cravo 1º Adjunto: Des. Alberto Ruço 2º Adjunto: Des. Vítor Amaral [2] Sendo catorze pessoas singulares e três sociedades comerciais. [3] Neste sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 20/09/2016, proferido no proc. nº 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj. [4] O próprio Autor reconhece expressamente que o processo esteve parado 6 meses e 13 dias. [5] Sem embargo, alguma doutrina e jurisprudência defende que, apesar de a falta de impulso poder ser, ela mesma, sinónima de negligência da parte e de, em princípio, não se justificar nenhum dever de prevenção da parte, porém, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes (art.º 281º, n.º 1, CPC), haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção, porquanto, por exemplo, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual – assim PAULO RAMOS DE FARIA/ANA LUÍSA LOUREIRO, in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, Vol. I, Almedina, 2013, a págs. 250. [6] Assim no acórdão do STJ de 16.03.2023, proferido no proc. nº 543/18.0T8AVR.P1.S1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj. [7] Veja-se PAULO RAMOS DE FARIA, in “O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, Breve Roteiro Jurisprudencial”, a págs. 14-15, Julgar on line –2015, acessível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C3%83O-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf. [8] Inter alia, o acórdão do TRP de 24.05.2021, proferido no proc. nº 4842/09.3TBSTS.P2, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, no qual se sublinhou que «(…) os atos praticados depois do decurso do prazo de seis meses não impedem a deserção da instância, mesmo que só posteriormente (posteriormente à prática desses atos, bem se vê) haja sido proferido o despacho que declarou deserta a instância.». [9] Cf. ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao CPC”, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, a págs. 439. [10] Neste sentido já foi doutamente sublinhado que «(…) o principal fundamento da deserção residirá hoje no seu efeito compulsório com vista à tutela da celeridade processual; (...) “ao sistema de justiça estadual repugna a paragem negligente dos termos do processo, mas também repugna a extinção deste, quando ainda é útil, com o consequente aproveitamento de toda a atividade processual pretérita, obrigando (desnecessariamente) a que nova demanda seja instaurada» – cf. PAULO RAMOS DE FARIA, in “O Julgamento da Deserção da Instancia Declarativa, Breve Roteiro Jurisprudencial”, pré-citado, mais concretamente a págs. 2 e 15. [11] Assim por ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao CPC”, pré-citado, ora a págs. 439 e 444. [12] Citámos agora JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “Da Nulidade da Declaração de Deserção da Instância sem Precedência de Advertência à Parte”, Revista da Ordem dos Advogados, I-II 2018, pág. 194, nota (11); também disponível in https://portal.oa.pt/media/130214/jose-lebre-de-freitas_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf. [13] Trata-se do acórdão do TRC de 08.03.2022, proferido no proc. nº 11/19.2T8ALD.C1; no mesmo sentido os acórdãos deste mesmo TRC de 02.05.2023 (proferido no proc. nº 2239/18.T8CBR-C.C1) e de 27.06.2023 (proferido no proc. 34/19.1T8CBR.C1); todos estes arestos disponíveis em www.dgsi.pt/jtrc. [14] A qual, recorde-se, foi objeto do despacho recorrido, datado de 23.01.2024! [15] Recorde-se que o prazo de seis meses de deserção da instância se havia completado no dia 27.10.2023. |