Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
223/08.4TBSRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROVA PERICIAL
OBJECTO
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.265 Nº3, 569, 576, 578 CPC, 44, 45 CCJ
Sumário: 1. Tendo os réus requerido a realização de prova pericial, sem que procedessem ao pagamento do preparo devido, previsto no n.º 1 do artigo 44.º do CCJ, e vindo a ser decretada a não realização da diligência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º CCJ, verificou-se, não a desistência, que implicaria a anuência da parte contrária, prevista no artigo 576.º do CPC, mas sim o incumprimento de um ónus que sobre eles recaía, correspondendo a tal omissão a sanção de não realização da diligência requerida.

2. Propondo a autora, na sequência da notificação prevista no nº1 do art.578 CPC, a ampliação do objecto da perícia, com a formulação de quesitos adicionais, sem requerer a restrição ou a rejeição dos anteriormente propostos pelos réus, deverá considerar-se que usou a faculdade de “aderir” ao objecto proposto, prevista no citado normativo.

3. Em virtude dessa adesão, os quesitos em causa, apesar de serem inicialmente da iniciativa dos réus, passam a considerar-se propostos por ambas as partes.

4. Consequentemente, prosseguindo a perícia por iniciativa da autora, que para o efeito pagou o respectivo preparo, a mesma terá que ter por objecto: i) os quesitos que a autora formulou na sequência da notificação prevista no n.º 1 do artigo 578.º do CPC; ii) os quesitos inicialmente formulados pelos réus, aos quais a autora “aderiu”, nos termos do citado normativo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
Na acção com processo sumário n.º 223/08.4TBSRE, que corre termos no Tribunal Judicial de Soure, dos quais foi extraída a presente certidão, onde é autora M (…) e réus J (…) e esposa, os réus requereram a realização de prova pericial, com indicação dos respectivos quesitos, tendo sido a referida prova admitida por despacho certificado a fls. 17, no qual foi determinada a notificação da autora para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 578.º do CPC.
Na sequência da referida notificação, a autora veio «propor a ampliação do objecto da perícia apresentada pela parte adversa, para o que, em separado, apresenta os competentes quesitos».
Em 19.04.2010, foi proferido nos autos o seguinte despacho:
«Compulsados os autos verifica-se que a R., que solicitou a perícia ordenada nos autos, não efectuou o pagamento do respectivo preparo para despesas.
A consequência legal do não pagamento oportuno do preparo para despesas encontra-se prevista no artigo 45°/1-a do CCJ, não tendo o código qualquer previsão para notificação da parte faltosa para pagamento extemporâneo dos preparos.
Em consequência, não será a perícia realizada no tocante aos quesitos indicados pelo R.
Notifique.
Considerando que a A. pagou os preparos decorrentes da sua ampliação do pedido de perícia, notifique-a para informar se, não obstante, ainda pretende a realização da perícia apenas quanto aos quesitos por si indicados
Não se conformando, a autora interpôs recurso de apelação, no qual formula as conclusões que se sintetizam nestes termos:

1.ª A recorrente tem a seu cargo o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que alega.

2.ª A recorrente acedeu ao teor do requerimento de prova pericial dos recorridos, que não se afigurou dilatório nem impertinente.

3.ª Quando foi notificada para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 578.º do CPC, a recorrente aderiu aos quesitos formulados pelos recorridos, e requereu o aditamento ao objecto da perícia, apresentando quesitos adicionais.

4.º A recorrente não formulou os quesitos que já haviam sido apresentados pelos recorridos, porque tal formulação seria supérflua, na medida em que os mesmos já haviam sido aceites pelo tribunal.

5.ª Entretanto os recorridos optaram por não pagar o preparo, o que se configura como desistência, ainda que tácita, da perícia.

6.º Tal desistência implicava a anuência da recorrente, nos termos do artigo 576.º do CPC.

7.ª A desistência dos recorridos e o despacho que lhe deu acolhimento, frustram as legítimas expectativas da recorrente, que contava com os quesitos oferecidos pela parte contrária, e não os incluiu ela mesma, porque isso significaria praticar um acto inútil.

8.ª O despacho em causa faz uma errónea interpretação da lei, violando os princípios da “igualdade de armas” e do contraditório.
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

II. Do mérito do recurso

1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o tribunal a quo deveria ou não, considerar no objecto da perícia, os quesitos apresentados pelos recorridos.

2. Fundamentação de facto
Apura-se dos autos, a seguinte factualidade relevante:
2.1. Os autores, ora recorridos, requereram a realização de prova pericial, com indicação dos respectivos quesitos.
2.2. Tal meio de prova veio a ser admitido por despacho certificado a fls. 17 destes autos, com o seguinte teor: «Por entender que a perícia colegial não se afere por impertinente nem dilatória, ouça-se a A., nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 578.º do CPC, devendo desde logo indicar perito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 569º/2, do mesmo diploma legal».
2.3. Na sequência da referida notificação, a autora apresentou o requerimento certificado a fls. 17 destes autos, com o seguinte teor: «M (…), tendo sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 578.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vem propor a ampliação do objecto da perícia apresentado pela parte adversa, para o que em separado apresenta os competentes quesitos. Por outro lado, notificada que outrossim foi, agora nos termos e para os efeitos do estatuído no artigo 569.º, n.º 2, também da lei civil adjectiva, indica como perito, (…)…».
Em 19.04.2010, foi proferido nos autos o seguinte despacho, que veio a ser objecto do presente recurso:
«Compulsados os autos verifica-se que a R., que solicitou a perícia ordenada nos autos, não efectuou o pagamento do respectivo preparo para despesas.
A consequência legal do não pagamento oportuno do preparo para despesas encontra-se prevista no artigo 45°/1-a do CCJ, não tendo o código qualquer previsão para notificação da parte faltosa para pagamento extemporâneo dos preparos.
Em consequência, não será a perícia realizada no tocante aos quesitos indicados pelo R.
Notifique.
Considerando que a A. pagou os preparos decorrentes da sua ampliação do pedido de perícia, notifique-a para informar se, não obstante, ainda pretende a realização da perícia apenas quanto aos quesitos por si indicados

3. Fundamentos de direito
Dispõe o n.º 1 do artigo 578.º do CPC: «Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição
 A actual redacção do normativo citado foi introduzida pelo Decreto-lei n.º 329-A/95 de 12.12, substituindo a antiga formulação prevista no n.º 2 do artigo 572: «Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz notificará a parte contrária para apresentar os seus quesitos».
Como expressamente se refere no preâmbulo do citado decreto-lei, as alterações introduzidas no capítulo dos meios de prova, foram realizadas «adentro de uma filosofia de base de obtenção, em termos de celeridade, eficácia e efectivo aproveitamento dos actos processuais, de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente…».
A primeira questão que se coloca, é a de saber se se deverá entender que o recorrente, com a sua resposta à notificação prevista no n.º 1 do artigo 578.º do CPC, ao propor a ampliação do objecto da perícia, “aderiu” ao objecto desta diligência probatória, anteriormente proposto pela parte contrária.
Pensamos que sim.
O n.º 1 do artigo 578.º do CPC, que se transcreveu supra, prevê que o juiz ouça a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição.
Ora, não propondo a restrição nem a eliminação (ou rejeição) dos quesitos indicados pela contraparte requerente da perícia, limitando-se a propor a sua ampliação, com novos quesitos que formulou, deverá entender-se que a ora recorrente adere ao objecto da perícia já proposto, preconizando que, a par desse objecto, seja também produzida prova sobre outros factos.
Como refere Antunes Varela[1], a contraparte pode ter também legítimo interesse na realização da perícia, e pode inclusivamente não a ter requerido no tempo oportuno, por saber que ela tinha sido, ou ia ser requerida, e podia participar nela.
O mesmo raciocínio aplica-se à situação em que a parte que não requereu inicialmente a perícia, ao ser notificada para os efeitos do n.º 1 do artigo 578.º do CPC, pretendendo ver produzida prova sobre os factos indicados pelo requerente, se limite a adicionar quesitos, face à manifesta inutilidade de requerer prova sobre quesitos já propostos e aceites pelo tribunal.
Ou seja: quando a ora recorrente foi notificada para os efeitos do n.º 1 do artigo 578.º do CPC, aceitou os quesitos formulados pela parte contrária (na medida em que não pediu a sua rejeição nem a sua restrição), não fazendo qualquer sentido que os formulasse novamente[2], pelo que se limitou a requerer a ampliação do objecto daquele meio de prova.
Tendo aderido ao objecto da perícia, proposto pelos recorridos, a recorrente alega nas suas conclusões, que estes, em manifesto abuso de direito, desistiram da diligência probatória requerida, sem a sua anuência, a qual constitui condição imperativa para tal desistência, como decorre do disposto no artigo 576.º do CPC.
Mas terá ocorrido a desistência, a que se refere o artigo 576.º do CPC?
Vejamos.
Dispõe a norma invocada, que a parte que requereu a diligência não pode desistir dela sem a anuência da parte contrária.
De acordo com o despacho recorrido, os réus, que solicitaram a perícia ordenada nos autos, não efectuaram o pagamento do respectivo preparo para despesas, o que implica a não realização da diligência probatória que requereram, nos termos do n.º 1 do artigo 45.º do CCJ.
Como refere Alberto dos Reis[3], a desistência é sempre um acto unilateral, mesmo nas situações em que depende da aceitação da contraparte, implicando tal acto, uma declaração de vontade da parte.
Contrariamente, na situação em apreço, o que se verifica, não é uma declaração de vontade dos réus, mas sim o incumprimento de um ónus que sobre eles recaía, face à sua qualidade de requerentes da diligência probatória (art. 44.º/1 do CCJ), correspondendo a tal omissão, a sanção de não realização da diligência requerida (art. 45.º/1 do CCJ).
Ainda que o não pagamento dos preparos indispensáveis à realização da diligência probatória requerida, possa ter sido motivado pela desistência dos requerentes[4], não estamos perante a desistência a que se reporta o artigo 576.º do CPC, que se materializa, necessariamente numa declaração de vontade no processo.
Registe-se que o artigo 46.º do CCJ, permite à parte contrária (neste caso, à ora apelante) o depósito do preparo omitido, nos cinco dias posteriores ao termo do prazo[5].
 Concluímos, face ao exposto, que improcede a argumentação da Apelante nesta parte, na medida em que não estamos perante uma desistência, para os efeitos do disposto no artigo 576.º do CPC, mas sim perante uma sanção decorrente do incumprimento de um ónus legalmente previsto como condição indispensável à realização da diligência requerida.
Em suma: a não realização da diligência, não resulta de manifestação de vontade dos requerentes (desistência), mas sim da aplicação pelo tribunal a quo de uma sanção que a lei prevê para o incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 44.º do CCJ.
Mas a questão essencial mantém-se: tendo a Apelante aderido ao objecto da perícia, proposto pelos Apelados, requerendo a ampliação de tal objecto, com a formulação de quesitos adicionais, e pagando o respectivo preparo[6], poderá legalmente ser-lhe vedado o direito à produção de prova sobre os quesitos aos quais aderiu?  
Pensamos que não, face aos argumentos que se seguem.
Como refere o Professor Alberto dos Reis[7], a anuência da parte contrária, para viabilizar a desistência do requerente, justifica-se pela necessidade de evitar que «seja vítima de manobra astuciosa do requerente».
O autor citado justifica a consagração legal da anuência da parte contrária, como condição de validade da desistência, afirmando que, caso não fosse exigida a anuência do requerido «podia suceder o seguinte: requerido arbitramento por uma das partes, a outra abstinha-se de o requerer, fiada em que aproveitaria a diligência promovida pelo seu antagonista para formular quesitos sobre factos que lhe interessaria fazer averiguar; passado o prazo legal (…) o requerente desistiria do exame ou vistoria e colocaria a parte contrária perante a impossibilidade de se servir deste meio de prova».
Ora, na situação sub judice, o interesse que o legislador visou acautelar, com a imperatividade da anuência da parte que não requereu inicialmente a diligência, acaba por ficar em causa, face à interpretação formal acolhida no despacho recorrido.
Com efeito, no despacho anterior certificado a fls. 17 destes autos, o tribunal a quo expressou o entendimento da pertinência da perícia: «Por entender que a perícia colegial não se afere por impertinente nem dilatória, ouça-se a A., nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 578.º do CPC…».
Sendo pertinente o objecto da perícia, e estando o tribunal legalmente vinculado à procura da verdade material (art. 265.º/3 CPC)[8], salvo o devido respeito, não fará sentido excluir do objecto da perícia (que se realizará agora a requerimento da Apelante), os quesitos sobre os quais a Apelante pretende produzir prova, formulados no requerimento dos Apelados, e aceites pelo tribunal.
Estamos perante um poder/dever, que vincula o tribunal, emergindo directamente do princípio consagrado no n.º 3 do artigo 265.º do CPC, expressamente referido no preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12, que introduziu a redacção do n.º 1 do artigo 578.º do CPC.
Como atrás se concluiu, deverá considerar-se que a ora Apelante, na sequência da notificação prevista no n.º 1 do artigo 578.º do CPC, ao propor a ampliação do objecto da perícia com a formulação de quesitos adicionais, sem requerer a restrição ou a rejeição dos anteriormente propostos pelos Apelados, usou a faculdade de “aderir” ao objecto proposto, prevista no citado normativo.
E “aderir” a esse objecto[9] (faculdade expressamente prevista no n.º 1 do artigo 578.º do CPC), só pode ter um significado: os quesitos em causa, apesar de inicialmente da iniciativa dos Apelados, passam a considerar-se propostos por ambas as partes.
Perante a conclusão enunciada, prosseguindo a perícia por iniciativa da Apelante (que para o efeito pagou o respectivo preparo), a mesma terá que ter por objecto: i) os quesitos que a Apelante formulou na sequência da notificação prevista no n.º 1 do artigo 578.º do CPC; ii) os quesitos inicialmente formulados pelos Apelados, aos quais a Apelante “aderiu”, nos termos do citado normativo.
Entendimento diverso, ressalvando sempre o devido respeito, traduzir-se-ia na violação do poder/dever que recai sobre o tribunal, de realização das diligências probatórias ou instrutórias indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos de que pode (e deve) legitimamente conhecer, tanto mais que, em despacho anterior, o tribunal a quo já reconhecera expressamente o carácter pertinente e não dilatório do objecto da perícia em causa.
De todo o exposto se conclui pela manifesta procedência do recurso.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual se concede provimento, e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, que determine a realização da perícia, tendo por objecto os quesitos inicialmente apresentados pelos Apelados, bem como os posteriormente propostos pela Apelante.
Custas do recurso pelos Apelados.
                                                                    *
O presente acórdão compõe-se de dez folhas com os versos não impressos e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
                                                          *



Carlos Querido
Emídio Costa
Gonçalves Ferreira


[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 586.
[2] O que se traduziria na prática de um acto inútil, proibida pelo artigo 137.º do CPC.
[3] Comentário, 3.º Volume, Coimbra Editora, pág. 462.
[4] Determinada por eventual alteração de estratégia processual, ou mesmo pelo custo da diligência.
[5] O que implicava uma grande atenção ao processado, já que a lei não prevê a notificação para o exercício desse direito.
[6] Registamos a este propósito, alguma surpresa, face à imperatividade do n.º 1 do artigo 44.º do CCJ, que expressamente prevê que a responsabilidade pelos preparos recaia exclusivamente sobre quem requereu a diligência. Concluindo-se que os preparos não seriam devidos pela ora Apelante, o pagamento indevidamente efectuado poderia ser interpretado como utilização da faculdade prevista no artigo 46.º do CCJ, legitimando a realização da diligência, com o objecto proposto pelos requerentes e pela requerida.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, 3.ª edição, reimpressão, 2007, pág. 191 e seguintes.
[8] O n.º 3 do artigo 265.º do CPC não integra uma simples faculdade de uso discricionário, mas um indeclinável compromisso do juiz com a verdade material, cujo não uso indevido é matéria sindicável, em via de recurso, pelo STJ – acórdão do STJ de 12.06.2003, CJ, II/2003, pág. 101.
[9] Consubstanciado nos quesitos formulados e propostos pelos Apelados.