Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/19.2T8ALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NECESSIDADE DE DESPACHO JUDICIAL
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - ALMEIDA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 281.º, N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: I – Tendo sido notificado às partes o despacho a determinar a suspensão da instância até à habilitação dos sucessores de uma parte falecida, a falta de promoção do incidente de habilitação nos seis meses seguintes, sem que seja apresentada ou resulte dos autos qualquer justificação, é suficiente para concluir pela verificação dos pressupostos de que depende a deserção da instância, sem necessidade de qualquer despacho prévio a advertir as partes para a necessidade de impulsionar o processo.

II – Ainda que estejam verificados os pressupostos de que depende a deserção da instância pela circunstância de o processo ter estado parado por negligência das partes e durante mais de seis meses, enquanto não for proferida decisão a declarar a deserção da instância, as partes podem promover utilmente o prosseguimento do processo, caso em que fica inviabilizada a declaração da deserção da instância com fundamento na falta de impulso processual registada em momento anterior.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA e mulher BB, residentes em ... instauraram acção, com processo comum, contra A. G..., Unipessoal, Ld.ª, com sede na Rua..., ..., ...; CC, residente, quando em Portugal, na Rua..., ..., ...; DD, residente, quando em Portugal, na mesma morada; EE, residente em ... e FF, residente, quando em Portugal, no ..., ....

Tendo chegado aos autos a informação do óbito do Réu CC, foi proferido despacho – em 07/10/2020 – que declarou a suspensão da instância até à notificação da decisão que julgasse habilitados os sucessores do falecido.

Tal despacho foi notificado aos Autores mediante notificação elaborada em 07/10/2020.

Em 21/06/2021, foi proferido despacho onde se fez constar que os autos estavam parados a aguardar impulso processual há mais de seis meses (desde 07/10/2020) e onde se determinou a notificação dos Autores para se pronunciarem sobre a situação no prazo de dez dias.

Tal notificação foi efectuada por notificação elaborada em 21/06/2021.

Não houve resposta a tal notificação, mas, em 01/07/2021, veio a ser deduzido o incidente de habilitação de herdeiros.

 

Na sequência desses factos – por decisão proferida em 10/09/2021 – foi proferida decisão que declarou “…extinta a instância, por deserção, desde o dia 10 de Junho de 2021, nos termos conjugados dos artigos 277.º, al. c) e 281.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil”.

Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se a sentença padece da nulidade que lhe é apontada pelos Apelantes, pelo facto, designadamente, de não discriminar os factos provados e não provados e de não indicar factos que preencham dois dos pressupostos da deserção da instância: a negligência e a existência de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual;

· Saber se estão (ou não) verificados os pressupostos de que depende a deserção da instância, analisando a questão de saber se tal deserção pressupõe (ou não) um despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual;

· Saber se o facto de ter sido deduzido, entretanto, o incidente de habilitação de herdeiros – onde já foi ordenada a citação dos Requeridos – obsta (ou não) à declaração da deserção da instância com fundamento na “paragem” do processo por mais de seis meses que se havia verificado antes da dedução desse incidente.

 (…)


/////

Analisemos, então, a questão de saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários para a deserção da instância, tendo em conta os factos acima referidos, ao qual apenas acrescentamos o seguinte (que também resulta dos autos):

5. O despacho referido no ponto 2 – que declarou a suspensão da instância – foi notificado aos Autores por notificação elaborada em 07/10/2020.

Dispõe o art.º 281.º, n.º 1, do CPC que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.

A deserção da instância supõe, portanto, que o processo se encontre sem movimento processual há mais de seis meses e que essa situação se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes.

Não há dúvida que o processo esteve sem movimento processual durante mais de seis meses a aguardar impulso processual das partes.

Com efeito, tendo sido declarada a suspensão da instância em 07/10/2010, por força do óbito de uma das partes – suspensão que se mantinha, nos termos da lei e como expressamente referido no despacho, até à decisão que julgasse habilitados os sucessores do falecido –, o prosseguimento dos autos estava dependente da dedução do incidente de habilitação de herdeiros (incidente que, naturalmente, tinha que ser deduzido pelas partes, sem prejuízo de também poder ser promovido pelos sucessores da parte falecida) e durante os seis meses subsequentes à notificação daquele despacho o incidente não foi deduzido.

Sustentam, no entanto, os Apelantes que não existem – e não foram indicados na decisão recorrida – quaisquer factos que permitam integrar dois dos pressupostos necessários para a deserção da instância: a negligência e a existência de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual.

Entendemos, no entanto, e salvo o devido respeito, que a existência de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual não é um requisito autónomo da deserção da instância (e tanto é assim que ele não se encontra expresso no texto legal); o que pode acontecer, em determinadas situações, é que a existência desse despacho seja necessária para configurar uma efectiva falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, designadamente, quando, na situação concreta, não seja claro e líquido que o prosseguimento dos autos esteja dependente de um acto a praticar pelas partes ou quando o prosseguimento do processo está dependente de acto a praticar por outra pessoa que não as partes (por exemplo, o agente de execução, no âmbito do processo executivo; um perito, no caso de estar em curso uma perícia ou qualquer outra entidade a quem se solicite um documento ou uma diligência), casos em que será necessária a existência de uma notificação que transfira para as partes (ou para uma delas) o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento da entidade que deverá praticar o acto de que depende o andamento do processo (neste sentido se decidiu, aliás, no Acórdão desta Relação de  14/06/2016, proferido no processo n.º 500/12.0TBAGN.C1[1], relatado pela aqui relatora).

Não é essa, no entanto, a situação dos autos.

No caso dos autos, era evidente e indiscutível – pelo teor do despacho que havia declarado a suspensão da instância – que o prosseguimento dos autos estava dependente da habilitação dos sucessores da parte falecida e é indiscutível que, em face da lei, as partes podiam deduzir o incidente de habilitação.

Não havia, portanto, qualquer necessidade de nova notificação para expressar aquilo que já estava claro em face do despacho e da lei (art.º 351.º, n.º 1, do CPC): o prosseguimento dos autos estava dependente de um acto que tinha que ser praticado por qualquer das partes sobrevivas ou pelos sucessores da parte falecida e, portanto, os Autores (com interesse no prosseguimento dos autos) sabiam – não podiam deixar de saber (sendo certo que estavam representados por advogado) – que, se nenhum outro legitimado o fizesse, tinham o ónus de deduzir esse incidente, caso pretendessem o normal prosseguimento da acção que haviam instaurado.

Entendemos, por outro lado, que, nas situações descritas, teremos que ter como demonstrado que a falta de impulso é imputável a negligência das partes, designadamente dos Autores, porquanto estes não podiam deixar de saber que também eles tinham o ónus de impulsionar o processo (requerendo a habilitação de herdeiros) e, não obstante esse facto, não deduziram o incidente nos seis meses subsequentes, nada fizeram e tão pouco vieram justificar essa omissão (dando conta, por exemplo, da existência de algum facto ou circunstância que, não lhes sendo imputável, os impedia de praticar o acto em questão). Com efeito, a evidência – resultante dos autos – da omissão de um acto que era imprescindível para o prosseguimento do processo e que à parte cabia praticar, sem a oportuna apresentação de qualquer justificação, é suficiente para caracterizar uma situação de negligência para efeitos de deserção da instância a não ser que também resulte dos autos que, por força de qualquer de qualquer facto ou circunstância, a parte estava impedida de praticar o acto em questão.

Relevam a esse propósito, os seguintes excertos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016[2] (citados na decisão recorrida), onde se diz:

(…) a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência”;

“(…) à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência. O que a lei pretende é que a parte ativa no processo não seja penalizada em termos de extinção da instância quando a razão do não andamento da causa lhe não seja imputável (…)”;

“(…) Ao interessado no prosseguimento do processo cabe deduzir o incidente de habilitação (…). E das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respectivas consequências.

Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos? (…)”.

Ainda sobre a negligência para efeitos de deserção da instância, refere-se no Acórdão do STJ de 20/04/2021[3] o seguinte: “Para apurar da ocorrência de negligência das partes, ao juiz compete analisar o comportamento processual das partes no âmbito do processo, isto é, se a parte (ou partes) demonstraram no processo as dificuldades em impulsionar os autos, as diligências necessárias para remover os eventuais obstáculos com que se tem deparado para afastar a causa que levou à suspensão, e, inclusive, solicitar o contributo do tribunal para que as razões impossibilitadoras do prosseguimento normal dos autos sejam afastadas ou se a parte (ou partes) se manteve numa inação total, desinteressando-se do prosseguimento normal dos autos”.

Também o Acórdão do STJ de 08/03/2018[4] refere que “A negligência a que se refere o art. 281º, n.º 1 do C. P. Civil, é a negligência retratada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente), pelo que a assunção pela parte de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência”.

Pensamos, portanto, ser claro que a falta de impulso processual por período superior a seis meses foi imputável, a título de negligência, aos Autores.

Tendo-se verificado – conforme vimos – a situação objectiva que, nos termos da lei, determina a deserção da instância, resta agora saber se a circunstância de ter vindo, entretanto (após o período de seis meses), a ser praticado o acto de que dependia o prosseguimento do processo (a dedução do incidente de habilitação de herdeiros) obsta (ou não) à efectiva declaração dessa deserção.

E – diga-se desde já – pensamos que sim.

Em face do disposto no art.º 281.º do CPC e, em especial, do disposto nos n.ºs 4 e 5, pensamos ser claro – e incontrovertido – que, no regime actualmente vigente, a deserção da instância depende de despacho judicial que, analisando os respectivos pressupostos, a julgue verificada. Só assim não sucede no âmbito do processo executivo em relação ao qual se dispõe – cfr. n.º 5 – que a instância se considera deserta na situação ali descrita, independentemente de qualquer decisão judicial.  

Tendo em conta esse regime e a necessidade de decisão judicial que verifique e declare a deserção da instância (sempre que não esteja em causa um processo de execução), coloca-se a questão de saber como deve ser tratada a situação em que a parte vem impulsionar o processo num momento em que, apesar de já estarem verificados os requisitos exigidos pelo citado art.º 281.º n.º 1, não foi ainda proferido despacho a declarar a deserção da instância.

A questão não tem merecido resposta uniforme.

Há quem entenda – e foi essa a posição seguida pela decisão recorrida – que o despacho que declara deserta a instância tem efeito meramente declarativo – limita-se a declarar uma situação já existente e consumada que é a fonte e a causa legal da extinção da instância – pelo que os actos praticados pelas partes após o momento em que essa situação (a deserção) se verifique já não podem ser atendidos para o efeito de obstar à declaração judicial da deserção. Assim se entendeu, designadamente, no Acórdão da Relação do Porto de 24/05/2021 (processo n.º 4842/09.3TBSTS.P2) e no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2016 (processo n.º 3422/15.9T8LSB.L1-7)[5] e assim entende também Paulo Ramos de Faria[6].

Em sentido contrário, decidiram os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17/05/2016 (processo n.º 2/14.0TBVIS.C1) e de 16/03/2016 (processo n.º 131/04.8TBCNT.C2) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 30/04/2015 (processo n.º 230/11.0TBBRG.G1)[7].

Embora a questão seja discutível, inclinamo-nos para a segunda posição.

Com efeito, pensamos ser claro que a deserção da instância nas acções declarativas – ao contrário do que acontece nas acções executivas – não opera automaticamente e carece de verificação e declaração judicial e tal significa que enquanto essa decisão não for emitida não se produz o efeito processual dela emergente, ou seja, a extinção da instância; a instância está, portanto, formalmente activa e o processo está pendente. Ora, estando a causa pendente – porque, apesar de existir uma situação que, potencialmente, pode vir a desencadear a extinção da instância, ainda não existe despacho que tenha verificado e declarado a deserção e consequente extinção da instância –, nada obsta a que as partes nela intervenham, praticando e requerendo os actos necessários ao respectivo prosseguimento e não nos parece que tais actos devam ser indeferidos ou desatendidos por se vir a considerar e a declarar, em momento posterior, que, afinal, a pendência da causa era meramente aparente uma vez que ela já se encontrava extinta por efeito da verificação de uma situação (a deserção), quando é certo que, nos termos da lei, essa situação e a sua aptidão para extinguir a instância tem que ser verificada e declarada por decisão judicial que, à data em que a parte praticou o acto, ainda não havia sido proferida.

O regime actualmente vigente assemelha-se, neste ponto, ao que estava estabelecido no CPC de 1939 e a propósito do qual o Prof. Alberto dos Reis tecia as seguintes considerações[8]: “A deserção não se produz automaticamente, ope legis; depende de acto do juiz, produz-se ope judicis, visto que demanda uma sentença de declaração. Suponhamos então que, tendo passado o lapso de tempo marcado no artigo 296.º, uma das partes dá impulso ao processo antes de o juiz ter declarado a deserção; deverá o tribunal considerar deserta a instância, não obstante o impulso referido, ou ficará, pelo contrário, inutilizado o efeito da inércia durante o período legalmente necessário para se operar a deserção?

Entendemos que a inércia fica sem efeito e que deve admitir-se o seguimento do processo.

Atenda-se, por um lado, a que o efeito da inactividade das partes não se produz ipso jure. A nossa lei não declara, (…) que a deserção opera de direito os seus efeitos; pelo contrário, segundo o artigo 296.º, não basta o facto da inércia, é necessário uma sentença de extinção.

(…)

Enquanto a instância não for declarada extinta, as partes podem dar impulso ao processo, pouco importando que tenha estado parado durante mais de seis anos”.

Mais acrescenta – a págs. 444 – que: “A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de acto do juiz, produz-se ope judicis. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo. Enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.”.

Concluímos, portanto, com base nestes ensinamentos – que continuam válidos e actuais no regime processual civil actualmente vigente – que, enquanto não for proferida decisão a julgar verificada e a declarar a deserção da instância, as partes podem promover o prosseguimento do processo, ainda que, nesse momento, já estejam reunidas as condições necessárias para a deserção da instância; não estando ainda declarada tal deserção, a instância mantém-se e, enquanto não se extinguir, podem ser praticados e devem ser atendidos os actos praticados pelas partes com vista a impulsionar o processo.

Pensamos, aliás, que uma solução diferente não se compatibilizaria com o pensamento legislativo e com as finalidades que estão subjacentes à deserção da instância e seria incompreensível por implicar um total desaproveitamento dos actos praticados que não lograria satisfazer qualquer interesse relevante.

Na verdade – já o dizia Alberto dos Reis[9] – a deserção da instância encontra o seu fundamento na necessidade ou conveniência (designadamente para a boa ordem dos serviços) de não permitir a pendência nos tribunais de processos que estão parados por longos períodos de tempo e sem solução alguma. Por essa via, libertar-se-ia o tribunal de um “pêso morto” ao mesmo tempo que, reflexa e indirectamente, se estimulavam as partes a ser diligentes e activas, perante a ameaça de extinção do processo.

A deserção da instância não tem, portanto, qualquer carácter sancionatório da parte relativamente à sua conduta omissiva durante um certo e determinado período temporal; o que se pretende é libertar o tribunal de processos em relação aos quais nada pode fazer ou decidir porque a actividade jurisdicional está dependente de acto da parte que esta não pratica e em relação aos quais se pode dizer que a sua pendência no tribunal é uma total inutilidade.

Ora, sendo esse o fundamento subjacente à deserção da instância, não parece que se deva entender que a instância deva ser julgada extinta por deserção apesar de, nesse momento, já ter sido praticado o acto de que dependia o prosseguimento do processo. Nessa situação, a extinção da instância por deserção assumiria apenas um carácter sancionatório da parte pelo facto de não ter impulsionado o processo durante determinado período, uma vez que, estando o processo em condições de prosseguir, a sua extinção já não poderia encontrar a sua razão de ser na necessidade de libertar o tribunal de um processo “parado” (um “pêso morto”, como dizia Alberto dos Reis) e tão pouco a encontraria no efeito compulsório da parte à prática do acto, uma vez que este já havia sido praticado.

Não vislumbramos, por isso, qual seja o real interesse ou necessidade – na perspectiva da lei e dos objectivos visados pelo legislador – em extinguir um processo por efeito de uma situação (inércia da parte) que, entretanto, foi ultrapassada – porque, antes de declarada a deserção e extinção da instância, a parte veio praticar o acto de que dependia o prosseguimento do processo – com total desaproveitamento de todo o trabalho e esforço processual aí desenvolvido e que teria que ser repetido no âmbito de nova acção que a parte – agora disposta ou em condições de prosseguir a lide – não deixaria de instaurar.

É claro que, se a deserção e consequente extinção da instância operarem automaticamente independentemente de qualquer decisão judicial – como acontece na acção executiva –, nada se pode fazer; a instância já está efectivamente extinta e, portanto, já não poderá prosseguir. Mas, não sendo esse o caso – porque a efectiva extinção da instância pressupõe ainda a existência de um despacho que a declare – não encontramos razões suficientemente válidas para que tal despacho seja proferido quando a situação que lhe está subjacente – a inércia da parte no que toca ao prosseguimento do processo – foi, entretanto, ultrapassada porque a parte veio impulsionar os autos. A situação que se depara ao juiz, no momento em que profere o despacho, já não é uma situação de inactividade processual porque, apesar de essa inactividade ter existido durante mais de seis meses, ela cessou, entretanto, porque a parte que veio impulsionar o processo num momento em que a instância ainda subsistia por não terem sido ainda declarados os efeitos processuais da deserção (a extinção da instância); estando o processo em condições de prosseguir, a sua extinção não aproveitaria a ninguém e não lograria satisfazer qualquer interesse relevante, determinando apenas o desaproveitamento de toda a actividade processual aí desenvolvida, obrigando as partes e o tribunal a novo e idêntico esforço na repetição desses actos no âmbito de nova acção que viria a ser instaurada.    

Concluimos, portanto, em face do exposto, que, no âmbito da acção declarativa, apesar de o processo ter estado parado, por negligência das partes, durante mais de seis meses a aguardar o necessário impulso processual, enquanto não for proferida decisão a julgar verificada e a declarar a deserção da instância, as partes podem promover utilmente o prosseguimento do processo e, se o fizerem, esse impulso deve ser atendido, ficando prejudicada a prolação de decisão no sentido de declarar a deserção e consequente extinção da instância.

Assim, tendo em conta as considerações efectuadas e tendo em conta que o processo veio a ser impulsionado mediante a dedução do incidente de habilitação de herdeiros, devem os autos prosseguir os seus trâmites normais, ficando prejudicada e inviabilizada a verificação e declaração da deserção da instância com fundamento na falta de impulso processual que havia ocorrido em momento anterior.

Procede, portanto, o recurso, revogando-se a decisão recorrida.      


******

(…)

IV.                                  
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos com vista à tramitação e decisão do incidente de habilitação de herdeiros e posterior retoma da instância que ficou suspensa a aguardar essa habilitação.
Custas a cargo dos Apelados.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                       (Helena Melo)                     




[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Proferido no processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Proferido no processo n.º 27911/18.4T8LSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo nº 225/15.4T8VNG.P1-A.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, JULGAR on line – 2015, págs. 10 a 15.
[7] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[8] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 439 e 440.
[9] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 439.