Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
154/12.3TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RESPOSTA
EXCESSO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 264, 646 Nº4, 608 Nº2, 685-B CPC
Sumário: 1. O recurso da matéria de facto deve ser rejeitada quando o Recorrente não observa o disposto no artº 685 B nº 1 al. b) do C.P.C., não referindo os concretos meios probatórios que constam do processo e que impõem decisão diferente com referência a cada um dos factos que pretende ver alterados, apenas invocando os depoimentos das testemunhas que transcreve sem especificar a propósito de cada um, em que medida impunham uma resposta diferente da que foi dada pelo tribunal “a quo” a cada um dos concretos pontos que pretende ver alterados.

2. A resposta dada pelo tribunal sobre factos que não foram alegados pelas partes e que não integram a causa de pedir, é excessiva, pelo que tais factos não podem ser considerados na decisão.

3. As questões novas suscitadas pela parte apenas em sede de recurso, que não foram alegadas oportunamente, nem consideradas pelo tribunal, nos termos do artº 608 nº 2 do N.C.P.C., não podem por isso ser levadas em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal de recurso.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I. Relatório
O autor J (…) intentou contra o Clube B...., a presente acção declarativa comum sob a forma sumária pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 25.505,79 acrescida de juros vencidos à taxa legal de 4% a contar da citação.
Fundamenta o seu pedido no facto de ter emprestado ao réu, em 2009, a quantia de € 25.000,00 com vista ao pagamento de dívidas do réu ao Banco, que ficou de lhe restituir quando recebesse do negócio da venda do campo de jogos. Recebido o dinheiro da rescisão de tal negócio o réu não lhe pagou; além disso, a pedido do réu, procedeu ao pagamento da reparação de um veículo, que ascendeu ao montante de € 505,79 quantia esta que o réu também ainda não lhe pagou.
Devidamente citado o R. veio contestar, invocando a excepção de erro na forma de processo e impugnado o alegado pelo A. No que concerne ao empréstimo de €25.000,00 refere que para tal empréstimo ser válido o mesmo tinha que ter sido celebrado por escritura pública, uma vez que o mesmo era superior a 20.000,00 além de que teria que ter sido decidido, validado e aprovado em reunião de Direcção, e que nada consta das actas de reunião da Direcção. Relativamente à quantia de € 505,79 diz desconhecer igualmente a que título tal quantia alegadamente foi entregue (se a título de empréstimo se qualquer outro acordo entre as partes). Refere desconhecer se foi assumida obrigação de restituir qualquer montante ao autor e, na afirmativa, em que termos. Mais refere que a ter ocorrido um empréstimo teria sido em 2004 e face ao enquadramento jurídico feito pelo autor - instituto do enriquecimento sem causa- invoca a prescrição, uma vez que já decorreram mais de três anos. Finalmente, peticiona a condenação do autor como litigante de má-fé.
            O A. veio responder às excepções deduzidas, pedindo a sua improcedência.
            Foi proferido despacho saneador afirmando a validade e regularidade da lide, conhecendo-se da excepção de erro na forma do processo, a qual foi julgada improcedente. Foi dispensada a selecção da factualidade assente e a organização da base instrutória.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, tendo sido proferida decisão quanto à matéria de facto controvertida, a qual não mereceu qualquer reclamação.
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando o R. no pagamento da quantia peticionada.
Inconformado com esta decisão vem o R. interpor recurso da mesma, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e pedindo a revogação da sentença proferida, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1 - Os factos dados como provados pela Srª Juiz “a quo” não correspondem ao alegado pelo A.
2 - Sendo certo que o Tribunal está vinculado a tal alegação, só podendo dela extrapolar nos termos do disposto no art. 608º nº 2 do C.P.C.
3 - Atendendo ao alegado pelo A. no seu articulado inicial, e ao depoimento prestado em audiência pelas diversas testemunhas ouvidas, outro teria que ter sido o entendimento da Mmª Juiz “a quo”, devendo considerar-se incorrectamente julgados os pontos de facto nºs 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados;
4 - A Mmª Juiz “a quo” deu como não provado que “o autor emprestou € 25.000,00 ao réu no ano de 2009”, contrariando, assim, o alegado pelo próprio A. na p.i. sendo este o facto nuclear e fundamentante do pedido;
5 - Face ao depoimento das testemunhas, deveria o Tribunal de 1ª instância ter considerado não se tratar de um empréstimo que tenha sido discutido, validamente decidido e aprovado pela direcção do Clube;
6 - Pelo que não vincula o Clube ora Réu;
7 - Sendo, como tal, o Réu parte ilegítima na acção.
8 - Tal ilegitimidade, sendo uma excepção dilatória nos termos do disposto no art. 577º do CPC é de conhecimento oficioso (cfr. art. 578º do C.P.C.);
9 - E implica a absolvição do Réu da instância (art. 278º do C.P.C.);
10 - O Tribunal não pode julgar um facto como assente sem que se tenha feito qualquer prova sobre o mesmo, tendo a Mmª Juiz “a quo” feito um interpretação menos correcta do disposto no art. 607º nº 4 “in fine” do C.P.C..
11- Quanto à decisão de pagamento da reparação da viatura particular do treinador do Clube, não se provou tal reparação;
12 - E, a considerar-se ter existido a reparação, não se provou que a ordem de pagamento da mesma emanou da Direcção do Clube;
13 – Tendo resultado provado que a mesma emanou da vontade própria do Presidente de então.
14 - Encontrando-se incorrectamente julgado o ponto 5 ao determinar-se que “O réu, através do seu Presidente, solicitou ao Autor que procedesse ao pagamento da reparação do carro referido em 4., que ascendeu a cerca de €505,79, comprometendo-se a devolver tal quantia ao autor”.
15 – Sem conceder, a considerar-se que o empréstimo dos € 25.000,00 e dos € 505,79 existiu e foi efectuado a pedido do Réu, sempre o Tribunal recorrido deveria ter considerado provado ter sido estipulado entre A. e Réu que este pagaria tais valores quando pudesse, quando tivesse disponibilidade financeira para tal.
16- Pelo que sempre o Tribunal “ a quo” teria que atender ao disposto no art. 778º nº 1 do Código Civil, que estatui que “se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir”.
17 - Para poder exigir o cumprimento, deveria ter o A. alegado e provado que o Réu devedor “dispõe de meios económicos bastantes para efectuar a prestação, sem que esta o deixe em situação precária ou difícil (in A. Varela, Obrigações, 2ª ed. 2º-45).
18 - Por outro lado, ainda que se considerasse assistir razão ao A., sempre subsistiria a questão da determinação do prazo de cumprimento da prestação, já que não foi acordada a fixação de qualquer prazo;
19 - Sendo necessário fixar tal prazo, atenta a natureza da prestação e também atentas as circunstâncias que a determinaram;
20 - Caso em que deveria o A. ter requerido ao tribunal a fixação do prazo para o cumprimento da obrigação (cfr. art. 777º do Código Civil).
21- O art. 47º nº 1 dos Estatutos do Clube exara que compete à Direcção “dirigir, administrar e zelar os interesses do Clube, e os actos decorrentes, sendo necessário pelo menos três assinaturas, sendo uma delas obrigatóriamente do Presidente da Direcção e as restantes de dois Vice-Presidentes”.
22 - O art. 47º nº 1 dos Estatutos do Clube Réu, não foi respeitado;
23 - Trata-se, assim, de empréstimos, a todos os títulos, pessoais, à pessoa do então presidente do Clube.
24 - E não ao Clube ora Réu;
25 - Tendo o presidente do clube dado o destino que bem entendeu aos montantes que ele próprio, à revelia do Clube, decidiu pedir;
26 - Pelo que quem o A. deve accionar judicialmente é o Presidente de então e não o Clube;
27 - Assim, deveria ter sido proferida decisão no sentido de considerar que o empréstimo foi concedido ao então Presidente do Réu e não ao Réu.
28 - E, “mutatis mutandis”, quanto à ordem de pagamento da reparação da viatura pessoal do treinador do Clube.
29 - Ambas as decisões foram tomadas à revelia da Direcção, sem serem discutidas, votadas, aprovadas e vertidas em acta.
30 – O Tribunal “ a quo” fez uma menos correcta interpretação, violando-o, do disposto no art. 47º nº 1 dos Estatutos do Clube Réu;
31 – Bem como do disposto nos artigos 708º nº 1 do Código Civil e arts. 607º nº 4, 608º nº 2, 577º, e 278º do C.P.C.;
32 – Pelo que, proferindo-se decisão que, alterando a proferida em primeira instância, julgue o Réu parte ilegítima na acção absolvendo-o da instância ou, sem conceder, improcedente a acção nos moldes supra expostos se fará a costumada JUSTIÇA!
O A veio apresentar contra alegações pugnando pela improcedência do recurso, concluindo que:
1º- O recurso é extemporâneo;
2º- Os empréstimos foram feitos pelo Recorrido ao Recorrente e 2004 e estes foram titulados por cheque passado em 2009 e sem data;
3º- Os factos dados como provados assentam nos documentos juntos e nos depoimentos das testemunhas ouvidas;
4º- Não há fundamento para alterar a matéria de facto dada como provada;
5º- O recurso não pode ter provimento.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões (artº 635 nº 4 e 639 nº 1 a 3 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 608 nº 2 in fine:
- do erro de julgamento quanto aos pontos de facto enunciados nos nº 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados;
- dos factos dados como provados pela Srª Juiz “a quo” não corresponderem ao alegado pelo A., tendo sido extrapolado o disposto no artº 608º nº 2 do C.P.C. quando é dado como assente a realização de dois empréstimos em 2004 tendo sido invocado um empréstimo em 2009;
- de, a estar em causa um empréstimo, o mesmo não ter sido validamente decidido e aprovado pela direcção do Clube, não vinculando o Réu que, como tal é parte ilegítima na acção, devendo o pedido dirigir-se ao Presidente do Clube;
- de, a estar em causa um empréstimo, ter de considerar-se provado ter sido estipulado entre A. e R. que este pagaria tais valores quando pudesse, não tendo sido fixado qualquer prazo para o seu cumprimento.
III. Fundamentação de facto
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal “a quo”:
            1. O Autor fez parte da direcção do Réu.
2. O Réu, na pessoa do seu então Presidente, solicitou ao Autor o empréstimo da quantia de €25.000,00, comprometendo-se a restitui-la.
3. Nessa sequência, o Autor emprestou ao Réu, no ano de 2004, em duas ocasiões distintas, as quantias de €10.000,00 e €15.000,00.
4. Em data não concretamente apurada, o réu solicitou, a uma empresa de Pataias, a reparação do carro do seu treinador.
5. O réu, através do seu Presidente, solicitou ao Autor que procedesse ao pagamento da reparação do carro referido em 4., que ascendeu a cerca de €505,79 comprometendo-se a devolver tal quantia ao autor.
6. O autor procedeu ao pagamento da quantia referida em 5.
7. O réu não restituiu ao autor a quantia referida em 3.
8. O réu não restituiu ao autor a quantia referida em 5.
- do erro de julgamento quanto aos pontos de facto enunciados nos nº 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados;
Nos termos do nº 1 do artigo 712º do Cód. Proc. Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º- B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Acrescenta o nº 2 deste artigo que: “No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do Recorrente e do Recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.”
Por seu turno, o artº 685- B impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo que, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, deve o Recorrente especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Verifica-se, contudo, que o Recorrente nas suas alegações de recurso apresentadas não dá cumprimento ao disposto no artº 685- B nº 1 b) e nº 2 do CPC, o que constitui um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que foi objecto de impugnação e que implica, nos termos da norma mencionada, a imediata rejeição do mesmo, no que à impugnação da matéria de facto se refere.
Constata-se que o Recorrente embora invoque que estão incorrectamente julgados todos os factos que o tribunal teve como provados, com excepção do que vem descriminado no ponto 1, não indica qual o sentido da resposta que deve ser dada. No entanto, quanto a tal questão poderia inferir-se “a contrario” que o pretendido é que os mesmos não sejam considerados provados.
Vem o Recorrente referir que, atendendo ao depoimento prestado em audiência pelas diversas testemunhas ouvidas, outro teria de ter sido o entendimento do tribunal, devendo considerar-se incorrectamente julgados os pontos de facto 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
A Recorrente invoca o depoimento das testemunhas (…)indicando excertos dos seus depoimentos e fazendo em simultâneo diversas considerações jurídicas, que não distingue da apreciação que faz dos factos. Refere ainda passagens dos depoimentos das testemunhas (…), dos quais não tira qualquer ilação em concreto quanto aos factos que considera incorrectamente julgados. O Recorrente não efectua qualquer correspondência da parte dos depoimentos das testemunhas que invoca, com cada um dos factos cuja resposta pretende ver alterada, antes põe em causa de forma genérica praticamente a totalidade dos factos que foram tidos como provados, limitando-se a reproduzir o depoimento das testemunhas ouvidas a par de considerações de direito que vai fazendo.
Revelador de tudo isto é, desde logo, a conclusão que expressa, após a indicação e transcrição dos depoimentos das testemunhas: “Pelo exposto, dúvidas não restam de que os factos que resultaram provados tiveram por base uma incorrecta interpretação dos depoimentos das testemunhas ouvidas, sendo certo que, face a tais depoimentos, outros teriam que ser os factos assentes/não assentes.”
O Recorrente não observa o disposto na al. b) do artigo mencionado, pois não refere os concretos meios probatórios que constam do processo e que impõem decisão diferente com referência a cada um dos factos que pretende ver alterados, invocando os depoimentos das testemunhas que transcreve sem especificar a propósito de cada um, em que medida impunham uma resposta diferente da que foi dada pelo tribunal “a quo” a cada um dos concretos pontos que pretende ver alterados.
Em face do exposto, conclui-se que o Recorrente não deu cumprimento ao disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 685- B do C.P.C., o que determina a rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita, de acordo com o que dispõem essas mesmas normas, o que se determina.
Tal não significa, contudo, como se verá, que todos os factos que foram tidos como provados pelo tribunal “a quo” devam ser considerados na decisão.
V. Razões de direito
- dos factos dados como provados pela Srª Juiz “a quo” não corresponderem ao alegado pelo A., tendo sido extrapolado o disposto no artº 608º nº 2 do C.P.C. quando é dado como assente a realização de dois empréstimos em 2004, tendo sido invocado um empréstimo em 2009.
Refere o Recorrente que o tribunal “a quo” deu como provados factos que não têm correspondência no que foi articulado pelo A., quando estava vinculado a tal alegação.
E tem razão. Senão vejamos.
Em primeiro lugar, há que ter em conta que, no processo civil, vigorando o princípio do dispositivo, o juiz está impedido de levar em consideração factos que não foram alegados pelas partes, nos termos do estabelecido nos artº 664 e 264 do C.P.C. com as excepções aí previstas, o que vem agora sistematizado no artº 5º do C.P.C. com a epígrafe “ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”.
Consagra o artº 664 do C.P.C. que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante ao direito, mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artº 264 do C.P.C. Esta norma, consagra o princípio do dispositivo, de acordo com o qual, conforme dispõe o seu nº 1, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, ainda que, conforme acrescenta o nº 2 deste artigo, sem prejuízo dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
O facto ou factos que integram a causa de pedir, são aqueles em que o A. assenta a sua pretensão e do qual emerge o seu direito. Com total pertinência para esta questão, diz-nos Alberto dos Reis, in. Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 123: “Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas o facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na definição legal. Por outras palavras: se eu demando certa pessoa com base num contrato de compra e venda, a causa de pedir da acção não é a categoria legal contrato de compra e venda; é aquele contrato particular de compra e venda que eu invoco e identifico.”
Constata-se assim, que o poder de cognição do juiz, no que se refere aos factos, está, no essencial, (excepcionando os factos instrumentais, complementares, factos notórios ou aqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude das suas funções) limitado aos factos concretos que são alegados pelo A. e que integram a causa de pedir que serve de base à sua pretensão e que são alegados pelo R. fundamentando as excepções que invoca.
Diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/06/2001, in. www.dgsi.pt que: “Se determinada medida de tutela jurídica não tiver sido oportunamente pedida ou determinados factos não tiverem sido alegados, o princípio do dispositivo obsta a que o tribunal deles conheça, sob pena de nulidade, pois nesse caso haverá excesso de pronúncia, ou pronúncia indevida, na medida em que o julgado não coincide com o pedido ou com a causa de pedir.”
Passando agora para o caso concreto, verificamos que uma parte dos factos que foram considerados provados pela Exmª Juiz “a quo” não foram efectivamente alegados pelo A., nem se reportam à relação jurídica por ele configurada na sua petição inicial. Constata-se aliás que, na resposta à matéria de facto, no elenco dos factos que o tribunal “a quo” tem como provados não é feita qualquer correspondência entre os factos descriminados e os articulados das partes onde tais factos são alegados.
Vejamos de forma descriminada os factos que foram considerados provados e não provados e a sua correspondência (ou não) com a matéria alegada pelas partes:
O A. fez parte da direcção do R. (artº 1º da p.i.)
O R. na pessoa do seu então Presidente, solicitou ao A. o empréstimo da quantia de €25.000,00 comprometendo-se a restitui-la e nessa sequência, o A. emprestou ao R., no ano de 2004, em duas ocasiões distintas, as quantias de €10.000,00 e €15.000,00 não tendo o R. restituído ao A. tal quantia (sem correspondência nos factos alegados na p.i.).
Em data não concretamente apurada, o R. solicitou, a uma empresa de Pataias, a reparação do carro do seu treinador. (artº 10º da p.i.)
O R. através do seu Presidente, solicitou ao A. que procedesse ao pagamento da reparação do carro referido em 4., que ascendeu a cerca de €505,79 comprometendo-se a devolver tal quantia ao A, e o A. procedeu ao pagamento da quantia referida. (artº 12º e 13º da p.i.).
O R. não restituiu ao A. a quantia referida em 5. (artº 15º da p.i.).
Por seu turno, foi considerado “não provado” que o A. emprestou € 25.000,00 ao R. no ano de 2009 (matéria alegada nos artº 2º, 3º e 6º da petição inicial), verificando-se ainda que o tribunal não considerou também na resposta à matéria de facto, de forma descriminada, outros factos alegados pelas partes, optando apenas por referir que os demais factos configuram juízos conclusivos e/ou de direito. Terá de concluir-se que a partir do momento em que não ficou provada a existência de um empréstimo de € 25.000,00 em 2009 os factos alegados nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 7º e 8º, por dependentes daquele facto com o qual estão directamente relacionados e datados no tempo, também não ficaram provados.
Verifica-se assim que a Exmª Juiz “a quo”, por um lado, não considerou provados os factos que foram alegados pelo A. na sua petição inicial que, a provarem-se, permitiriam configurar a existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes em 2009, no valor de € 25.000,00 e, por outro lado, considerou provados factos que não foram alegados pelo A. e que não podem deixar de configurar uma relação jurídica diferente- dois empréstimos realizados em 2004, um de € 10.000,00 e outro de € 15.000,00.
E não se diga que tais factos foram alegados pelo R. É que, sendo certo que tal matéria nunca seria matéria de excepção, o R. na sua contestação apenas admite de forma hipotética a existência de tais empréstimos (artº 11 da contestação: a ter existido algum empréstimo…), referindo a esse respeito a menção que o A. terá feito à sua existência numa Assembleia do Clube. Nunca o R. alega que os referidos empréstimos existiram, mas apenas que o A. assim o dizia.
Conclui-se por isso que a Exmª Juiz “a quo” excedeu-se na pronúncia que lhe é permitida sobre os factos, dando como provados factos que não foram alegados, tendo depois configurado uma relação jurídica diversa daquela que foi invocada pelo A. na sua petição inicial e na qual o mesmo fundamentou a sua pretensão. E não se diga que está apenas em causa uma questão de lapso nas datas por parte do A., já que o mesmo invocou um pedido de empréstimo por parte da R. de € 25.000,00 em 2009 decorrente de alegada dívida da R. ao Banco Millenium BCP, ficando acordado que o valor seria pago quando recebesse da empresa Leclerk na sequência de negócio com ela celebrado e o tribunal considerou provada a existência de dois empréstimos, em 2004 de € 10.000,00 e € 15.000,00 que não têm aqueles contornos. Não pode deixar de entender-se que está em causa uma relação jurídica diversa daquela que sustenta o pedido formulado.
Tal como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/11/2013, in. www.dgsi.pt :” É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC de 1961 e 5 nº 1 do NCPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes. Esse poder de disposição quanto aos factos da causa, corresponde um limite do julgamento: o juiz não pode utilizar factos que as partes não tragam ao processo (artº 664 do CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da designação impugnada). Correspondentemente, o decisor da matéria de facto não pode pronunciar-se sobre facto que as partes não tenham alegado. Caso o faça, essa resposta deve considerar-se não escrita, portanto, inexistente (artº 646 nº 4 do CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada, por interpretação extensiva).
É assim forçoso concluir que os pontos de facto elencados sob os nº 2, 3 e 7 da decisão recorrida que correspondem à resposta dada pelo tribunal sobre factos que não foram alegados, é excessiva, por ir claramente além dos factos invocados na petição inicial, pelo que não podem ser considerados.
Por outro lado, na medida em que não resultaram provados os factos alegados pelo A. na petição inicial que, a provarem-se, permitiriam configurar a existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes em 2009, no valor de € 25.000,00, não logrando o A. fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito, nos termos do artº 342 nº 1 do C.Civil, já se vê que não há suporte fáctico para a condenação do R. nesta parte do pedido formulado, impondo-se a revogação da sentença recorrida na parte em que condena o R. a restituir ao A. a quantia de € 25.000,00 acrescida de juros de mora.
 - de, a estar em causa um empréstimo, o mesmo não ter sido validamente decidido e aprovado pela direcção do Clube, não vinculando o Réu que, como tal é parte ilegítima na acção, devendo o pedido dirigir-se ao Presidente do Clube.
Confunde o R. a questão da ilegitimidade, enquanto pressuposto processual com a questão da procedência ou improcedência da acção.
O artº 26 C.P.C., que tem a sua equivalência no actual artº 30 do NCPC estabelece que o A. é parte legitima quando tem interesse directo em demandar, e o R. quando tem interesse directo em contradizer, o que se exprime, respectivamente, pela utilidade ou pelo prejuízo que lhe pode advir da procedência da acção; o nº 3 do artigo mencionado refere que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo A. na petição inicial.
            No caso em presença, o A. propõe a presente acção contra o R. pedindo a restituição de valores que alegadamente lhe mutuou em acordo com ele celebrado.
            Ora, já se vê que, considerando os factos alegados pelo A., e na perspectiva dele, foi com o R. enquanto pessoa colectiva que foi estabelecida a relação negocial que fundamenta o pedido formulado. Referindo o R., na sua contestação, a inexistência de tais contratos, tem o mesmo interesse directo em contradizer, o que foi apreciada no momento em que foi proferido o despacho saneador.
            Em face do pedido formulado e dos factos alegados não pode deixar de concluir-se que o R. é parte legítima por ter interesse directo em contradizer.
            As questões suscitadas pelo R. terão que ser apreciadas e decididas configurando-se como questões de procedência ou improcedência da acção e não de legitimidade, conclui-se que o R. é parte legítima.
Refere ainda a Recorrente a este propósito, que não se provou que tenha havido uma ordem de pagamento da reparação do veículo emanada da Direcção do Clube, tendo resultado provado que a mesma emanou da vontade própria do Presidente de então, pondo assim em causa a vinculação do R. através do seu Presidente.
A este respeito, conforme decorre do ponto 5 dos factos provados que não sofreu alteração, resultou provado que: “O réu, através do seu Presidente, solicitou ao Autor que procedesse ao pagamento da reparação do carro referido em 4., que ascendeu a cerca de €505,79 comprometendo-se a devolver tal quantia ao autor.”
A decisão sob recurso considerou a este propósito: “ Perante tal quadro, temos que o autor passou a deter um crédito sobre o réu, no exacto montante do que pagou, ou seja, a quantia de €505,79. Existe, assim, uma sub-rogação pelo devedor, ou seja, o terceiro que cumpre a obrigação pode ser igualmente sub-rogado pelo devedor até ao montante do cumprimento, sem necessidade do consentimento do credor. Finalmente, e uma vez que o réu refere em sede de contestação não saber em que reunião de Direcção foi tomada a decisão de custear tal reparação do carro do treinador (cfr. artigo 24.º da contestação), importa, referir que, tal desconhecimento, só por si, não acarreta qualquer consequência jurídica, sendo certo que, daí, o próprio também não retira qualquer consequência. De referir que, ainda que tal “decisão” acabasse por violar os fins associativos, quando muito quem tomou a decisão pode responder civilmente perante a agremiação desportiva por actos ilícitos e danosos praticados com dolo ou mera culpa (cfr. artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais).”
Os factos revelam-nos que estava em causa uma dívida do R. que o A. pagou a pedido do Presidente do mesmo, não tendo por isso este agido em nome próprio mas antes em representação do R. Não pode assim dizer-se, como faz o Recorrente, que se trata de uma dívida do Presidente e não do R. Tal não tem qualquer correspondência nos factos apurados, além de que, se o Presidente do Clube excedeu os seus poderes ou competências, é o R. que tem de lhe pedir contas, conforme se refere na decisão sob recurso.
Não tem por isso razão o Recorrente com esta questão suscitada, mantendo-se, nesta parte a decisão recorrida.
- de, a estar em causa um empréstimo, ter de considerar-se provado ter sido estipulado entre A. e R. que este pagaria tais valores quando pudesse, não tendo sido fixado qualquer prazo para o seu cumprimento.
Estas questões suscitadas pelo Recorrente ficam prejudicadas com a apreciação feita da situação anterior, na medida em que, como se viu, relativamente ao invocado empréstimo o mesmo não ficou provado e relativamente ao pagamento da reparação do veículo do R. pelo A., o tribunal “a quo” qualificou a questão no âmbito do instituto da transmissão de créditos previsto no artº 590 nº 1 do C.Civil, no cumprimento de uma obrigação do R. efectuada pelo A., que assim ficou sub-rogado no crédito correspondente ao valor pago pela reparação do veículo, e não na existência de um contrato de mútuo, o que não mereceu discordância específica por parte do R. no seu recurso.
De qualquer forma, constata-se que estas questões agora invocadas em sede de recurso, quanto ao prazo do pagamento do alegado empréstimo e subordinação do pagamento às possibilidades financeiras do R., são questões novas, que não foram alegadas oportunamente, nem resultaram provadas, não podendo por isso ser levadas em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal, nos termos do disposto no artº 608 nº 2 do C.P.C.
Com total pertinência para esta questão, diz-nos de forma sintética o Acórdão do Tribunal da Reção de Coimbra de 22/102013, in. www.dgsi.pt :“ no direito português, os recursos ordinários, como é o caso, são de reponderação; visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Daí o dizer-se que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas; estando por isso excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso…”
Ora, esta situação agora suscitada pelo R. de que, a existir uma obrigação de restituição a mesma estaria sempre subordinado às suas possibilidades financeiras, é uma questão completamente nova, que não foi oportunamente alegada pelo R. e por isso não decidida na 1ª instância, não podendo por isso aqui ser reapreciada.
V. Sumário:
1. O recurso da matéria de facto deve ser rejeitada quando o Recorrente não observa o disposto no artº 685 B nº 1 al. b) do C.P.C., não referindo os concretos meios probatórios que constam do processo e que impõem decisão diferente com referência a cada um dos factos que pretende ver alterados, apenas invocando os depoimentos das testemunhas que transcreve sem especificar a propósito de cada um, em que medida impunham uma resposta diferente da que foi dada pelo tribunal “a quo” a cada um dos concretos pontos que pretende ver alterados.
2. A resposta dada pelo tribunal sobre factos que não foram alegados pelas partes e que não integram a causa de pedir, é excessiva, pelo que tais factos não podem ser considerados na decisão.
3. As questões novas suscitadas pela parte apenas em sede de recurso, que não foram alegadas oportunamente, nem consideradas pelo tribunal, nos termos do artº 608 nº 2 do N.C.P.C., não podem por isso ser levadas em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal de recurso.
VI. Decisão:
Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo R., revogando-se parcialmente a sentença recorrida na parte em que condena o R. pagar ao A. a quantia de € 25.000,00 acrescida de juros de mora e absolvendo-se o R. deste pedido, mantendo-se a decisão na parte restante.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.
Notifique.
*
                                               Coimbra, 14 de Janeiro de 2013
           

                                               Maria Inês Moura (relatora)
                                               Fernando Monteiro (1º adjunto)
                                               Luís Cravo (2º adjunto)