Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1506/03.5TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
PRESTAÇÃO
FRESTA
SERVIDÃO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 02/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 829º-A, Nº 1; 1363º, Nº 2; 1544º E 1568º DO C. CIV.
Sumário: I – A sanção pecuniária compulsória prevista no artº 829º-A do C. Civ. tem-se como uma medida coercitiva, de natureza pecuniária, consubstanciando uma condenação acessória da condenação principal.

II – O seu escopo não é, propriamente, o de indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, mas o de incitar o devedor ao cumprimento do julgado, sob a intimação do pagamento duma determinada quantia por cada período de atraso no cumprimento da prestação ou por cada infracção.

III – O nº 1 do artº 829º-A, C. Civ. assume uma vertente sancionatória de natureza judicial reservada às obrigações de prestação de facto infungível.

IV – De acordo com o disposto no artº 767º do C. Civ., o cumprimento por terceiro só não é admissível – sendo, nesse caso, a prestação infungível -, se tiver sido acordado expressamente que a prestação deve ser feita pelo devedor, ou se a substituição por outrem prejudicar o credor.

V – Saber se a prestação é ou não fungível é uma questão cuja resposta se surpreende, em termos práticos, na afirmação ou na negação da possibilidade de aquela poder ser cumprida por terceiro.

VI – O artº 1544º do C. Civ. estipula que a servidão predial pode ter por objecto quaisquer utilidades susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante – pelo que são admissíveis casos de servidões atípicas (de ar e de luz).

VII – O elemento fulcral de diferenciação das frestas relativamente às janelas prende-se com determinadas características destas aberturas, consideradas elas em diversas dimensões e localização, aferidas relativamente ao prédio no qual existam – artº 1363º, nº 2, do C. Civ..

VIII – Porém, se uma determinada abertura consubstanciar não uma janela mas uma fresta irregular, pode ter-se constituído a favor do prédio dos autores e a onerar o contíguo prédio dos réus, por usucapião, não uma servidão de vistas, nos termos em que esta é prevista no artº 1362º do C. Civ., mas antes uma servidão atípica, de vistas, entrada de ar e de luz.

IX – Aos RR., neste caso, está vedado impedir ou estorvar o exercício dessa servidão – artº 1568º C. Civ.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - 1) - A.... e mulher, B.... residentes em Pombal, intentaram, em 23/05/2003, no Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, contra C....e mulher, D...., acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a condenação dos RR:

a) A reconhecer que os Autores são donos do prédio identificado no artigo 1º da p.i.;

b) A reconhecer que os Autores têm direito de servidão de vistas sobre a janela pertencente ao prédio dos Autores, e identificada no artigo 2º, da p.i.;

c) A repor, por sua conta, a situação de servidão de vistas que os Autores usufruíam da janela identificada no artigo 2º da p.i., demolindo o muro e restante construção à sua custa;

d) A pagar aos Autores, a título de indemnização compulsória a quantia diária de € 50, desde a data do trânsito em julgado da sentença, até que estes cumpram o decidido na mesma.

Alegaram, em síntese, que existindo, no prédio urbano de sua propriedade, há mais de 50 anos, uma janela que deita directamente para o terreno pertencente aos RR., sem que jamais se verificasse qualquer impedimento, por parte desse prédio, a que a dita janela recebesse a luz do sol e pudesse ser aberta, tendo eles, AA, adquirido o direito de servidão de vistas, no dia 18/10/2000 os RR construíram uma parede encostada a essa janela, tapando-a completamente.

2) - Os RR contestaram a acção, negando a existência de qualquer direito de servidão de vistas por parte dos AA, alegando, além do mais, que a abertura em questão constitui frestas e não uma janela e que as mesmas foram apenas toleradas pelo anterior dono da fracção e a pedido das inquilinas. Pugnaram pela improcedência da acção, com a sua absolvição dos pedidos.

3) – Oferecendo réplica, pediram os AA a condenação dos RR. a pagarem-lhes, como litigantes de má fé, uma indemnização não inferior a 1.000 euros.

4) - Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

B) - 1) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida sentença (em 12/02/2009 - fls. 191 a 204), que, na parcial procedência da acção, absolvendo-os do demais peticionado, condenou os RR:

- A reconhecerem que os AA. são donos do prédio urbano sito na ....., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Pombal sob o artigo XXXX.....;

- A reconhecerem que está constituída a favor de tal prédio uma servidão de vistas através da janela referida no ponto 5 dos factos provados;

- A demolirem a parede (amovível) que colocaram a menos de metro e meio da janela em questão, bem como a cobertura que impede a circulação de ar e a vista e diminui a entrada de claridade e luz.

2) - Inconformados com tal sentença, dela recorreram os Réus, bem assim como, subordinadamente, os Autores, recursos esses admitidos como apelações, com efeito meramente devolutivo.

C) - Na douta alegação de recurso que ofereceram, os Réus apresentaram as seguintes conclusões:

         [……………………………………………………….]

Terminaram, defenderam a procedência do recurso e a revogação da sentença impugnada.

D) - No que concerne ao recurso subordinado dos Autores, remataram estes as respectivas e doutas alegações, com as seguintes conclusões:

         [……………………………………………………..]

Finalizaram, pugnando pela revogação da sentença, na parte em que dela recorrem.

E) - Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC (Código de Processo Civil)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2., “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr. Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586)[2].

Assim, as questões que cumpre solucionar consistem em saber:

- Se ocorrem as nulidades de sentença previstas no n.º 1 do artigo 668.º do CPC e arguidas no recurso subordinado;

- Se ocorre a contradição ou o excesso que os RR apontam à matéria de facto provada;

- Se é de proceder à alteração da matéria de facto em que se fundou a douta sentença recorrida;

-Se se verificam as inconstitucionalidades que no recurso subordinado se invocam (violação dos art.ºs 13º, 20º, 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa - CRP).

- Se, em face da factualidade que se tenha como provada, é correcta a parcial procedência da acção, nos termos decididos na sentença recorrida.

II - Fundamentação:

[……………………………………….]

2) - Se ocorre a contradição ou o excesso que os RR apontam à matéria de facto provada.

[…………………………………………]

Deste modo, a matéria de facto que se tem por provada é aquela que assim foi considerada na sentença recorrida e que acima já foi elencada (II - A)).

4) - Se se verificam as inconstitucionalidades que no recurso subordinado se invocam (violação dos art.ºs 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da Constituição da República Portuguesa - CRP).

 

Sendo manifesto que nos feitos submetidos a julgamento os Tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (art.º 204º da CRP), não se detecta que preceito(s) haja aplicado o Tribunal “a quo” em desconformidade com normas ou princípios Constitucionais.

A decisão recorrida, foi, como acima se explicitou, fundamentada.

O alegado pelos AA. Apelantes quanto aos preceitos constitucionais indicados, fica-se, salvo o devido respeito, por uma inconsequente arguição, que não se confunde com o cabal suscitar de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pois que não se assaca, a nenhum dos preceitos aplicados pelo Tribunal recorrido, o vício de contraditoriedade com normas ou princípios constantes da Constituição.

Efectivamente, no caso “sub judice”, se, por um lado, o Tribunal “a quo” não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, por outro, os recorrentes subordinados não imputam a qualquer norma aplicada pela 1.ª Instância a contraditoriedade que acima se apontou.

O que os Apelantes AA. suscitaram, a bem dizer, foi a “inconstitucionalidade” da decisão da 1.ª Instância; Não, propriamente, a inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo Tribunal “a quo”. Nesse sentido, são sintomáticas, por exemplo, as seguintes afirmações constantes das Alegações do recurso subordinado:

- «… A decisão recorrida, na parte de que se recorre, viola o disposto no artigo 205º da C. R. P., uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”.»;

- “…a decisão recorrida, na parte de que se recorre, viola do disposto no artigo 204º da C. R. P…”;

- «…a decisão sob recurso, na parte de que se recorre, tem de ser Revogada, até porque a mesma decisão viola além dos artigos 158º e 668º do Código do Processo Civil, o disposto nos artigos 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa por estar deficientemente fundamentada.»;

- «Viola o disposto no artigo 202º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, …».

Do exposto resulta, assim, que os AA. Apelantes não suscitaram, adequadamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.

Sempre se salientará, contudo, para além daquilo que acima já foi concluído quanto à existência de fundamentação a estribar a decisão recorrida, não se detectar que o Tribunal “a quo” haja aplicado qualquer norma que se repute de inconstitucional ou que haja sido interpretada por esse Tribunal em desconformidade com o consagrado na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, nos art.ºs 13º, 20º, 202º, 204º, 205º.

5) - Se, em face da factualidade que se tem como provada, é correcta a parcial procedência da acção, nos termos decididos na sentença recorrida.

Os Apelantes AA., defendendo a total procedência da acção, sustentam que os RR deveriam ter sido também condenados na peticionada sanção pecuniária compulsória.

A absolvição dos RR, no que tange o pedido em questão, fundou-se, a nosso ver, com razão, na fungibilidade da prestação de facto imposta aos RR, traduzida na demolição de parte do que haviam construído.

Vejamos.

A sanção pecuniária compulsória prevista no art.º 829º-A do CC tem-se como uma medida coercitiva, de natureza pecuniária, consubstanciando uma condenação acessória da condenação principal. O seu escopo não é, propriamente, o de indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, mas o de incitar o devedor ao cumprimento do julgado, sob a intimação do pagamento duma determinada quantia por cada período de atraso no cumprimento da prestação ou por cada infracção. A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, como se refere no próprio relatório do DL n.º 262/83, de 16 de Junho, “… uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.”.

O regime sancionatório previsto no art.º 829º-A do CC assume duas vertentes: uma de natureza judicial - a estabelecida no n.º 1 do preceito, reservada às obrigações de prestação de facto infungível; outra, de natureza legal, prevista no n.º 4 do artigo, estabelecida para os casos em que for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente.

De acordo com o disposto no art.º 767º, do CC, o cumprimento por terceiro só não é admissível - sendo, nesse caso, a prestação infungível -, se tiver sido acordado expressamente que a prestação deve ser feita pelo devedor, ou se a substituição por outrem prejudicar o credor.

Saber se a prestação é ou não fungível é, pois, questão cuja resposta se surpreende, em termos práticos, na afirmação ou na negação da possibilidade de aquela poder ser cumprida por terceiro.

Ora, não existe, no caso “sub judice”, qualquer impedimento a que as obras da demolição determinada na sentença, não sendo efectuados pelos RR ou a mando destes, sejam executadas por terceiros, em nada ficando prejudicados os AA por esse facto.

Daí que, em acção executiva para prestação de facto a que hajam de recorrer, caso as obras não sejam efectuadas pelos RR, seja possível aos AA, não obstante os condenados na prestação terem sido aqueles, requerer que esta seja efectuada por outrem (art.ºs 933º, n.º 1 e 935º do CPC).

Concluindo-se, pois, pela fungibilidade da prestação em causa, é manifesto o acerto do Tribunal “a quo” ao absolver os RR do pedido respeitante à sanção pecuniária compulsória[3].

Os AA também não concordam com a não condenação dos RR como litigantes de má fé, evidenciando que estes negaram factos que sabiam ser falsos, como a procedência da acção veio a comprovar.

Litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A condenação por litigância de má fé tem de se ancorar em factos, comprovadamente praticados no processo ou neste apurados e com relevância para a sorte da lide.
E esses factos têm de enquadrar a conduta do litigante, que se exige praticada com dolo ou negligência grave, em algum dos comportamentos tipificados nas várias alíneas do n.º 2, do art.º 456.º, do CPC.
Ora, salvo o devido respeito, não se vislumbra, em face da matéria apurada nos autos, que os RR tenham adoptado alguma das condutas acima elencadas susceptíveis de conduzir à respectiva condenação como litigantes de má fé.
Designadamente, a falta de prova, por parte dos RR, quanto a determinados factos que alegaram, não é, por si só, suficiente a integrar qualquer dos tipificados comportamentos, sendo que, como bem se salienta na sentença impugnada a maior parte dos factos por si alegados «…até resultaram provados (cfr. a resposta dada aos pontos 12º a 17º da base instrutória), situando-se a grande divergência entre as partes na qualificação jurídica da abertura em discussão nestes autos.».

Improcede, assim, o requerido quanto à condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Pretendem os RR a sua absolvição total, escudados na inexistência de qualquer servidão de vistas a onerar o seu prédio.

Para o efeito sustentam, essencialmente, que a abertura existente no prédio dos AA se deve entender como constituindo frestas e não uma janela.

Vejamos.

A sentença recorrida está muito bem elaborada, explicitando as razões pelas quais se entende estar-se em presença de uma janela, os motivos que levam a considerar ter-se constituído, por usucapião, uma servidão de vistas que onera o prédio dos RR, bem como os fundamentos que levaram a concluir pela necessidade de estes procederem à demolição que aí se determinou.

Contudo, para a hipótese de se entender que a dita abertura consubstanciava, não uma janela, mas antes frestas irregulares, escreveu-se na sentença impugnada:

«A nosso ver, o já aludido princípio do «numerus clausus» impede a aplicação do disposto no artigo 1362º, nº 1 do C.C., isto é, a constituição de servidão de vistas a partir de frestas irregulares .

Porém, o artigo 1544º do C.C. estipula que a servidão predial pode ter por objecto quaisquer utilidades susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, pelo que estamos perante servidões atípicas (de ar e luz) .

Se assim é, não pode o proprietário vizinho (do prédio serviente) levantar construção que tape tais aberturas, sob pena de o direito de servidão constituído ficar reduzido a quase nada . Aliás, o artigo 1568º do C.C. impede o proprietário do prédio serviente de estorvar o uso da servidão !

Pelo exposto, mesmo que se entendesse que a abertura existente no prédio dos AA. não era uma janela, mas frestas irregulares, concluiríamos igualmente que os RR. não podiam prejudicar o exercício da servidão atípica constituída por usucapião a favor do prédio daqueles, ou seja, impedi-los de a utilizar para os fins de fazer circular o ar, apreciar a vista e fazer entrar claridade e luz .

No sentido exposto, ver o Acórdão da Relação de Évora de 7/12/2006, processo 2282/06-2, in www.dgsi-pt .».

Ora, o nosso entendimento também é este que a Mma. Juiz explana sob a consideração de que a abertura em causa integra frestas irregulares.

Na verdade, as características da dita abertura não possibilitam que se considere a mesma como janela, ou como frestas regulares, sendo de relembrar que, situando-se no prédio dos AA e deitando directamente para o prédio dos RR contíguo, a dita abertura:

- Encontra-se à altura de 1,43 do sobrado (facto 12º);

- Contêm uma coluna ao centro, em tijolo e cimento, com a altura de 62 cm, pela largura de 10 cm (facto 13º);

- Possui barras de ferro, fixadas ao alto e cravadas no cimento, cada uma com a espessura de 25 mm e, especados com 15 mm uma das outras (facto 14º);

- Tem, ainda, do lado interior, dois vidros com 32 cm x 4 cm, fixados em armação de madeira (facto 15º);

- E, do lado exterior, contêm um aro em madeira, com rede mosquiteira, fixada em toda a sua extensão, tapando-a (facto 16º).

Assente está, também, que por tal abertura, “nenhuma pessoa adulta ou criança, consegue debruçar-se ou fazer passar a cabeça, o tronco ou lançar objectos para o exterior” (facto 17º).

Ora, em face de tais características, sendo certo que a abertura em causa não pode entender-se como consubstanciando frestas regulares (já que se situa a altura inferior a 1,80 m, a contar do sobrado - art.º 1363º, nº 2, do CC), haverá que dizer que ao caso se aplica, “mutatis mutandis” o entendimento expresso no Acórdão desta Relação de 19/01/2010 (Apelação n.º 179/06.8TBCVL.C1 - Relator - Des. Teles Pereira), subscrito pelo ora Relator enquanto 2º Adjunto, que se passa a reproduzir na parte que para este caso releva[4]:

«O elemento fulcral de diferenciação das frestas relativamente às janelas prende-se com determinadas características destas aberturas, consideradas elas em diversas dimensões e localização, aferidas relativamente ao prédio no qual existam. Com efeito, diz-nos o nº 2 do artigo 1363º do CC, relativamente à caracterização do que são frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, que as aberturas em causa se devem situar “[…] pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros […]”.

Pires de Lima e Antunes Varela caracterizam as frestas como “[…] janelas muito estreitas, ainda hoje usadas para iluminação de escadas ou de patamares interiores […]”, inspirando-se estes requisitos “[…] nos ensinamentos dos nossos velhos reinícolas [os jurisconsultos compiladores da jurisprudência do Reino], os quais exigiam que por estas aberturas não coubesse uma cabeça humana”[5].

         2.2.2. (b) Assim sendo, tendo presente a factualidade apurada, designadamente a que resulta da alteração introduzida no item 16. da matéria de facto, não nos oferece dúvidas que a abertura existente no rés-do-chão do prédio dos AA., provida que esteve de barras de cimento separadas por 15 centímetros, não dispõe, desde pelo menos 1968, de condições para ser considerada como janela, não tendo originado uma servidão que possamos reconduzir ao exacto conteúdo das servidões, qualificadas de vistas, previstas no artigo 1362º do CC.

         Todavia, tal abertura, também não dispôs (não dispõe) - por não se ter determinado que se situe, nas duas faces da parede dos AA., a, pelo menos, um metro e oitenta do solo - de condições objectivas que permitam fazê-la corresponder ao conceito de fresta: ao conceito de fresta nos termos em que este é definido no nº 2 do artigo 1363º do CC[6].

         Note-se, como antes afirmámos por diversas vezes, que era ao R. ora Apelante que incumbia a alegação e a prova de todos requisitos positivos constitutivos do conceito legal de fresta[7], sendo que o défice de alegação de factos integradores de algum desses requisitos, não obstante fosse desejável que essa insuficiência tivesse sido detectada na primeira instância em tempo útil, só poderá propiciar uma decisão que não considere integrado, relativamente a essa abertura do rés-do-chão em causa no presente recurso, o conceito legal de fresta, designadamente, com o reconhecimento de poder o Apelante vedá-la com a construção da sua casa ou de contramuro.

Sendo as coisas assim, quid juris, quanto ao resultado do presente recurso?

Vale a este respeito a caracterização que Pires de Lima Antunes Varela fazem de uma situação como a que ora se configura:
“[…]
Abrindo-se uma fresta, seteira ou óculo, fora das condições prescritas na lei (a fresta tem, por exemplo, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros, ou está situada abaixo de um metro e oitenta centímetros), e decorrido o prazo necessário para haver usucapião, o proprietário adquire a servidão, que, denominada ou não servidão de vistas, está sujeita ao regime geral das servidões […].
Nesse caso, o proprietário vizinho não poderá levantar nenhum edifício ou contramuro, que vede tais aberturas, por ter sido adquirido não só o direito de manter as referidas aberturas em condições diferentes das legais, mas também o direito de impor ao proprietário vizinho a observância do disposto no nº 2 do artigo 1362º.
Com efeito, se o dono da abertura adquire por usucapião o direito de a manter, não pode deixar de se lhe reconhecer o direito de impedir que o vizinho a vede. Além disso, tratando-se de uma servidão, ela fica sujeita ao disposto no artigo 1568º, o qual não permite ao proprietário do prédio serviente estorvar o seu uso.
[…]”[8] (sublinhado acrescentado)

Ora, neste caso, sendo evidente que a configuração da abertura do rés-do-chão da casa dos AA., com todas as características emergentes do julgamento por esta Relação, não corresponde ao conceito legal de fresta e tendo ocorrido em 1968, perdurando, pelo menos, até 2004 (v. itens 16. e 33. dos factos), adquiriram os AA., por prescrição positiva em seu favor (por usucapião na terminologia do Código Civil), uma servidão que, não sendo de vistas no exacto sentido em que a define o artigo 1362º do CC, contém ou implica a utilidade traduzida na permanência dessa abertura, através da imposição ao proprietário do prédio vizinho (aqui ao R. ora Apelante) da limitação traduzida em não construir a menos de um metro e meio dessa abertura. Todavia, essa abertura - e convém também aqui sublinhá-lo - pressupõe todos os elementos que a caracterizavam e com os quais se formou, ou seja, neste particular, a existência de barras de cimento espaçadas entre elas de quinze centímetros.

         2.3. Vale isto por dizer - e este traduz o resultado do presente recurso - que o Apelante, tendo obtido ganho na pretensão de alteração de determinado trecho dos factos, falha na pretensão, que apresentou como consequência jurídica dessa almejada alteração, de obter para a abertura situada no rés-do-chão do prédio dos AA. o estatuto de fresta, com a consequente possibilidade, reconhecida na Sentença relativamente às outras duas aberturas, de vedação da mesma. A servidão de vistas reivindicada pelos AA. relativamente à abertura aqui em causa, não sendo exactamente aquela que ora se considera existir[9], não deixa de implicar um efeito que apresenta alguma proximidade ao indicado na Sentença impugnada relativamente a essa abertura (o direito à sua não vedação, chamemos-lhe assim).

         Existe, todavia, como já se sublinhou, um elemento diferenciador relevante e que conduz a consequências algo distintas das que resultavam do exacto conteúdo da decisão aqui impugnada, nos trechos 2 e 3 acima transcritos. Com efeito, não se trata do reconhecimento de uma servidão de vistas decorrente da existência de uma janela, nem da negação dessa servidão por se tratar de uma fresta, mas do reconhecimento da existência de uma servidão atípica, referida a uma abertura, na cozinha do rés-do-chão do prédio dos AA., com 96,5 cm de largura por 71 cm de altura, provida de barras de cimento espaçadas entre si por 15 cm. É relativamente a esta abertura que o R. deverá efectivar um espaçamento do seu prédio de um metro e meio, sendo que os AA., por seu lado, devem repor, concomitantemente, as barras de cimento que até ao tapamento existirão, dotando-as das características já diversas vezes referidas.».

Conclui-se, pois, que também no caso “sub judice”, a questionada abertura consubstancia, não uma janela, mas sim frestas irregulares, tendo-se constituído a favor do prédio dos AA e a onerar o contíguo prédio dos RR, por usucapião, não uma servidão de vistas, nos termos em que esta é prevista no art.º 1362º, do CC, mas antes uma servidão atípica, de vistas, entrada de ar e de luz, como na sentença recorrida se referiu para a hipótese de se qualificar como frestas irregulares e não como janela, a dita abertura.

Como se disse na sentença impugnada - e se explicitou, a propósito de situação semelhante, no aludido Acórdão de 19/01 -, reportando-se a esta servidão atípica, acarreta ela para os proprietários do prédio vizinho, ora RR, a limitação traduzida em não construir a menos de um metro e meio da dita abertura, assim como justifica, pois aos RR vedado estava - e está - impedir ou estorvar o exercício dessa servidão (art.º 1568 do CC), a condenação destes a demolirem as construções que fizeram, na medida em que estas impeçam ou restrinjam o conteúdo desse direito dos Autores.[10]

Assim, não é destituído de razão o entendimento dos Apelantes RR quando, ponderando a hipótese da demolição do edificado, referem que esta se deveria limitar ao espaço que abrange a abertura em questão de modo a que, entre ela e o construído exista um espaço mínimo de um metro e meio.

Dir-se-á, finalmente, que não se detecta que violação tenha havido, por parte do Tribunal “a quo”, do disposto nos art.ºs 3º, 201º e 712º do Código do Processo Civil.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:

 - Julgar improcedente o recurso subordinado dos Autores;

 - Mantendo-a no restante, revogar a sentença recorrida na parte em que condena os RR a reconhecer que está constituída a favor do prédio dos AA uma servidão de vistas através da janela referida no ponto 5 dos factos provados e a demolir a parede (amovível) que colocaram a menos de metro e meio da janela em questão, bem como a cobertura que impede a circulação de ar e a vista e diminui a entrada de claridade e luz, condenando-se agora os RR:

a) A reconhecer que está constituída a favor do prédio dos AA uma servidão atípica, de vistas, ar e luz, através da abertura referida no ponto 5 dos factos provados;

b) A demolir, no espaço abrangido pela referida abertura, a parede (amovível) que colocaram a menos de metro e meio desta, bem como a cobertura que impede a circulação de ar e a vista e diminui a entrada de claridade e luz, de modo a que, entre tal abertura e o construído exista um espaço mínimo de um metro e meio.

 

Custas da Apelação dos RR, por estes e pelos AA, na proporção de, respectivamente, 5/6 e 1/6.

As custas do recurso subordinado ficam a cargo dos AA.


[1] Salvo indicação em contrário, os preceitos deste Código que adiante forem citados, reportam-se, atenta a data em que se iniciou o processo, à redacção que antecedeu aquela que foi introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.

[3] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 10/11/2007 (Apelação n.º 1611/07-1), consultável, tal como os restantes desse Tribunal, citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase”.
[4] Embora com numeração diferente, foram respeitadas as respectivas notas, que também se transcrevem em rodapé, exceptuando aquelas que tratavam de questões que apenas ao caso particular de que tratava o Acórdão interessavam.
[5] Código Civil…, cit. na nota 30, p. 223.
Este critério da “cabeça humana”, chamemos-lhe assim, apresenta uma continuidade histórica ininterrupta no nosso Direito:
“Pela mesma razão, ainda que o proprietário possa fazer o edifício que quizer, com tudo, 1º não póde abrir janella, nem fazer eirado, ou varanda que deite sobre o prédio alheio, sem mediar o interstício de vara e quarta. Ord. L. nº 1, Lobão, Casas, 157. Mas bem póde, independentemente deste espaço, abrir seteiras para receber luz pelas quaes não caiba a cabeça” (Coelho da Rocha, Direito Civil…, cit., p. 466).
“As Ordenações Filipinas e os praxistas não definiam a seteira; limitavam-se a declarar que esta deve ser tão estreita, que nela não entre cabeça humana, para olhar por fora […]”; “[…] é janela e não fresta toda a abertura que permita a passagem da cabeça e, portanto, devassamento do prédio vizinho […]” (Cunha Gonçalves, Tratado…, cit., pp. 83 e 85).
“Não poderia interessar a ninguém a proibição da entrada de ar, e também a simples vista do terreno vizinho nunca pode ser, nem deve ser, impedida de uma maneira absoluta. Lembremo-nos que a distância de metro e meio que é necessária para a abertura de janelas não impede também as vistas. O prédio vizinho continua a ver-se praticamente na mesma. O que a lei pretende, portanto, impedir, se não é em si mesma contraditória, é que possa ser devassado esse prédio; e este pode ser devassado se sobre eles se puderem debruçar os vizinhos, fazendo dele escarrador, cloaca ou vazadouro de detritos. É por isto, e só por isto, que se exigia no nosso Direito antigo, que pela abertura não coubesse uma cabeça humana” (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 99º, p. 239).
[6] Embora exista quem discuta, de jure constituendo, a coerência do requisito da altura relativamente ao solo das frestas – é o caso de Manuel Henrique Mesquita: “[a]figura-se-nos que deveria haver uniformidade entre a altura a que devem situar-se as aberturas de tolerância (cfr. os artigos 1363º, nº 2 e 1364º) e a altura dos parapeitos a que alude o nº 2 do artigo 1360º” (Direitos Reais, Coimbra, 1967, p.136, nota 208) –, embora exista quem discuta a coerência deste requisito, dizíamos, o que é facto é que ele existe e, por isso, a não integração dele exclui que a abertura em causa possa ser configurada como fresta, designadamente para o efeito aqui visado pelo Apelante: aplicação do nº 1 do artigo 1363º do CC.
[7] Da mesma forma que aos AA. incumbia – rectius, incumbiu – a alegação e prova dos requisitos positivos que definiriam as aberturas existentes no seu prédio como janelas, sendo que os AA. não lograram alcançar tal prova, como resulta do texto deste Acórdão.
[8] Código Civil…, cit. na nota 30, pp. 225/226.
[9] Embora o seu conteúdo estivesse parcialmente compreendido no direito invocado pelos AA.. Vale esta constatação para que se não diga que estamos – porque efectivamente não estamos – perante qualquer “decisão surpresa”, já que o conteúdo da servidão reivindicada pelos AA., nas suas múltiplas potencialidades, foi objecto de discussão ao longo do processo, tal como o foi a apetência da abertura em causa por referência aos conceitos legais de janela e de fresta. Aquilo que aqui se considerou esteve sempre contido, pois, na discussão jurídica travada ao longo do processo.

[10] De modo semelhante se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 07/12/2006 (Apelação n.º  2282/06-2 ), assim sumariado, na parte que ora releva: «(…) 3º- São de qualificar como aberturas irregulares, as aberturas, situadas a 82 cms do sobrado, com a largura de 1,55m e a altura de 1,06m, constituídas por uma estrutura em alumínio e vidro martelado fosco, dividido, de cada um dos lados, por três prumos ou barras de alumínio, com intervalos superiores a 5 cms, só permitindo a entrada directa de luz, de ar e avistar, de frente, o prédio vizinho através de uma abertura central móvel, com 61 cm. de largura e 52 cm. de altura, dividida por prumos de alumínio com intervalos de 14 cms, onde estão colocados vidros martelados foscos, situada a 42 cm. dos limites laterais, a 49 cm. do limite inferior e a 1,37/1,38 cm. do sobrado, mas que não permite o debruçamento sobre o prédio vizinho.

4º A construção e uso das “aberturas irregulares” não conduz à constituição, por usucapião, da servidão de vistas a que alude o art. 1362º, nº. 1 do C. Civil, posto que tal servidão está reservada, pelo citado artigo, às janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes.

5º- A construção e uso das “aberturas irregulares” pode conduzir à constituição, por usucapião, de uma servidão atípica (de vista, luz e ar), que confere ao respectivo titular não só o direito de manter tais aberturas, mas também o direito à manutenção das vistas e de luz e do ar, pelo que não pode deixar de se lhe reconhecer o direito de impedir que o proprietário do prédio vizinho as vede ou tape bem como o direito de impor a este a observância do disposto no nº2 do artigo 1362º do C. Civil.

6º- Daí o proprietário de prédio vizinho não poder, à frente de cada “abertura irregular”, construir edifício a menos de metro e meio.».