Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | ABUSO DE DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NEUTRALIZAÇÃO DO DIREITO CONTRATO DE CRÉDITO EXECUÇÃO | ||
Data do Acordão: | 09/10/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART.334 CC, DL Nº 24/91 DE 11/1 | ||
Sumário: | 1. Não existe exercício serôdio e desleal de um direito, se não demonstrado que em razão do decurso do tempo e/ou doutras circunstâncias as executadas/embargantes pudessem ter justificada convicção do não exercício do direito por banda da exequente e, menos ainda, que, movidas pela confiança porventura advinda da actuação da exequente, tenham orientado em conformidade a sua vida, tomado medidas ou adoptado programas de acção na base daquela confiança, e, por essa razão, que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhes acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado. 2. A não exigência de um direito de crédito (bancário) por um prazo de mais de 10 anos, além de inabitual, pode vir a ser inesperada e susceptível de criar a convicção/confiança de que o direito não seria exercido, mas se os factos não revelam qualquer espécie de justificação objectiva para essa confiança (v. g., com o desenvolvimento de tentativas de indagação razoáveis por parte do devedor) e se não decorrem dos autos quaisquer factos dos quais se pudesse concluir que, para o devedor, sobreveio prejuízo de um anterior “investimento de confiança”, nada poderá/deverá obstar a que se exercite o direito (de crédito) na sua conformação actual e atento o regime jurídico aplicável.). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 13.4.2018, F (…) e D (…) deduziram oposição por embargos à execução que lhes é movida por C (…), CRL.[1], pedindo que os presentes embargos sejam julgados procedentes, declarando-se extinta a execução. Alegaram, em síntese: a quantia exequenda foi paga no âmbito do processo de execução n º 157/1992 do 1º Juízo do Tribunal de Lamego; a exequente considerou-se inteiramente paga do seu crédito e juros; nunca as executadas foram interpeladas para pagar quaisquer outras importâncias; os juros são usurários e os vencidos há mais de cinco anos estão prescritos; a conduta da exequente reconduz-se a um abuso de direito (entre os descontos últimos efectuados no vencimento da executada F (...) , em 2005, e a data da instauração da presente execução e citação das executadas para a mesma mediaram mais de 12 anos, expressão de uma consciente atitude de quem considerou o empréstimo inteiramente saldado; além do mais, será legítimo concluir-se que a omissão da exequente e inércia por mais de 12 anos foi intencional para, de futuro, beneficiar de taxas e encargos manifestamente exageradas, nomeadamente, a taxa de juro de 25 % usurária e abusiva); a executada D (...) nada herdou de seu pai, pelo que não responde pela dívida; não existe fundamento para a penhora da pensão da executada F (...) . A exequente contestou, em articulado de 24.5.2018, pedindo que os embargos sejam julgados improcedentes, por não provados. No despacho saneador, a Mm.ª Juíza a quo firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova. Realizada a audiência final, o Tribunal a quo, por sentença de 04.01.2019, julgou parcialmente procedentes os embargos, reduzindo a quantia exequenda ao montante de € 4 187,52 (quatro mil, cento e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos)[2], e juros vincendos desde a citação até integral pagamento, à taxa de juro contratualizada, julgando improcedentes os demais fundamentos de embargos e oposição à penhora. (…) Remata que deve ser a sentença revogada na parte em que condenou a Embargante a pagar a quantia exequenda reduzida ao montante remanescente do capital em dívida, acrescido dos juros de mora desde a citação até integral pagamento, à taxa contratual convencionada de 25 % e substituída por outra que condene ao pagamento da totalidade da quantia exequenda peticionada e que corresponde ao montante remanescente do capital em dívida, acrescido dos juros de mora contabilizados atendendo a prescrição de juros do art.º 310º, alínea d) do CC e até integral pagamento. As executadas/embargantes apresentaram recurso subordinado (da parte da sentença que julgou parcialmente improcedentes os embargos deduzidos, pugnando pela procedência total dos embargos e consequente extinção da execução), com as seguintes conclusões: (…) Concluem e pedem, depois, que seja proferido Acórdão onde se reconheça ter a exequente agido no exercício do seu direito em manifesto abuso de direito, declarando-se extinta a Execução por procedência dos Embargos e extinção da dívida exequenda [a)] ou, caso o entendimento da 2ª instância não seja esse, se mantenha a decisão da 1ª instância nos seus precisos termos e dando por improcedente o recurso da Exequente [b)]. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e/ou decidir: a) se é de exigir às executadas a quantia peticionada no requerimento executivo (montante remanescente do capital em dívida, acrescido dos juros de mora atenta a prescrição de juros do art.º 310º, alínea d) do CC e até integral pagamento); b) ou, na perspectiva das executadas, se se extinguiu a dívida exequenda; c) não atendidas tais perspectivas, se é de manter o decidido em 1ª instância. * II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: a) Serve de base à execução documento intitulado “escrito particular para empréstimo, concedido por fiança”, datado de 12.7.1985, no qual figuram como partes J (…), bem como a exequente e do qual faz parte a “proposta de crédito” de fls. 8 e seguintes, conforme documentos de fls. 8 verso a 12 dos autos de execução.[3] b) Em 11.4.1985, J (…) solicitou à exequente a concessão de um empréstimo no valor de PTE 3 500 000$00 (correspondente ao montante de € 17 457,93), conforme proposta de crédito n º 85400015[4] e documento de fls. 8 verso a 10 dos autos de execução, a qual se mostra assinada por J (…), que declarou ter conhecimento do teor respectivas cláusulas.[5] c) O montante aludido em II. 1. b) seria reembolsado através de 108 (cento e oito) prestações mensais com vencimento a primeira em 12.7.1989.[6] d) O montante mutuado foi concedido à taxa líquida de 17 % acrescida de 2 % em caso de mora. e) Pela executada F (…) foi declarado, na qualidade de segunda outorgante que “fica fiadora e principal pagadora do primeiro outorgante e, solidariamente com ele se obriga ao pagamento da dívida confessada, juros e demais despesas na forma estipulada no presente contrato, renunciando a todo o benefício ou direito que de qualquer modo possa limitar, restringir ou anular esta obrigação”.[7] f) Não foi liquidada a prestação vencida em 12.7.1992, nem as subsequentes. g) Face ao incumprimento operou-se o vencimento automático de todas as prestações. h) Em face do aludido em II. 1. f) e g) correu termos pelo extinto Tribunal Judicial de Lamego sob o n.º 157/1992 a execução ordinária contra a executada F (…) e J (…), a qual foi declarada interrompida, por falta de impulso processual da exequente por despacho proferido em 05.9.2007.[8] i) No âmbito da execução aludida em II. 1. h) a exequente recebeu o montante global de € 37 782,66 (trinta e sete mil, setecentos e oitenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos). j) Não obstante o aludido em II. 1. i) ficou em dívida, a título de capital, o montante de € 4 187,52 (quatro mil, cento e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos). k) A quantia aludida em II. 1. i) decorreu da penhora de vencimento da executada F (...) , sendo que o último desconto efectuado à mesma no âmbito da execução aludida em II. 1. h) ocorreu em 24.11.2004. l) J (…) faleceu em 14.11.2011, no estado de casado com F (…) deixando como suas sucessoras além do cônjuge sobrevivo, a descendente D (…) m) As executadas/embargantes foram citadas em 16.3.2018 (fls. 23 a 25 dos autos de execução). n) A partir de 12.7.1992 a taxa de juros devida era de 23 % acrescida de 2 pontos percentuais, conforme contrato de fls. 8 verso a 12 dos autos. o) Nos autos de execução a que os presentes autos se encontram apensos foi em 14.3.2018 penhorado 1/3 da pensão auferida pela executada F (...) , conforme auto de penhora de fls. 22 dos autos de execução. 2. E deu como não provado: a) Que algum tempo após o recebimento da quantia aludida em II. 1. i) a exequente tenha declarado à executada F (…) e marido que punham termo ao processo aludido em II. 1. h) por se considerar inteiramente paga do seu crédito e juros. b) Que o processo aludido em II. 1. h) tenha sido extinto pelo pagamento integral da quantia exequenda. c) Que a executada F (…) e o seu marido estivessem convencidos que a dívida estava integralmente liquidada. d) Que em Agosto de 2006 J (..:) tenha sido interpelado pela exequente para liquidação dos montantes em dívida até àquela data. e) Que as executadas após a extinção da execução aludida em II. 1. h) tenham sido interpeladas pela exequente. 3. Decorre ainda dos elementos juntos aos autos:[9] a) Foi alegado no requerimento executivo da acção principal (para pagamento de quantia certa/dívida comercial), nomeadamente: 1 - São as Executadas demandadas na qualidade de herdeiras e em representação da herança ilíquida e indivisa por óbito de J (…). 2 - Em 11.4.1985, o Executado J (…) solicitou à Exequente a concessão de um empréstimo no valor total de 3 500 000$00 (correspondendo ao montante de € 17 457,93), conforme proposta de crédito n.º 85400015. 3 - O crédito seria reembolsado através de cento e oito prestações mensais com vencimento da primeira em 12.7.1989. 4 - A proposta de crédito está assinada pelo falecido J (…) que declarou ter conhecimento do seu teor e respectivas cláusulas. 5 - Na sequência do deferimento da proposta, em 12.7.1985, a Exequente veio a mutuar ao Executado o valor de 3 500 000$00, o qual ficou titulado por um Escrito Particular para Empréstimo concedido por Fiança. 6 - As Executadas não liquidaram o pagamento da prestação vencida em 12.7.1992, nem posteriormente, até hoje, apesar das várias interpelações da Exequente, incorrendo em incumprimento e, assim, operou-se o vencimento automático de toda a dívida, tornando-se exigível o crédito da Exequente. 7 - Pelo que as Executadas ficaram constituídas em mora em relação a integral liquidação do débito para com a Exequente, débito que passou a vencer juros a taxa contratual em vigor nesse período acrescida da sobretaxa de 2 %. 8 - Em virtude do incumprimento, a Exequente promoveu execução que correu termos pelo Tribunal Judicial de Lamego, sob o n.º 157/1992. 9 - No âmbito da referida execução, a Exequente recebeu os seguintes montantes: € 21 448,36; € 3 083,38; € 7 345,49 e € 5 905,43 [dito em II. 1. i)].[10] 10 - Não obstante, não foi obtido o pagamento integral do valor em dívida, tendo-se extinguido os autos, não pelo pagamento, mas por falta de promoção dos ulteriores termos do processo. 11 - À data de hoje são ainda devidos à Exequente capital no montante de € 4 187,52 e juros que ascendem a € 3 559,38, no valor global de € 7 746,90. 12 - O Contrato de Crédito que se apresenta a execução é título executivo, ao abrigo do disposto no art.º 703º, n.º 1, alínea d) do CPC ex vi art.º 33º, n.º 1 do DL n.º 24/91, de 11.01. d) À ordem do Tribunal e a favor da exequente, a executada F (…)começou em Abril/1994 a ver descontado um terço do seu vencimento, passando posteriormente a ser um sexto.[11] e) Consta de “Extracto de Conta Empréstimo” elaborado pela exequente à data da contestação dos embargos (24.5.2018) que em Março de 2003 foram liquidados e pagos juros nos montantes de € 2 684,18 + € 7 173,75 (a título de juros de mora sobre juros) e € 16 572,62 (juros de mora sobre capital) e que em Julho de 2006 foi paga uma prestação de € 1 250 a título de capital, imposto de selo e € 4 385,27 a título de juros de mora sobre capital, ficando em dívida € 4 187,52. f) Consta ainda do mesmo documento que, reportado ao “vencimento” de 12.7.1997, o “saldo actual” era de € 4 187,52, os juros de mora sobre o capital ascendiam a € 27 095,55 e o imposto de selo era de € 1 083,82. g) A execução referida em II. 1. h) e II. 3. b), 2ª parte, foi instaurada em 23.11.1992; o capital então em dívida era de 2 333 300$00 e foram ainda pedidos juros no montante de 536 659$00 (vencidos à taxa de 23 % ao ano) e 263 407$00 (vencidos à taxa de 25 % desde 12.7.1992 até 23.11.1992) - totalizando a quantia exequenda 3 133 366$00 - e juros vincendos sobre o montante em dívida, à taxa de 25 % ao ano, desde 23.11.1992 até integral pagamento. 4. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão. Como vimos, se, por um lado, a exequente continua a considerar que nada será de objectar à pretensão corporizada no requerimento executivo (maxime, ao montante do capital e dos juros aí liquidados), por outro lado, e ao invés, as executadas entendem, além do mais, que a conduta daquela é enquadrável no instituto do abuso de direito na formulação do venire contra factum proprium, porquanto criou nas embargantes/recorrentes uma expectativa factual e sólida geradora de uma convicção justificada de que tal direito já não seria exercido, pelo que a desvantagem que lhes advém do intempestivo e abusivo exercício do direito pela exequente deverá, pois, ser afastada (cf., nomeadamente, a “conclusão 9ª” do recurso subordinado/ponto I., supra). 5. Segundo o art.º 334º do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. O abuso do direito, a ajuizar nos referidos termos, aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo.[12] Manuel de Andrade e Vaz Serra, para definir ou caracterizar o instituto, falam em direitos exercidos em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.[13] Mesmo aceitando a autorizada noção do abuso do direito, dada por Castanheira Neves, que o define como “a `contradição´ entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-normativamente constitui esse mesmo direito”[14], importa ter sempre presente que a arma realista do legislador, carregada com as munições extremas do art.º 334º do CC, só aponta, por razões óbvias, para os casos de contradição ´manifesta´.[15] Como excepção peremptória inominada, o abuso do direito traduz-se “num problema metodológico-normativo de realização (ou de aplicação) concreta do direito…; o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto entre a norma e a solução concreta”.[16] Ocorre esta figura quanto o direito legítimo - e portanto razoável, em princípio - é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito. O abuso de direito constitui uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais que permitem ao julgador poder obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido. No abuso de direito protege-se a tutela da confiança, base de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens, sendo que a nossa lei adoptou a concepção objectiva do abuso do direito, isto é, não exige que o titular do direito haja procedido com consciência do excesso ou com “animus nocendi” do direito da contraparte, bastando pois que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos. 6. A manifestação mais clara deste abuso é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança, existindo ainda duas figuras próximas: a renúncia e a “neutralização do direito”. A situação objectiva de confiança existe quando alguém pratica um acto - o factum proprium - que, em abstracto, é apto a determinar em outrem a expectativa da adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com aquele primeiro e que, em concreto, efectivamente gera tal convicção (uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura)[17]; por exemplo, a situação objectiva de confiança não surgirá se o factum proprium não influenciar o destinatário, como sucede quando se demonstra que este, independentemente da conduta de outrem, teria agido do mesmo modo. Mas, para se apurar se uma conduta abusiva, fundamentada no venire contra factum proprium, não basta concluir pela presença de uma situação objectiva de confiança, havendo ainda que averiguar a existência de mais dois elementos integradores do “facto jurídico da confiança”: o investimento da confiança e a boa fé subjectiva de quem confiou. O investimento da confiança corresponde às disposições ou mudanças na vida do destinatário do factum proprium que, não só evidenciam a expectativa nele criada (esse “investimento” foi feito apenas com base na dita confiança), como revelam os danos que, irrefragavelmente, resultarão da falta de tutela eficaz para aquele. Se pelo contrário não se verificar uma relação de causalidade entre o (pretenso) facto gerador da confiança e o “investimento” dessa contraparte, se esta não foi influenciada nas suas decisões e por outros motivos as tomou ou teria igualmente tomado, não se verifica a necessidade de fazer intervir o princípio da protecção da confiança. Finalmente, entende-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico - cautelas que deverão ser tanto maiores quanto mais vultuosos forem os investimentos inspirados na confiança; estando em causa quantias importantes ou negócios decisivos, não se pode considerar que haja actuado de boa fé quem não procurou, de acordo com as práticas habituais do comércio jurídico, esclarecer o bem fundado do seu juízo.[18] 7. Considerando agora a figura da “neutralização do direito”, dir-se-á que a mesma é tida como uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium, embora exista quem acentue mais ou menos a sua posição autónoma no quadro do “abuso do direito” (art.º 334º do CC), estando normalmente associada ao exercício serôdio e desleal de um direito. Para que a mesma se verifique é necessária a combinação das seguintes circunstâncias: a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; b) com base neste decurso do tempo e com base numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado. Assim, além do decurso do tempo, parece estar mais em causa, o resultado a que o exercício tardio do direito conduziria e a questão de saber se ainda será exigível da contraparte conformar-se à pretensão do titular do direito e suportar esse resultado, sendo que, na maioria das vezes, a inadmissibilidade do exercício do direito resultará também da proibição do venire contra factum proprium.[19] 8. A exequente instaurou a presente execução apresentando um título executivo (cf. art.º 10º, n.º 5 do CPC[20]) baseado no contrato de crédito que celebrou com a executada F (…) e seu falecido marido [cf. II. 1. a), supra] e na conjugação dos art.ºs 703º, n º 1, al. d) do CPC[21] e 33º, n.º 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo (aprovado pelo DL n.º 24/91, de 11.01 e republicado pelo DL n.º 142/2009, de 16.6). As executadas invocaram o pagamento da quantia devida à exequente (em virtude do alegado contrato de crédito) no âmbito do dito processo executivo que correu termos sob o n º 157/1992 mas, como bem se refere na sentença sob censura, se é certo que o referido processo foi declarado interrompido e posteriormente deserta a instância por falta de impulso processual da exequente, também se antolha evidente que ficou ainda (e então) por liquidar, a título de capital, o montante de € 4 187,52 (cf., sobretudo, II. 1. h) e j), supra) - as executadas/embargantes não lograram provar que a execução anterior findou pelo pagamento integral, nem que a exequente tenha reconhecido tal situação, através de qualquer comportamento que permitisse às executadas/embargantes e o seu antecessor extrair tal ilação, ou sequer qualquer outro desenvolvimento fáctico susceptível de conduzir à extinção do direito ao percebimento daquele capital (cf., nomeadamente, os art.ºs 309º e 342º, n.º 2 do CC). Assim, a decisão recorrida, reconhecendo/declarando que aquele montante (liquidado sem qualquer reparo) permanecia em dívida, é isenta de censura. 9. E será que a factualidade apurada permite dar por verificados os pressupostos, atrás enunciados, para o desencadeamento dos efeitos do instituto do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, ainda que sob a figura da “neutralização do direito”? Salvo o devido respeito por entendimento em contrário, pensamos que não se verificam os requisitos em causa. Na verdade, não vemos demonstrado que a recorrente/exequente tenha actuado em termos de criar nas recorridas a expectativa ou a convicção (uma situação objectiva de confiança) de que jamais exerceria o direito de exigir o capital e os juros correspondentes, nos termos legais, e, de resto, a simples ou mera inacção da exequente/credora e dos devedores/executados, no contexto que ficou provado, não era sequer suficiente ou bastante para criar nestes a convicção de que deixavam de ser devedores do montante que ficara por pagar e de quaisquer outras quantias porventura devidas nos termos contratuais (cf., a propósito, a factualidade não provada indicada em II. 2. c), supra). Por outro lado, não existem factos ou indícios que nos levem à conclusão de que as recorrentes, com base numa situação de confiança criada pela exequente, tenham tomado qualquer disposição ou organizado qualquer plano, de que surgiriam danos, se essa confiança viesse a ser frustrada. Finalmente, não se poderá afirmar que a confiança das recorrentes, a existir, merecia protecção jurídica, na medida em que não terão actuado com todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico (não agiram com uma diligência susceptível de alicerçar a boa fé subjectiva…). Sendo forçosa a concorrência dos três mencionados elementos para que exista um venire contra factum proprium, conclui-se que a exequente não actuou com abuso do direito. 10. Perspectivando o caso a partir da figura da “neutralização do direito”, também não se nos afigura possível afirmar o exercício serôdio e desleal de um direito, porquanto não ficou demonstrado que em razão do decurso do tempo e/ou doutras circunstâncias as executadas/embargantes pudessem ter justificada convicção do não exercício do direito por banda da exequente [o que ficou por demonstrar - cf. II. 2. c), supra] e, menos ainda, que, movidas pela confiança porventura advinda da actuação da exequente, tenham orientado em conformidade a sua vida, tomado medidas ou adoptado programas de acção na base daquela confiança, e, por essa razão, que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhes acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado. Afigura-se assim evidente, no caso concreto, a ausência de elementos essenciais do venire contra factum proprium e a consequente inviabilidade do recurso ao instituto do abuso do direito ou, então, que o exercício do direito feito valer na acção tenha ficado neutralizado pela antecedente conduta da exequente. Não resultou provado que as executadas e seu antecessor tenham ficado convencidos na data da extinção da anterior execução de que a quantia exequenda se mostrava integralmente paga, nem que a exequente da mesma tivesse dado quitação, não estando pois verificados os pressupostos para que se verifique abuso do direito por parte da exequente no exercício do direito de execução, relativamente ao remanescente do capital em dívida. 11. Tendo a exequente lançado mão da acção executiva para exigir o que lhe era ainda devido, inclusive, os juros vencidos e devidos à luz da previsão do art.º 310º, alínea d) do CC (devendo considerar-se prescritos os que se tiverem vencido para além dos últimos cinco anos) [22] (à taxa anual de 17 %[23]; cf. II. 3. a) - 11, supra), afigura-se-nos que não é possível dizer que aquela haja adoptado conduta manifestamente desleal e intolerável, a que o direito, em nome da tutela da confiança e da boa fé, não possa dar cobertura. A conduta da exequente teria de, objectivamente, trair as expectativas e o investimento de confiança feito pelas executadas (que sempre careceria de suficiente objectivação/materialização/concretização), demonstrando-se que a conduta daquela constituía, em concreto, uma evidente injustiça.[24] Cremos não ser possível concluir nesse sentido, tal como não procede a agora invocada mora do credor/exequente (cf. os art.ºs 813º e 814º do CC)[25], exequente que, à semelhança dos executados, apenas ficou sujeita às consequências do tardio exercício do seu direito de crédito (remanescente), não integralmente satisfeito na primitiva acção executiva. A exequente, no exercício da sua actividade, não adoptou uma conduta ilícita (ainda que inabitual na actividade bancária…[26]), e, com a presente acção, limitou-se a exercitar o seu direito, respeitando a estrutura e o conteúdo que a lei lhe confere, não deixando de respeitar o fundamento que material-normativamente constitui esse mesmo direito, os seus limites normativo-jurídicos.[27] Havendo-se concluído, no tocante ao capital, na forma dita em II. 8., supra, afigura-se, ao invés do sustentado em 1ª instância, e sem quebra do devido respeito por entendimento contrário, que inexistem elementos que levem a que, relativamente aos juros, se afaste o quadro normativo vigente, devendo-se, sim, como já mencionado, atender aos que a lei não declara prescritos, à taxa anual considerada (pela exequente) e não à taxa convencionada de 25 % ou qualquer outra superior àquela. 12. Sabemos que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial de Lamego sob o n.º 157/1992 a execução ordinária contra a executada F (…) J (…) , a qual foi declarada interrompida, por falta de impulso processual da exequente, por despacho proferido em 05.9.2007 (cf. II. 1. h), supra). Todavia, em bom rigor, também na situação em análise se poderá dizer que foi a inactividade/inércia das partes (exequente e executados) que determinou a interrupção da instância e a subsequente deserção (cf. os art.ºs 285º e 291º do CPC de 1961, na redacção anterior à do DL n.º 303/2007, de 24.8)[28], sendo que essa inactividade apenas nos diz que as partes, a partir de então, deixaram de ter interesse em promover e/ou manter os procedimentos levados a cabo na dita acção executiva, conformando-se, aparentemente, com essa conjunta inacção (mas sabendo, ou devendo saber, que a dívida não se extinguira e que sempre seriam devidos juros contratuais…), com as consequências em termos de prazos de caducidade e de prescrição decorrentes da lei, mas não se podendo dizer, ao invés do sustentado pelas executadas, que aquele estado de coisas as pudesse beneficiar de qualquer outro modo, v. g., por poder consubstanciar mora credendi. 13. Na verdade, a realidade objectiva demonstrada e a ausência de qualquer actuação da exequente e dos executados no período transcorrido desde a cessação dos descontos no vencimento da 1ª executada (ou da data em que a instância ficou interrompida/05.9.2007) até à instauração da nova acção executiva[29], não possibilita as ilações e/ou consequências pretendidas na oposição à execução, antes, apenas, que se realize o direito (de crédito) na sua conformação actual e no contexto do regime jurídico aplicável.[30] 14. Daí, vingam as demais “conclusões” da alegação principal, com a consequente procedência do recurso, e improcede o recurso subordinado. * III. Pelo exposto, na procedência da apelação (improcedência do recurso subordinado), revoga-se a sentença na parte referente aos juros, condenando-se ao pagamento da quantia indicada no requerimento executivo e que corresponde ao montante remanescente do capital em dívida, acrescido dos juros de mora à taxa anual de 17 % (cf. II. 11., supra). Custas, nas instâncias, pelas executadas/embargantes. * 10.9.2019
Fonte Ramos ( Relator) Maria João Areias Alberto Ruço [1] Instaurada em 28.02.2017. [2] Que se alegou corresponder ao remanescente do capital em dívida - cf. II. 1. j); II. 3. a) -18 e II. 3. f), infra. [10] As executadas invocaram, na resposta à alegação e recurso subordinado, que essa importância adveio da venda judicial dos bens imóveis existente no património dos executados e do desconto efectuado no vencimento da executada F (...) , na proporção de um terço (1/3), iniciado em Abril/1994 até 24.11.2004. [11] Decorrendo do ofício reproduzido a fls. 42 e verso do processo físico que os descontos no vencimento da executada cessaram a 24.11.2004, cuja guia de desconto veio acompanhada de um ofício do Agrupamento Escolar de Rio Tinto, com data de 07.12.2004, do teor seguinte: «Junto envio a V. Exa. [Tribunal] a Guia de Descontos n.º 134/2004, relativa ao pagamento da última prestação da professora F (…), referente ao mês de Novembro de 2004.» [13] In Teoria Geral das Obrigações, pág. 63 e BMJ, 85º, 253, respectivamente. [14] In Questão de facto-Questão de direito, I, Almedina, 1967, pág. 524. Cf., na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do STJ de 09.5.1991, 03.10.1991, 12.7.1994, 28.11.1996, 21.11.2000, 21.01.2003-processo 02A4233, 07.4.2005-processo 05B796, 07.02.2008 e 28.02.2008, in BMJ, 407º, 551 (tendo-se concluído, nomeadamente: “O instituto do abuso do direito – art.º 334º do CC – não deve constituir panaceia fácil para todo e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo.”) e 410º, 776; CJ-STJ, II, 2, 176; IV, 3, 118 (constando do respectivo sumário: “O abuso do direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito e casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.”) e VIII, 3, 130; “site” da dgsi e CJ-STJ, XVI, I, págs. 77 e 122, respectivamente. [20] Normativo que estabelece o seguinte: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”. [21] Que preceitua: “À execução apenas podem servir de base: (…) d) Os documentos a que, por disposição especial seja atribuída força executiva”. [22] A razão essencial das prescrições de curto prazo sem natureza presuntiva, como é o caso das prestações periódicas renováveis (art.º 310º do CC), prende-se com a protecção do devedor contra a acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital susceptível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser-lhe exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos; a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos (retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis) a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar. - vide, nomeadamente, Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, in BMJ 106º, pág. 107, nota (675), citando os tratadistas Planiol, Ripert e Radouant e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1974, pág. 452 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 278. [26] Assim reconhecido pela própria recorrente/exequente, na alegação de recurso: “(…) concedemos in casu que o não exercício do direito por um prazo tão longo é inesperado e inabitual.” [27] Vide Castanheira Neves, ob. cit., págs. 524 e seguintes. [29] Verificando-se qualquer espécie de justificação objectiva para a situação de “confiança”, v. g., com desenvolvimento de tentativas de indagação razoáveis por parte do devedor confiante, posto que outros factos, expressos, não decorriam aparentemente da actividade da credora - cf. o acórdão da RP de 30.5.2017-processo 15612/15.0YIPRT.P1, publicado no “site” da dgsi; cf. II. 1. h) e k) e II. 2. a) e b), supra. |