Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS CRAVO | ||
Descritores: | ABUSO DO DIREITO DESEQUILÍBRIO NO EXERCÍCIO DO DIREITO DESPROPORÇÃO GRAVE | ||
Data do Acordão: | 09/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 466.º, N.º 3, CPC ARTIGO 334.º, DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo).
II – O desequilíbrio no exercício do direito caracteriza-se pela desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sem que se ponha em causa o direito do titular. III - A questão é saber se o exercício desse direito se revela, no caso concreto, desproporcionado, desequilibrado, em termos que ofendam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente, ponderação essa que se tem de fazer através da análise das concretas circunstâncias de cada caso. IV – Não ocorre esse desequilíbrio no exercício por parte da A. nos autos, desde logo porque não existe vantagem para esta, muito menos injustificada, ao estar a reclamar o reembolso de quantia que efetivamente despendeu, motivada por atuação ilícita das RR., mormente quando se desconhecem [por não terem sido alegados, nem estarem provados!] os meios económicos e patrimoniais destas, e bem assim as concretas necessidades pessoais e eventuais compromissos financeiros das mesmas. | ||
Decisão Texto Integral: |
Apelações em processo comum e especial (2013) * Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] * 1 – RELATÓRIO AA, viúva, contribuinte fiscal nº ...81, residente na Rua ..., ... ..., intentou ação declarativa comum contra BB, viúva, contribuinte fiscal nº ...08, residente na Praceta ..., ..., ..., ... ... e CC, casada, contribuinte fiscal nº ...19, residente na Rua ..., ..., ..., ... ...., na qual formulou o seguinte pedido: «serem as R.R condenadas a: - pagar à A., a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, a quantia de 5.271,38€ (cinco mil duzentos e setenta e um euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento; - pagar à Autora a quantia de 500,00€ (quinhentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos, quantia a que devem acrescer juros moratórios desde a citação até efectivo e integral pagamento». A causa de pedir recortada pela Autora consistiu na alegação de que as rés venderam à autora um prédio urbano, e sabendo que nesse imóvel tinham sido feitas obras que não estavam licenciadas, nada referiram à autora, sendo que em virtude da conduta das rés, a autora, que vendeu a uma terceira pessoa o referido imóvel, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais. * As rés regulamente citadas, defenderam-se por exceção, invocando o abuso de direito, na vertente do desequilíbrio, na medida em que a autora vendeu o imóvel pelo dobro do preço por que o comprou às rés e, por impugnação, alegando desconhecer a falta de licenciamento das obras. * Procedeu-se na oportuna sequência à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, como se alcança das respetivas atas. Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir que tendo ficado provado que a autora procedeu ao pagamento das despesas necessárias para legalizar as obras ajuizadas, despesas estas no montante total de € 5.271,38€, era esse o valor que as rés ficavam obrigadas a pagar à autora, quantia à qual acresciam juros à taxa legal dos juros civis, desde a citação até integral pagamento, mas não tendo lugar condenação em indemnização por danos não patrimoniais (por os danos dessa natureza não terem gravidade suficiente para a atribuição de indemnização), sendo certo que não era possível concluir que a autora tivesse «(…) excedido os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, pelo que improcede a excepção invocada», termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”: «IV. Decisão Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: - Condenar as Rés a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, a quantia de 5.271,38€ (cinco mil duzentos e setenta e um euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento; - Absolver as Rés do demais peticionado. Custas da acção a cargo de ambas as partes na proporção do decaimento (art. 527º do CPC). Registe e notifique.» * Inconformadas com essa sentença, apresentaram as RR. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: «A. A Apelação, com alteração da matéria de facto com base na prova gravada, nos termos do disposto nos Arts. 640.º, 644.º, n.º 1(a), 645.º, n.º 1(a) e 647.º, n.º 1, todos do CPC, à Sentença a fls., sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo. *** B. Devem os factos considerados provados sob os pontos F) e G) ser julgados como não provados e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva as Rés dos pedidos. Com efeito, C. A Autora confirmou, nas suas declarações de parte, tal como a testemunha DD, que a Ré BB lhe referiu telefonicamente “não sabes o que compraste?”. Cfr. sessão de julgamento de 11.01.2024, às 10:45 (testemunha DD) e às 11:20 (declarante). Ou seja, resulta da prova produzida que a Autora não desconhecia a situação jurídica e de facto do prédio que comprara. D. Mais. A Autora afirmou que tinha medo de entrar na habitação que comprou, dado o estado de degradação em que se encontrava. Cfr. sessão de julgamento de 11.01.2024, às 11:16 (declarante). E. A Autora reside em frente do prédio que adquiriu e que é objecto dos presentes autos – cfr. morada identificada na PI a fls.. Nesse sentido, é inverosímil que, ao contrário dos fiscais municipais, não tenha identificado a edificação visível da rua. É igualmente inverosímil que, ao contrário dos vizinhos, a Autora não tenha reparado no barulho típico de obras de construção civil no prédio que se encontra à sua frente – mais a mais que impliquem a edificação de uma parede por forma a ampliar o existente e a colocação de uma cobertura. É tudo visível do exterior (conforme atestado pelos fiscais municipais), ao contrário do afirmado nas declarações de parte da Autora. *** F. Sem prejuízo, não resulta dos autos que a Autora teria perdido interesse no negócio caso tivesse tido conhecimento que teria que promover o licenciamento das obras do prédio. Com efeito, não se demonstrou para que finalidade a Autora pretendia o imóvel quando o comprou, nem que carecia de licença para o efeito. Nem se provou que as Rés não foram notificadas pelos Serviços da Câmara para repor o existente ou demolir qualquer construção. G. Pelo contrário, o que se demonstrou é que foi o comprador do prédio da Autora que lhe exigiu a regularização do licenciamento através da apresentação de projecto junto da Câmara (pois procurava executar obras de beneficiação). Ou seja, se a Autora ou o comprador do prédio desta entendeu promover o licenciamento para beneficiação do edifício, fê-lo porque assim o entendeu. H. O que resulta dos autos que a Ré BB não teria vendido o prédio por EUR 25.000,00 caso tivesse conhecimento que, além dos custos que teve com o despejo do inquilino, ainda teria que custear as despesas associadas ao licenciamento de obras que não eram responsabilidade sua. I. Configura, por isso, uma situação de abuso de direito a tentativa da Autora imputar à Ré os alegados custos que representam mais de 20% do valor recebido pelas Rés com o único e exclusivo objectivo de não limitar o seu ganho que, recorde-se, foi de 100% do preço pago – o que, naturalmente, não é permitido por lei. J. A Autora exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente, o que não pode ser consentido. Razão também pela qual deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva as Rés dos pedidos. Nestes termos e nos demais de direito que V/ Exas. doutamente suprirão, deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituida por outra que absolva as Rés dos pedidos, com todos os efeitos legais e assim se fazendo a costumada Justiça!» * A A. apresentou as suas contra-alegações a este recurso, das quais extraiu as seguintes conclusões: «I. A recorrente não cumpriu o disposto no artº 640 do C.P.C. que a obrigava a especificar, ”Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.” II. A análise crítica de toda a prova produzida – prova documental e testemunhal - resulta que a sentença recorrida efectuou correcta apreciação da prova, pelo que a decisão de considerar provados os factos constantes das alíneas F) e G) da sentença, nenhuma censura poderá merecer. III. Das doutas alegações de recurso resulta que os meios probatórios que, no entender das recorrentes, permitiria considerar não provados os factos constantes das alíneas F) e G) da sentença, se circunscrevem a uma frase reproduzida pela A./Apelante, sendo que para além de tal meio probatório nenhum outro é especificado, nomeadamente depoimentos testemunhais ou prova documental que conduzisse a conclusão diversa da que consistiu em considerar provados os referidos factos. IV. Do depoimento da testemunha DD e EE resulta – ao contrário do defendido pelas recorrentes – que a A./Apelada desconhecia a existência de obras não licenciadas e que apenas teve conhecimento das mesmas através dos compradores do imóvel. V. Das declarações de parte da A. e da prova documental junta – nomeadamente a informação enviada aos autos pelo Município ... -, resulta – ao contrário do defendido pelas recorrentes - que as R.R. sabiam da existência das obras edificadas sem licença e não a informaram disso mesmo, resultando igualmente de tais declarações que a A. só teve conhecimento da falta de licenciamento através dos compradores. VI. A douta sentença recorrida ao decidir que o facto de a A./Apelada ter vendido o imóvel pelo dobro do preço, cerca de um ano e meio depois, não permite concluir por uma desproporção grave entre os benefícios colhidos pela A./Apelada com o seu direito indemnizatório, desde logo porque se tratou de ser reembolsada de quantia que efectivamente despendeu, para além do correcto julgamento da matéria de facto, efectuou correcta interpretação e aplicação do direito, não podendo, por isso, merecer qualquer reparo. Termos em que, Deve ser negado provimento ao recurso interposto. Assim se fazendo JUSTIÇA. » * O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído. * Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelas RR. nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: - impugnação da matéria de facto, invocando o incorreto julgamento da matéria de facto, pois que deveriam «os factos considerados provados sob os pontos F) e G) ser julgados como não provados»?; - incorreto julgamento de direito [mormente invocando o Abuso do Direito por parte da A. com a pretensão que deduziu, mais concretamente que o «(…) comportamento da Autora configura uma actuação abusiva e que, por isso, não pode ser admitida pela lei»]? * 3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso terá em vista a alteração dessa factualidade. Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “Factos Provados”: «A) A A. comprou às R.R., em três de Agosto de 2020, um prédio urbano composto casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar, sito na Rua ... e Rua ..., ..., freguesia ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana da referida freguesia sob o artº. nº ...39, pelo preço de 25.000,00 €. B) Em cinco de Janeiro de 2022 a A. procedeu à venda do imóvel comprado às R.R. a EE e FF, residentes na Rua ..., ..., ... ..., pelo preço de 50.000,00 €. C) Os compradores, supra identificados, EE e FF, aquando de pedido de licenciamento para pequenas obras no imóvel adquirido à A. apresentado junto da Câmara Municipal ..., foram notificados da existência de um procedimento de contraordenação instaurado em 2018 em nome da R. BB. D) Procedimento de contraordenação que foi instaurado devido à realização de obras sem licença, designadamente a ampliação da edificação sita no 1º andar para o logradouro/alpendre confinante com a Rua ..., edificação em tijolo, vigotas de cimento e telha lusa. E) A Ré BB sabia que tinham sido realizadas obras no imóvel sem licenciamento. F) As RR procederam à venda do imóvel sem informar a A. da falta de licença de tais edificações. G) A A. só teve conhecimento da inexistência de licença das supra identificadas edificações, através dos compradores. H) Tendo de imediato entrado em contacto com as R.R. que se mostraram indisponíveis para regularizar a situação. I) Por forma a regularizar a legalidade das referidas obras, foi necessário efectuar um projecto e dar entrada na Câmara Municipal do mesmo a fim de se obter a necessária licença. J) Projecto e Licencas que tiveram de ser requeridos pelos actuais proprietários, EE e FF. K) Tendo, todos os custos necessários para o efeito sido suportados pela A. L) A A. procedeu ao pagamento das despesas necessárias para legalizar as obras descritas em D), que se traduziram em levantamento topográfico no montante de 200,00€, projecto no montante total de 4.920,00€, documentação necessária para processo de licenciamento no montante total de 151,38€, despesas estas no montante total de 5.271,38€. M) A situação causada pelas R.R. e a falta de resposta das mesmas às solicitações da A. muito preocuparam e transtornaram a A. N) Transtornos que se deveram às dificuldades financeiras que teve para efectuar os pagamentos necessários à legalização das obras no imóvel. O) Preocupação com a situação de ilegalidade na qual se viu envolvida e na incerteza dos custos e consequências que resultariam da correcta resolução do problema.» ¨¨ E o seguinte em termos de “Factos não provados”: «1) As rés realizaram as obras sem licença. 2) A R. BB foi notificada pela Câmara Municipal ... para licenciar ou demolir o edifício sem licença. 3) A Ré CC sabia que tinham sido realizadas obras no imóvel sem licenciamento.» * 3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada impugnação da matéria de facto, invocando-se o incorreto julgamento da matéria de facto, pois que deveriam «os factos considerados provados sob os pontos F) e G) ser julgados como não provados». Rememoremos, antes de mais, o teor literal respetivo, a saber: «F) As RR procederam à venda do imóvel sem informar a A. da falta de licença de tais edificações.» «G) A A. só teve conhecimento da inexistência de licença das supra identificadas edificações, através dos compradores.» Sustentam, muito em síntese, a RR./recorrentes que, em termos de prova pessoal produzida, ao contrário do sucedido, devia ter sido valorado positivamente que «(…) a Autora confirmou, nas suas declarações de parte, tal como a testemunha DD, que a Ré BB lhe referiu telefonicamente “não sabes o que compraste?”», acrescendo, quanto ao ponto constante sob “G)” que, na medida em que «(…) a Autora reside em frente do prédio que adquiriu e que é objecto dos presentes autos (…), é inverosímil que, ao contrário dos fiscais municipais, não tenha identificado a edificação visível da rua», sendo até que a «(…) Autora afirmou que tinha medo de entrar na habitação que comprou, dado o estado de degradação em que se encontrava». Que dizer? Começando pelo ponto constante sob “F)”, salvo o devido respeito, não se consegue compreender qual a concludência que se podia ou devia retirar para este efeito de a «(…) a Autora confirmou, nas suas declarações de parte, tal como a testemunha DD, que a Ré BB lhe referiu telefonicamente “não sabes o que compraste?”» Na verdade, se bem se compulsar o dito ponto constante sob “F)”, logo manifestamente resulta que o aspeto fatual nuclear que o mesmo contém é precisamente a afirmação de que a venda pelas RR. à A. teve lugar sem aquelas informarem esta da falta de licença das edificações em causa. Isto é, não está em causa a A. ter sabido ou não ter podido deixar de saber da existência das edificações, mas antes se sabia (por ter sido informada) ou não podia deixar de saber, da falta de licença dessas ditas edificações. Ora, relativamente a uma tal “informação” da falta de licença (ou evidência de que assim seria!), não apresentam as RR. qualquer prova consistente e segura de que assim aconteceu. Não bastando para o efeito, evidentemente, a invocação da frase que foi expressa pela A. na audiência, a saber, que a Ré BB lhe referiu telefonicamente “não sabes o que compraste?”… Com efeito, importa desde logo contextualizar o que é que a A. quis significar quando disse tal. Tendo-se procedido à audição integral das declarações de parte da A., constata-se que esse episódio da conversa entre a própria e a Ré BB aparece relatada mais concretamente ao minuto 6:00, sendo logo a seguir a a A. afirmar/reiterar que não lhe foi informada a dita situação da falta de licença das edificações em causa pela Ré BB (nem por maioria de razão pela co-Ré CC), com este relato querendo significar que essa pergunta retórica por parte da Ré BB [do “não sabes o que compraste?”] era para si incompreensível! Já quanto à testemunha DD, o que resulta da audição integral da gravação áudio do depoimento da mesma, mais concretamente ao minuto 5:50 em diante, é que esta testemunha relatou que a A. não sabia da dita falta de licenciamento e, agastada com a situação, entrou em contato telefónico com a Ré BB, tendo a depoente assistido à conversa, e percebido que a Ré BB, em resposta às perguntas da A., “disse-lhe apenas que ela já conhecia a casa, já conhecia a casa …”. Face a estes concretos relatos, isto é, contexto em que tiveram lugar, não vislumbramos de maneira nenhuma como acolher a pretensão da Ré de que a factualidade constante do ponto sob “F)” devia figurar como “não provada”. O que idem se diga quanto à factualidade do ponto constante sob “G)”. Com efeito, se bem compulsarmos o teor literal deste, continua a estar em causa o conhecimento/informação da A. relativamente à citada falta de licenciamento das edificações. A convicção alcançada pela Exma. Juiz de 1ª instância foi de que esse conhecimento/informação da A. proveio do que lhe foi transmitido/comunicado pelos “compradores” do imóvel à mesma. Sendo certo que confrontando a “motivação” expressa pela Exma. Juiz de 1ª instância atinente a este particular, daí consta concretamente o seguinte: «(…) A matéria factual descrita em C, G, H, I, J, H e L decorre das declarações de parte da autora que se mostram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas EE (comprador subsequente do imóvel, que descreveu de forma circunstanciada e com objectividade como soube da falta de licenciamento das obras, do contacto que teve com a autora e os procedimentos e custos necessários para regularizar a situação, bem como o pagamento integral das despesas pela autora), DD, amiga próxima da autora, que corroborou as declarações por esta prestadas, conjugadas com os documentos nº 3 (e-mail dirigindo ao réu) e 4 a 12 (que comprovam os pagamentos alegados).» Que dizer então sobre a valoração probatória feita? Quanto a nós, não existe efetivamente no nosso atual sistema jurídico-legal uma qualquer impossibilidade de ser utilizada para formar a convicção probatória sobre pontos de facto que se possam considerar “favoráveis” à parte, o que tenha resultado das “declarações de parte” da mesma. Isto sempre no quadro da livre convicção probatória – que é o paradigma do nosso sistema (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, expressamente mencionado no nº 3 do art. 466º do mesmo normativo). De referir que as “declarações da parte” podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento. Isto é, «a valoração das declarações de uma parte, que forem favoráveis a essa parte, fora do esquema típico do depoimento de parte poderá ser livremente valorada pelo julgador, ainda que com o apoio em outras presunções judiciais, ou valerá como indício ou princípio de prova, conquanto apoiado noutras provas ou em presunções naturais (presunções simples ou hominis) extraídas das regras da experiência.»[2] Não há, assim, como aprioristicamente denegar ou contrariar a potencialidade das “declarações de parte” na formação da convicção do juiz. A propósito da relevância probatória das “declarações de parte” convém ter presente a síntese constante de douto aresto, a saber: «A relevância probatória destas declarações tem sido objecto de apreciação pela doutrina e jurisprudência, salientando-se, este nível, três posições distintas, a saber: - Uma primeira que confere às declarações de parte um caracter integrativo e supletivo, no sentido de que as declarações de parte apenas podem servir de elemento de clarificação de outras provas já produzidas ou, ainda, como meio probatório supletivo quando não existam outros meios de prova acessíveis e desde que assegurado o contraditório [4]. - Uma segunda posição, que vem sendo sufragada pela maioria da jurisprudência, sustenta que as declarações de parte constituem um princípio de prova e, nesse contexto, por princípio, não são bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo coadjuvar a prova desde que em conjugação com outros elementos de prova. [5] Como assim, segundo esta outra corrente, em condições normais e por princípio, as declarações de parte, ainda que livremente valoradas pelo tribunal, não podem servir de sustento à prova de factos favoráveis ao próprio declarante, salvo quando acompanhadas de outros meios de prova que os corroborem. - Uma terceira posição defende a auto-suficiência e o valor autónomo das declarações de parte, com o sentido de que as declarações de parte devem ser valoradas de forma livre pelo tribunal e, nesse contexto, nada obsta a que a mesmas, ainda que não se encontrando corroboradas por outros meios de prova, sejam consideradas como meio bastante à demonstração de factos favoráveis ao declarante, desde que as mesmas se revistam de credibilidade bastante para esse efeito. [6] (…) [4] Vide, neste sentido, por todos, J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “CPC Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 309 e PAULO PIMENTA, “Processo Civil Declarativo “, 2015, pág. 357. [5] Vide, neste sentido, por todos, CAROLINA HENRIQUES MARTINS, “Declarações de Parte”, UC, 2015, pág. 58 (citada por L. FILIPE PIRES de SOUSA, “Direito Probatório Material”, 2ª edição, pág. 290-291), MARIA dos PRAZERES BELEZA, “A Prova por Declarações de Parte”, in II Congresso de Processo Civil, 2014, pág. 21 e, na jurisprudência, por todos, AC RP de 26.06.2014, relator ANTÓNIO JOSÉ RAMOS, AC RP de 23.03.2015, relator JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA e AC RP de 20.06.2016, relator MANUEL FERNANDES, todos disponíveis in www.dgsi.pt [6] Vide, neste sentido, por todos, L. FILIPE PIRES de SOUSA, op. cit., pág. 295, ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa?”, in Julgar Especial, Prova Dificil, 2014, pág. 36 e, ainda, na jurisprudência, AC RG de 4.04.2019, relator MARIA JOÃO MATOS, AC RL de 26.04.2017, relator LUÍS SOUSA, AC STJ 7.02.2019, relator ROSA RIBEIRO COELHO, AC STJ de 11.07.2019, relator BERNARDO DOMINGOS, todos disponíveis in www.dgsi.pt»[3] Salvo o devido respeito, do nosso quadro legal resulta que as “declarações” são e devem ser apreciadas livremente pelo tribunal (cf. 466º, nº 3, do citado n.C.P.Civil), donde, nessa apreciação, em função da credibilidade que as mesmas possam merecer, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar, ainda que favorável ao declarante. Não obstante o vindo de dizer, e tomando partido face às distintas posições supra enunciadas, tendemos a considerar que, sem olvidar um juízo de liberdade de apreciação casuística pelo tribunal, as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentam, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar. Ora é por assim ser que em nosso entender não existiu qualquer erro de julgamento pelo tribunal a quo quanto a este particular. Na verdade, a nosso ver, dúvidas não existem de que as “declarações de parte” [que, diga-se, divergem do “depoimento de parte”], se devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado, na circunstância mostraram-se perfeitamente corroboradas pelo depoimento da testemunha EE e também, em alguma medida, pelo depoimento da testemunha DD. Sendo certo que, em contraponto, não se vislumbra qualquer concludência no sentido do conhecimento/informação por parte da A. relativamente à dita falta de licença das edificações, atenta a circunstância de esta eventualmente conhecer ou saber da existência das edificações! Donde, nada haver que censurar à convicção do Tribunal de 1ª instância que concluiu pela prova destes factos em análise. * 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Cumpre agora entrar na apreciação da segunda e última questão igualmente supra enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido incorreto julgamento de direito [mormente invocando o Abuso do Direito por parte da A. com a pretensão que deduziu, mais concretamente que o «(…) comportamento da Autora configura uma actuação abusiva e que, por isso, não pode ser admitida pela lei»] Cremos que a resposta a esta questão se constitui como linear e inabalável. Desde logo porque tendo sido improcedente a impugnação à decisão sobre a matéria de facto pretendida pelas RR./recorrentes, que consistia na negativa de que as RR. não tivessem informado a A., antes da venda, da falta de licença das edificações existentes no imóvel, seria porventura mais admissível e/ou defensável a invocação de que a instauração da presente ação por parte da A., com a pretensão indemnizatória trazida a juízo pela mesma, configurasse eventualmente uma atuação abusiva. Com efeito, a procedência que foi dada à pretensão indemnizatória da A./compradora assentou liminarmente na invocada e positiva não informação pelas RR./vendedoras da falta de licença das edificações existentes no imóvel objeto da venda. Pelo que entendemos estar só por aí fatalmente votado ao insucesso o sustentado neste enquadramento. Sem embargo do vindo de dizer, e à luz do Abuso do Direito, constata-se que a sentença recorrida efetuou o seguinte enquadramento jurídico: «(…) Para neutralizar o direito da autora, invocam as rés o abuso de direito, na vertente de desequilíbrio, alegando que a autora alienou o imóvel pelo dobro do preço, lucrando 25.000,00 € Estabelece o art. 334º do CC que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. “2- Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).” 3– À luz deste instituto jurídico deve ficar impedido o exercício do direito do A. – de demolição da parede da casa de habitação dos RR. a poente, bem assim a reposição do muro/parede divisória pré-existente e restituição da faixa de terreno do prédio do A. com a construção ocupada – por se constatar um desequilíbrio grave entre o beneficio que da procedência dessa pretensão poderia advir para o titular exercente (o A.) e o correspondente sacrifício que é imposto aos aqui RR. pelo exercício de tal direito.” – Ac. RC de 09.01.2027, proc. 102/11.8TBALD.C2 Ora, a mera circunstância da autora ter vendido o imóvel pelo dobro do preço cerca de um ano e meio depois, não permite concluir por uma desproporção grave entre os benefícios recolhidos pela autora com o exercício do seu direito indemnizatório e os sacrifícios impostos às rés, desde logo porque se trata de ser reembolsada de quantia que efectivamente despendeu. Não é, pois, possível concluir que a autora tenha excedido os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, pelo que improcede a excepção invocada. » Que dizer? Salvo o devido respeito, não vislumbramos como dissentir desta linha de entendimento. Consabidamente são várias as figuras que a doutrina reconduz à matriz do abuso do direito (exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício).[4] As RR./recorrentes, tanto quanto é dado perceber, invocam o desequilíbrio no exercício que contempla[5], três sub-hipóteses: a) o exercício danoso inútil em que o objetivo é provocar danos a outrem; b) a actuação doloso daquele que exige a outrem o que tem e lhe restituir de seguida; Será, então à luz desta última modalidade que deverá ser equacionada a situação em apreço, isto na medida em que na sentença recorrida se sustentou o entendimento de que «(…) a mera circunstância da autora ter vendido o imóvel pelo dobro do preço cerca de um ano e meio depois, não permite concluir por uma desproporção grave entre os benefícios recolhidos pela autora com o exercício do seu direito indemnizatório e os sacrifícios impostos às rés», sendo que as RR./recorrentes sustentam a sua discordância quanto a este particular. Para tanto invocam enfaticamente as RR./recorrentes que a «Autora ganhou o dobro do que dispendeu em pouco mais de um ano e meio. Tal comportamento da Autora configura uma actuação abusiva e que, por isso, não pode ser admitida pela lei», concretizando com a alegação de que «O que resulta dos autos que a Ré BB não teria vendido o prédio por EUR 25.000,00 caso tivesse conhecimento que, além dos custos que teve com o despejo do inquilino, ainda teria que custear as despesas associadas ao licenciamento de obras que não eram responsabilidade sua. Pouco faltava para o prédio ter sido dado!! Configura, por isso, uma situação de abuso de direito a tentativa da Autora imputar à Ré os alegados custos que representam mais de 20% do valor recebido pelas Rés com o único e exclusivo objectivo de não limitar o seu ganho que, recorde-se, foi de 100% do preço pago – o que, naturalmente, não é permitido por lei.» Vejamos. Em primeiro lugar, não resulta apurado/provado nos autos que as RR. tivessem tido custos com o despejo de qualquer inquilino, nem que a Ré BB não teria vendido o prédio por € 25.000,00 caso, nomeadamente, soubesse que teria de custear despesas associadas ao licenciamento de obras. Ademais, nem é correta a afirmação de que não eram a RR. as responsáveis pela legalização das obras, pois que sendo elas as proprietárias, em último termo sempre o seriam, como foram, ao serem demandadas para o efeito pela entidade autárquica competente. Finalmente, importa não olvidar decisivamente que a A. veio pedir o reembolso de quantia que efetivamente despendeu [cf. facto “provado” sob “L)”]. Ora se assim é, s.mj., manifestamente não existe uma desproporção grave e objetivamente identificável entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto. Desde logo porque não existe vantagem, muito menos injustificada, por parte da A. em reclamar o reembolso de quantia que efetivamente despendeu. Reembolso que lhe advém à luz das regras da responsabilidade civil contratual, face à ilícita atuação das RR., que, como sublinhado na sentença recorrida, «(…) não cumpriram o dever de informação que sobre elas impedia e que se insere no dever geral da boa fé negocial, pelo que agiram ilicitamente». Por outro lado, desconhecem-se – por não terem sido alegadas, nem estarem provadas! – as condições económico-financeiras das RR./recorrentes, em ordem a que se pudesse concluir positivamente no sentido de que ocorreu para elas uma “desproporção grave” [em contraponto com a vantagem para a A.] ao terem que suportar o reembolso que foi decretado. Donde, desconhecendo-se os meios económicos e patrimoniais das RR., as concretas necessidades pessoais e eventuais compromissos financeiros das mesmas, não é com razões estribadas em subjetivas avaliações sobre ganhos imobiliários, que se torna legítimo concluir por um desequilíbrio manifesto, grave, inadmissível, perante a ordem jurídica e a consciência ético-jurídica da comunidade, do reembolso de € 5.271,38 à A., com o sacrifício daí resultante para as RR.. Atente-se que de acordo com a lição de ilustre tratadista[6], o desequilíbrio no exercício corresponde a um tipo extenso e residual de atuações inadmissíveis, por abuso contrário à boa-fé, sendo que, particularmente quanto à desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por este imposto a outrem, importa não olvidar que a desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por este imposto a outrem só releva quando existe uma grande vantagem para uma pessoa à custa de outra e isso sem que se apresente uma especial justificação para tanto; deverá haver uma desconexão (uma desproporção) entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático do exercício desses direitos. Dito de outra forma: a denominação legal é a de “desproporção grave”, mas independentemente destes aspetos do “nomem iuris”, está sempre nela em causa taxar-se de abusivo o exercício do direito, sempre que a vantagem dele resultante para o titular é mínima e desproporcionada com um sacrifício severo de outrem.[7] A esta luz, se a questão era a de saber se o exercício do direito por parte da A. se revelava, no caso concreto, desproporcionado, desequilibrado, em termos que ofendiam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente, cremos não ser de concluir pela afirmativa. E assim, é forçoso concluir que a A. não excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito, inexistindo Abuso de Direito, designadamente na modalidade de desequilíbrio no exercício. Termos em que, e sem necessidade de maiores considerações, improcede fatalmente o recurso. (…) * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos. Custas nesta instância pelas RR./recorrentes. Coimbra, 24 de Setembro de 2024 Luís Filipe Cravo Fernando Monteiro Vítor Amaral
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