Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
747/13.1TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: SUBALÍN. I), DA ALÍN. B), DO N.º 3 DO ART.º 239.º DO CIRE
Sumário: I - O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, para efeitos da subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º, deve, em princípio, ser fixado no valor correspondente entre 1 e 3 salários mínimos nacionais, não impondo a lei qualquer critério objectivo que o faça corresponder a 3 salários mínimos nacionais;

II - A fixação da quantia mensal de € 500,00 como excluída do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, de insolvente que vive com 2 filhos, de 5 e 10 anos de idade, em casa dos pais e que aufere o salário mínimo nacional de € 485,00, afigura-se como correspondente ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar para efeitos de exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

Nos autos de insolvência n.º 747/13.1TBACB que A... requereu, por apresentação, em 9.4.13, no 1º Juízo do TJ de Alcobaça, solicitou em simultâneo, no respectivo requerimento, a sua exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 236.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Declarada a insolvência e após parecer favorável a esse pedido do Administrador da Insolvência e não oposição expressa do M.º P.º enquanto representante do credor Fazenda Nacional na respectiva assembleia de apreciação do relatório e tácita dos demais credores, foi proferido despacho inicial (fls. 147) a admitir o pedido e determinar que “não olvidando que o processo de insolvência visa, além do mais, a satisfação dos interesses dos credores, face ao contexto económico, profissional e familiar de A..., como sustento minimamente digno do devedor, considero adequado e proporcional fixar o valor global [mensal] de € 500,00” e “que durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível (tudo o que a devedora aufira e que exceda por mês € 500,00) se considera cedido ao fiduciário”.

Foi deste despacho, na parte em que considerou adequado como sustento minimamente digno da devedora o valor global (mensal) de € 500,00, que a insolvente recorreu, apresentando conclusões que, com utilidade, podem resumir-se nas seguintes:

a) – O agregado familiar da insolvente é composto por 3 elementos, ela própria e 2 filhos menores;

b) – A insolvente aufere actualmente a importância mensal de € 485,00;

c) – Não tem habitação própria, nem casa arrendada, vive com os filhos em casa de seus pais;

d) – Para além das despesas de alimentação, higiene, vestuário, saúde e educação dos filhos, a insolvente tem um gasto mensal fixo de cerca de € 100,00 com a contribuição para a pré-primária e centro de dia de seus filhos;

e) – Tem ainda gastos com a saúde destes, porque ambos têm problemas de visão, num encargo anual de € 750,00;

f) – O critério a usar pelo julgador na determinação do sustento minimamente digno é o da dignidade da pessoa humana, o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos);

g) – Nessa fixação o juiz atenderá não só às necessidades básicas do devedor, mas também do seu agregado familiar;

h) – O rendimento mensal de € 500,00 excluído da cessão é manifestamente insuficiente para fazer face às necessidades básicas do devedor e do seu agregado familiar;

i) – Para que a apelante e seu 2 filhos vivam com alguma dignidade são necessários 3 salários mínimos nacionais;

j) – O despacho recorrido violou o disposto no n.º 3, alín. b), do art.º 239.º do CIRE, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que considere, em vez do valor fixado, a importância correspondente a 3 salários mínimos nacionais

Não houve lugar a resposta.

            Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo que a questão a apreciar é somente saber:

            - Se o sustento minimamente digno da devedora recorrente e do seu agregado familiar a que alude a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE se basta com o montante mensal fixado de € 500,00, ou seja, o correspondente a montante ligeiramente superior a 1 salário mínimo nacional, ou exige, antes, o equivalente a 3 salários mínimos nacionais.

*

            2. Fundamentação

            2.1. De facto

            Embora não expressamente elencados pela 1.ª instância, seja da sentença que decretou a insolvência, seja do relatório do administrador da insolvência, seja ainda dos documentos juntos (certidões de fls. 21 a 30 e fotocópia de fls. 31), podem recortar-se como provados os seguintes factos:

a) – A insolvente A..., nascida em 21.5.74, solteira, tem 2 filhos menores a seu cargo, um nascido em 28.2.03 e outro em 19.2.08;

b) – Encontra-se separada do pai dos menores e vive com estes em casa de seus pais, que não lhe cobram qualquer quantitativo de renda;

c) – Aufere como empregada de balcão o salário mensal de € 485,00, esse sendo o único rendimento com que faz face às suas despesas e dos filhos menores;  

d) – O montante do seu passivo, enquanto exploradora de um bar, é superior à importância de € 200.000,00;

e) – O pai dos menores ficou obrigado ao pagamento a estes da pensão mensal alimentícia no valor inicial de € 600,00 e depois € 400,00 que, todavia, não cumpre.

*

            2.2. De direito

            Seguindo aqui de perto o que a propósito de idêntico caso relatámos no acórdão desta Relação e subscrito pelos mesmos Ex.mos Adjuntos[1], de acordo com o disposto no art.º 235.º do CIRE a exoneração do passivo restante consiste na concessão de uma exoneração de créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no respectivo processo ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

            Visa a extinção das dívidas e concessão de uma nova oportunidade à pessoa singular que caia em situação de insolvência de recomeçar vida nova ao fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do respectivo processo, denominado período da cessão.

            Como salienta Assunção Cristas[2], os 5 anos assemelhar-se-ão a um purgatório: durante ele o devedor terá que ir pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado (art.º 239.º, n.º 2, 3 e 4, do CIRE), considerando a lei esse período para ocorrer o perdão de molde a facultar, então, ao devedor uma nova oportunidade.

            É um prazo fixo estabelecido em benefício dos credores e entendido pelo legislador como o adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos.[3]

            Subjacente ao instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção, para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes.

            O insolvente ao longo dos 5 anos irá somente dispor de um rendimento que lhe assegure o “sustento minimamente digno” para si e seu agregado familiar, para o que eventualmente o fará mudar de hábitos de vida e de consumo, de acordo com a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, sendo o restante rendimento disponível entregue a um fiduciário para posterior distribuição pelos credores (art.º 241.º n.º 1, alín. d) do CIRE).

            Os credores, findo esse prazo, se não receberem, entretanto, a totalidade do crédito (com o que cessaria antecipadamente o procedimento de exoneração – n.º 4 do art.º 243.º do CIRE), receberão o possível, nada mais podendo exigir, do devedor, a partir daí.

            A lei não define o que possa entender-se com o conceito aberto de “sustento minimamente digno”, com o valor máximo legal equivalente, em princípio, a 3 salários mínimos nacionais, podendo-se considerar o seu mínimo como o valor correspondente a 1 salário mínimo nacional, enquanto limite mínimo para assegurar, em nome da dignidade da pessoa humana, as condições básicas essenciais.

            Ora, é, pois, entre esses limites que, em princípio, deve ser encontrado o valor correspondente ao sustento minimamente digno, não comportando nem a letra, nem o espírito da lei um critério objectivo que o faça corresponder, fixamente, a 3 vezes o salário mínimo nacional, como contraditoriamente a recorrente sustenta nas suas alegações de recurso.[4]

            Há que reconhecer que o período da cessão é ele próprio um período de constrangimento e para o devedor chegar a um ciclo de vida mais auspicioso terá de fazer, durante 5 anos (ou menos, se entretanto forem satisfeitos os créditos), aquela travessia pelo “purgatório”, para usar a sugestiva expressão da autora acima citada.

            Há que ter presente, por outro lado que, contrariamente ao que parece estar a implantar-se em certa opinião, o processo de insolvência e o procedimento da exoneração do passivo não se destinam a melhorara a vida dos devedores, a perdoar as suas dívidas, sem mais!..

            Destina-se a satisfazer um compromisso entre devedor e credor ou credores, com sacrifícios para ambas as partes, como já referimos.

            E, daí, que na determinação daquele “sustento minimamente digno” não haja, desde logo, que abater todas as despesas do agregado familiar, sob pena de nenhum rendimento disponível haver para ceder. Apenas aquelas que se prendam com a subsistência económica do devedor e agregado familiar, o que implica abdicar, espartanamente, muito do consumismo que antes da insolvência eventualmente se tinha!

            No caso em apreço é certo que a recorrente dispõe do salário mínimo nacional para o seu sustento e dos 2 filhos menores, embora tenha a ajuda dos pais, com quem vive.

            É uma situação, essa, contudo, cada vez mais comum.

            Mas há aqui um pormenor que também não é despiciendo. O facto de a recorrente não estar a receber a pensão alimentícia devida pelo outro progenitor aos filhos menores, não significa isso que essa dívida haja de repercutir-se sobre os credores da insolvência através da sua exclusão do rendimento disponível.

            Bem poderia ou poderá a recorrente lançar mão do cumprimento coercivo de tais prestações (art.ºs 181.º, n.º 1 e 189.º, da OTM) ou, frustrando-se essa possibilidade, socorrer-se do seu pagamento pelo Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (art.º 1.º e ss da Lei n.º 75/98, de 19.11).

            Como ao montante salarial auferido pela devedora acrescerão, em termos de normalidade, os correspondentes abonos de família.

            Seja como for, o facto de a insolvente ter a cargo 2 crianças, uma de 5 e outra de 10 anos, de idade, com as inerentes e normais despesas em alimentação, educação, vestuário e saúde, não altera substancialmente a dimensão do sustento minimamente digno inerente ao salário mínimo nacional, sendo que o montante que foi fixado o ultrapassa, montante esse, de resto, superior ao concreto salário auferido no presente pela devedora, que com ele vive!

            Ora, aqui chegados, não merece censura o despacho recorrido que, atendendo ao contexto económico, profissional e familiar da recorrente foi além do mínimo garantido e fixou em montante, ainda que ligeiramente, superior a 1 salário mínimo nacional, o valor adequado ao sustento minimamente digno da insolvente e seu agregado familiar.[5]

            Eis por que, não violando a decisão recorrida qualquer preceito legal, v. g., o invocado n.º 3, alín. b), do art.º 239.º do CIRE, soçobram as conclusões recursivas.

*

3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I - O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, para efeitos da subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º, deve, em princípio, ser fixado no valor correspondente entre 1 e 3 salários mínimos nacionais, não impondo a lei qualquer critério objectivo que o faça corresponder a 3 salários mínimos nacionais;

II - A fixação da quantia mensal de € 500,00 como excluída do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, de insolvente que vive com 2 filhos, de 5 e 10 anos de idade, em casa dos pais e que aufere o salário mínimo nacional de € 485,00, afigura-se como correspondente ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar para efeitos de exoneração do passivo restante.

*

            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.

***
Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

 Ferreira Lopes


[1] Ac. de 29.5.12, Proc. 4304/10.6TBLRA.C1, in www.dgsi.pt
[2] “Exoneração do Passivo Restante”, Themis, 2005, pág. 167.
[3] V. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE, Anot.”, 2008, pág. 787.
[4] V., neste sentido, os Acs. desta Relação de 20.4.10, Proc. 1426/08.7TBILH-F.C1, 13.12.11, Proc. 1769/11.2TJCBR-B.C1 e 10.6.12, Proc. 3244/11.6TJCBR-F.C1, in www.dgsi.pt.
[5] De acordo com o DL n.º 143/10, de 31.12, esse valor, com mais propriedade denominado valor da retribuição mínima mensal garantida foi para os anos de 2011 e 2012 e, tudo o indica, 2013, de € 485,00.