Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório
Nos autos de insolvência que correm termos no Tribunal Judicial de Penacova, no Processo n.º 319/11.5TBPCV-E.C1, o requerido S (…) foi declarado insolvente, por sentença de 16.06.2011 (fls. 124), após o que foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante (fls. 128).
Foi determinada a notificação do administrador da insolvência e dos credores para se pronunciarem, mas estes nada disseram.
Foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
«Analisando a situação sócio-económica do devedor, verificamos que o insolvente aufere o vencimento mensal de € 923,42 (novecentos e vinte e três euros e quarenta e dois cêntimos), vive com a companheira que está desempregada e uma filha com 4 (quatro) anos de idade, despendendo € 100,00 (cem euros) mensais com deslocações para o local de trabalho.
Pelo exposto, considerando os rendimentos auferidos pelo insolvente e atento o critério a que alude o art.º 239.º, n.º 3 do CIRE, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que ao insolvente advenham com exclusão do correspondente ao montante do salário mínimo nacional que em cada momento vigorar, acrescido do montante de € 100,00 (cem euros) referente às deslocações para o local de trabalho.»
Não se conformando, o insolvente interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, onde formulam as seguintes conclusões:
I – O despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE e artigo 1.º da Constituição da Republica Portuguesa.
II - O valor fixado pelo tribunal “a quo” para garantir o sustento mínimo do devedor e do seu agregado familiar é nitidamente diminuto, tendo em consideração a composição do agregado familiar do devedor, as despesas a que o mesmo tem de fazer face e as despesas que o devedor tem de suportar com as deslocações para o seu local de trabalho.
III – O agregado familiar do devedor é composto por 4 pessoas: 2 filhas menores, de 3 e 9 anos de idade, respectivamente, o ora aqui Apelante, e a sua companheira, a Sra. B (...), conforme ficou demonstrado nos autos.
IV – Determina o artigo 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE, que deverão integrar o rendimento disponível para cessão, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com excepção daqueles que sejam razoavelmente necessários para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, bem como os necessários para o exercício da sua actividade profissional.
V - Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, que o mesmo diploma: “ (…) conjuga o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.”
VI – O despacho ora posto em crise coarcta a possibilidade de o devedor se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e do seu agregado familiar.
VII –A fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretado, sem ter em conta a base de vida familiar e profissional do devedor, é passível de violar o direito dos mesmos a uma subsistência condigna, bem como a proverem à sua reabilitação económica.
VIII – No caso sub judice, o valor excluído do rendimento objecto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma medida inconstitucional, por violação do principio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja revogado o despacho proferido pela Meritíssima Juíza “a quo”, substituindo-se o mesmo por outro que fixe o valor excluído do rendimento objecto de cessão, em um salário mínimo e meio, que em cada momento vigorar, actualmente o montante de € 727,50, acrescido de € 100 referente às deslocações para o local de trabalho do devedor.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o valor fixado reúne os requisitos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
2. Fundamentos de facto
Está provada a seguinte factualidade relevante:
2.1. O insolvente exerce funções de assistente técnico no Centro Hospitalar (...) , onde aufere o vencimento base mensal ilíquido de € 923,42 (novecentos e vinte e três euros e quarenta e dois cêntimos), encontrando-se penhorado um terço da sua retribuição[1] (correspondente a € 327,27), recebendo a quantia final líquida de € 573,42 (vide talão de vencimento, fls. 86);
2.2. O insolvente vive em união de facto desde o início de 2007, com A (…)(fls. 45 – Declaração IRS e 49);
2.3. A (…) declarou para efeitos de IRS, o rendimento de € 6.853,22, pago pela empresa R (…), S.A.[2];
2.4. O agregado familiar do insolvente é composto por ele, pela sua companheira, pela filha de ambos, M (…) (nascida em 22.07.2007), e pela filha da sua companheira, I (…) (nascida em 31.05.2001);
2.5. A entidade empregadora do insolvente alterou o seu local de trabalho, obrigando-o a percorrer diariamente mais 50 km, o que aumentou a sua despesa mensal corrente em mais € 100,00[3];
2.6. A companheira do insolvente ficou desempregada em Outubro de 2010.
2.7. No requerimento de apresentação à insolvência, o requerente declarou dívidas no montante de € 139.585,74.
3. Fundamentos de direito
3.1. O conceito de “sustento minimamente digno”
Nos termos do n.º 1 do artigo 239.º do CIRE, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes.
Prescreve o n.º 2 do citado normativo, que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a fiduciário escolhido pelo tribunal.
De acordo com o n.º 3, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao artigo 239.º do CIRE, referem que “o legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional”[4].
Apesar de todo o respeito que merecem os ilustres comentadores do CIRE, cremos que a posição preconizada na citação que antecede, face à manifesta ausência de suporte na letra da norma, se deverá a evidente lapso.
Tal conclusão se retira, desde logo, do facto de terem publicado no mesmo ano (2009), em parceria, a obra Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, na qual Luís A. Carvalho Fernandes, assina um texto sobre o tema “A Exoneração do Passivo Restante na Insolvência de Pessoas Singulares” (pág. 295), onde escreve: «Assim, por um lado [subal.i)], não integra o rendimento disponível o valor que seja necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, em termos minimamente dignos. No sentido de assegurar um critério objectivo quanto ao montante desta exclusão, a norma em causa estabelece um valor máximo[5], referindo-se a três vezes o salário mínimo nacional».
O mesmo entendimento expressa Assunção Cristas[6], que refere como limite para o sustento do devedor e seu agregado familiar «até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundamentadamente, o juiz determinar montante superior».
Este entendimento tem inegável suporte na letra da lei (art. 9/2 CC)[7], face à redacção do preceito: «O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder[8], salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional»
Tal interpretação, no sentido de considerar como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (que só poderá ser excedido em casos excepcionais), tem-se revelado pacífica na jurisprudência[9], alicerçando-se a sua fundamentação, para além do elemento literal já referido, nos argumentos que se seguem.
O legislador enuncia no n.º 3 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, como finalidade primordial deste processo, a garantia dos credores. «O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.»[10]
A exoneração do passivo restante corresponde à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a consequente perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos, pelo que se deverá considerar que o sacrifício financeiro dos credores legitima proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna.
Acresce que, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não se pode afirmar que o legislador, quando anualmente fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia tal montante como correspondendo a 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno - ilação inevitável se perfilhássemos a tese da correspondência de três salários mínimos ao conceitos de sustento minimamente digno enunciado na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Há ainda que considerar, tendo em conta a unidade do sistema jurídico (elemento interpretativo previsto no artigo 9.º do Código Civil), que o legislador no Código de Processo Civil (artigo 824/2), define para a impenhorabilidade, como limite máximo o equivalente a 3 salários mínimos e como limite mínimo o equivalente a um salário mínimo[11][12].
Em conclusão, o artigo 239.º, n.º 3, b), i) do C.I.R.E. deve ser interpretado no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente necessário para garantir e salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (valor máximo este que só pode ser excedido em casos excepcionais, devidamente fundamentados).
3.2. Aplicação do critério enunciado à situação concreta do insolvente
Decidiu o tribunal a quo, considerar excluído do rendimento disponível dos insolventes o montante global de 1 salário mínimo nacional, acrescido do montante de € 100,00 (cem euros) referente às deslocações para o local de trabalho.
Nas conclusões de recurso, o insolvente requer a fixação de “um salário mínimo e meio, que em cada momento vigorar, actualmente o montante de € 727,50, acrescido de € 100 referente às deslocações para o local de trabalho do devedor.”
Vejamos.
O valor dos créditos declarados pelo insolvente ascendem a € 139.585,74.
O sacrifício financeiro dos credores legitima, assim, proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a sua vivência e do seu agregado familiar, em condições minimamente dignas.
No que respeita à integração do conceito de vivência em condições minimamente dignas, refere-se no acórdão da Relação do Porto, de 15.09.2001[13], que mais de 340 mil portugueses muitos deles com família constituída vive exclusivamente de um salário mínimo nacional, parte significativa das famílias portuguesas não tem rendimento mensal superior a € 1000 mensais, havendo ainda numerosas famílias a viver de rendimento inferior a esse mínimo de sobrevivência, como o denominado rendimento social de inserção, devendo os insolventes consciencializar-se de que os credores aguardam a satisfação dos seus créditos, mesmo que parcialmente, e que já dispõem de uma situação de favor, que é a concedida pelo instituto de exoneração do passivo, ao limitar a cessão de rendimentos a 5 anos.
Concordamos em absoluto com estas considerações, particularmente no que concerne à conclusão de que o sacrifício dos credores legitima proporcional sacrifício dos devedores, sendo certo que o fresh start que em princípio se seguirá ao período probatório de cinco anos, é feito com prejuízo desses credores.
Há, no entanto, que encontrar a justa medida, traduzida num sacrifício que legitimamente é imposto ao devedor, sem pôr em causa a sua dignidade.
Como refere Anotado Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[14], a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía, havendo no entanto que respeitar o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da C.R.P. e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da C.R.P., salvaguardando aos devedores o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
Face à factualidade provada, tendo ainda em conta o sacrifício patrimonial dos credores e o conceito de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, entendemos como adequada e proporcional in casu, a exclusão ao rendimento disponível, para o sustento digno do insolvente e do seu agregado familiar (4 pessoas, sendo dois adultos e duas crianças), a quantia correspondente a 1,5 salários mínimos nacionais, valor que actualmente se cifra em € 727,50 [o DL 143/2010, de 31.12, fixa o smn em € 485,00]
Não podemos esquecer que o insolvente aufere actualmente o vencimento base mensal ilíquido de € 923,42, encontrando-se penhorado um terço da sua retribuição (correspondente a € 327,27), recebendo a quantia final líquida de € 573,42 (vide talão de vencimento, fls. 86).
Do valor arbitrado [actualmente correspondente a € 727,50], deverá o insolvente retirar a quantia necessária para as suas deslocações para o trabalho, sob pena de só ter vantagens, sem qualquer sacrifício, que assim recairia unicamente sobre as instituições a quem o insolvente ficou a dever a uma elevada quantia [€ 139.585,74], que nunca pagará.
O valor a que chegámos permite o justo equilíbrio que procuramos, na medida em que, representando algum sacrifício do insolvente, não deixa a sua família numa situação de privação, que ponha em causa a dignidade dos seus elementos.
Decorre do exposto a parcial procedência do recurso, considerando-se excluído do rendimento disponível do insolvente, para o sustento do respectivo agregado familiar, o valor correspondente a 1,5 salários mínimos nacionais
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, ao qual concedem parcial provimento, alterando a douta decisão recorrida, no sentido de considerar excluído do rendimento disponível do insolvente, para o sustento do respectivo agregado familiar, o valor correspondente a 1,5 salários mínimos nacionais.
No mais se mantém a douta decisão.
Custas do recurso pelo Apelante na proporção do seu decaimento, que se fixa em 25%, devendo ter-se em consideração o disposto no artigo 248.º do CIRE.
*
Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins
[1] Facto constante da sentença que decretou a insolvência (fls. 121)
[2] Correspondente ao NIF. 503299006 – vide Declaração IRS, fls. 46.
[3] Facto constante da sentença que decretou a insolvência (fls. 117)
[4] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, 2009, Quid Iuris, pág. 788.
[5] Sublinhado nosso
[6] Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, artigo publicado na Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 174
[7] De acordo com o normativo invocado, não pode o intérprete considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
[8] Sublinhado nosso
[9] Nesse sentido, vejam-se os seguintes arestos: acórdão desta Relação, proferido no Processo n.º 1783/09.8T2AVR-B.C1 (subscrito pelo ora relator, como adjunto); acórdão desta Relação, de 20.04.2010, proferido no Processo n.º 1426/08.7TBILH-F.C1; acórdão desta Relação, de 25.05.2010, proferido no Processo n.º 469/09.8T2AVR-C.C1; acórdão da Relação do Porto, de 25.05.2010, proferido no Processo n.º 1627/09.0TJPRT-D.P1; e acórdão da Relação do Porto, de 15.07.2009, proferido no Processo n.º 268/09.7TBOAZ-D.P1.
[10] Lebre de Freitas, in Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência, artigo publicado na Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 11, afirma mesmo que no CIRE “o fim da recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única”.
[11] É a seguinte a redacção do n.º 2 do artigo 824.º do CPC: A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
[12] Como bem se refere na decisão recorrida, o Tribunal Constitucional, nos acórdãos n.º 117/2002 e 96/2004 ratifica a interpretação do smn como “remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador”.
[13] Proferido no Processo n.º 692/11.5TBVCD-C.P1, acessível em http://www.dgsi.pt
[14] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, Ano 2009, 5.ª Edição, página 242