Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
38/13.8TBPSM.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ÓNUS DA PROVA
IMPROCEDÊNCIA

ACÇÃO
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - S. PEDRO DO SUL - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 342.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Não se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto se as AA não lograram fazer prova dos factos constitutivos do direito que pretendiam ver reconhecido, ónus que sobre elas recaia consoante o critério legal de repartição consagrado no art.º 342.º, o que determina a improcedência da acção.
Decisão Texto Integral:

I. Relatório

A... e outras, instauraram contra B... e mulher, C... , acção de simples apreciação positiva, pedindo a final fosse declarado que AA e RR são comproprietários, em comum e na proporção de 1/6 para cada uma das AA e de 1/6 para os RR, do prédio que identificam nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial, nele se incluindo a casa de habitação ou casa do caseiro, condenando-se os RR a reconhecerem tal direito e a absterem-se de praticar em relação à referida casa qualquer acto que implique desrespeito dos direitos de uso, fruição e disposição de que as AA são titulares enquanto suas comproprietárias, ordenando-se o cancelamento de quaisquer registos que contrariem tal direito.

Alegaram, em suma, que são donas, conjuntamente com os Réus e na proporção de 1/6 para cada, do prédio rústico denominado “Quinta do Fundo da Vila, Chão do Cardoso e Acto do Prado”, com a área de 50300 m2, composto de casa de habitação, palheiro, eira e canastro, o qual lhes foi doado por F... , negócio de doação formalizado por escritura outorgada no dia 7 de Março de 1994, no Cartório Notarial de (...) .

Mais alegaram ter sido igualmente doado a AA e RR o prédio urbano denominado Fundo da Vila, constituído por casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar, com a superfície coberta de 338 m2 e logradouro com a área de 2500 m2, descrito na CRPredial de (...) sob o n.º 261 e inscrito na matriz respectiva sob o art.º 600, o qual veio a ser adjudicado aos demandados no âmbito de acção de divisão de coisa comum instaurada no mesmo Tribunal.

Ocorre que os RR revelaram o propósito de se assumirem como donos exclusivos da casa de habitação que integra o prédio comum, e que corresponde à casa do caseiro -justamente porque sempre se destinou a habitação do caseiro da Quinta do Fundo da Vila-, sob pretexto de que tal edificação integra antes o prédio que lhes foi adjudicado na referida acção de divisão de coisa comum e que por via de tal adjudicação passou a ser sua exclusiva pertença, situação que afronta o direito dos AA e justifica a presente acção.
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Contestaram os RR, nos termos da peça que consta de fls. 44 a 62 dos autos, e nela, reconhecendo a invocada situação de compropriedade, alegaram que a casa de habitação mencionada na descrição do prédio comum corresponde a uma construção abandonada, hoje, entre outras existentes no mesmo, destinada a arrumos, e que proveio do prédio antes denominado Aido, autónomo até 1990 e como tal descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 34626. Tal descrição veio a ser inutilizada, dada a anexação do aludido prédio, juntamente com outros, à parte sobrante do prédio denominado Quinta do Fundo da Vila, do qual foi destacado o urbano hoje propriedade exclusiva dos contestantes, formando aqueles o prédio comum a AA e RR, actualmente descrito na Conservatória do Registo Civil sob o n.º 263. A casa de habitação aqui mencionada, acrescentaram, nada tem a ver com a casa do caseiro, que sempre integrou e continua a integrar a casa principal da Quinta, que apenas aos RR pertence, por lhes ter sido tal prédio adjudicado no âmbito da acção de coisa comum identificada pelos demandantes, impondo-se a improcedência da acção.
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Prosseguiram os autos com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Teve lugar a audiência final, finda a qual foi proferida douta sentença que, na parcial procedência da acção, declarou que AA. e RR. são os titulares do direito de propriedade sobre o prédio rústico descrito no ponto 1. da factualidade apurada, absolvendo os demandados do demais peticionado.

Inconformados com o decidido apelaram as AA e, tendo exposto nas alegações os fundamentos da sua discordância, formularam a final as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª- A douta sentença recorrida, na parte em que julgou a acção parcialmente procedente, omitiu as proporções que no direito de compropriedade cabem a cada uma das A.A. e aos R.R., tal como havia sido pedido inicialmente;

2.ª- No restante, a douta sentença recorrida não representa a justa decisão da causa, não estabeleceu qualquer correspondência entre a verdade material e a verdade formal e, para tanto, deixou-se condicionar pelas regras da distribuição do ónus da prova;

3.ª- Dos documentos juntos sob os nºs 1, 2, 3, 5 e 6 com a petição inicial resulta claro que o prédio urbano adjudicado aos R.R. compreende uma única casa de habitação, e que o prédio identificado nos artºs 1.º e 2.º da petição Inicial compreende também uma casa de habitação, ou casa do caseiro, que, aliás, confina a Norte com aquele;

4.ª- Da prova testemunhal produzida nos autos – v.g. depoimentos das testemunhas D... e E... , atrás citados – decorre que a casa do caseiro em questão é a única casa de habitação do prédio identificado nos artºs 1.º e 2.º da petição inicial;

5.ª- Se dúvidas pairavam no espírito do Mº Juíz “ a quo” – e, pelos vistos, assim aconteceu – não devia ter hesitado e, menos ainda, evitado, lançar mão dos meios que o legislador lhe faculta para chegar até à verdade material e, assim, poder decidir com justiça (v.g. mediante inspecção ao local, se é que os documentos juntos com a petição inicial não são tidos como suficientes);

6.ª- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, infringiu o disposto, entre outros, dos artºs 6.º e 411.º do Cód. de Processo Civil, e é ambígua, o que a torna nula (art.º 615.º nº 1 alª c) do mesmo diploma legal);

Com tais fundamentos requerem que, na procedência do recurso, seja anulada a sentença recorrida, substituindo-se por decisão que “julgue a acção inteiramente procedente e provada ou ordene a repetição do julgamento em vista do apuramento da verdade material e da justa composição do litígio”.

Contra alegaram douta e esclarecidamente os apelados, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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Questão prévia

Nas alegações apresentadas, impugnaram as recorrentes a decisão sobre a matéria de facto, o que fizeram nos seguintes termos: “Se atentarmos nos documentos juntos sob os n.ºs 1 e 2 com a petição inicial, o prédio identificado nos art.ºs 1.º, 2.º e 3.º desse mesmo articulado inclui uma casa de habitação a qual, pela prova testemunhal produzida nos autos, é justamente aquela que serviu durante largos anos de habitação aos caseiros D... e E... (cfr. gravação da prova 10:14:14-10:54:26 e 10:55:16-11:31-06)”.

Ora, face aos termos da impugnação deduzida e que se deixaram transcritos, suscitaram os recorridos a questão do incumprimento dos ónus que a lei impõe sobre o recorrente que pretende a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Epigrafado de “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o art.º 640.º do nCPC impõe ao impugnante que especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. als. a), b) e c) do n.º 1).

No caso em apreço, apesar do deficiente cumprimento do referido ónus da especificação, afigura-se possível concluir com alguma facilidade que as recorrentes impugnam a resposta negativa que mereceu o art.º 1.º da base instrutória -no qual se perguntava precisamente se a casa de habitação referida em A) (alínea na qual se deixou consignada a descrição do prédio comum a AA e RR) sempre se destinou a habitação do caseiro- pretendendo seja alterada em sentido contrário.

Todavia, visando não só garantir à parte contrária cabal e eficaz exercício do contraditório, como ainda facultar ao Tribunal de recurso imediato acesso aos meios de prova que, no entender do recorrente, evidenciam o erro de julgamento, de modo a permitir a sua correcção mediante adequada reponderação, exige-se complementarmente ao impugnante que, no caso em que aqueles meios probatórios -invocados como fundamento do erro na apreciação das provas- tenham sido gravados, faça indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. A desconsideração deste ónus importa, no dizer da lei, a imediata rejeição do recurso na parte respectiva, nos termos consagrados na al. a) do n.º 2 do mesmo art.º 640.º.

Sendo claro o dispositivo legal quanto à exigência de que o impugnante faça indicação precisa das passagens da gravação em que se funda o recurso, associando gravosa cominação ao incumprimento desse ónus -rejeição imediata do recurso, nessa parte- parece isento de dúvida que a lei quis o seu cumprimento rigoroso, não satisfazendo a exigência legal a mera indicação do início e final da gravação em relação a cada depoimento que pretende ver reapreciado, conforme fazem as recorrentes. E o cumprimento do aludido ónus era mesmo crucial no caso dos autos, posto que as declarações prestadas pelas identificadas testemunhas foram igualmente convocadas pelo Mm.º juiz “a quo”, mas para abonar os factos dados como assentes sob os n.ºs 10. a 13., contraditórios com aquele que os recorrentes pretendem ter ficado demonstrado por apelo aos mesmos testemunhos. Impunha-se, pois, que fizessem indicação precisa das passagens que, em seu entender, evidenciam o -nesta perspectiva óbvio- erro de julgamento, ónus a que, conforme vimos, não deram cumprimento, tendo-se limitado a fazer indicação do início e termo da gravação, tal como constam referenciados na acta respectiva.

Em face do exposto, e face ao manifesto incumprimento do ónus da impugnação consagrado no art.º 640.º do CPC, impõe-se rejeitar o recurso na parte em que as apelantes pretendiam a reapreciação da prova gravada.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação do tribunal:

i. nulidade da decisão por vício de ambiguidade;

ii. modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto em função dos documentos juntos aos autos.

iii. da insuficiência da matéria de facto e do não uso pelo juiz dos poderes inquisitórios e de gestão processual, a determinar a anulação da decisão proferida.
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i. dos vícios da sentença

Os apelantes assacam à sentença proferida o vício da nulidade decorrente da ambiguidade, posto ter omitido no dispositivo, “como podia e devia”, as proporções em que AA e RR são comproprietários do prédio identificado em 1., impondo-se ainda, atendendo à questão suscitada, que “concluísse no sentido da dita casa de habitação, ou casa do caseiro, fazer parte do prédio identificado nos artºs 1.º e 2.º da pet. inicial, ou no sentido contrário, isto é, de que não fazia parte dele”. Ao ter feito naufragar a acção com o argumento de que as AA não lograram provar a “amplitude física” do direito de compropriedade em causa, sendo que sobre elas impendia o respectivo ónus, a sentença proferida decretou um verdadeiro “nim”.

Apreciemos, pois, este argumento recursivo.

Nos termos do art.º 615.º do CPC é nula a sentença quando, para além do mais que no seu n.º 1 se prevê, “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

A sentença é obscura quando contenha alguma passagem ininteligível, ou seja, quando não seja possível ao seu destinatário apreender o sentido da decisão; será ambígua quando o seu conteúdo comporte, razoavelmente, diferentes interpretações. “Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura contraditórios” (Prof. Alberto dos Reis, Comentário, vol. V, pág. 151).

Tendo presente quanto vem de se referir, basta ler a sentença apelada para concluir que não padece de nenhum dos apontados vícios. Com efeito, correspondendo à verdade ser o dispositivo omisso quanto à quota de cada um dos proprietários no prédio comum, não é menos certo que sobre tal aspecto não incidia qualquer controvérsia, constituindo objecto do litígio apenas e tão só determinar se no referido prédio comum se achava incluída a dita casa do caseiro. E a este respeito a resposta do Tribunal, contrariamente ao que referem as apelantes, não corresponde a um “nim”, mas antes a um claro e transparente “não” à pretensão que deduziram a juízo, não sendo possível a um qualquer normal declaratário sustentar uma outra interpretação.

Deste modo, e sem embargo de se aditar ao dispositivo da sentença as quotas de cada um dos proprietários no prédio comum, o que, repete-se, não era objecto de controvérsia, não padece a mesma de qualquer vício que a inquine.
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ii. da modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto face aos documentos juntos

Defendem ainda as apelantes que “Dos documentos juntos com a petição inicial com os nºs 1, 2, 3, 5 e 6 com a petição inicial resulta claro que o prédio urbano adjudicado aos RR compreende uma única casa de habitação, e que o prédio identificado nos art.ºs 1.º e 2.º da petição Inicial compreende também uma casa de habitação, ou casa do caseiro, que, aliás, confina a Norte com aquele (conclusão 3.ª)”, daqui extraindo a conclusão que a dita “casa do caseiro” -a casa que é de habitação e onde os caseiros viveram diversos anos, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas indicadas- não faz parte do prédio adjudicado aos RR, integrando antes o prédio vizinho, de que são comproprietários AA e RR.

Conforme prevenido no n.º 1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve, ainda que oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Neste conspecto, haverá ainda que ter em conta quanto dispõe o n.º 4 do art.º 607.º, aplicável aos acórdãos por força do disposto no n.º 2 do art.º 663.º, cabendo a este Tribunal de recurso, nesta medida, não só tomar em consideração os factos admitidos por acordo, mas ainda extrair dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras da experiência.

Está em causa, neste segmento recursivo, o valor probatório dos documentos juntos pelas apelantes com a petição inicial sob os n.ºs 1, 2, 3, 5 e 6, a saber: cópia da descrição predial do prédio rústico descrito sob o n.º 263, nela se mencionando ter resultado da anexação dos n.ºs 34 626, 34 617, 34618, 34615 e 34619, todos do L.º B-29, o qual se encontra inscrito a favor de AA e RR (fls. 22/23); cópia da caderneta predial relativa ao mesmo prédio, inscrito na matriz rústica da freguesia de (...) , concelho de (...) , sob o artigo 2737 (fls. 24/25); cópia da escritura de doação atinente, para além do mais que nela se refere, aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 600 e 2737 (fls. 27 a 30); cópia da descrição predial referente ao prédio descrito sob o n.º 261 da mesma freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 600 e que foi desanexado do prédio descrito sob o n.º 34 615, agora definitivamente inscrito a favor dos RR por força de adjudicação em acção de divisão de coisa comum (fls. 34/35); e, finalmente, a cópia da caderneta predial urbana atinente ao mesmo prédio (fls. 36/37).

A propósito da pretensão modificativa formulada pelas apelantes, cabe aqui relembrar que, conforme é jurisprudência pacífica, a função do registo é meramente declarativa e não constitutiva, daqui decorrendo que a presunção de propriedade derivada do registo predial não abrange a descrição do prédio, nomeadamente quanto às confrontações ou área, limitando-se ao direito inscrito[1].

Identicamente, nenhum valor probatório acrescido será de atribuir, quanto a tais elementos, às cadernetas prediais, uma vez que têm origem em informação prestada pelos próprios interessados, sem que resultem da percepção da entidade documentadora. E porque assim é, inexistia presunção legal a que o Tribunal tivesse de atender, encontrando-se tais documentos sujeitos, nesta parte, à livre apreciação do julgador, que sobre a matéria em causa poderia ainda atender a qualquer meio de prova.

Conforme com clareza equacionam os apelados, parece que o argumento das apelantes é o seguinte: como na descrição do prédio denominado Quinta do Fundo da Vila é referenciada uma casa de habitação, então terá que ser a casa do caseiro, sob pena de ali não existir nenhuma construção com tais características; por outro lado, sendo mencionada na descrição do prédio adjudicado aos RR apenas uma casa, a entender-se que aquela onde residiam os caseiros se encontra aqui integrada, então estaremos na presença, não de uma, mas de duas casas.

Ora, conforme se referiu, por um lado, a menção na descrição predial do prédio comum -ao qual foi atribuída, assinala-se, natureza rústica- a uma casa de habitação, não implica necessariamente que tal casa ainda ali exista, e muito menos que se trate da casa onde habitaram os caseiros da quinta; depois, a verdade é que o prédio rústico denominado Quinta do Fundo da Vila, descrito sob o n.º 263, provém da anexação de diversos outros prédios, nomeadamente os descritos sob o n.º 34 615, do qual fora desanexada a “casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar com SC de 338 m2, constituído por cozinha com 31 m2, pátio com 120 m2 e logradouro com 2500 m2 -prédio adjudicado aos RR- e, sob o n.º 34 626, o prédio rústico denominado “Aido”, composto de terra culta com videiras e oliveiras e casas de habitação, situado nos limites do lugar e freguesia de (...) (cfr. fls. 68). Deste modo, e tal como lucidamente contra argumentam os RR apelados, tudo sugere que a casa de habitação mencionada no prédio comum provenha do prédio anexado, e não da parte que na mesma ocasião havia sido objecto de desanexação.

Por último, e relevantemente, a verdade é que, não só a composição do prédio urbano adjudicado aos RR aponta no sentido de incluir todos os edifícios e compartimentos que, conforme se apurou e os registos fotográficos ilustram, possuem portas e janelas que deitam para um mesmo pátio ou quinteiro fechado, tal como ocorre com a dita casa dos caseiros, como emergiu ainda da prova testemunhal produzida -e não validamente impugnada- que a casa onde os caseiros passaram a residir algures na década de 60 fora, até então, curral de animais e palheiro, tendo sofrido obras de melhoramento em ordem a servir de residência aos trabalhadores que desempenhavam aquelas funções e que, até então, sempre haviam ocupado parte dos cómodos da casa principal da Quinta. Neste facto residirá provavelmente a explicação para a identificação do prédio que constava da caderneta manuscrita do referido artigo 600 -“prédio destinado a habitação, composto de r/c e 1º andar, respectivamente com 7 e 11 divisões, cozinha, pátio e logradouro, a confrontar de todos os lados com o proprietário, ficando a norte a casa para o caseiro”- e que é posterior à realização das referidas obras, uma vez que a elas se refere, identificação que, todavia, não foi fielmente transcrita para o modelo informatizado, elemento a que, deste modo, não será de atribuir o sentido pretendido pelas apelantes.

Em conclusão: nada resulta dos documentos referenciados que imponha modificação da matéria de facto, no sentido propugnado pelos apelantes ou outro, mantendo-se assim a decisão proferida.
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II Fundamentação

De facto

Dos autos resulta assente a seguinte factualidade:

1 – Encontra-se descrito na CRP de (...) , sob a ficha 263 da freguesia de (...) , o prédio ali descrito como rústico, denominado ‘Quinta do Fundo de Vila, Chão do Cardoso e Alto do Prado’, com a área total, referida como descoberta, de 50.300 mts2, composto de terreno culto com casa de habitação, palheiros, eira e canastro, a confrontar do norte com caminho e K... , do nascente com ribeiro e com W... , do sul com Q... e outros, e do poente com caminho, tendo resultado da anexação dos prédios com os números 34.626, 34.617, 34.615 e 34.619, correspondente ao artigo matricial 2737 (anterior alínea A) da matéria de facto assente).

2 - Pela apresentação n.º 9, de 21.4.08, mostra-se inscrita no registo predial a aquisição, em benefício das AA. e dos Réus, por doação, do prédio descrito em 1. (anterior alínea B) da matéria de facto assente).

3 - Encontra-se descrito na CRP de (...) , sob a ficha 261 da freguesia de (...) , o prédio ali descrito como urbano, situado no Fundo de Vila, com a área total de 2.989 mts2, sendo 369 mts2 de área coberta e 2.620 mts2 de área descoberta, composto de casa de habitação de r/c e andar com área de 338 mts2, cozinha com 31 mts2, pátio com 120 mts2 e logradouro com 2.500 mts2, a confrontar do norte, nascente, sul e poente com herdeiros de F... , desanexado do prédio com o número 34.615, correspondente ao artigo matricial 600 (anterior alínea C) da matéria de facto assente).

4 - Pela apresentação 4.166, de 9.10.09, mostra-se inscrita no registo predial a aquisição, em benefício dos Réus, por adjudicação em acção de divisão de coisa comum, do prédio descrito em 3. (anterior alínea D) da matéria de facto assente).

5 - Do teor matricial (modelo informatizado) referente ao artigo urbano 600 da freguesia de (...) , consta que o prédio em causa é composto de casa de habitação de r/c e 1.º andar, aquele com 7 compartimentos e este com 11 compartimentos, e ainda cozinha, logradouro e pátio, a confrontar do norte com casa do caseiro, sul, nascente e poente com o proprietário, e que foi inscrito na matriz em 1968, provindo do artigo urbano 278 (anterior alínea E) da matéria de facto assente).

6 - Do teor matricial (modelo 29, manuscrito) referente ao artigo urbano 600, da freguesia de (...) , consta que o prédio em causa é destinado a habitação, composto de r/c e 1º andar, respectivamente com 7 e 11 divisões, cozinha, pátio e logradouro, mais constando, no que tange às confrontações, “todos os lados com o proprietário, ficando a norte a casa para o caseiro”, e bem assim que foi melhorado em 1.1.1968 (anterior alínea F) da matéria de facto assente).

7 - Por escritura de doação lavrada em 7.3.94, na qual foram outorgantes F... e os ora AA. e Réus, aquela declarou doar, e os demais declararam aceitar a doação, além do mais, dos seguintes imóveis:

um/ Prédio urbano, formado de “Casa de Habitação”, com a superfície coberta de – 338 mts2 – cozinha com – 31 mts2 – pátio com – 120 mts2 – e logradouro com – 2.500 mts2 – inscrito na matriz sob o artigo – 600 - … descrito na Conservatória… sob o número – 261 ;

 …três/ Prédio rústico, denominado “Quinta do Fundo de Vila, Chão do Cardoso e Alto do Prado”, composto de terreno culto com casa de habitação, palheiros, eira e canastro, com a área de – 50.300 mts2 – inscrito na matriz sob o artigo – 2.737 – descrito na aludida Conservatória sob o número – 263 - ” (anterior alínea G) da matéria de facto assente).

8 - A descrição do prédio nº 34.615 da CRP de (...) , tem o seguinte teor: “Prédio misto composto de Casas de habitação e Quinta pegada, de terras cultas, com água, videiras e outras árvores, com lagar de azeite, situado no lugar e freguesia de (...) , a confrontar do norte com G... e dos restantes lados com caminhos públicos. Inscrito na matriz sob os artigos 278 – urbano e 1188 – rústico”.

Em averbamento a tal descrição, efectuado na sequência da ap. N.º 2, de 12.6.90, consta que foi “Desanexado o prédio n.º 00261… tendo a parte restante sido anexada aos nºs 34626… 34617… 34618… e 34619… pelo que deu origem ao n.º 00263… Aos artigos 278, corresponde actualmente o artigo 600 e o 1188 rústico, a parte do 2737” (anterior alínea H) da matéria de facto assente).

9 - A descrição do prédio nº 34.626 da CRP de (...) , tem o seguinte teor:

Prédio rústico denominado “Aido”, terra culta, com videiras e oliveiras, com casas de habitação, situado nos limites do lugar e freguesia de (...) , a confrontar do nascente e norte com caminhos, poente com X... e do sul com Y... e Z... . Corresponde a três quartas partes do prédio inscrito na matriz sob o artigo 4240”.

Em averbamento a tal descrição, efectuado na sequência da ap. nº 2, de 12.6.90, consta que foi “Por anexação aos nºs 34617… 34618… 34615… e 34619… deu origem ao nº 00263…” (anterior alínea I) da matéria de facto assente).

10 – A casa referida em 3. integra-se num conjunto edificado que incluía edifícios ou compartimentos justapostos, destinados a habitação dos proprietários e dos caseiros, a arrumos agrícolas e a currais para gado (anterior ponto 2.º da base instrutória).

11 – Tais edifícios ou compartimentos possuem portas e janelas que deitam para um mesmo pátio ou quinteiro fechado (anterior ponto 3.º da base instrutória).

12 – Àquele pátio somente se acede directamente, a partir do exterior, através de duas portas (anterior ponto 4.º da base instrutória).

13 – Até altura não determinada dos anos 60, os espaços do conjunto referido em 10. que mais recentemente eram usados como habitação do caseiro da quinta do Fundo de Vila, eram utilizados como palheiro e curral para o gado (anterior ponto 5.º da base instrutória).

14 – O r/c do espaço do conjunto referido em 10. que vinha a ser usado como habitação do caseiro da quinta do Fundo de Vila apresenta 2 compartimentos (anterior ponto 8.º da base instrutória).

15 – O 1.º andar de tal espaço, que vinha a ser usado como habitação do caseiro, apresenta 4 compartimentos, incluindo uma casa de banho (anteriores pontos 9.º e 10.º da base instrutória).

16 – Existe parcial tangência, num número não apurado de metros, entre as paredes do espaço do conjunto referido em 10. que vinha ser usado como habitação do caseiro e os demais espaços ou compartimentos de tal conjunto (anterior ponto 11.º da base instrutória).

17 – É comum o depósito que abastece todos os espaços habitacionais integrados no conjunto referido em 10. (anterior ponto 12.º da base instrutória).

18 – É comum o quadro eléctrico de abastecimento de energia a todos os espaços habitacionais integrados no conjunto referido em 10. (anterior ponto 13.º da base instrutória).
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De Direito

iii. da insuficiência da matéria de facto e consequente erro de julgamento

Considerando a factualidade apurada e que se deixou consignada, ponderou o Mm.º juiz “a quo” não ter ficado apurado que “a reivindicada casa do caseiro, ou espaço destinado a habitação do caseiro, constitua ou faça parte do prédio identificado sob o ponto 1”. Face a tal ponderação, e atendendo a que com a presente acção pretendiam as AA ver declarado que o prédio de que são comproprietárias incluía a casa dita dos caseiros, com a composição que indicaram, e consequente condenação dos RR no reconhecimento de tal direito e a absterem-se da prática de actos turbadores do mesmo, fácil a conclusão de que não tinham logrado fazer prova dos factos constitutivos do direito que pretendiam ver reconhecido. E por assim ser, fazendo apelo ao disposto no art.º 342.º do CC, constatado o incumprimento pelas AA do ónus da prova que sobre elas recaía, foi meramente consequente o juízo de improcedência da acção que veio a ser decretado.

Insurgem-se agora as recorrentes, argumentando que se mostram violados o princípio do inquisitório e o dever de gestão processual, ínsitos nos art.º 6.º e 411.º do CPC, tendo-se o Mm.º juiz deixado condicionar pelas regras da distribuição do ónus da prova, demitindo-se de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, não curando de assegurar a justa composição do litígio que lhe fora presente e que “passa necessariamente pelo reconhecimento de que a “casa de habitação”, ou “casa do caseiro” em discussão integra um ou o outro dos prédios a que os autos se reportam”.

Se bem compreendemos o alcance de tal argumentação, teria o Mm.º juiz incorrido em erro de procedimento, não diligenciando pela remoção de dúvidas que subsistiram, em razão do que se verificaria insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão, a implicar naturalmente, e se fosse esse o caso, a anulação da decisão proferida e a descida dos autos para ampliação daquela, nos termos do art.º 662.º, n.º 1, al. c).

Pois bem, a este respeito, e mais uma vez como lucidamente fazem notar os apelados, por mais alargados que sejam os poderes conferidos ao juiz no domínio da indagação dos factos -princípio do inquisitório hoje consagrado com amplitude no art.º 411.º do nCPC- não é menos certo que a sua actividade só poderá incidir sobre os factos “que lhe seja lícito conhecer”, ou seja, os alegados pelas partes nos termos do n.º 1 do art.º 5.º ou aqueles que integram alguma das categorias enumeradas no n.º 2 do preceito.

Por outro lado, e ainda que o escopo do processo seja efectivamente a obtenção de uma decisão de mérito que proceda a uma justa composição do litígio, estamos ainda e necessariamente perante um processo de partes. Com efeito, não há lugar à intervenção do Tribunal a não ser que a resolução do conflito de interesses lhe seja pedido por uma das partes -cfr. art.º 3.º do CPC; ressalvadas as de conhecimento oficioso, ao Tribunal só é lícito, sob pena de nulidade da sentença, pronunciar-se sobre as questões que tenham sido suscitadas pelas partes, como resulta do disposto no n.º 2 do art.º 608.º e al. d) do n.º 1 do art.º 615.º; e, ainda sob pena de nulidade, o juiz está vinculado à pretensão formulada pelas partes, não podendo condenar em quantidade superior ou objecto diverso (cfr. art.º 609.º e al. e) do citado n.º 1 do art.º 615.º).

Tendo presente quanto vem de se expor, logo se intui que ao Tribunal estava absolutamente vedado declarar que a casa do caseiro integrava o prédio adjudicado aos RR, e isto pela singela razão de não ter sido por estes deduzido pedido reconvencional. O Tribunal encontrava-se portanto vinculado pelo pedido formulado pelas AA (e factos por estas alegados em suporte do mesmo) e foi esta pretensão que foi denegada, face à ausência de prova dos factos essenciais à sua procedência, uma vez que foi dado como não provado que a casa de habitação referida em 1. se destine, ou sempre se tivesse destinado, a habitação do caseiro da quinta do Fundo de Vila.

E não se diga que o Tribunal permaneceu em dúvida, a qual poderia (e deveria) remover, promovendo as diligências tidas por pertinentes, designadamente a realização de uma inspecção judicial ao local.

Antes de mais, reafirma-se, o tribunal não ficou em dúvida -nada o indicia- sobre a realidade dos factos, a qual seria em todo o caso resolvida de harmonia com o art.º 411.º do CPC, antes tendo ocorrido, diversamente, que se convenceu da realidade de uns e não se convenceu da realidade de outros. Com efeito, tendo a instrução incidido sobre os factos alegados pelas AA que interessavam à procedência da pretensão formulada, mereceram os mesmos respostas francamente negativas, decorrentes, para além do mais, de se ter dado como demonstrada matéria com aqueles contraditória, não se vendo, nem as apelantes explicitam, em que medida é que uma inspecção judicial ao local -que nenhuma das partes requereu- teria resultado mais esclarecedora e eventualmente conduzido a um resultado diverso. Acresce que foi efectuada perícia aos prédios em causa, profusamente ilustrada com registos fotográficos, os quais foram exibidos às diferentes testemunhas, proporcionando ao Tribunal suficiente conhecimento do espaço em causa e permitindo-lhe a cabal compreensão dos depoimentos prestados. Terá assim de se concluir que o Mm.º juiz “a quo” não ordenou oficiosamente a realização da diligência em causa, não porque se tivesse demitido dos seus deveres, mas pura e simplesmente porque não o considerou necessário, juízo cuja bondade aqui não se vê razão para questionar.

Deste modo, e em suma, a matéria de facto dada como assente não suporta, é certo, a pretensão das demandantes, mas tal ficou naturalmente a dever-se ao incumprimento do ónus da prova que sobre elas recaía segundo o critério legal de repartição consagrado no art.º 342.º do CC e que nada tem a ver com dúvida sobre a realidade dos factos, não ocorrendo qualquer vício de procedimento ou insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão.

Em conclusão, e tal como se considerou na sentença recorrida, às AA, que pediram o reconhecimento do seu direito de compropriedade sobre o prédio identificado em 1. com determinada extensão -integrando a dita casa dos caseiros- competia fazer a prova de que a haviam adquirido por algum dos modos aquisitivos válidos, nos termos do já citado art.º 342.º do CC. A demonstração dos aludidos factos, constitutivos do direito que se arrogavam, não lograram fazê-la, suportando naturalmente as consequências do incumprimento do ónus respectivo. Tal qual foi decidido na sentença apelada que, na improcedência do recurso, se confirma na íntegra.
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III Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada, sem embargo de determinar a alteração do dispositivo, de modo a dele constar que AA e RR são comproprietários, na proporção de 1/6 para cada uma das AA e 1/6 para os RR, do prédio identificado em 1. dos factos assentes.

Custas pelas apelantes.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

                                                                        


[1] Constitui jurisprudência unânime, segundo cremos. Cf., por todos, acórdão do STJ de 12/1/2006, processo 05B4095, acessível em ww.dgsi.pt, assim sumariado: “I. O registo da propriedade respeita a factos jurídicos causais dos direitos reais, mas já não à sua materialidade - composição física dos prédios -, pelo que a presunção do art.º 7 do CRgP não abrange os seus elementos descritivos. II. Desta forma, nada obsta a que sobre a exacta configuração dos prédios - demarcação e definição da respectiva linha divisória - se produza qualquer tipo de prova.”