Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1879/22.0T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
DOAÇÃO OU DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA POR CONTA DA QUOTA DISPONÍVEL
EXCESSO
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
FINALIDADE DO DESPACHO DETERMINATIVO DA PARTILHA
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1118.º, 1 E 2 E 1119.º, 1 E 2, DO CPC
ARTIGOS 457.º; 940.º; 954.º, A) E B); 969.º; 2104.º; 2105.º; 2106.º; 2108.º, 1 E 2; 2109.º, 1; 2030.º, 2 E 3; 2113.º; 2114.º; 2117.º, 2; 2156.º; 2157.º; 2159.º, 1; 2162.º; 2163.º; 2168.º; 2179.º; 2181.º; 2183.º; 2171.º; 2173.º; 2174.º; 2178.º; 2204.º E 2205.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A doação e a disposição testamentária feitas por conta da quota disponível do doador e do autor da herança devem ser imputadas, pelo despacho determinativo da partilha, naquela quota sem qualquer, ordem de preferência ou prioridade;
II- Se, porém, excederem essa quota, o excesso é imputado na legítima do donatário ou do beneficiário da disposição testamentária a título de herança; excedendo a quota disponível e a legítima do donatário ou do beneficiário da deixa testamentária, ficam sujeitas a redução, por inoficiosidade, nos termos gerais, redução que, começa pela disposição testamentária a título de herança;
III- A finalidade exclusiva do despacho determinativo da partilha consiste na determinação do património hereditário, constituído não apenas pelos bens deixados, mas também pelos bens doados, e da quota ou do quinhão abstracto de cada um dos interessados naquele património;

IV- Ao despacho determinativo da partilha não cabe antecipar, na imputação das liberalidades, qualquer modo de organização da partilha que pressuponha a redução, por inoficiosidade, daquelas liberalidades, consequente ao exercício, com êxito, pelo herdeiro legitimário do seu direito de requerer, por aquele fundamento, esta redução.

Decisão Texto Integral:

Relator: Henrique Antunes
1.º Adjunta: Cristina Neves
2.º Adjunto: Pires Robalo



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
1. Relatório.
No processo de inventário judicial para partilha do património hereditário de AA, falecido no dia .../.../2021, que corre termos no Juízo Local ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no qual são interessados o cônjuge sobrevivo, BB, que exerce as funções de cabeça-de-casal, e com quem era casado sob o regime de comunhão geral de bens, e os dois filhos de ambos, CC e DD, o Sr. Juiz de Direito, por despacho de 8 de Março de 2023, determinou que à partilha se procedesse da seguinte forma:
O acervo patrimonial divide-se em duas partes iguais, correspondendo uma à meação do inventariado (1/2) e outra à meação da cabeça-de-casal(1/2) (cf. artigos 1688.°, 1689.°, n.° 1 e 1732 do Código Civil).
A herança do inventariado, correspondente à sua meação nos bens comuns, é divida em três partes iguais, constituindo uma a quota disponível (1/6) e as outras duas a quota indisponível (2/6=1/3) (artigos 2156.° e 2159.°, n.° 2 do Código Civil).
Por força do testamento, a quota disponível é atribuída à cabeça-de-casal (cf. Artigo 2179.°. n.° 1, do Código Civil).
O valor das doações é imputável na quota disponível (sem prejuízo do eventual incidente de inoficiosidade) (cf. artigos 2114.°, n.° 1, 2117.° e 2168.° e 2169.° do Código Civil).
A quota indisponível é dividida em três partes iguais, cabendo uma ao cônjuge sobrevivo e uma a cada um dos filhos (1/3: 3=1/9) (cf. artigos 2133.°, n.° 1, al. a), 2139.°, n.°s 1 e 2 e 2157.° do Código Civil).
Nestes termos, cabem aos interessados as seguintes quotas ideais na herança:
7/9 (1/2 + 1/6 + 1/9) à cabeça-de-casal;
1/9 ao interessado CC;
1/9 à interessada DD.
O passivo é imputável aos interessados na proporção da quota que lhe cabe na herança, sem prejuízo da deliberação dos herdeiros quanto ao seu pagamento (C. artigo 2098. °, n.°s 1 e 2 do Código Civil).
O preenchimento das quotas e o pagamento do passivo serão efectuados em conformidade com o que vier a ser acordado e decidido na conferência de interessados (cf. artigo 1111. ° do Código de Processo Civii).
É este despacho que as interessadas DD e BB impugnam no recurso - no qual pedem a sua revogação e substituição por outro que ordene que, na forma à partilha, a quota disponível comece a ser preenchida pelos bens doados - tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:
1 - Procede-se a inventário para partilha da herança aberta por óbito de AA, falecido a .../.../2021, no estado de casado com a cabeça-de-casal, BB, sob o regime de comunhão geral de bens, e em primeiras núpcias de ambos.
2 - O inventariado deixou a suceder-lhe a esposa, aqui cabeça-de-casal, e dois filhos, CC e DD.
3 - O inventariado deixou testamento feito em 26/06/2004, pelo qual instituiu “herdeira da sua quota disponível a sua esposa BB”.
4 - O inventariado fez doação em vida, em 28/06/2019, através de documento particular autenticado, no qual doou à interessada, sua filha, DD, por conta da quota disponível, a nua propriedade dos imóveis relacionados nas verbas quarenta e oito a cinquenta e um da relação de bens.
5 - Os bens a partilhar são os descritos na relação de bens, junta aos autos, a 14/02/2023, com o valor que vier a resultar da conferência de interessados (cf. Artigo 2069 do C.Civil). Existe passivo, o qual será abatido no valor total dos bens (cf. Artigo 2068 do C.Civil).
6 - Ora, não podemos concordar com as quotas partes ideais na herança, constantes do Despacho recorrido, apenas e só, no que se refere à quota disponível, a qual é atribuída na sua totalidade à cabeça-de- casal, por força do testamento.
7 - Entendem as recorrentes, ao contrário do decidido, que a quota disponível começará a ser preenchida pelos bens doados e, só depois, pelo testamento e não o contrário.
8 - O valor da doação é imputável na quota disponível e, se exceder o valor dessa quota, será o excesso imputado no quinhão hereditário da interessada donatária. Caso o valor não a exceda, o remanescente da quota disponível é então, e só então, imputado na deixa testamentária.
9 - O inventariado fez a doação de bens à interessada sua filha DD, por conta da quota disponível. E outorgou testamento no qual declarou instituir única herdeira da quota disponível da sua herança a ora cabeça-de-casal.
10 - Ou seja, não obstante o inventariado pretender que, à data da sua morte, apenas a cabeça-de- casal fosse herdeira da quota disponível, ao fazer a doação, o inventariado pretendeu, também, beneficiar a filha DD na herança ao doar-lhe os bens por conta da quota disponível.
11 - Assim, de acordo com a vontade do inventariado, a quota disponível da sua herança haverá de ser “preenchida” com os bens doados e com a deixa testamentária, ou seja, dos bens doados hão-de ser imputados na quota disponível e o que restar desta, atribuído à cabeça-de-casal por causa do testamento.
12 - O que se verifica, no caso sub judice é que os bens doados e a deixa testamentária excedem a quota disponível.
13 - Esclarece o art.° 2168.° do CC que “dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários”, sendo tais liberalidades inoficiosas redutíveis a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (art. 2169.° do CC).
14 - E o art.° 2171.° do CC disciplina a ordem dessa redução, estabelecendo que “a redução abrange em primeiro lugar as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados, e por último as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão”.
15 - A quota disponível (1/6) começa a ser preenchida pela doação e, se esta exceder o valor dessa quota, será o excesso imputado no quinhão legitimário da interessada donatária. Caso o valor não a exceda, o remanescente será imputado à cabeça-de-casal por conta do testamento.
16 - Foram violados, entre outros, os artigos 2171.° e 2173.° do Código Civil e o artigo 1110.°, n° 2 al. a) do C.P.C.
Não foi oferecida resposta.
2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.
É de considerar assente, por virtude da prova documental produzida, constante do caderno ro recurso, a factualidade seguinte:
2.1. AA declarou, por escritura pública de testamento, no dia 3 de Junho de 2004, instituir herdeira da sua quota disponível sua esposa, BB.
2.2. AA e cônjuge, BB, como doadores, por um lado, e DD, como donatária, por outro, declararam, por documento particular autenticado, datado de 28 de Junho de 2019, os primeiros doar à segunda, por conta da quota disponível, a nua propriedade dos prédios relacionados nas verbas n.°s 48 a 51 da relação de bens, doação que a última declarou aceitar.
2.3. AA faleceu no dia .../.../2021, no estado de casado, segundo regime de comunhão geral de bens, com BB.
2.4. CC e DD são filhos de AA.
2.5. A cabeça-de-casal relacionou 8 verbas de passivo e 51 verbas de activo.
3. Fundamentos.
3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.
O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.° 635.°, n.°s 2, 1^ parte, 3 a 5, do CPC).
No caso, a decisão impugnada é a que se contém no despacho determinativo da partilha, i.e., o despacho que determina o modo como deve ser organizada a partilha. Não de todo o despacho, mas apenas segmento em que atribuiu a - totalidade - da quota disponível, à cabeça-de-casal, BB, por força da deixa testamentária, a título de herança; no ver das impugnantes, o preenchimento da quota disponível deve começar pela doação e caso o seu valor a exceda, deve o excesso ser imputado no quinhão legitimário da donatária, não a excedendo, o remanescente da quota disponível é imputado à cabeça-de-casal por conta do testamento. Pedem, por isso, no recurso, que se determine que a quota disponível comece a ser preenchida pelos bens doados.
Maneira que, considerando os parâmetros apontados da competência funcional ou decisória desta Relação, a questão colocada à sua atenção é uma só: a de saber se o despacho determinativo da partilha deve ser revogado, no segmento objecto de impugnação, e substituído por outro que determine que o preenchimento da quota disponível deve iniciar-se pelo valor dos bens doados à recorrente DD e só no caso de não exceder essa quota é que nela se deve imputar a disposição testamentária a título de herança que beneficia a apelante, cabeça-de-casal, BB..
A resolução desta questão importa a exposição, leve, mas minimamente estruturada, do regime da colação e da redução de liberalidades por inoficiosidade.
3.2. Colação e redução de liberalidades por inoficiosidade.
O nosso Código Civil define a doação como o contrato pelo qual uma pessoa, com espírito de liberalidade, e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente (art.° 940.°). Deste preceito resulta, desde logo, a natureza contratual do acto, regra que é ditada pelo principio do contrato, segundo a qual a fonte normal das obrigações é o contrato, sendo excepcional a admissibilidade da sua criação por negócio jurídico unilateral (art.° 457.° do Código Civil). Daquele preceito extraem-se os seguintes elementos estruturais característicos do contrato de doação: como objecto, uma coisa ou direito ou uma obrigação; como função eficiente a transmissão daquele direito ou a assunção desta obrigação; como função económico-social, a liberalidade.
Como resulta da lei, a doação tem geralmente como efeito a transmissão de direitos, seja por efeito imediato do contrato, seja por efeito de um acto posterior (art.° 954.°, a), do Código Civil). Os efeitos obrigacionais para o doador circunscrevem-se à obrigação de entrega, salvo quando esta não seja contemporânea da celebração do contrato, portanto, excepto se a doação não for manual (art.° 954.°, b), do Código Civil). A doação diz-se em vida, se a doação produz imediatamente os seus efeitos - atribuindo ao donatário, desde logo, um direito sobre os bens doados - embora esses efeitos possam ser condicionados à morte do doador ou diferidos para a data sua morte.
De outro aspecto - e de forma deliberadamente simplificadora - bem pode dizer-se que o testamento é um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, formal e tipicamente, uma pessoa dispõe, para depois da sua morte, de todos os seus bens ou de parte deles (art°s 2179.°, 2181.°, 2183.°, 2204.° e 2205.° do Código Civil).
A sucessão por morte pode operar a título universal, ou a título singular ou particular. Na terminologia legal e doutrinal, no primeiro caso fala-se de herança e, no segundo, de legado (art.° 2030.°. n.° 2, do Código Civil). O critério legal pode enunciar-se deste modo: legatário é quem sucede em bens determinados - especificados ou não -, i.e., quem sucede apenas em certos bens, com exclusão dos restantes do autor da herança; herdeiro é quem não é chamado a suceder em bens determinados, i.e., somente em certos bens e não noutros, mas cujo direito se estende, real ou ao menos virtualmente, à totalidade da herança ou duma quota-parte dela. Assim, é herdeiro o beneficiário de uma deixa testamentária da totalidade ou de uma quota - alíquota ou não alíquota - da herança ou o remanescente da herança ou de quota desta, não havendo especificação de bens (art.° 2030, n.°s 2 e 3, do Código Civil). Em qualquer destes casos, a deixa testamentária é feita a título de herança.
Diz-se colação a restituição que, para igualação da partilha, os descendentes que queiram entrar na sucessão do ascendente devem fazer à massa da herança, dos bens ou valores que lhe foram doados por este (art.° 2104.° do Código Civil).
A colação é nitidamente distinta da restituição fictícia dos bens doados, exigida para o cálculo da legítima (art.° 2162.° do Código Civil). Esta restituição é fictícia e não real e não importa, por isso, um efectivo aumento da massa hereditária. Além disso, compreende todas as doações feitas aos descendentes ou a quaisquer outras pessoas e não visa a igualdade da partilha entre herdeiros legitimários, mas o cálculo da legítima - ou da quota disponível - e a protecção dos legitimários em geral.
Embora a colação se faça, em princípio, pela imputação do valor da doação na quota hereditária, a colação também se distingue da imputação em si mesma (art.° 2108, n.° 1, do Código Civil). Realmente, a imputação consiste na atribuição da liberalidade do autor da herança a uma das duas quotas - a quota disponível ou indisponível - em que se divide a herança de quem tem herdeiros legitimários, questão que, naturalmente, só se põe quando a liberalidade é feita a um desses herdeiros. A imputação ex se abrange todas as liberalidades, portanto, não apenas as doações inter vivos, mas também as disposições mortis causa e não visa, como a colação, a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários a imputar na sua legítima, em certos termos, as liberalidades com que o autor da sucessão os tenha beneficiado. O interesse que a lei defende é o da liberdade de dispor do de cujus e o respeito pelas liberalidades que ele tenha feio aos seus herdeiros ou a estranhos por conta da quota disponível.
Segundo a opinião corrente, a colação - que é uma operação da partilha - tem por fundamento a vontade presumida do de cujus, de que ao fazer a doação a um dos descendentes, não terá querido avantajá-lo em face dos outros, pelo que a doação é feita, segundo aquela vontade presumida, como mera antecipação da quota hereditária do donatário - e não propriamente por antecipação da legítima, pois a doação que a exceda também deve ser conferida nesse excesso até onde for possível realizar a igualdade da partilha. Só se não for possível realizar esta igualdade é que se deve entender que o inventariado quis fazer uma verdadeira liberalidade, beneficiando o donatário em face dos seus outros descendentes - embora esta liberalidade possa ser reduzida, por inoficiosa, nos termos gerais se ofender a legítima dos outros herdeiros concorrentes da sucessão (art.° 2108.°, n.° 2, do Código Civil).
A colação tem por objecto, designadamente, as doações e a obrigação de conferir vincula os descendentes presuntivos herdeiros do doador que pretendam entrar na sua sucessão e não tenham sido dispensados de conferir os bens doados (art.°s 2105.° e 2016.° do Código Civil).
Relativamente ao âmbito da obrigação de conferir, há que fazer um distinguo entre o regime legal supletivo e os regimes convencionais. Assim, de acordo com o primeiro, a doação é imputada na quota hereditária do donatário, que é obrigado a conferir, não apenas dentro da sua legítima, mas também o excesso da doação relativamente à legítima, até onde haja na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros (art.° 2108, n.°s 1 e 2, do Código Civil). Caso não haja bens suficientes para inteirar por igual todos os herdeiros, a doação não tem que ser conferida - sem prejuízo, todavia, da sua eventual redução por inoficiosidade.
Se a doação é feita por conta da legítima, o donatário tem que conferir todos os bens doados para igualação da partilha entre os todos os herdeiros, dado que se entende que, com a liberalidade, o doador não quis prejudicar a igualdade entre todos os co-herdeiros; se a doação é feita com dispensa da colação, a doação é imputada na quota disponível e não tem que ser conferida. Se, porém, exceder essa quota, o excesso é imputado na legítima do donatário; excedendo a quota disponível e a legítima do donatário, fica sujeita a redução, por inoficiosidade, nos termos gerais (art.°s 2113.° e 2114.° do Código Civil).
O doador, pode, pois, estabelecer um regime convencional de dispensa da colação, que se verificará quando manifestar uma vontade, juridicamente relevante, de que a liberalidade ultrapasse a quota hereditária do descendente beneficiário - portanto, por força da quota disponível do doador - assim avantajando o donatário face aos demais co-herdeiros. Aquela vontade existirá, normalmente - por aplicação das regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos - quando o doador declara que a doação é feita com dispensa de colação ou por conta da sua quota disponível.
A colação faz-se, em princípio, em valor, portanto, por imputação do valor da doação na quota hereditária, só se fazendo em espécie, quer dizer, por restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros, e o valor dos bens doados é o que eles tiverem à data da doação (art.°s 2108.°. n.° 1, e 2109, n.° 1 do Código Civil). Se a doação for feita por ambos os cônjuges e tiver por objecto bens integrados na comunhão, por morte de cada um deles, apenas há que conferir metade do valor que tiver à data da abertura da sucessão respectiva (art.° 2117.°, n°s 1 e 2, do Código Civil).
A colação é, notoriamente, distinta da redução por inoficiosidade (art.° 2168.° e ss. do Código Civil). Enquanto só as doações feitas ao descendente legitimário estão sujeitas a colação, a redução por inoficiosidade compreende todas e quaisquer liberalidades do autor da sucessão, feitas por vida ou por morte, aos herdeiros legitimários ou a terceiros estranhos à sucessão. A redução não visa, patentemente, a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários - mas a defesa da integralidade da legítima. E sendo esta de ordem pública, é claro o carácter injuntivo das respectivas normas para o de cujus: este pode dispensar o herdeiro legitimário de trazer à colação os bens doados, mas não lhe é licito dispensá-lo da redução, se se apurar que a doação é inoficiosa por ofender a legítima dos outros herdeiros legitimários.
As considerações expostas mostram que a imputação do valor dos bens doados, consequente ao dever de conferir os bens que vincula os descendentes do de cujus doador que pretendam entrar na sua sucessão pode dar lugar à redução da doação por inoficiosidade.
Efectivamente, do ponto de vista da consistência da designação sucessória, a situação dos herdeiros legitimários é bem distinta da posição dos herdeiros testamentários e legítimos.
Apesar de o autor da sucessão poder, enquanto vivo, dispor dos seus bens como bem entender e mesmo fazer doações, a verdade é que estas podem ser revogadas ou reduzidas, embora só depois da sua morte. Desde que as doações feitas pelo de cujus estão sujeitas a ser revogadas ou reduzidas, no todo ou em parte, há que reconhecer que os seus poderes de disposição, mesmo em vida, estão de algum modo limitados. Esta limitação dos poderes de disposição do autor da sucessão confere aos legitimários, mesmo em vida daquele, uma verdadeira expectativa juridicamente tutelada, protecção que é actuada sobretudo através do instituto da inoficiosidade, que confere aos herdeiros legitimários a possibilidade de revogarem ou reduzirem, à morte do autor da sucessão, as disposições gratuitas que este haja feito - designadamente as inter vivos, sclcet, doações - que sejam prejudiciais para a sua legítima, sujeita, de resto, ao princípio da intangibilidade, que proíbe ao testador a imposição de encargos sobre ela ou designar, contra a vontade do herdeiro, os bens que a devem preencher (art.° 2163.° do Código Civil).
A legítima é a porção dos bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (art.° 2156.° do Código Civil). A benefício da exactidão há que distinguir entre a legítima global, enquanto quota indisponível, e a legítima do herdeiro legitimário, quer dizer, o seu quinhão legitimário.
Herdeiros legitimários são o cônjuge, os descendentes e os ascendentes (art.° 2157.° do Código Civil). Se o cônjuge concorrer à sucessão com os filhos, a legítima do cônjuge e dos filhos é de dois terços da herança (art.° 2159.°, n.° 1, do Código Civil). Para calcular a legítima, há que definir o que é a herança de que a legítima constitui uma quota.
Assim, para o cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (art.° 2162.° do Código Civil). São, portanto, quatro, as operações em que desdobra a cálculo da legítima: avaliação dos bens existentes no património do autor da sucessão, á data da sua morte; dedução das dívidas da herança; restituição fictícia dos bens doados e, por último, imputação das liberalidades feitas por conta da legítima: para a determinação, em concreto, da legítima de cada herdeiro legitimário, há, pois, previamente, que imputar na sua legítima as liberalidades com o que o autor da sucessão o tenha beneficiado, só podendo exigir o excesso, caso o haja. Por força da restituição fictícia dos bens doados, a herança, para efeitos de sucessão, legitimária, é constituída pelos relicta e pelos donata, não só pelos bens deixados - mas também pelos bens doados.
Portanto, para se saber que parte dos bens pode concretamente exigir cada herdeiro legitimário, feitas as três primeiras operações, tem este aquele herdeiro de imputar previamente aquelas liberalidades, só podendo exigir o excesso, se excesso houver. Para a imputação das liberalidades valem, em princípio, como critério geral, as regras da colação (art.°s 2014.° e 2113.°).
A redução das liberalidades é feita pela ordem seguinte: em primeiro lugar reduzem-se as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados e, por último, as liberalidades feitas em vida. A prevalência da doação sobre a disposição testamentária resulta, por um lado, da irrevogabilidade, de princípio, da doação, e por outro, da intangibilidade da legítima, que comprime a liberdade de disposição do testador (art.°s 969.° e ss. e 2156.° do Código Civil).
Caso seja necessário proceder à redução das liberalidades em vida, começa-se pela última, passando-se à imediata, se for preciso; caso haja vária liberalidades feitas no mesmo acto ou na mesma data, a redução é feita rateadamente entre elas, salvo se for remuneratória (art.°s 2171.° e 2173.° do Código Civil). A redução pode ser feita em valor ou em espécie, conforme os bens doados sejam divisíveis ou indivisíveis; no primeiro caso, a redução faz-se separando dos bens doados a parte necessária para preencher a legítima no segundo caso, há que fazer um distinguo, consoante a importância da redução exceda ou não metade do valor dos bens: no primeiro caso, os bens pertencem integralmente ao herdeiro legitimário e o donatário haverá o resto em dinheiro; no caso inverso, os bens pertencem integralmente ao donatário, tendo este que inteirar em dinheiro ao herdeiro legitimário a importância da redução (art.° 2174.°, n°s 1 e 2, do Código Civil).
A acção de redução de liberalidades inoficiosas deve, sob pena de caducidade, ser proposta no prazo de dois anos, contado da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário (art.° 2178.° do Código Civil).
É controverso o modo como se articula o incidente de verificação da inoficiosidade no processo de inventário e a acção de redução de liberalidades, bem como a aplicação, ao pedido de redução por inoficiosidade deduzido no processo de inventário do prazo de caducidade a que aquela acção se mostra submetida. Encurtando argumentos, pode dizer-se que, num plano objectivo, o prazo de redução de liberalidades inoficiosas é aplicável, independentemente do meio processual através do qual se exerça o direito potestativo à redução - mas num plano subjectivo, essa caducidade não pode ser oposta em processo de inventário pendente, designadamente por herdeiros, legatários ou donatários que também tenham intervenção nesse processo divisório.
A redução das doações pode ser requerida - rectior, o direito potestativo à redução pode ser exercido - por qualquer dos herdeiros legitimários, no confronto dos donatários visados, até ao inicio das licitações, com especificação dos valores, quer dos bens doados, quer dos restantes bens da herança, podendo proceder-se, para a apreciação do incidente, oficiosamente ou a requerimento, à avaliação de uns e de outros (art.° 1118.°, n.°s 1 e 2, CPC). Quando se reconheça a inoficiosidade da doação, o requerido é condenado a repor em substância a parte que afectar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber; sobre os bens restituídos à herança pode haver licitação a que, porém, não é admitido o donatário requerido (art.° 1119.°, n.°s 1 e 2, do CPC). Dado que a redução também vale para disposições testamentárias a título de herança, como resulta da lei substantiva, as regras procedimentais de redução são-lhe também aplicáveis (art.° 2171.°, do Código Civil).
Simplesmente, uma coisa é o despacho determinativo da partilha outra, bem diversa, é a redução de liberalidades feitas pelo de cujus que só se coloca - de modo meramente eventual, dado que depende de requerimento do herdeiro ou herdeiros legitimários - em momento ulterior.
Efectivamente, o despacho de organização da partilha deve, de harmonia com a ordem hierárquica de designação sucessória - que coloca em 1.° lugar dentro da sua legítima, os herdeiros legitimários - com o titulo de vocação ou devolução sucessória - lei ou testamento - e do seu eventual concurso, e as regras de preferência sucessória e considerando as liberalidades feitas pelo autor da herança e os encargos pelos quais esta responde, determinar a massa de bens partilháveis e o quinhão ou quota - abstracta - dos vários chamados à sucessão no património hereditário. Este despacho não tem que se preocupar com a eventual inoficiosidade das liberalidades feitas pelo de cujus, problema que, eventualmente, só se coloca em momento posterior. A sua finalidade exclusiva é a determinação do património hereditário - que se como se indicou é constituído não apenas pelos bens deixados, mas também pelos bens doados - e da quota ou do quinhão abstracto de cada um dos interessados naquele património.
Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão concreta controversa, objecto do recurso.
3.3. Concretização.
No caso do recurso, todos os interessados são herdeiros legitimários - mas apenas dois deles, justamente as recorrentes, foram beneficiados, pelo de cujus, com liberalidades: a recorrente cabeça-de-casal e cônjuge sobrevivo, BB com uma deixa testamentária; a apelante, DD, com a doação - feita pelo de cujus e pelo seu cônjuge - da nua propriedade de vários imóveis relacionados. Pelas razões já expostas, aquela deixa testamentária foi feita a título de herança.
Tanto a disposição testamentária como a doação foram feitas por conta da quota disponível do autor da herança e dos doadores. Portanto, é incontroverso que qualquer das liberalidades deve ser imputada, de harmonia com a vontade do testador e dos doadores, na quota disponível do de cujus, sem qualquer ordem prioritária de imputação.
O despacho impugnado foi terminante na atribuição à recorrente e cabeça-de-casal, por força do testamento, da quota disponível, mas acto contínuo determinou que o valor das doações é imputável na quota disponível (sem prejuízo da eventual inoficiosidade). A decisão impugnada parece, assim, entender que toda a quota disponível, por virtude da deixa testamentária deve ser integralmente atribuída à cabeça- de-casal para preenchimento do seu quinhão e que apenas a doação está sujeita a eventual redução, o mesmo não sucedendo com a disposição testamentária a título de herança com que a cabeça-de-casal foi beneficiada.
Lida deste modo a decisão recorrida, é patente a sua incorrecção: a doação deve, também ela, ser imputada na quota disponível; a disposição testamentária a título de herança de que beneficiou a cabeça- de-casal está igualmente sujeita a redução e é, de resto, a primeira que, eventualmente, será sacrificada à legítima (art.° 2171.° e 2172.°, n.° 1, do Código Civil).
Portanto, tanto a doação como a disposição testamentária a título de herança são imputadas, indiferentemente, na quota disponível, em pontual cumprimento do contrato de doação e da vontade do testador. Se, porém, excederem essa quota, o excesso é imputado na legítima do donatário ou do beneficiário da disposição testamentária a título de herança; excedendo a quota disponível e a legítima do donatário ou do beneficiário da deixa testamentária, ficam sujeitas a redução, por inoficiosidade, nos termos gerais, redução que, notou-se já, começa pela disposição testamentária a título de herança e que só atinge a doação em último lugar (art.°s 2113.° e 2114.° do Código Civil).
As recorrentes advogam que o preenchimento da quota disponível deve começar pela doação e caso o seu valor a exceda, deve o excesso ser imputado no quinhão legitimário da donatária, não a excedendo, o remanescente da quota disponível é imputado à cabeça-de-casal por conta do testamento; em coerência pedem que se determine que a quota disponível comece a ser preenchido pelos bens doados.
Não temos este ponto de vista por exacto. É que ele pressupõe o exercício - procedente - do direito potestativo de redução das liberalidades, segundo a ordem indicada. Todavia, por um lado, a actuação daquele direito só deve ocorrer em momento ulterior e apreciado no respectivo incidente e, por outro, a questão da eventual redutibilidade das liberalidades é estranha ao despacho determinativo da partilha: este despacho, como se sublinhou, só tem que proceder à determinação do património hereditário - no qual deve considerar, além do regime de bens sob que foi contraído o casamento do de cujus com o cônjuge herdeiro sobrevivo os donata e os encargos da herança - e da quota - abstracta - de cada um dos interessados, de harmonia com as regras da designação e da vocação sucessórias, imputando, sem qualquer ordem de preferência, as liberalidades - a doação e a disposição testamentária - por força do respectivo título, na quota disponível do autor da herança. Se eventualmente, for exercido o direito potestativo da redução das liberalidades, é que haverá, então, mas só então, que proceder, se for caso disso, a essa redução, segundo a ordem indicada, que privilegia a doação em detrimento da disposição testamentária a título de herança.
Dito doutro modo: ao despacho determinativo da partilha não cabe antecipar, na imputação das liberalidades, qualquer modo de organização da partilha que pressuponha a redução, por inoficiosidade, daquelas liberalidades, consequente ao exercício, com êxito, pelo herdeiro legitimário do seu direito de requerer, por aquele fundamento, esta redução.
Considerado o problema por este prisma, a decisão impugnada só é incorrecta no segmento em que atribui à cabeça-de-casal, beneficiária da deixa testamentária, a quota disponível. Justifica-se, por isso, a revogação deste passo dela, de modo a deixar clara e cristalina, a imputação, sem qualquer ordem de preferência, tanto do valor dos bens doados como do valor da disposição testamentária a título de herança na quota disponível - devendo tomar-se em atenção, no tocante, à doação que foi feita por ambos os cônjuges e teve por objecto bens integrados na comunhão. Em momento ulterior, caso qualquer dos interessados, dada a sua qualidade de herdeiros legitimário exerça o seu direito potestativo de redução das liberalidades inoficiosas, e o pedido de redução seja acolhido, se procederá, então, ás reduções que se mostrarem devidas.
De todos os argumentos expostos, extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:
- A doação e a disposição testamentária feitas por conta da quota disponível do doador e do autor da herança devem ser imputadas, pelo despacho determinativo da partilha, naquela quota sem qualquer, ordem de preferência ou prioridade;
- Se, porém, excederem essa quota, o excesso é imputado na legítima do donatário ou do beneficiário da disposição testamentária a título de herança; excedendo a quota disponível e a legítima do donatário ou do beneficiário da deixa testamentária, ficam sujeitas a redução, por inoficiosidade, nos termos gerais, redução que, começa pela disposição testamentária a título de herança;
- A finalidade exclusiva do despacho determinativo da partilha consiste na determinação do património hereditário, constituído não apenas pelos bens deixados, mas também pelos bens doados, e da quota ou do quinhão abstracto de cada um dos interessados naquele património;
- Ao despacho determinativo da partilha não cabe antecipar, na imputação das liberalidades, qualquer modo de organização da partilha que pressuponha a redução, por inoficiosidade, daquelas liberalidades, consequente ao exercício, com êxito, pelo herdeiro legitimário do seu direito de requerer, por aquele fundamento, esta redução.
O recurso deve proceder, mas apenas parcialmente, nos termos apontados.
A sucumbência, ainda que meramente parcial e, portanto, recíproca das apelantes e do apelado, no recurso, torna uns e outros objectivamente responsáveis pelas respectivas custas (art.° 527.°, n.°s 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente, e consequentemente:
a) Revoga-se o despacho impugnado na parte em que atribuiu à recorrente e cabeça-de-casal, BB, a quota disponível da herança de AA e ordena-se a substituição, nessa parte, por outro que determine a imputação, naquela quota, sem qualquer ordem de preferência, do valor da doação feita pelo inventariado e pela cabeça-de-casal à interessada DD, e do valor da disposição testamentária, a título de herança, feita pelo inventariado à interessada e cabeça-de-casal, BB;
b) Mantém-se, no mais, o despacho impugnado.
Custas pelas apelantes e pelo apelado, na proporção da respectiva sucumbência.
2023.06.13