Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TERESA ALBUQUERQUE | ||
Descritores: | INTERVENÇÃO PRINCIPAL ACESSÓRIA PROVOCADA EMBARGOS DE EXECUTADO GARANTIA BANCÁRIA À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 261.º; 311.º E SEG.S; 316.º, 1 E 3, A) E 321.º, 1, DO CPC | ||
Sumário: | I – A admissibilidade da intervenção principal acessória provocada, prevista no nº 1 do art 321º CPC, depende da verificação cumulativa de três requisitos: que o terceiro a chamar não tenha legitimidade para intervir como parte principal; que o réu tenha acção de regresso contra esse terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a demanda; e que o terceiro a chamar possa ajudar o réu na sua defesa na acção. II -Na situação dos autos, verifica-se que o requerimento de intervenção acessória provocada é feito em embargos de executado, depois que o obrigado ao pagamento de garantia bancária à 1ª solicitação e que a prestou ao beneficiário da mesma, veio exigir na execução, o reembolso da quantia entregue, pretendendo os executados a intervenção do credor beneficiário dessa garantia. III - Neste contexto, ainda que o credor beneficiário da garantia e cuja intervenção se pretende não tenha legitimidade para intervir nos autos, e ainda que se mostre configurável, em abstracto, acção de regresso dos executados relativamente àquele beneficiário para dele se ressarcirem com fundamento no facto da garantia ter sido exigida sem motivo, a referida intervenção deve ser indeferida, por não se entrever, dados os interesses em causa na garantia bancária à 1ª solicitação, possibilidade do chamado poder auxiliar os executados na sua defesa. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I - Na execução ordinária para pagamento da quantia de 26.961,94 que A... – Sociedade de Garantia Mútua SA, intentou contra AA, BB e B... – Unipessoal Lda, vieram estes embargar de executado e provocar incidente de intervenção acessória do Banco 1..., concluindo, no que a esta respeita, destinar-se a mesma a «contribuir para o esclarecimento da quantia exequenda e a razão por que interpelou o exequente para pagamento».
A... Sociedade de Garantia Mútua SA, opôs-se aos embargos, não se pronunciando especificamente sobre o referido incidente de intervenção acessória. Sobre o mesmo, foi proferido, liminarmente, o seguinte despacho: «(…) Em termos gerais, “[p]ercorrendo as disposições reguladoras dos vários tipos de incidentes de intervenções de terceiros, verifica-se que, à excepção do incidente da assistência, eles foram pensados em função da acção declarativa” – Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 5.ª Ed., Coimbra Ed., 2009, págs. 137/138 -, pelo que se poderá afirmar que “a regra vigente na execução é, assim, a da inadmissibilidade de intervenções atípicas de terceiros, seja a que título for e por quem for” – cfr. Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL, 2018, pág. 308, com análise das várias posições (nota-se que, conforme refere este autor, existe previsão de intervenções típicas de terceiro, v.g., art. 54.º, n.º 3, do CPC). Ainda assim, tal regra não deve ter carácter absoluto e não é necessariamente aplicável no âmbito da oposição à execução (ou outro apenso declarativo da execução), afigurando-se razoável ponderar que, em determinadas circunstâncias (tendencialmente excepcionais), se admita a intervenção de terceiros (em resumo, quando seja indispensável à defesa do executado, desde que verificados os pressupostos da intervenção em causa e se essa intervenção concreta não implicar com a estrutura e a finalidade da acção executiva), certo que a oposição à execução (mediante embargos de executado), embora constitua uma acção declarativa (“contra-acção”) e a sentença possa produzir efeitos de caso julgado (art. 732.º, n.º 5, do CPC), visa a extinção, total ou parcial, da execução (art. 732.º, n.º 4, do CPC). Como é sabido, nos termos do art. 321º do CPC, nos casos em que o réu tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda e pretenda chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal, circunscrevendo-se a intervenção do chamado à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, sendo que o requerente do pedido de intervenção que tem o ónus de alegar os factos que permitam ao Juiz formular um juízo de prognose favorável à viabilidade da acção de regresso (parte final do n.º 2 do art. 322.º do CPC). O fundamento básico da intervenção acessória é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda. Esse terceiro, porque não é titular ou contitular da relação material controvertida mas apenas sujeito passivo de uma eventual acção de regresso ou de indemnização configurada pelo chamamento, tem uma posição meramente acessória, sem poder ser condenado no caso da acção proceder, isto porque só fica vinculado em termos reflexos relativamente a alguns dos pressupostos da acção de regresso – cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 7ª Ed., Almedina, 2014, pág. 103. ~ No caso concreto, a alegação dos executados, no essencial, conclui-se nos seguintes termos: “Têm assim os executados direito de regresso contra o Banco 1... com vista à indemnização do prejuízo que lhe causa a tramitação da execução. E dentro dessa indemnização caberá a exigência, em erro causado por esse terceiro, da exequente no preenchimento das livranças e propositura da execução, bem como das penhoras que os executados venham a sofrer. Porque o Banco 1... não é entidade que tenha legitimidade para intervir como parte principal vêm os executados requerer a intervenção acessória e provocada do mesmo, nos termos do art. 321º do CPC”. Ora, com o devido respeito, entende-se que a existência de um (hipotético) direito de regresso, nos termos configurados, face ao título, não torna justificada a intervenção acessória do aludido Banco 1..., S.A. (“Banco 1...”) no âmbito da presente oposição. Conforme se refere no Ac. da RP de 28/04/2008, disponível em www.dgsi.pt, “Porém, no caso presente, como claramente resulta da defesa do executado, a intervenção dos chamados mostra-se completamente desnecessária (o embargado apenas pretende fazer intervir os chamados porque, afirma, tem direito de regresso contra eles, estando esta situação abrangida pelo disposto no artigo 330 do CPC). Ou seja, a intervenção dos chamados não é essencial nem fundamental para a defesa do embargante, pelo que não deve ser admissível o incidente de intervenção acessória provocada nos presentes embargos de executado”. Por outro lado ou noutra perspectiva, também se afigura inexistir utilidade (para os executados) na intervenção do “Banco 1...”, até porque não se vislumbra interesse comum (entre os executados e o Banco) em que a execução improceda (ou seja, em que os executados sejam auxiliados na defesa contra a força do título executivo dado à execução), nem existem questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada, atenta a natureza da relação jurídica subjacente aos autos – em termos perfunctórios, a relação jurídica configurada nos autos assenta numa livrança que tem subjacente um contrato de garantia autónoma (à primeira solicitação) prestada pela ora exequente a favor do “Banco 1...”, pelo que “não se vislumbra em que é que a chamada possa ajudar na defesa da chamante, pelo que, também por este fundamento, sempre seria de indeferir a intervenção acessória deduzida pelo oponente” (Ac. da RP de 10/10/2019, disponível em www.dgsi.pt). Portanto, no caso concreto, ponderando as suas circunstâncias específicas, entende-se que não é possível a pretendida intervenção acessória provocada, que assim se indefere»..
II – É do assim decidido que os embargantes apelam, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos: A) Surgem as presentes alegações no âmbito de Recurso de Apelação ordinário da douta sentença proferida no presente apenso de embargos de executado sobre o incidente de intervenção acessória e provocada do Banco 1... S.A., com a referência 105268629, datada de 09.11.2023, a qual julgou o incidente deduzido como impossível quanto à pretendida intervenção acessória provocada, por entender que a respetiva dedução não se subsumia ao previsto, designadamente nos arts. 321º e 322º do CPC e com o que os recorrentes se não podem conformar. B) Tem a presente execução como causa de pedir duas livranças cambiárias que, segundo o seu preenchimento corresponderiam à titulação de garantias autónomas respetivamente de ...12 e ...66, sendo certo porém que é a própria exequente que no caso concreto confessa que as livranças não constituem documentos cartulares autónomos, mas cujo seu preenchimento foi resultado de o Banco 1... ter solicitado à exequente o pagamento de garantias prestadas em benefício do referido banco e pagas à primeira interpelação. C) Significa isto que tais garantias emitidas por A... constituíam garantias de pagamento da executada sociedade com aval dos restantes executados de dois contratos de financiamento celebrados entre os executados e o Banco 1... de acordo com os quais e para garantia de pagamento pelos mutuários ao Banco da percentagem de 70% do capital em divida, sendo da responsabilidade do banco acionar a garantia pelo montante que efetivamente estivesse em dívida e que não fosse coberto pelos executados nas suas contas. D) Em consequência e na presente execução, pretende unicamente a A... exercer o seu direito de regresso sobre os mutuários do Banco 1..., razão pela qual as livranças foram preenchidas com os montantes indicados pelo Banco 1... no pressuposto que os executados não teriam montantes suficientes para garantir o valor que a exequente foi interpelada pelo Banco 1... para cumprir, sendo que o direito de regresso a ser exigido nesta ação corresponderia ao montante devido pelos executados ao Banco 1... S.A. [1]H) Acontece, no entanto, que, após um longo caminho de tentativas de esclarecimento com o Banco 1... S.A. sobre a efetiva divida da sociedade executada, e de que os restantes executados são avalistas, não foi possível até hoje definir o efetivo valor da divida e a correção do montante imputado à exequente. I) Com efeito, e após diversas interpelações o Banco 1... S.A., limitou-se a juntar extratos que eram exemplificativos de que, afinal, as mesmas contas tinham um saldo disponível respetivamente de €1.498,34 e de €1.434,54, e mesmo sem saber quais eram os efetivos montantes em divida ao Banco 1..., os executados endereçaram, um e-mail sobre a pretensa aprovação de crédito LINHA ..., continuando o Banco 1... sem sequer responder aos executados quaisquer extratos de conta que permitissem confirmar ou infirmar as razões e os fundamentos do levantamento das contas DO com pretenso destino à conta caucionada J) Mesmo em relação à exequente A..., e sobre os dois empréstimos a que foi exigida a garantia à exequente um deles tinha somente a falta de pagamento de prestação de €478,67 e o segundo de €544,09, o que nada tem a ver com os montantes exigidos à exequente pelo Banco e que motivaram a presente execução, para além do que nunca apareceu documento comprovativo da prestação única que durante alguns meses chegou a integrar os extratos bancários, para além de ter havido reembolsos na conta DO que só se compreendem por haver saldo positivo na conta caução. L) A verdade é que o Banco 1..., se escusava, mesmo após o accionamento das garantias em nome da exequente, de continuar a não dar a totalidade das responsabilidades pelo que teria que aguardar o pedido de pagamento de garantia por parte da exequente, pelo que tudo indica que a exequente pagou as garantias, continuando o Banco 1... sem responder não permitindo o pagamento à própria exequente. M) Em rigor, continuou a verificar-se que, não só o silêncio do Banco 1..., como também a sua confusão nas contas apresentadas, uma vez que no extrato de 19.07.2022 aparece na conta de cartão de créditos dos executados um débito de Euros 2.039,28 para logo a 05.04.2023 o Banco 1... comunicar que o saldo de cartão de crédito era tão só de €3,12. N) Daqui se constata que que não sabem os executados, face à confusão gerada pelo Banco 1..., qual o montante que estes tinham em divida perante o Banco, qual desse montante correspondia a dividas nos contratos de empréstimo em que intervinha a exequente e mais do que isso, quais os valores que estavam em divida desses contratos, do que resulta que foi abusiva a interpelação do Banco 1... à exequente para pagamento das garantias e que motivaram as livranças preenchidas e dadas à execução, as quais afinal terão sido fundamentadas em valores não demonstrados e exigidos em abuso de direito à primeira interpelação. O) Neste enquadramento foi requerida a intervenção acessória e provocada do Banco 1..., porquanto foi o Banco 1... S.A. que requereu o pagamento à exequente de determinados valores à primeira interpelação que, teoricamente, correspondiam a 70% da divida dos executados àquele banco e que em rigor não correspondiam ao montante da divida destes, nem o que fora coberto pelo pagamento das garantias da exequente e que em rigor excederam claramente os valores que os executados tinham nas suas contas no mesmo Banco 1.... P) A intervenção acessória foi requerida, pois foi aquele Banco que interpelou a exequente para pagamento de valores que afinal não eram devidos pelos próprios executados e de que os executados tinham direito de regresso contra o Banco 1... com vista à indemnização do prejuízo que lhe causa a tramitação da execução, cabendo dentro dessa indemnização a exigência, em erro causado por esse terceiro, da exequente no preenchimento das livranças e propositura da execução, bem como das penhoras que os executados têm vindo a sofrer. Q) Foi nesta base que a intervenção em causa foi requerida dado que os fundamentos da intervenção acessória são precisamente saber se as garantias foram corretamente acionadas pelo Banco 1..., se a divida paga era existente ou se tal pagamento implica direito de regresso, não estando em causa que, se a divida constante nos títulos executivos fosse válida e devida, esta não tivesse que ser paga. R) O que justifica o chamamento é se o chamado Banco 1... tinha, por existência efetiva de divida de acionar as garantias e a exequente de as pagar, se a divida não fosse existente como se alega que não é, e em consequência, também não seriam exigíveis aos executados pela exequente os montantes pagos a partir de uma solicitação de pagamento que poderia não existir. S) As garantias emitidas por A... constituíam garantias de pagamento da executada sociedade com aval dos restantes executados de dois contratos de financiamento celebrados entre os executados e o Banco 1..., de acordo com os quais e para garantia de pagamento pelos mutuários ao Banco da percentagem de 70% do capital em divida, constituindo a garantia uma garantia à primeira interpelação, cabendo ao Banco 1... a obrigação civilista, sob pena de abuso de direito previsto no art. 334º do CC, de a interpelação só ter lugar pelo exato montante que os executados ainda pudessem estar a dever ao Banco. T) Porque o Banco 1..., se escusava, mesmo após o accionamento das garantias em nome da exequente, de continuar a não dar a totalidade das responsabilidades pelo que teria que aguardar o pedido de pagamento de garantia por parte da exequente, de onde resulta que a exequente terá pago quantias diversas daquelas que constituíam o âmbito das garantias, continuando o Banco 1... sem responder não permitindo o pagamento à própria exequente. U) Daqui se constata que não sabiam os executados, face à confusão gerada pelo Banco 1..., qual o montante que estes tinham em divida perante o Banco, qual desse montante correspondia a dividas nos contratos de empréstimo em que intervinha a exequente e mais do que isso, quais os valores que estavam em divida desses contratos, ou seja, as livranças dadas à execução, terão sido fundamentadas em valores não demonstrados e exigidos em abuso de direito à primeira interpelação. V) A definição da prestação em divida em função da obrigação só se obtém mediante a intervenção do Banco 1... e a sua explicitação sobre qual a base pela qual exigiu as garantias à primeira interpelação prestadas pela exequente e os executados, para lhes permitir a ação de regresso contra o Banco para serem indemnizados do prejuízo que lhe cause a perda da demanda terão de o chamar a intervir e de acordo com o art. 322º nº 2 existe ação de regresso e da efetiva dependência das questões a decidir na causa principal. X) È aqui que a sentença recorrida ao referir que não é essencial nem fundamental para a defesa do embargante a intervenção do chamado não deve admitir o chamamento, quando só através da intervenção do Banco 1... é que se poderá definir se existe montante exequendo e, a existir qual o seu valor. Z) A sentença recorrida, ao não atender e até repudiar o chamamento de intervenção acessória provocada do Banco 1... violou: a) Sobre o título executivo e a validade da quantia nele aposto o art. 703º nº 1 alinea c) do CPC o art. 10º da LULL e os arts. 334º, 627º nº 2 e 631º do CC; b) Ao não admitir a intervenção acessória provocada do Banco 1... S.A., que era o único que poderia vir explicar a relação entre o montante em divida e a interpelação os arts. 321º e 322º nº 2 do CPC.
Não foram produzidas contra-alegações.
III – É o seguinte o circunstancialismo fáctico a ter em consideração: I - A Exequente, Sociedade de Garantia Mútua (SGM), que tem por objeto a realização de operações financeiras e prestação dos serviços conexos, em benefício de pequenas e médias empresas e de microempresas, no exercício da sua actividade, celebrou, em 17 de Dezembro de 2018 e 15 de Maio de 2020, com a executada B... – Unipessoal, Lda., dois contratos, correspondentes aos escritos juntos aos autos como Docs. 1 e 2, dos quais decorria para a mesma a obrigação de prestar as garantias autónomas à primeira solicitação aí referidas. II – Estando em causa, respectivamente, a garantia n.º ...12 que se destinava a garantir o cumprimento da obrigação de pagamento de 70% de capital mutuado, no valor máximo de € 17.500,00, no âmbito do contrato de mútuo celebrado, na mesma data, entre o Banco 1..., S.A. e a referida empresa (cfr. Alíneas a) a e) dos Termos e Condições do contrato junto como Doc. n.º 1) e a garantia n.º ...66 que se destinava a garantir o cumprimento da obrigação de pagamento de 70% de capital mutuado, no valor máximo de € 17.500,00, no âmbito do contrato de mútuo celebrado entre o Banco 1..., S.A. e a referida empresa (cfr. Pontos II – Garantia Autónoma e III – Condições Particulares dos Termos e condições do contrato junto como doc. 2).
IV – A única questão a decidir no presente recurso, tal como resulta do confronto das conclusões das respectivas alegações com a decisão recorrida, é a de saber se nas circunstâncias acima referidas se justifica admitir nos presentes embargos de executado a intervenção acessória do Banco 1....
A doutrina e a jurisprudência têm-se mostrado genericamente avessas às intervenções de terceiros na execução e na oposição à execução/embargos de executado. Rui Pinto é muito peremptório a esse respeito, frisando: «A resposta é negativa: a intervenção de terceiro supõe uma extensão decisória da oposição, que ultrapassa a respectiva função acessória de estrita extinção da execução».[2] Igualmente Salvador da Costa [3] se pronuncia claramente no sentido de que «o incidente de intervenção principal provocada é inadmissível na acção executiva por virtude do objectivo de um e de outra e das regras de legitimidade desta», e a respeito do incidente de intervenção acessória refere que o mesmo «é incompatível com a acção executiva para pagamento de quantia certa, mesmo na fase de embargos de executado, porque os fins de uma e outra são incompatíveis, além do mais porque a acção executiva não comporta decisão condenatória, pressuposto essencial do incidente em análise». Estas considerações, excludentes da admissibilidade da intervenção provocada na execução, são feitas, esclareça-se, à margem das situações tipificadas no processo executivo em que é claramente admitida a intervenção de terceiros, situações essas, em que, não obstante, o legislador não recorre, sequer por remissão, para as normas próprias dos incidentes de intervenção de terceiro previstos no art 311º e ss do CPC [4]. Sem esquecer, como o faz notar Lebre de Freitas, que desde sempre se teve como admissível incidente de terceiro na execução para assegurar a legitimidade duma parte, nos termos do art 261º CPC, pelo que, rejeitada oficiosamente a execução, ou julgados procedentes os embargos de executado por ilegitimidade do exequente ou do executado, o exequente pode requerer o chamamento da pessoa em falta, tal como esta o poderá requerer espontaneamente. [5] Convém, no entanto, precisar que uma coisa é a intervenção de terceiros na execução e outra a dessa intervenção no apenso dos embargos à execução - que é a que está em causa nos autos, tal como resulta do pedido formulado pela executada/apelante – em que a questão já se pode apresentar como diferente, atenta a respectiva natureza declarativa. Com efeito, os embargos de executado constituem verdadeiras acções declarativas, estruturalmente autónomas, embora ligadas instrumental e funcionalmente à acção executiva [6], referindo Lopes Cardoso[7] que «o executado assume a autoria dum processo declarativo autónomo da execução, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do titulo, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção». No Ac STJ 1/3/2001 [8] foi admitida a intervenção principal de terceiro em embargos de executado, tendo-se entendido que a mesma se revelava indispensável para conferir eficácia à oposição neles deduzida contra a execução, na medida em que, tendo-se o executado defendido com a excepção liberatória da divida exequenda resultante da simulação do contrato e pedido a sua anulação, para que a decisão a proferir sobre a questão da nulidade ou validade do contrato de mútuo pudesse produzir efeito útil normal não bastava demandar o embargado. E nesse acórdão admitiu-se, genericamente, que não se deveria rejeitar in limine a possibilidade de em embargos de executado ser pedida a intervenção principal de terceiros, acentuando-se que «ponto é que estejam reunidos os requisitos de que a lei faz depender a sua admissibilidade e que na situação concreta se mostrem compatíveis com a especial função e natureza da acção executiva».
Vejamos se se será esse o caso na situação dos autos. Em primeiro lugar, lembrando o esquema de funcionamento das garantias bancárias autónomas, em que é possível descortinar três contratos – um contrato base, no caso dos autos, de mútuo, e que constitui a relação principal, aqui, entre o Banco 1... e os embargantes; um contrato entre estes e a “A...”, que se analisa num contrato de mandato, em que aqueles incumbem esta de prestar garantia ao Banco 1...; e um contrato de garantia entre o Banco 1... e a A..., em que esta se obriga a pagar a soma convencionada logo que solicitada pelo beneficiário, sem que este tenha de provar o incumprimento (cláusula de pagamento à primeira solicitação) e sem que o garante possa invocar quaisquer objeccções sobre a subsistência ou validade do crédito do Banco 1... sobre os aqui embargantes. Próprio desta garantia é o facto do garante «assumir uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. O devedor não pode, por isso, impedir o garante de prestar a soma acordada, logo que o beneficiário a solicite». Como é salientado no Parecer dos Prof Dr CC e DD, «O Contrato de garantia à primeira solicitação»[9], que aqui se está a seguir, «consegue-se deste modo uma segurança total: não só a garantia se desliga (porque autónoma) da relação principal (entre o beneficiário e o devedor), como igualmente se elimina o risco de litigância sobre a ocorrência ou não dos pressupostos que legitimam o pedido de pagamento feito pelo beneficiário. Perante uma garantia de pagamento à primeira solicitação o garante (…) está obrigado a satisfaze-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados» (…) «Garantia autónoma significa que é independente das vissicitudes da relação principal entre o credor/beneficiário da garantia e o devedor» [10] . Após ter satisfeito o pagamento ao beneficiário, o banco garante tem direito a ser reembolsado da quantia entregue, obrigação cujo cumprimento incumbe, naturalmente, ao devedor, e por isso, no que aos autos respeita, a A..., não reembolsada pelos devedores, agora embargantes, recorreu à sua execução. «Será o devedor, depois de reembolsar o garante da quantia por este entregue ao beneficiário, que terá de intentar procedimento judicial em ordem a reaver a referida importância, provando a falta de fundamento da atitude do credor beneficiário» – «paga-se primeiro e discute-se depois». Isto, sem prejuízo do devedor poder tentar impedir o pagamento ou a execução da garantia através de medidas instauradas em sede judicial ou arbitral, de natureza cautelar, tendo, no entanto, de, nesse âmbito, fazer prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do beneficiário. Tratam-se de «medidas inibitórias, de natureza cautelar, intentadas pelo devedor em ordem a impedir o banco de pagar a garantia ao beneficiário, em caso de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte deste, ou dirigidas mesmo contra o beneficiário, obstando a que este receba a quantia». Havendo que reter, para o que importa neste recurso, que o devedor que depois de reembolsar o garante da quantia que este em execução da garantia entregou ao beneficiário, entenda que esta foi paga sem fundamento, pode intentar procedimento judicial contra o beneficiário de modo a reaver a referida importância, tendo, por isso, direito de regresso contra este, sendo a esta possibilidade de direito de regresso que se reportam os aqui apelantes.
A intervenção principal, como decorre desde logo da sua designação (“principal”) e do art 311º CPC referente à intervenção principal espontânea («estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal…», e ainda em função da delimitação negativa contida na parte final do nº 1 do art 321º, referente à intervenção acessória provocada, tem como pressuposto que o terceiro tenha legitimidade para intervir na causa como parte principal. Já a intervenção provocada acessória tem como pressuposto, ao contrário, e como resulta da referida delimitação negativa, «que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal». A intervenção principal pode suceder, como acima já se fez referência, entre outros casos, quando tenha ocorrido preterição de litisconsórcio necessário, em que «qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária nos termos do nº 1 do art 316º CPC». Será, afinal, o caso, da situação do acima referido Ac do STJ 1/3/2001, em que estaria em causa a integração através dos embargos de executado de um litisconsórcio necessário natural. Não estando em causa a preterição de litisconsórcio necessário na execução, do lado activo ou passivo, não se vê como possa o executado/embargante provocar a intervenção de um terceiro como parte principal, isto é, como exequente, ou executado. Como se refere no Ac R C 22/10/2019, não é razoável «o chamamento aos embargos, pelo executado, de um terceiro para demonstração de que é este o verdadeiro responsável pela divida exequenda e não ele próprio», acrescentando-se, «possibilidade que, de qualquer modo, também não lhe seria facultada no processo declarativo». A admitir-se a intervenção de terceiros provocada pelo executado/embargante a mesma só seria pensável ao abrigo da al a) do nº 3 do art 316º, isto é, em situação em que estivesse em causa litisconsórcio voluntário e as pessoas a chamar se pudessem ter como «sujeitos passivos da relação jurídica controvertida». Na situação dos autos não pode entender-se que o Banco 1... se pudesse configurar como sujeito passivo da relação jurídica controvertida (na execução), como decorre da sua posição jurídica perante a A.... O que significa que não se mostra possível a intervenção principal do Banco 1.... O que leva a concluir, que o primeiro pressuposto para a admissão da intervenção acessória provocada deste Banco se verifica, pois, como se constatou, o terceiro cujo chamamento está em causa, não tem legitimidade para intervir na causa como parte principal.
Por outro lado, a configuração das relações do Banco 1..., mutuante, com a aqui exequente A..., por um lado, e com o mutuário executado, por outro, em função da relação triangular acima referida decorrente da existência e satisfação da garantia bancária à primeira solicitação, permite que se coloque aquele Banco como titular de uma relação jurídica conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, em função do possível direito de regresso do mutuário relativamente ao beneficiário da garantia, abrindo a possibilidade do executado poder utilizar nos embargos de executado a intervenção acessória [11], como já sucedia no âmbito do anterior chamamento à autoria. Efectivamente, o Banco 1..., na arquitectura atrás constatada resultante das ligações à A... e ao mutuário, não se mostra titular ou contitular da relação material controvertida na execução, mas pode configurar-se como sujeito passivo de uma relação jurídica material controvertida conexa com a que é objecto da mesma – a que resulta do eventual direito de regresso do executado - sendo, por isso titular de situação jurídica afectável, ainda que só economicamente, pelo resultado da causa.
Se, o que até agora foi ponderado, permitiria que se entendesse como verificada parte da previsão do nº 1 do art 321º referente à intervenção acessória – pois que «o terceiro carece de legitimidade para intervir como parte principal», como já se viu, e se mostra configurável direito de regresso dos executados/embargantes sobre o Banco 1... para serem indemnizados do prejuízo que lhe cause a perda dos presentes embargos de executado em função da prossecução da execução - já não pode considerar-se verificada a previsão intermédia dessa norma, porque, por definição, dados os interesses em causa, o Banco 1... não interviria nos presentes embargos «como auxiliar na defesa» dos executados, bem pelo contrário. Esta função de auxiliar na defesa mostra-se essencial à intervenção acessória provocada e em situações como as dos autos em que não possa ocorrer, determina a improcedência do incidente. A partir do momento em que atentas as relações jurídicas presentes no contrato de garantia bancária à primeira solicitação a intervenção do beneficiário da garantia na demanda do devedor, a requerimento deste, não pode ter como objectivo o auxilio do mesmo na sua defesa, nenhum sentido pode haver no deferimento da intervenção em causa, que só complicaria a acção, obstando a um adequado e célere andamento do processo, consubstanciando um expediente dilatório sem qualquer suporte e utilidade processual. Só faz sentido falar de auxilio na defesa quando exista um interesse comum dos dois em que a acção improceda, por isso se justificando o que foi ponderado na decisão recorrida: «Também se afigura inexistir utilidade (para os executados) na intervenção do “Banco 1...”, até porque não se vislumbra interesse comum (entre os executados e o Banco) em que a execução improceda (ou seja, em que os executados sejam auxiliados na defesa contra a força do título executivo dado à execução), (…) pelo que “não se vislumbra em que é que a chamada possa ajudar na defesa da chamante, pelo que, também por este fundamento, sempre seria de indeferir a intervenção acessória deduzida pelo oponente” (Ac. da RP de 10/10/2019, disponível em www.dgsi.pt). Na situação dos autos o Banco 1... se fosse admitida a sua intervenção acessória nos autos não poderia ajudar os embargantes na sua defesa porque se estaria a “desajudar” a si próprio, o que nenhum sentido faria. Conclui-se, pois, pelo acerto da decisão recorrida, que, deve assim, manter-se, com o indeferimento da intervenção acessória do Banco 1....
V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Coimbra, 4 de Junho de 2024 (…)
[4] -Assim sucede, por exemplo, na situação do devedor na execução movida contra o terceiro com garantia real (cf. art. 54º/3); de terceiro com direito ou posse incompatível com a penhora (cfr art. 342º); do devedor principal ou do fiador, na execução movida, respectivamente, contra o fiador ou contra o devedor principal (cf. art. 745º/ 2 e 5); do exequente de execução de bens com garantia real (cf. art 832º/4). [10] - A mero titulo de exemplo, vejam-se, a propósito, os Ac STJ 14/10/2004 (Araújo Barros) e o Ac R L 8/9/2015 (Roque Nogueira) |