Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/22.6T8ALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: CARTA POR PONTOS
PERDA DE PONTOS
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º, N.º 2, E 29.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
LEI N.º 116/2015, DE 28 DE AGOSTO
ARTIGOS 121.º-A, 148.º, NºS1, 2, 4, 5, 6, 7, 10 E 11, E 149.º DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 4.º, N.º1, DO DECRETO-LEI N.º 317/94, DE 24 DE DEZEMBRO/REGISTO INDIVIDUAL DO /RIC
ARTIGO 79.º, N.º 1 DO RGCO
Sumário: I – O sistema de pontos em que assenta a “carta por pontos” traduz uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar, em termos de perigosidade, os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contra-ordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis e que poderá culminar com a decisão de cassação da carta de condução.

II – A perda de pontos não consubstancia uma sanção adicional à condenação, tratando-se, ao invés, de um efeito jurídico ope legis, não sancionatório, que prescinde de qualquer intervenção de autoridades públicas na contínua consideração da capacidade do sujeito para a condução.

III – A cassação prevista no 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, também não consubstancia “uma condenação suplementar” ou uma “segunda pena”, antes traduz o efeito jurídico, não da prática de crimes, mas da perda da totalidade dos pontos do condutor, dando origem à verificação da condição negativa de atribuição do título de condução.

IV – A opção do legislador de fazer operar a subtracção e, quando ela atinge todos os pontos do condutor infractor, de estabelecer como efeito a cassação do seu título de condução, enquanto restrição do direito de conduzir, revela-se necessária, adequada e proporcional à salvaguarda de interesses constitucionalmente legítimos, como a vida, a integridade física e o património de terceiros utentes da via pública, bem como da segurança rodoviária e saúde pública, face à gravidade das consequências que poderão advir da prática dos crimes que determinam a aplicação de pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.

V – Não se trata da perda de um direito adquirido, mas da verificação de uma condição negativa de um direito não absoluto nem incondicional, pois que com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução poderá ser considerada definitivamente adquirida, uma vez que está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”, tudo se passando como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente, embora em termos diferentes.

VI – As Relações e, mais recentemente, o Tribunal Constitucional têm concluído de forma praticamente constante no sentido de que as normas que determinam a cassação do título de condução por perda total de pontos do condutor são concordantes com as normas e princípios consagrados na Constituição, nomeadamente com os seus artigos 18.º, n.º 2 e 29.º, n.º 5.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 

1. Por decisão proferida pelo seu Presidente, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) determinou a cassação do título de condução n.º ...73 a AA, com os demais sinais dos autos, com o fundamento na perda da totalidade de pontos atribuídos ao condutor, pela condenação em duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, no âmbito de duas condenações criminais.

2. Inconformado, o condutor AA interpôs impugnação judicial da referida decisão da ANSR, que deu entrada no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, o qual proferiu sentença em que julgou improcedente o recurso interposto …

3.AA interpôs o presente recurso em que finalizou a respectiva motivação com as seguintes conclusões …

“1. A Sentença em crise mantém a decisão da autoridade administrativa da cassação do seu título de condução.

2. O que smo colide com a ratio da Lei e a intenção do Legislador: nos considerandos da Proposta de Lei 336/XII da Presidência de Conselho de Ministros e com a Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 54/2009, de 14 de maio. Da qual se extrai «aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.

3. É que a decisão administrativa surpreendeu o Recorrente com a cassação do título de condução – este já havia sido sancionado em sede Penal (tutela de ultima ratio).

4. O Recorrente já havia sido definitivamente julgado nos processos crime tramitados neste Tribunal 44/18.... e 87/20.... – pelos mesmos factos.

5. Viola o ne bis in idem previsto no art.º 29º, nº 5, da CRP como princípio de preclusão e proibição de cúmulo de ações pelos mesmos factos.

6. Ora, a Sentença em crise ao aplicar a norma do art.º 148º do Código da Estrada, viola, pois, a Constituição da República Portuguesa, não podendo por isso manter-se, smo.

7. A norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional por violação de caso julgado e violação do ne bis in idem, quando interpretada no sentido de permitir uma 2ª decisão relativamente aos (mesmos) factos definitivamente julgados; assim, inconstitucionalidade das normas 148º e 149º do Código da Estrada.

11. O art. 29º, no 5 da CRP preceitua que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

12. Este instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

13. Também importa aqui mobilizar o princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do estritamente necessário ou adequado – é que a cassação in casu é mais gravosa do que as penas a que o Recorrente foi sujeito nos citados processos crime… e a maior gravidade da sanção mal se compreende, smo, quando como supra já consignamos estamos fora da tutela de ultima ratio…

14. Mais gravosa ou não qualquer condenação posterior representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP.

4. Admitido o recurso, veio o Ministério Público apresentar resposta em que pugna no sentido da sua improcedênia …

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta … emitiu parecer em que adere à argumentação contida na resposta do Ministério Público da 1.ª instância …

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

7. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre agora decidir.

                                                           *

II – Fundamentação 

[1].

… são as seguintes as questões a decidir:

- Violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, e inconstitucionalidade das normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução.

- Violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e inconstitucionalidade das normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução.

                                                           *

2. A sentença recorrida.

2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. O arguido foi condenado, pela prática, em 24/06/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 8 meses de prisão, suspensa na respetiva execução, pelo período de 12 meses (sujeita à obrigação de frequentar consultas de alcoologia e do curso de prevenção rodoviária, e à entrega de € 400,00 aos Bombeiros Voluntários ..., no prazo de 6 meses), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses, por sentença transitada em julgado em 25/09/2018, proferida no âmbito do processo sumário n.º 44/18...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.

2. O arguido foi condenado, pela prática, em 18/10/2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292.º, nº 1, do Código Penal, numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na respetiva execução, por igual período, sujeita a regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano, por sentença transitada em julgado em 06/01/2021, proferida no âmbito do processo sumário nº 87/20...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda”.

2.2. Por sua vez, quanto ao direito, a 1.ª instância manteve a decisão administrativa impugnada, que determinou a cassação da licença de condução de que é titular o recorrente, o que fundamentou do seguinte modo …

“(…)

Em sede de recurso de impugnação judicial, o arguido alega, em primeiro lugar, que existe violação do princípio ne bis in idem, por já ter sido definitivamente julgado no âmbito dos processos de natureza criminal e, aí, ter cumprido as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, …

Resulta claramente das normas acima citadas que é a prática de contraordenações graves ou muito graves, a condenação em pena acessória ou injunção de proibição de conduzir (rectius, a prática do ato que ditou a condenação em pena acessória ou a injunção de proibição de conduzir) que determina a posterior perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada.

2. [2 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 09/05/2018, no processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto]

Atentando ao citado artigo 148.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada é, pois, evidente que a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, quer de natureza contraordenacional (n.º 1), quer de natureza penal (n.º 2).

Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar, em termos de perigosidade, determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais, que podem vir ou não a ter determinados efeitos no futuro, no que toca à licença de condução de veículos automóveis atribuída a um determinado particular, efeitos esses que poderão culminar na aplicação da sanção de cassação da respetiva carta de condução.

Por sua vez, a decisão de cassação da carta de condução tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas – contraordenacionais ou penais – e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, neste particular, para efeitos de eventual recuperação de pontos, nos temos do disposto nos artigos 121.º-A, n.º 1 e 2, e 148.º, nº 5 e 7, todos do Código da Estrada.

Visa, assim, tal sistema apenas evidenciar, através de um registo central – com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização –, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infrações, como vimos supra.

Quer dizer, o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos acima referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais positivos, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático de cada infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo da gravidade da infração cometida e do relevo que esta tem no somatório de outra(s), tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última deve ou não ser mantida.

Assim sendo, o sistema de pontos será, pois, também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar da mesma, inserindo-se, portanto, tal desiderato, no âmbito dos poderes de administração do Estado.

O título de condução é uma licença pessoal atribuída pela Administração Pública ao cidadão, depois de este ter demonstrado, pelas vias regulamentadas, ter os requisitos necessários, de capacidade, conhecimento e destreza para o exercício da condução, que reflete também a confiança que confere ao condutor habilitado, legalmente quantificada num crédito inicial de doze pontos, crédito este que pode aumentar ou diminuir, em função do seu comportamento ao volante e que no limite, pode conduzir à declaração de cassação do título, quando o saldo de pontos seja igual a zero.

A declaração de cassação do título depende da perda total dos pontos atribuídos, mas esta, como se viu, não resulta da prática de uma única infração, mas, nos termos legais, da prática de uma pluralidade de infrações.

Efetivamente, a cada uma destas infrações contraordenacionais ou penais previamente verificadas, corresponde, automaticamente, a subtração de um determinado número de pontos, mas a cassação só é legalmente admissível com o esgotamento do crédito concedido, correspondente ao esvaziamento da pressuposta – com a concessão do título – aptidão para conduzir veículos com motor.

Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respetivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, traduzem decisões de caráter administrativo3. [3 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 13/11/2019, processo n.º 186/19.0T8CTB.C1, disponível em www.dgsi.pt]

Mas, como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/10/2004, «o que está em causa não é um novo sancionamento pela prática daquelas contraordenações (concretas), mas, pelo contrário, o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da condução (…)»4. [4 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/10/2004, processo nº0345913, disponível em www.dgsi.pt]

Com estas premissas, prosseguindo para as questões suscitadas, é já possível concluir que inexiste violação dos princípios invocados pelo recorrente.

Ora, nas palavras de Eduardo Correia, «o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e, a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele ao cidadão a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditória»5. [5 In A Teoria do Concurso em Direito Criminal, II, Caso Julgado e Poderes do Juiz, Coimbra, 1983, página 302] 

No que ao caso julgado respeita, pelas razões já amplamente explanadas, não se verifica a invocada inconstitucionalidade. Com efeito, não se dá esta duplicação de factos, já que as finalidades que subjazem à aplicação, em sede de julgamento pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não são as mesmas que estão na base da cassação da licença de condução.

Veja-se que, no que concerne à decisão de cassação do título de condução, a mesma apenas tem por base a subtração de pontos, in casu, dos 12 pontos atribuídos, não havendo qualquer juízo de culpabilidade no que concerne às situações que justificaram, precisamente, aquela subtração – matéria discutida e julgada no âmbito do processo crime.

O artigo 29.º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio ne bis in idem ao referir que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», implementando a proibição do duplo julgamento e da dupla punição pelo mesmo crime.

Ora, tendo em conta que, como referido, o que sustenta a decisão de cassação da carta de condução é a perda de pontos, e não mais, não se verifica uma nova punição ou um mesmo julgamento pela prática dos crimes de condução em estado de embriaguez.

Estamos perante uma decisão administrativa, de conteúdo pedagógico, que se debruça sobre a (in)aptidão do condutor para o exercício da condução e, inerentemente, para a manutenção ou não da respetiva licença de condução.

Não entram, pois, em linha de conta, todos os factos já julgados no âmbito criminal, designadamente, as invocadas condições socioeconómicas e profissionais do arguido (como se referiu em sede de fundamentação da matéria de facto).

Concluímos, pois, em síntese, que a sanção administrativa de cassação da carta de condução, ao contrário do alegado pelo arguido, é aplicada automaticamente, em consequência da subtração de pontos do sistema da carta de condução por pontos, a qual é um índice da sua perigosidade, enquanto condutor, pelo que inexiste uma dupla condenação ou julgamento pelos mesmos factos, não se vislumbrando qualquer inconstitucionalidade das normas dos artigos do Código da Estrada ora em apreço e, subsequentemente, a nulidade da decisão administrativa recorrida6. [6 Veja-se, neste mesmo sentido e a título exemplificativo, os Acórdãos, que aqui seguimos de perto, do Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2016, processo nº 11744/13.7TDPRT.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 23/03/2021, processo nº 38/20.1T8ODM.E1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/11/2019, processo nº 4289/18.0T8PBL.C1, de 02/02/2022, processo nº 209/21.3T9MGR.C1; e de 10/11/2021, processo nº 484/20.0T9LRA.C1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/03/2021, processo nº 3523/19.4T9AMD.L1-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt]

(…)”.

                                                              *

3. Apreciando.

3.1. Diz o recorrente que foi violado o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa …

O recorrente já havia sido definitivamente julgado nos processos crime tramitados sob os n.os 44/18.... e 87/20...., pelos mesmos factos, pelo que a decisão viola o ne bis in idem consagrado na norma constitucional acima referida, como o princípio de preclusão e proibição de cúmulo de acções pelos mesmos factos.

A norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional por violação de caso julgado e ne bis in idem, quando interpretada no sentido de permitir uma segunda decisão relativamente aos (mesmos) factos definitivamente julgados, tratando-se, assim, da inconstitucionalidade das normas 148º e 149º do Código da Estrada.

Ao aplicar a norma do 148.º do Código da Estrada, determinando a cassação do título de condução, o tribunal a quo violou o artigo 204.º da Constituição, que lhe impunha que a desaplicasse por ser contrária à Lei Fundamental e, por isso, deveria ter sido considerada inconstitucional, designadamente por violação de caso julgado.

                                                        *

Conforme dispõe o artigo 121.º-A do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos na sua carta de condução.

Tais pontos são retirados ou acrescentados, em conformidade com o regime estabelecido no artigo 148.º do Código da Estrada, na redacção introduzida pela Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto, a qual entrou em vigor no dia 1 de Junho de 2016.

O artigo 148.º do Código da Estrada, com a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, estabelece no seu n.º 1 que a prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtracção de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:

a) A prática de contra-ordenação grave implica a subtracção de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efectuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves;

b) A prática de contra-ordenação muito grave implica a subtracção de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.

Por sua vez, segundo o n.º 2 do normativo em análise, a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.

Já o n.º 4 prevê que a subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

a) Obrigação de o infractor frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;

b) Obrigação de o infractor realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;

c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

Segundo o n.º 10 do mesmo preceito legal, a cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

Tendo como resultado o desfecho previsto n.º 11 da norma, ou seja, que a quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.

O regime da “carta por pontos”, tal como o conhecemos hoje, foi implementado pela referida Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto, com o qual o legislador procurou acompanhar a maioria dos países europeus, onde o sistema se encontra plenamente consagrado e estabilizado, pretendendo com ele aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. Para justificar a reforma introduzida, o legislador invocou ainda a análise comparada com outros países europeus, a qual demonstra que é expectável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.[2]

No fundo, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contra-ordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a decisão de cassação da respectiva carta de condução. Decisão que reveste carácter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e no decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, tudo conforme previsto no artigo 148.º, n.os 1, 2, 3, 5, 6 e 7 do Código da Estrada[3].

Por sua vez, o artigo 149.º do mesmo código estabelece no seu n.º 1, alínea a), que do registo de infracções relativas ao exercício da condução, organizado nos termos de diploma próprio, devem constar os crimes praticados no exercício da condução de veículos a motor, bem com as respectivas penas e medidas de segurança.

O diploma próprio ali referido é o Decreto-Lei n.º 317/94, de 24 de Dezembro (alterado por diversos diplomas, o último dos quais o Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9 de Dezembro), que organiza o registo individual do condutor (RIC) e dispõe no seu artigo 4.º, n.º 1 que o RIC é um ficheiro constituído por dados relativos:

a) À identificação do condutor;

b) A cada infracção punida com inibição ou proibição de condução em território nacional;

c) À existência de inibição ou proibição de condução aplicada por organismos estrangeiros;

d) À existência de decisões em medida de segurança que impliquem cassação dos títulos de condução;

e) À aplicação, alteração ou extinção da proibição de conduzir veículos a motor em sede de suspensão provisória do processo penal;

f) Ao número de pontos detidos por cada condutor.

Aqui chegados.

                                                          *

A cassação do título de condução por perda da totalidade dos pontos de um condutor, como consequência da prática de infracções rodoviárias, que no presente caso revestiram natureza penal, nos termos previstos no artigo 148.º, n.os 2, 4, alínea c), e 10 do Código da Estrada, e a sua conformidade com a Constituição, nomeadamente com os seus artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 5, têm sido objecto de apreciação pelas Relações e, mais recentemente, pelo Tribunal Constitucional, sendo que a jurisprudência daí resultante tem concluído de forma praticamente constante no sentido de que as normas que determinam a cassação por perda total de pontos do condutor são concordantes com as normas e princípios consagrados na Constituição.

Pois bem.

                                                           *

3.2. O princípio ne bis in idem encontra-se consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição, o qual dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Estamos perante uma proibição constitucional que versa não só sobre o duplo julgamento aí expressamente indicado, como também sobre a dupla penalização. Ou seja, a proibição destina-se a evitar, tanto a condenação de alguém que tenha sido definitivamente absolvido pela prática de determinada infracção, como a sucessão de condenações e consequente aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.[4]

O conceito de crime que aqui releva faz apelo a um sentido essencialmente material de certa conduta ou comportamento, enquanto dado de facto ou acontecimento histórico que preenche os pressupostos de que depende a aplicação da lei penal. A dupla apreciação jurídico-penal que se quer evitar é, pois, a de determinado comportamento referenciado a um facto já julgado, enquanto expressão material de uma conduta penalmente punível, e não tanto de um crime na sua estrita  acepção técnico-jurídica.[5]

No domínio contra-ordenacional, o princípio ne bis in idem encontra-se expressamente reflectido no artigo 79.º, n.º 1 do RGCO, ao estabelecer que o carácter definitivo da decisão da autoridade administrativa ou o trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie o facto como contra-ordenação ou como crime, precludem a possibilidade de reapreciação de tal facto como contra-ordenação.

                                                         *

Revertendo ao caso dos autos, é verdade que nos processos cujas condenações estiveram na origem da perda da totalidade dos pontos titulados pelo condutor, ambos relativos à prática de crime de condução em estado de embriaguez, o recorrente foi, em cada um deles, condenado na pena acessória de proibição de conduzir.

Contudo, a perda de pontos decorrente de tais condenações e a cassação do título de condução, por resultarem subtraídos todos os pontos ao condutor, não representa uma dupla condenação – nem penal, nem contra-ordenacional – por factos já julgados e punidos com as referidas penas acessórias.

Conforme se assinala no Acórdão da Relação do Porto de 30-04-2019[6], o que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas a sucessão das condenações.

Tal como sucede, nomeadamente, na reincidência (cf. artigos 75.º e 76.º, ambos do CPP), a agravação daí resultante não representa uma nova pena pelo crime já punido, não se verificando, pois, uma dupla condenação quando uma determinada pena é agravada pelo facto de haver sucessão de condenações. E, por conseguinte, o princípio ne bis in idem não é posto em causa.

Acresce que a cassação estabelecida no 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, não consubstancia “uma condenação suplementar”, antes traduz o resultado de um conjunto de circunstâncias, onde, naturalmente, sobressaem as sobreditas condenações na pena acessória de proibição de conduzir, mas não só, relevando também, de forma conjugada, o decurso do tempo sem registo de infracções, previsto nos n.os 5 e 6 do mesmo preceito, bem como os períodos de revalidação, sem registo de crimes de natureza rodoviária, previstos no n.º 7. Resultado esse que, quando atinge a totalidade dos pontos do condutor, corresponde à verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução, relativa ao “bom comportamento rodoviário”.

                                                        *

O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão de saber se a decisão de cassação do título de condução constitui uma segunda condenação do respectivo titular, violando o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, tendo no Acórdão n.º 154/2022, de 17-02-2022, concluído que a norma do artigo 148.º do Código da Estrada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmos factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5  da Lei Fundamental.

Com efeito, quem suscita a inconstitucionalidade da norma, nos termos indicados, argumenta que o princípio do ne bis in idem tem por finalidade assegurar a paz jurídica do visado e limitar o poder punitivo do Estado, impedindo que o mesmo facto, ou o mesmo “pedaço de vida”, seja valorado duas vezes, em processos distintos, dando origem a uma dupla sanção.

Sucede, todavia, que, como sublinhou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 154/2022, “[a] proibição de duplo julgamento ou valoração de factos com relevância penal não se confunde com a proibição de valorar multiplamente factos em sentido naturalístico, deles retirando uma pluralidade de consequências jurídicas”, sendo que o regime da cassação previsto no artigo 148.º do Código da Estrada não se enquadra no âmbito da proibição plasmada no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição que, como se salientou no Acórdão n.º 298/2021, é tanto a aplicação ao mesmo agente de uma dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes, como a sua sujeição a um segundo julgamento por factos penalmente relevantes, relativamente aos quais aquele haja sido já definitivamente julgado.

Segundo o Acórdão n.º 154/2022, a norma do Código da Estrada sob apreciação escapa ao âmbito da proibição constitucional do duplo julgamento ou dupla valoração de factos, por três ordens de razão, que passamos a citar:

“Em primeiro lugar, importa salientar que, ainda que no caso vertente os factos que conduziram à perda dos pontos do aqui recorrente e, por isso, à cassação da sua carta de condução, tenham sido condenações pela prática de crimes, essa é uma circunstância puramente acidental e que não se projecta na norma em apreciação.

Em segundo lugar, os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contra-ordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contra-ordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação.

Em terceiro lugar, a cassação do título de condução não se traduz numa dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes. Com efeito, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão”.

Mais recentemente, o Tribunal Constitucional voltou a apreciar a questão no Acórdão n.º 722/2022, de 03-11-2022, do qual é de destacar as seguintes razões em apoio da conformidade constitucional do regime de cassação, que passamos a citar:

“[N]os termos das normas sindicadas – e extraídas do n.º 2 do artigo 148.º do Código da Estrada — não ocorre qualquer segunda apreciação dos factos que conduzem à condenação criminal (o «pedaço de vida» que conduziu à condenação de um crime) nem uma segunda punição pelo mesmo crime. Pelo contrário, as normas em crise valoram a circunstância de ter sido aplicada a pena de proibição de conduzir veículos com motor (que pressupõe a prática dos crimes elencados no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal) ou a injunção de proibição de conduzir veículos a motor em sede de suspensão provisória do processo (cujo cumprimento, com a concordância do arguido [n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal], conduza ao arquivamento do inquérito por esses mesmos crimes) na apreciação da (in)capacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária.

Na verdade, como este Tribunal já afirmou, são admissíveis medidas que condicionem a permissão da condução de veículos a motor, atento o carácter potencialmente perigoso para outros interesses com tutela constitucional (Acórdão n.º 337/2002).

(…)

Assim, o direito a obter e a manter uma licença de condução pode ficar dependente da apreciação contínua das condições de aptidão para o seu exercício (Acórdãos n.ºs 461/2020 e 337/2002). Aí se inclui, pois, a subtração de pontos pela prática de crimes que implicam a condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor (n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal) ou pela aplicação e cumprimento da injunção de proibição de condução de veículos em sede de suspensão provisória do processo pelos mesmos crimes.

Na verdade, a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir – decorrente da condenação criminal pelos crimes elencados no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal – é fator de valoração adequado a determinar a aptidão de um sujeito para a condução de veículos motorizados, já que «a perda dos pontos é decorrência de uma comprovada infração culposa de regras de cuidado no exercício da condução automóvel, a qual, pela sua gravidade e reiteração, permite antecipar um perigo acrescido para os bens jurídicos carecidos de tutela, o mesmo é dizer, inferir um estado de inaptidão do agente para a prática de condução diligente» (Acórdão n.º 154/2022). A norma situa-se no «plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença» (Acórdão n.º 461/2000)”.

Em suma, na senda ainda do que entendeu o Acórdão n.º 722/2022,  decorre do acima exposto que a perda de pontos não consubstancia qualquer sanção adicional à condenação, tratando-se, ao invés, de uma ponderação legislativa que, num modelo de automaticidade assente na certeza e objectividade da apreciação e no reforço da tutela do interesse público, constantemente avalia a conduta do condutor (atribuindo e subtraindo pontos), determinando a sua aptidão para a actividade de condução de veículos com motor. Trata-se de um efeito jurídico ope legis, não sancionatório, que prescinde de qualquer intervenção de autoridades públicas na contínua consideração da capacidade do sujeito para a condução.

Para a conclusão de que a perda de pontos não constitui uma qualquer segunda sanção pelo mesmo crime concorre ainda a circunstância de a cassação do título de condução, resultante da perda total dos pontos, não ser jamais consequência de uma única infracção.

O sistema da cassação é o resultado de uma ponderação legislativa global do comportamento do condutor, que leva em linha de conta, quer as condenações por crimes ou contra-ordenações no exercício da condução, quer a conduta do condutor no sentido da atribuição de mais pontos, por efeito da frequência de acções de formação e do decurso do tempo sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária (artigo 148.º, n.os 5, 6 e 7 do Código da Estrada).

Assim sendo, a norma que determina uma perda de 6 pontos por efeito da condenação na pena acessória de inibição de condução de veículos com motor (e também a que prescreve uma perda de 6 pontos por efeito do cumprimento da injunção de proibição de condução, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo e conducente ao arquivamento do inquérito, embora não seja esse o caso dos autos), não contende com a garantia constitucional ne bis in idem.

O destinatário da medida não só não é submetido a um duplo julgamento, como também não sofre uma dupla punição, uma vez que a perda de pontos se situa no plano da formulação dos requisitos para a manutenção do título de condução, em que é levada em consideração a condenação numa pena acessória de inibição de condução de veículos com motor (ou a aplicação da injunção da proibição de condução).

Dito de outro modo, a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos não constitui uma nova condenação pela prática dos factos determinantes da aplicação da proibição de conduzir veículos com motor, antes consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e por imperativos de interesse público ligados à segurança rodoviária[7].

Uma vez que a norma em questão não implica que o condutor seja julgado novamente pelos mesmos factos, nem que por eles seja duplamente punido, é forçoso concluir que não ocorre violação do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição, não se verificando, pois, desrespeito do princípio ne bis in idem.

Assim sendo, face ao acima exposto, há que concluir que a decidida cassação do título de condução da recorrente não representou qualquer afronta ao princípio ne bis in idem, nem o regime instituído no artigo 148.º, do Código da Estrada (nem no seu artigo 149.º, que trata do registo de infracções relativas ao exercício da condução), enferma de inconstitucionalidade por violação do artigo 29.º, n.º 5 da Lei Fundamental, inexistindo, pois, fundamento para, ao abrigo do seu artigo 204.º, não aplicar tal regime e as consequências nele ditadas.

                                                              *

3.3. Diz ainda o recorrente que foi violado o princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, sendo, por isso, inconstitucionais as normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução.

O instituto da subtracção de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, sem a valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

Segundo o recorrente, importa mobilizar o princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso, que proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do estritamente necessário ou adequado, sendo que a cassação se revela gravosa do que as penas a que o recorrente foi sujeito nos citados processos crime. Mal se compreende, pois, a maior gravidade da sanção, quando já nos encontramos fora da tutela de ultima ratio.

                                                         *

Na linha do que ficou dito em 3.2., a cassação prevista no 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, não consubstancia “uma condenação suplementar” ou uma “segunda pena”, antes traduz o efeito jurídico, não da prática de crimes, mas da perda da totalidade dos pontos do condutor, resultante do funcionamento dos critérios consagrados nos n.os 1, 2, 3, 5, 6 e 7 daquele preceito e que dá, assim, origem à verificação da condição negativa de atribuição do título de condução.

Seja como for, as razões que fundamentam um tal efeito assentam na salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente legítimos, como a vida, a integridade física e o património de terceiros utentes da via pública, e ainda a segurança rodoviária e a saúde pública, postos em causa pelos elevados índices de sinistralidade associada à prática de crimes estradais, punidos com pena acessória de proibição de conduzir e, por essa via, determinantes da subtracção de pontos ao condutor infractor, nos termos previstos no artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada.

A opção do legislador de fazer operar a aludida subtracção e, quando ela atinge todos os pontos do condutor infractor, de estabelecer como efeito a cassação do seu título de condução, enquanto restrição do direito de conduzir, revela-se necessária, adequada e proporcional à salvaguarda daqueles direitos e interesses, face à gravidade das consequências que para eles poderão advir da prática dos crimes que determinam a aplicação de pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, como é o caso da condução em estado de embriaguez.

Não existe, pois, fundamento para considerar que o regime da cassação do título de condução, estabelecido no artigo 148.º do Código da Estrada, padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição [as restrições de direitos, liberdades de garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos].

                                                      *

O Tribunal Constitucional também já teve oportunidade de apreciar a questão de saber se a circunstância de na norma do artigo 148.º do Código da Estrada se determinar que a perda de todos os pontos detidos por determinado condutor constitui condição suficiente para a cassação do respectivo título de condução, implica violação do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, designadamente por tal efeito operar de forma automática, sem se ponderar a necessidade prática de aplicação ao agente no caso concreto, não valorando qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco a uma graduação da culpa.

No Acórdão n.º 154/2022 o Tribunal Constitucional entendeu que a referida norma do Código da Estrada satisfaz o teste da exigibilidade ou necessidade, dado que a cassação do título de condução por via apenas da perda dos pontos surge como uma medida de ultima ratio, num quadro em que o agente vem mostrando reiteradamente uma indisponibilidade para observar regras de condução diligente. Neste contexto, aquele Tribunal fez notar que a cassação do título de condução apenas é decretada quando o condutor perde a totalidade dos pontos de que dispõe, o que exige a comprovação de vários comportamentos ilícitos e culposos num determinado lapso temporal, sendo que nenhuma infracção, nem mesmo de natureza criminal, implica, por si, a perda de todos os pontos.

Por outro lado, conforme decorre do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, quando atingidos diversos patamares de subtracção de pontos, o condutor terá de se sujeitar a medidas de formação e de avaliação das suas competências, por forma a obstar à consolidação de um quadro de inaptidão.

Assim, a cassação do título de condução só surge em última linha, quando a gravidade e reiteração dos comportamentos lesivos da segurança rodoviária ultrapassa um certo limiar.

Não se pode exigir ao legislador que, para além da ponderação da natureza e gravidade das infracções que originaram a perda de pontos e da sua idoneidade para relevar a inaptidão do agente para a prática da condução, tal como ela se reflecte na quantificação de pontos que cada uma subtrai ao acervo detido por cada condutor, consagrasse também a possibilidade de introduzir um segundo nível de ponderação de factores casuísticos, nomeadamente os indicados pelo recorrente, factores esses que, de certo modo, permitiriam fazer a contraprova da indiciação de inaptidão contida nas condenações que determinaram a perda de pontos.

Diz-se ainda no Acórdão n.º 154/2022 que, como em praticamente todas as decisões que implicam a averiguação de factos e a ponderação de variáveis, diversos graus de intensidade do escrutínio são possíveis. Os factores relevantes para determinada decisão podem ser aferidos com graus crescentes de minúcia e de rigor. Ora, se é certo que uma avaliação fina propicia, em princípio, uma decisão calibrada em função das características do caso concreto, certo é também que arrasta consigo inconvenientes de peso, como o aumento da morosidade, a complexidade dos procedimentos, a incerteza quanto aos efeitos do sistema, a perda de previsibilidade e uniformidade e a probabilidade mais ou menos significativa de erro de decisão.

Assim sendo, conforme realça o Tribunal Constitucional, ao adoptar o sistema da “carta por pontos”, tomando como variáveis decisivas a natureza e gravidade das infracções cometidas num certo período de tempo e a realização de acções geradoras de uma maior consciencialização para a necessidade de observância das regras de segurança rodoviária, o legislador atribuiu importância compreensível a considerações de simplicidade, objectividade e efectividade, que não seriam manifestamente servidas por um sistema de avaliação casuística.

Donde a medida de cassação não se mostra, pois, desnecessária ou inexigível.

                                                          *

Refira-se, outrossim, que não se pode dizer que a aplicação da medida de cassação implica a perda de um direito adquirido quando da verificação de uma sua condição negativa se retiram as consequências previstas na lei.

Com efeito, ao estabelecer um regime de “carta por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma, em caso de subtracção total de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução.

Também neste contexto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que, não sendo absoluto e incondicional, a essa condição se encontra sujeito. Como já foi dito em 3.1., com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução poderá ser considerada definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”, tudo se passando, pois, como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente, embora em termos diferentes dos de tal período.

Não se trata da perda de um direito, mas da verificação de uma condição negativa a que o condutor está, à partida e continuamente, sujeito, sendo que a cassação pela subtracção total de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias que, no fundo, representa o reverso daquela condição negativa, assenta em pressupostos que se encontram em total conexão com a actividade licenciada, revelando-se conforme às exigências de proporcionalidade.

Ora, no caso da cassação prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, o condicionamento da atribuição de licença de condução diz respeito, não ao cometimento de qualquer crime ou infracção, mas à prática sucessiva, com uma determinada proximidade temporal entre condutas, de crimes rodoviários ou contra-ordenações muito graves ou graves, razão pela qual não estamos perante uma automaticidade contrária ao princípio da proporcionalidade, sendo certo que os efeitos da cassação não têm carácter definitivo, uma vez que, decorridos dois anos sobre a sua efectivação, pode ser concedido novo título de condução de veículo a motor de qualquer categoria (cf. artigo 148.º, n.º 11 do Código da Estrada).

Aliás, o cálculo do número de infracções cometidas e da sua gravidade, traduzido em pontos retirados na carta de condução, nunca levará a um resultado que, à partida, seja o mesmo para todo e qualquer caso, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infracções possam materialmente resultar, designadamente para a eventual cassação da carta, já que é a própria lei a prever que aos doze pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de quinze pontos, sempre que no final de cada período de três anos não existam registadas de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, até ao limite máximo de dezasseis pontos, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária e sempre que o condutor proceda de forma voluntária à frequência das acções de formação fixadas em regulamento.[8]

                                                       *

Donde, como assinala o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 722/2022, do ponto de vista da necessidade ou exigibilidade, não se vêem outras medidas que, com a mesma eficácia que decorre da contínua monitorização da aptidão do condutor para o exercício da condução, se revelassem menos restritivas.

A perda de seis pontos, isoladamente considerada, não afecta a licença de condução, cujos efeitos se mantêm. A licença para a condução apenas é afectada (ou mesmo cassada) quando a subtracção de seis pontos se associa a outras causas de perda de pontos, como ocorre com uma nova condenação em pena acessória de proibição de conduzir e não tenha havido atribuição de novos pontos.

                                                     *

Em suma, atendendo ao que se expôs em 3.1., 3.2. e 3.3., conclui-se que o regime da cassação do título de condução, previsto no artigo 148.º do Código da Estrada (e também no artigo 149.º, se bem que neste caso apenas indirectamente, já a que norma se refere ao registo de infracções relativas ao exercício da condução e prevê que nele deve constar a pontuação actualizada do título de condução), é compatível com as normas e princípios constitucionais invocados no recurso, não merecendo, pois, censura a sentença recorrida e improcedendo as inconstitucionalidades suscitadas pelo recorrente AA, sendo, por conseguinte, de manter a decretada cassação do seu título de condução.

                                                        *

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC (artigo 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

                                   Coimbra, 7 de Junho de 2023 

 (Elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

                                      Helena Bolieiro - relatora

                                                  Rosa Pinto - adjunta

                                                Luís Teixeira - adjunto       





[1]
  
  
[2] Cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 336/XII, que esteve na origem da Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto.
[3] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 09-05-2018, proferido no processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[4] Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1993, pág.194.
[5] Cf. Acórdão do STJ de 15-03-2006, proferido no processo n.º 05P4403, disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>
  
  
[6] Aresto proferido no processo n.º 316/18.0T8CPV.P1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[7] Cf. Acórdão desta Relação de 02-02-2022, proferido no processo n.º 209/21.3T9MGR.C1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[8] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 09-05-2018, já citado.