Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||||||||||||||||||||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Relator: | LUÍS COIMBRA | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Descritores: | ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA FACTOS ACUSAÇÃO COMUNICAÇÃO ARGUIDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Data do Acordão: | 05/14/2014 | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Decisão: | CONFIRMADA | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 152.º, 143.º, N.º 1, 145.º, N.ºS 1, AL. B), E N.º 2, E 132.º, N.º 2, AL. B), DO CP; ARTIGO 358.º, N.ºS 1 E 3, DO CPP | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Sumário: | A condenação de arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, por referência à al. b) do n.º 2 do art. 132.º (todas estas normas são do CP), num contexto em que, pelos mesmos factos, ao mesmo estava imputado, na acusação pública, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma legal, consubstancia tão só alteração de qualificação jurídica, que não carece de comunicação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, porquanto, constituindo o primeiro dos ilícitos um “minus” em relação ao segundo, o visado teve necessariamente conhecimento de toda a factualidade integrante dos seus elementos constitutivos. | ||||||||||||||||||||||||||||||||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO 1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 290/12.6TAACN, do Tribunal Judicial da Alcanena, o arguido A... (melhor identificado nos autos), após ter sido acusado pelo Ministério Público como autor material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º nºs 1 e 2 do Código Penal, foi submetido a julgamento tendo, a final (a fls. 200 a 219), sido proferido sentença em que se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial): “Atento o exposto, decide-se: a)- absolver o arguido A... de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal; b)- condenar o arguido A... na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 145.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, por referência à al. b) do n.º 2, do art.º 132.º, todos do CP; c)- substituir a pena de 6 meses de prisão aplicada ao arguido A... por 180 dias de multa, à taxa diária de € 7 (sete) euros, no total de € 1.260 (mil duzentos e sessenta) euros; d)- condenar o mesmo arguido na taxa de justiça, que se fixa em 3 UC (art.ºs 513.º, n.º 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP) e nos demais encargos a que sua actividade houver dado lugar (art.º 16.º do RCP). (…)”
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 222 a 225), retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões: “I- O Arguido foi acusado pelo Ministério Público e julgado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 alínea a) e nº 2 do C.P. II - O Arguido vela a ser absolvido da prática do crime de violência doméstica e condenado pelo crime de ofensa à Integridade física qualificada p. e p pelo artigo 145º, nº 1 alínea b) e nº 2, por referência a alínea b) do nº 2 do artigo 132º todos do C.P, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (Sete euros) no total de € 1260,00 (Mil duzentos e sessenta euros) III Nos presentes autos, verificou-se uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, alteração que não foi comunicada ao Arguido. IV- A mera alteração da qualificação jurídica não constitui alteração de factos (substancial ou não substancial) mas é-lhe aplicado o regime jurídico da alteração não substanciai dos factos. V- Nos termos conjugados dos artigos 379º, nº 1 alínea b), 358º, nº 1 e 3 do CPP, e nula a sentença que, sem prévia comunicação ao Arguido, procede à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. VI- A não comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica implica a nulidade da decisão, nos termos do mencionado artigo 379º, nº 1 alínea b) do CPP VII - A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo violou o estatuído no nº 3 do artigo 358º do CPP e, ao agir desta forma, cometeu a nulidade referida no artigo 379º nº 1 alínea b) do mesmo diploma VIII - Os crimes de violência doméstica e da integridade física qualificada são distintos entre si, quer nos seus elementos objetivos quer nos subjetivos. IX - A alteração de direito, da qualificação jurídica, será sempre questão de relevo para a decisão da causa. X - O crime de violência doméstica tem natureza pública, sendo que o MP tem legitimidade para promover o processo penal (vd artigo 48º do CPP) XI - O procedimento criminal pelo crime de ofensas a Integridade física qualificada, crime pelo qual o Arguido foi condenado pelo Tribunal o quo , depende de queixa, sendo que a queixa constitui o pressuposto para que o processo penal possa iniciar-se. XII - No caso em apreço, a ofendida não manifestou de forma clara e inequívoca a vontade de exercer a ação penal contra o arguido pelo que é de concluir pela ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo, nomeadamente deduzir acusação na ausência de queixa da ofendida XIII - Tendo alterado a qualificação Jurídica em face dos factos considerados provados, o Tribunal o quo deveria ter declarado inadmissível o procedimento criminal por inexistência de queixa da ofendida, pelo que, não o tendo feito, a douta sentença enferma, nessa parte e por tal fundamento, de nulidade. Termos em que, e nos que doutamente serão supridos por V.ªs. Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se nula a sentença recorrida por violação do estatuído no nº 3 do artigo 358º, conjugado com o nº 1, b) do artigo 379º ambos do CPP e inadmissível o procedimento criminal por ausência de queixa. Fazendo assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!”
3. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 226. 4. A assistente B... (a fls. 231 a 240), respondeu ao recurso concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida nos seus precisos termos. 5. O Ministério Público junto da primeira instância, a fls. 242 a 250, respondeu também ao recurso, concluindo que, no que respeita à arguida nulidade da sentença por falta da comunicação da alteração da qualificação jurídica, deverá ser dado provimento, o mesmo não sucedendo em relação à invocada inadmissibilidade legal do procedimento criminal pela alegada falta de queixa porquanto o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza pública. 6. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto (a fls. 258 e 259), acompanhando a resposta da magistrada do Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento como defendido por aquela magistrada. 7. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta. 8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso as questões suscitadas, apenas de direito, consistem em saber: “A)- Factos Provados 1. A assistente B... e o arguido A... casaram-se no dia 2 de Dezembro de 1978 e residem numa habitação sita na (...), Concelho de Alcanena; 2. O referido casal tem dois filhos em comum, C... e D...., ambos já maiores de idade e economicamente independentes, tendo o filho D... residido com os seus progenitores, na morada supra indicada, até Junho de 2013; 3. Nos últimos treze a catorze anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, algumas vezes, dirigiu-se à assistente, quer quando se encontrava a sós com ela quer na presença de terceiros, dizendo-lhe “ És uma burra “ e, pelo menos uma vez, “És uma chula “; 4. O arguido assumiu sozinho a gestão da casa e os negócios de família; 5. No início do ano de 2012 e após a assistente ter dito ao arguido que se queria divorciar, continuaram a viver na mesma casa, mas a dormir em quartos separados; 6. O arguido não aceitou inicialmente o divórcio; 7. Por diversas vezes, o arguido convidou diversos amigos e outras pessoas para o interior da residência e para o anexo próximo da residência, tendo, em algumas dessas vezes, alguns dos convidados permanecido nesses espaços até de madrugada; 8. O arguido cancelou o cartão de crédito que dera à assistente e que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas; 9. No dia 15 de Agosto de 2012, no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, durante a qual o arguido disse à assistente para tirar a sua roupa do quarto porque precisava desse espaço para pôr a roupa de outra mulher e após a assistente se ter posto à frente da porta do quarto de vestir para evitar que o arguido retirasse as suas roupas daquele local, o arguido agarrou nos braços da assistente e, mantendo-os agarrados, empurrou-a até a colocar fora da porta do referido quarto; 10. Em consequência directa e necessária desta conduta do Arguido, a assistente sofreu dores nas zonas corporais atingidas e recebeu, nesse mesmo dia, assistência médica no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria/Pombal, tendo apresentado hematoma na face interna de ambos os braços; 11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, que concretizou, de ofender a honra e dignidade da assistente e de a molestar fisicamente; 12. O arguido sabia ainda que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal; 13. A assistente intentou procedimento cautelar de alimentos provisórios contra o arguido em 28/12/2012, que correu os seus termos neste Tribunal sob o n.º 514/12.0TBACN, no qual requereu que este lhe prestasse alimentos pois dele carecia, o qual veio a ser julgado improcedente por sentença proferida em 19/04/2013, já transitada em julgado; 14. Em Agosto 2013, o arguido passou a residir num anexo da casa de morada de família e independente desta; 15. No dia 15/08/2012, o arguido pediu à assistente uma reunião para lhe sugerir que tratassem do divórcio no Conservatória do Registo Civil, de comum acordo; 16. Durante a reunião, a assistente disse-lhe que isso só aconteceria se tratassem do divórcio e partilhas ao mesmo tempo; 17. Na data referida em 15), a assistente já dormia há algum tempo no quarto que era da filha do casal, no qual tinha os seus pertences mais frequentemente utilizados;
Mais se provou que: 18. O arguido não tem antecedentes criminais; 19. Encontra-se desempregado, auferindo um subsídio atribuído pela Segurança Social de € 582 por mês; 12. O arguido vive em casa própria; 13. É proprietário de um armazém situado em Mira d’ Aire, de quatro prédios urbanos (dois apartamentos e duas casas), de pelo menos 7 prédios rústicos, a maior parte deles no concelho de Alcanena, e de dois barcos; 14. O arguido tem o curso superior de engenharia têxtil. * B)- Factos não provados: Não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que: a)- o arguido tenha dirigido à assistente as expressões “És uma vadia”, “És uma puta”, “És uma cadela”, “Só queres boa vida”, “Habituaste-te a maus costumes”, “devias desaparecer”, “fazes tanta falta como a fome”, “vou-te secar financeiramente”, “não te dou cavaco dos rendimentos do nosso património” e “vais morrer de fome sua cadela”; b)- o arguido se tenha dirigido ao quarto onde a assistente se encontrava a dormir, na residência supra indicada e por mais do que uma vez, sem que nada o fizesse prever ou justificar, tivesse começado a dar-lhe safanões e a empurrá-la, fazendo com que a mesma acordasse sobressaltada e que lhe tenha dito que não a queria ali e que a expulsava do quarto: c)- o arguido, em vários telefonemas que efectuou para a assistente, a tenha chamado de “mulher da vida” e “chula”; d)- o arguido nunca tenha deixado a assistente ter acesso às contas bancárias, aos lucros dos negócios e às rendas das casas das arrendadas pelo casal, ocultando desse modo os rendimentos dos bens do casal; e)- sempre que a assistente necessitava de dinheiro para efectuar despesas, o arguido apenas lhe tenha entregado o que queria e que, desse modo, a conseguia controlar economicamente; f)- por diversas vezes, tenha dito à assistente, em tom de voz sério, exaltado e ameaçador: “queres o divórcio, eu deixo-te sem nada” “vais morrer de fome, sua cadela, vou-te secar financeiramente”, “seu eu quiser ficas na miséria”, e que queimaria e destruiria todos os haveres da assistente, tais como, vestuário e objectos pessoais: g)- nos convívios promovidos pelo arguido em sua casa, os convidados tenham permanecido no interior da residência a fazer barulho, fazendo com que a assistente não conseguisse dormir e ficasse limitada em movimentar-se no interior da sua própria casa; h)- o arguido, quando confrontado pela assistente sobre o cancelamento do cartão de crédito que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas, de crédito ), lhe tenha dado um empurrão e lhe tenha dito “és uma chula… pensas que vou continuar a sustentar-te … não sou teu paizinho”; i)- o arguido, em 15/08/2012, tenha dado safanões à assistente; Não se provaram igualmente os factos alegados nos art.ºs 8.º, 9.º, 11.º, 21.º da contestação do arguido. * (…) * Enquadramento jurídico – penal dos factos apurados Fixados os factos, cabe proceder ao seu enquadramento jurídico-penal. Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo. O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos do tipo legal de crime. É ilícito quando a conduta do agente é desconforme com valores jurídico-penais e é culposo quando a conduta do agente é censurável e, por isso, deve ser reprovada ao seu autor. Vejamos então se o arguido pode ser penalmente responsabilizado nos termos constantes da acusação. O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 14.º e 26.º, todos do Código Penal. Dispõe o referido normativo, e no que no caso dos autos releva, o seguinte: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.” O crime de violência doméstica encontra-se sistematicamente integrado no título dos crimes contra as pessoas, visando a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, aliás, um dos vectores axiológicos constitucionalmente reconhecido e tutelado, matriz de todos os direitos pessoais (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa). O bem jurídico protegido por este tipo de crime “é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que (...) afectem a dignidade pessoal do cônjuge” - Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense”, p. 332 e no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, (Rel. Des. Conceição Gomes, proc. 0041056, in http://www.dgsi.pt). O Conselho da Europa caracterizou a violência na família como “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” (Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivo, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna) – citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2º vol., p. 179. “O aparecimento de um novo tipo de crime de maus tratos no Código Penal de 1982, na sequência do projecto de Eduardo Correia, tem como fundamentos, além das experiências estrangeiras, a consciencialização de que a violência frequente entre pessoas relacionadas, em regra dependentes e fragilizadas, é um grave problema social (…)” – Catarina Sá Gomes, in “O Crime De Maus Tratos Físicos E Psíquicos Infligidos Ao Cônjuge Ou Ao Convivente Em Condições Análogas Às Dos Cônjuges”, AAFDL, Lisboa, 2002, p. 13. «A criminalização das condutas inseridas na chamada “violência doméstica”, e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao cônjuge (...) maus tratos físicos ou psíquicos. Assim, neste tipo de criminalidade, as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus tratos físicos e psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservada da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal» - Ac. R. L. de 6 de junho de 2001, (Rel. Des. Adelino Salvado, proc. 0034263, disponível in http://www.dgsi.pt). Caracteriza este tipo de crime, singularizando-o, ou o carácter reiterado das agressões à dignidade humana ou o grau de intensidade da referida agressão. Com efeito, este tipo legal de crime inclui comportamentos que de forma reiterada ou intensa lesam a dignidade humana da vítima. Como refere a exposição de motivos da proposta de Lei n.º98/X “na descrição típica da violência doméstica recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”. Ecfetivamente, a actual redação do preceito legal estatui «Quem, de modo reiterado ou não, (…)». O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflição de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar. Outra das características deste tipo legal é a específica relação de proximidade entre agente e vítima, impondo àquele um qualificado dever de respeito, e criando naquela uma qualificada esperança de protecção e consideração – por isso se trata de um crime especial próprio. E daí advém a especial censura que a ordem jurídica dirige às condutas que o realizam, sancionando-as, sem alternativa, com pena de prisão de 1 a 5 anos. São elementos objetivos do tipo: a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos a qualquer das pessoas mencionadas na alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º. Ora, os maus tratos físicos consistem em actos de violência física – ataque ao corpo –, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, que sujeitam a vítima a humilhações, vexames, provocações, injúrias, ameaças. Quanto aos elementos do tipo subjetivo, exige-se o dolo, bastando-se a lei com qualquer uma das suas modalidades (cfr. artigo 14.° do Código Penal). Conforme claramente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/09/2011 (disponível in www.dgsi.pt), cujo entendimento perfilhamos integralmente, há que atentar que “Temos assim que a panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente [Plácido Conde Fernandes, pág. 307]; caracterizadas como maus tratos, entende-se que a situação integra um padrão de comportamentos com uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima - razão pela qual é crime. (…) Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa [vítima] tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de “maus tratos”. E estes [maus tratos] só se dão como verificados quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima. No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima (…). O que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como "maus tratos". Pois se assim for, e ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efectivo, é de admitir a existência de um perigo para a vida e para a saúde da vítima, que o legislador, consciente do padrão de comportamento deste tipo de agressores (por regra, intensifica o caudal de violência ou de manipulação da vítima ao longo do tempo), procura protegê-la por antecipação e de forma reforçada.” Com relevância para a apreciação do caso concreto, resultou provado que a assistente e o arguido são casados entre si desde 02/12/21978, que, nos últimos treze a catorze anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, algumas vezes, dirigiu-se à assistente, quer quando se encontrava a sós com ela quer na presença de terceiros, dizendo-lhe “ És uma burra “ e, pelo menos uma vez, “És uma chula “ e que, no dia 15/08/212, no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, durante a qual o arguido disse à assistente para tirar a sua roupa do quarto porque precisava desse espaço para pôr a roupa de outra mulher e após a assistente se ter posto à frente da porta do quarto de vestir para evitar que o arguido retirasse as suas roupas daquele local, o arguido agarrou nos braços da assistente e, mantendo-os agarrados, empurrou-a até a colocar fora da porta do referido quarto, o que lhe provocou um hematoma na face interna de ambos os braços. Não obstante as expressões que o arguido dirigiu à assistente terem carácter ofensivo e constituírem uma manifestação evidente de violação do dever de respeito que deve existir entre os cônjuges e que legalmente está consagrada (art.º 1672.º do Cód. Civil) e ser igualmente inquestionável que o arguido no dia 15/08/2012, molestou fisicamente e assistente, quando a agarrou e empurrou, a verdade é que as expressões referidas, embora tenham sido ditas pelo arguido mais do que uma vez, e o episódio de agressão física não consubstanciam, isolada ou conjuntamente analisadas, condutas especialmente violentas ou que globalmente configurem uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, ou seja, não revestem a gravidade ou a intensidade do desvalor da acção e do resultado típicas do crime de violência doméstica. Com efeito, tais condutas não representam um potencial de agressão que, em abstrato, supere ou transcenda a proteção oferecida pelos crimes de injúria e de ofensa à integridade física, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade psíquica da vítima. As condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem num contexto de mau estar entre os cônjuges, de conflito conjugal e da iminente ruptura do casamento entre aquele e a assistente, que de certa maneira Arredada está, assim, a punição da conduta do arguido como integrante de um crime de violência doméstica, impondo-se a sua absolvição quanto a tal. * Porém, atendendo ainda à situação de concurso aparente com os crimes de injúria e de ofensa à integridade física previsto e punido nos artigos pelos art.ºs 181.º e 143.º do Cód. Penal cumprirá, desde já, averiguar da subsunção das referidas condutas a estes tipos de crime. De acordo com o disposto no artigo 181.º do Cód. Penal, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias. Acontece, porém, que o crime de injúria reveste natureza particular, pelo que exige não só que o titular do direito se queixe e se constitua assistente, como também deduza acusação particular (art.ºs 113.º, n.º 1, e 188.º do C.P. e art.ºs 48.º a 52.º do CPP). Ora, no caso dos autos, a assistente não deduziu acusação particular, pelo que o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a acção penal quanto ao indicado crime. Assim, o procedimento criminal quanto a tal crime, não é legalmente admissível e, por isso, o tribunal não pode dele conhecer. Vejamos de seguida se a conduta integra o crime de ofensa à integridade física. Comete o crime de ofensa à integridade física simples quem ofender o corpo e a saúde de outra pessoa (artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal), podendo tal ofensa ser qualificada quando o facto for praticado contra o cônjuge ou ex-cônjuge (art.º 145.º, n.º 1, al. a). e n.º 2, do CP). O presente ilícito penal caracteriza-se também por ser um crime de execução não vinculada, já que pode ser perpetrado por qualquer meio, não estando a sua execução descrita no tipo, e traduz-se num crime de resultado, cuja consumação depende da produção de um evento espácio-temporalmente distinto da acção. A ofensa à integridade física consubstancia-se ainda num crime de produção instantânea, consumando-se imediatamente com a acção produtiva do dano corporal. Por fim, estamos perante um crime doloso, já que a sua efectivação pressupõe uma conduta intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde do ofendido. São elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física: a) uma acção do agente dirigida a outra pessoa b) a ofensa no corpo ou na saúde da outra pessoa. No caso concreto, a verificação destes elementos constitutivos não suscita qualquer dúvida, uma vez que o arguido agarrou nos braços da assistente e empurrou-a, provocando-lhe dor e uma hematoma na zona do braço atingida, sendo certo que o mesmo projectou esta sua actividade delituosa e, agindo livre, voluntária e conscientemente, quis concretizá-la, como efectivamente concretizou nos moldes descritos, sabendo que a sua conduta é punida por lei. Além disso, e pese embora a iminente ruptura da sociedade conjugal e o conflito latente entre o arguido e a assistente daí resultante, a verdade é que o arguido agiu totalmente indiferente à relação conjugal que mantinha com a assistente (há quase 34 anos) e ao dever de respeito que dessa relação para si nasceu, relação e dever de que estava bem ciente, no interior da residência do casal, quando ambos estavam sozinhos (circunstâncias que dificultam a prova da ofensa e a busca de ajuda), razão pela qual se entende que a conduta do mesmo revela a especial censurabilidade prevista na al. b) do n.º 2, do art.º 132.º do CP. Ora, estando preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 145, n.º 1, al. a), do CP, e não se verificando qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, conclui-se que o arguido cometeu o indicado crime.” Apreciando. Questão 1: Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento. Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos: Quanto à alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. E para melhor ser feita essa comparação coloquemos na tabela que segue, lado a lado os factos da acusação (que ficarão à esquerda) e os factos que na sentença foram dados como provados (que ficarão à direita): Acusação Sentença
Recordemos também os factos que foram dados como não provados: “Não resuItaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que: a)- o arguido tenha dirigido à assistente as expressões “És uma vadia”, “És uma puta”, “És uma cadela”, “Só queres boa vida”, “Habituaste-te a maus costumes”, “devias desaparecer”, “fazes tanta falta como a fome”, “vou-te secar financeiramente”, “não te dou cavaco dos rendimentos do nosso património” e “vais morrer de fome sua cadela”; b)- o arguido se tenha dirigido ao quarto onde a assistente se encontrava a dormir, na residência supra indicada e por mais do que uma vez, sem que nada o fizesse prever ou justificar, tivesse começado a dar-lhe safanões e a empurrá-la, fazendo com que a mesma acordasse sobressaltada e que lhe tenha dito que não a queria ali e que a expulsava do quarto: c)- o arguido, em vários telefonemas que efectuou para a assistente, a tenha chamado de “mulher da vida” e “chula”; d)- o arguido nunca tenha deixado a assistente ter acesso às contas bancárias, aos lucros dos negócios e às rendas das casas das arrendadas pelo casal, ocultando desse modo os rendimentos dos bens do casal; e)- sempre que a assistente necessitava de dinheiro para efectuar despesas, o arguido apenas lhe tenha entregado o que queria e que, desse modo, a conseguia controlar economicamente; f)- por diversas vezes, tenha dito à assistente, em tom de voz sério, exaltado e ameaçador: “queres o divórcio, eu deixo-te sem nada” “vais morrer de fome, sua cadela, vou-te secar financeiramente”, “seu eu quiser ficas na miséria”, e que queimaria e destruiria todos os haveres da assistente, tais como, vestuário e objectos pessoais: g)- nos convívios promovidos pelo arguido em sua casa, os convidados tenham permanecido no interior da residência a fazer barulho, fazendo com que a assistente não conseguisse dormir e ficasse limitada em movimentar-se no interior da sua própria casa; h)- o arguido, quando confrontado pela assistente sobre o cancelamento do cartão de crédito que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas, de crédito ), lhe tenha dado um empurrão e lhe tenha dito “és uma chula… pensas que vou continuar a sustentar-te … não sou teu paizinho”; i)- o arguido, em 15/08/2012, tenha dado safanões à assistente; Não se provaram igualmente os factos alegados nos art.ºs 8.º, 9.º, 11.º, 21.º da contestação do arguido.” Como vimos, da comparação efectuada atrás ao ladearmos, em colunas, os factos da acusação e os da sentença, a condenação do arguido pela ofensa à integridade física qualificada não se alicerçou em factos diversos daqueles que constavam da acusação; alicerçou-se, sim, em menos factos daqueles que constavam da acusação, representando os provados, um minus em relação aos acusados. E da sentença, decorre que passaram para os não provados uma parte ainda significativa de factos que constavam da acusação. Com efeito, como já dissemos, foram dados como provados menos factos daqueles que constavam da acusação. E, tal com é dito no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19.03.2013 (relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt) “… dar como não provados factos já constantes da acusação não é uma alteração de factos.” Nem foi essa, verdade seja dita, conforme decorre da sentença recorrida, a pretensão do tribunal a quo. * Assim, e em síntese conclusiva, naufragando as pretensões do recorrente - e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais, designadamente os invocados nas suas conclusões de recurso - terá o recurso que improceder.
* III. DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida. Sem custas. * * Coimbra, 14 de Maio de 2014
(Luís Coimbra - relator)
(Isabel Silva - adjunta)
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