Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1542/13.3TBCTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
QUALIFICAÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 83º, NºS 3 E 4, 186º, Nº 2, E 188º, Nº 5 DO CIRE.
Sumário: I – O argumento “a contrario sensu” que se pode retirar do nº 5 do art. 188º do CIRE é que não é possível decisão imediata nos casos de qualificação da insolvência como culposa, ainda que o parecer do administrador da insolvência e do Mº Pº sejam ambos nesse sentido.

II - O incumprimento a que se alude na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE pressupõe a demonstração de ter sido pedida a colaboração/informações; por outro lado, não basta uma simples recusa (expressa, tácita ou implícita), pois a lei exige um incumprimento reiterado.

III - Por força do art. 83º, nºs 3 e 4 do CIRE, a obrigação de prestar informações/colaboração é extensível a qualquer pessoa que tenha desempenhado cargo de administrador/gerente nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Tendo sido declarada a insolvência de T..., L.da (de futuro, apenas Insolvente), veio R... (de futuro, apenas Requerente) requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência, alegando que a sociedade não tinha cumprido a sua obrigação de apresentação à insolvência, não cumpriu as obrigações assumidas com o Requerente e procedeu à dissipação dos seus bens.

O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) aderiu ao requerimento, considerando que a insolvência deve ser qualificada como culposa.

Notificada a Insolvente, nada disse.

Citado o seu gerente, A..., veio deduzir oposição, considerando não se mostrarem verificados os requisitos necessários para a qualificação da insolvência como culposa.

Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que qualificou a insolvência de T..., L.da como fortuita.

2.            Inconformado, apela agora o Requerente, de acordo com as seguintes conclusões:

...

3.            O gerente A... contra-alegou, pugnado pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         Em 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:

...

            5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 635º nº 3 e 4, 639º nº 1, 640º nº 1 e 608º n.º 2, ex vi do art. 663º nº 2, todos do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

QUESTÕES A DECIDIR: reapreciação da matéria de facto e se a insolvência deve ser qualificada como culposa.

5.1.        IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

São hoje da maior amplitude os poderes conferidos aos Tribunais da Relação para proceder à alteração/modificação da matéria de facto, provada ou não provada, tida em conta na 1ª instância (cf. art. 662º do CPC).

Na verdade, permite-se-lhe agora que no processo de formação da sua própria convicção, o Tribunal da Relação possa, não só reapreciar os meios probatórios produzidos em 1ª instância, mas inclusive proceder à renovação desses meios de prova e até ordenar a produção de novos meios de prova.

Porém, essa sindicância está absolutamente dependente do cumprimento pelo Recorrente do ónus de alegação que se lhe impõe no art. 640º do CPC, do seguinte teor:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

                O incumprimento destas regras formais são tidas pela lei como preclusivas à possibilidade de o Tribunal da Relação se debruçar sobre a matéria de facto, impondo-se-lhe a rejeição do recurso nessa parte.

Ora, O Requerente apenas refere nas conclusões de recurso que considera incorretamente julgados os factos tidos por “não provados” sob os números 2 a 8 e 10, devendo os mesmos ser tidos por “provados” (conclusão 2ª).

O Recorrente não cumpriu, portanto, o ónus que se lhe impunha de mencionar quais os meios probatórios em que alicerça o seu entendimento.

                Como refere Abrantes Geraldes, «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida, (…).». [[1]]

Acresce que a lei descartou a possibilidade de o tribunal lançar mão de um despacho de aperfeiçoamento, o que já era, aliás, já entendimento unânime quer na doutrina, quer na jurisprudência, no domínio do anterior CPC. [[2]]

                Assim sendo, não se mostrando reunidos os pressupostos de índole formal exigidos pelo art. 640º nº 1 al. b) do CPC, rejeita-se o recurso na parte respeitante à reapreciação da matéria de facto.

5.2.        QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA

Suscitando-se duas sub-questões neste âmbito, importa escalpelizá-las autonomamente.

5.2.1.     Uma insolvência pode ser declarada como culposa ou fortuita: art. 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).

De acordo com o art. 188º nº 5 do CIRE, “se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso”.

Fazendo uma leitura “a contrario sensu” deste preceito, pretende o Recorrente que a sentença deveria ter sido declarada culposa, dado o parecer nesse sentido do administrador da insolvência e do Mº Pº.

Mas não lhe assiste razão.

Desde logo, o preceito fala claramente em poder e não num dever, poder esse que representa uma mera faculdade, que pode não ser exercida, como claramente resulta ainda do nº 6 desse preceito.

A vinculação automática do juiz aos pareceres coincidentes do Mº Pº e do administrador era a redação anterior à que lhe foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20.04, formulação essa que foi alvo de várias críticas. [[3]]

Só que, consistindo o argumento a contrario sensu”, ou de interpretação inversa, em concluir uma proposição admissível a partir de uma outra que lhe é oposta, chegaríamos exatamente à solução contrária à pretendida pelo Recorrente.

Ou seja, o que teríamos era a hipótese contrária à da norma: se o legislador preveniu a possibilidade de decisão imediata apenas para o caso de qualificação da insolvência como fortuita (desde que o administrador da insolvência e o Mº Pº assim o proponham), isso significa a exclusão dessa possibilidade no caso de o administrador da insolvência e o Mº Pº emitirem parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

É que, «Argumento “a contrario”: É este um argumento que deve ser usado com muita prudência. Por meio dele deduz-se de um ius singulare, isto é, da disciplina excepcional estabelecida para certo caso, um princípio-regra de sentido oposto para os casos não abrangidos pela norma excepcional. Assim, a partir de uma norma excepcional, deduz-se a contrario que os casos que ela não contempla na sua hipótese seguem um regime oposto, que será o regime-regra.». [[4]]

O argumento “a contrario sensu” que se pode retirar do nº 5 do art. 188º do CIRE é que não é possível decisão imediata nos casos de qualificação da insolvência como culposa, ainda que o parecer do administrador da insolvência e do Mº Pº sejam ambos nesse sentido.

5.2.2.     O art. 186º nº 1 do CIRE, define a insolvência culposa como aquela que tenha “sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Procede-se depois ao elenco de várias situações que a lei entende traduzirem ou integrarem essa atuação dolosa ou serem demonstrativas de uma culpa grave por parte do insolvente ou dos seus administradores.

As diversas alíneas do nº 2 do art. 186º integram presunções inilidíveis (iuris et de iure), significando isso que basta a demonstração dos factos aí referidos para que ao juiz se imponha a qualificação da insolvência como culposa.

Na alínea i) prevê-se o caso de os administradores da insolvente terem “incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer” do administrador da insolvência, a emitir já no âmbito do incidente.

Temos, portanto, que ter provado nos autos um incumprimento; e, segundo a lei, não basta uma simples recusa (expressa, tácita ou implícita), pois a lei exige um incumprimento reiterado.

Ora, olhados os factos tidos por assentes na sentença, nenhum deles refere que o administrador da insolvência tenha dirigido qualquer solicitação ao Requerido A...

Repare-se que o administrador da insolvente dirigiu o seu pedido de entrega dos elementos contabilísticos à D..., L.da e não ao Requerido A...

Acresce que o Requerido A... cessou as suas funções de gerente em 30/07/2013, tendo vendido as suas quotas em 25/07/2013. A insolvência da sociedade foi decretada em 03/02/2014.

Ou seja, tendo ele cessado as suas funções antes da declaração de insolvência não lhe era possível prestar qualquer colaboração ao administrador.

Se o requerido A... vendeu as suas quotas à G..., L.da, a esta e aos seus gerentes incumbiam os deveres de informação e colaboração.

Na verdade, aos sócios da G... incumbia a nomeação de gerente da insolvente T..., em substituição do renunciante; não o tendo feito, consideram-se substituídos na gerência: art. 246º nº 2 al. a), 252º e 253º nº 3 do Código das Sociedades Comerciais (de futuro, apenas CSC).

É certo que, por força do art. 83º nº 3 e 4 do CIRE, a obrigação de prestar informações e colaboração é também “aplicável (…) às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

No entanto, não vêm provados os factos pertinentes à imputação da responsabilidade ao A..., a esse título: (i) que lhe foram pedidas informações/colaboração; (ii) por mais que uma vez e (iii) que ele as recusou.

Quanto à alínea a) do n.º 2 do art.º 186, temos a situação de o gerente ter “destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”.

Com pertinência, colhe-se apenas dos factos provados que o único bem encontrado nas instalações da sociedade insolvente foi uma galera em estado de sucata.

Tal facto, na sua singeleza, não permite tirar a ilação de que tenha sido A... a destruir ou fazer desaparecer o património que, aliás, também não se provou qual fosse.

A Recorrente alega a existência de um semi-reboque (acidentado) e um veículo automóvel pesado (que terá desaparecido); certo é que tal não se provou.

Quanto às alíneas do nº 3 do art. 186º do CIRE, já estamos perante presunções iuris tantum, que permitem a demonstração do contrário, presumindo-se culpa grave dos administradores que tenham incumprido:

“a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.

Também aqui não se provou qualquer facto que permita equacionar a violação de tais deveres por parte de A... Sendo que, no que ao dever de apresentação à insolvência concerne, ele nem sequer o podia exercer por já não ser o gerente da empresa.

            6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) O argumento “a contrario sensu” que se pode retirar do nº 5 do art. 188º do CIRE é que não é possível decisão imediata nos casos de qualificação da insolvência como culposa, ainda que o parecer do administrador da insolvência e do Mº Pº sejam ambos nesse sentido.
b) O incumprimento a que se alude na alínea i) do nº 2 do art. 186º do CIRE pressupõe a demonstração de ter sido pedida a colaboração/informações; por outro lado, não basta uma simples recusa (expressa, tácita ou implícita), pois a lei exige um incumprimento reiterado.
c) Por força do art. 83º nº 3 e 4 do CIRE, a obrigação de prestar informações/colaboração é extensível a qualquer pessoa que tenha desempenhado cargo de administrador/gerente nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

            III.          DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente.

                                                                                              Coimbra, 30/06/2015


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)



***


[[1]] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 135.
[[2]] Cf. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 134; Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, Almedina, 2004, 2ª edição, pág. 585; Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2008, 8ª edição, pág. 170 (nota 331). Em termos jurisprudenciais, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (de futuro, apenas STJ), de 06.02.2008 (processo 07S3903), de 06/11/2006 (processo 06S2074) e de 24.01.2007 (processo 06S2969), todos disponíveis em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. Cf, ainda e do mesmo STJ, acórdão de 23.11.11, consultável na Coletânea de Jurisprudência (de futuro, apenas CJ), Acórdãos do STJ, XIX, III, pág. 126.
[[3]] CF. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2008, pág. 619; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, 4ª edição, 2012, pág. 277 e Maria José Costeira, “Novo Direito da Insolvência”, Themis, Almedina, edição especial, 2005, pág. 32.
[[4]] João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 13ª reimpressão, 2002, pág. 187.