Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | VÍTOR AMARAL | ||
Descritores: | HIPOTECA EXTINÇÃO PRESCRIÇÃO INÍCIO DA PRESCRIÇÃO ABUSO DE DIREITO | ||
Data do Acordão: | 01/26/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL RECURSO: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.308 Nº1 E 2, 334, 686, 730 B) CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | 1. - O prazo de vinte anos de prescrição da hipoteca, previsto no art.º 730.º, al.ª b), do CCiv., conta-se a partir do registo da primeira aquisição a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, ainda que este tenha depois transmitido a outrem e seja um sub-adquirente a invocar a prescrição da garantia, e não a partir da data do registo de aquisição pelo sub-adquirente que invoque a prescrição. 2. - Na norma aludida, o legislador procedeu à ponderação dos interesses em presença, optando pela proteção do interesse do terceiro adquirente, subalternizando, por consequência, o contraposto interesse do credor. 3. - Se aquela norma logo protege diretamente o terceiro adquirente do prédio hipotecado, os seus sub-adquirentes encontram-se protegidos por ingressarem, por transmissão, no direito que àquele cabia, ocupando a posição do seu transmitente (com os inerentes benefícios e ónus), valendo de pleno as regras da aquisição derivada. 4. - Não incorre em abuso do direito, por comportamento contraditório, o sub-adquirente que invoca a prescrição da hipoteca, com referência à data do registo de aquisição pelo primitivo terceiro adquirente, sabendo, ao tempo da sua aquisição, que a garantia se encontrava vigente, razão pela qual ficou exarado na escritura que o imóvel era transmitido livre de ónus ou encargos e que cabia ao transmitente proceder ao respetivo cancelamento. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
*** I – Relatório W (…) e marido, P (…), com os sinais dos autos, intentaram ação declarativa que prossegue os seus termos sob a forma de processo comum ([1]) contra 1.º - Município de Ó(…) e 2.º - “Banco (…) S. A.”, estes também com os sinais dos autos, alegando por modo a concluir pela procedência da ação e, assim, peticionando que seja declarada a prescrição de três hipotecas – que melhor identificaram, incidentes sobre um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Ó(…) – e o respetivo cancelamento, as quais oneram um prédio adquirido pelos AA. em 24/07/2012, sendo as duas primeiras a favor do Banco R. e a terceira a favor do R. Município, designadamente, por estarem consolidadas, há mais de dez anos, as obrigações que visavam garantir e por decurso do prazo de 20 anos, contado a partir do registo da primeira aquisição do imóvel a favor de um terceiro ([2]). Citados os RR., veio o Município de Ó(…): a) Formular contestação, impugnando diversa factualidade alegada pela contraparte e pugnando pela contagem do prazo de prescrição de vinte anos apenas a partir da data de aquisição pelo terceiro adquirente que invoque a respetiva exceção ([3]), no caso, os AA., que adquiriram em 24/07/2012, assim concluindo pela improcedência do pedido destes; b) Deduzir reconvenção, pretendendo manifestar, junto dos AA., a sua intenção de exercer o direito garantido pela hipoteca a seu favor, devendo, por isso, considerar-se interrompido o prazo de prescrição daquela hipoteca, termos em que pediu, na via reconvencional, que seja declarada, relativamente aos AA., a interrupção do prazo prescricional respetivo. Em réplica, os AA. vieram pugnar pela improcedência do pedido reconvencional e pela procedência da ação, reiterando a argumentação expendida na petição inicial. Os AA. vieram desistir do pedido quanto ao R. “Banco (…) S. A.”, desistência essa que foi homologada por sentença. Dispensada, sem oposição das partes, a audiência prévia, na perspetiva do conhecimento de meritis, e admitida a reconvenção, foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo: «I. Julga-se a presente ação procedente quanto ao pedido dirigido contra o réu Município de Ó(…) e declara-se a extinção, por prescrição, da hipoteca voluntária, a favor dele, que incide sobre o prédio urbano sito no (…) freguesia de (…), concelho de Ó(…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ó(…) sob o nº 8(…)/19911118 e inscrito na matriz sob o artigo 1(…), registada pela inscrição resultante da AP. 23 de 1987/04/29, mais se determinando o respetivo cancelamento. II. Julga-se improcedente o pedido reconvencional do identificado réu, dele absolvendo os autores.» (cfr. fls. 155 e v.º do processo físico). Inconformado com o assim decidido, vem o R. Município interpor o presente recurso, apresentando alegação respetiva e as seguintes Conclusões ([4]) (…) Contra-alegou a parte recorrida, pugnando pela improcedência da impugnação e decorrente manutenção da decisão sob recurso. * O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados. Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir, à luz do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([5]). * II – Âmbito do Recurso Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente apelação saber ([6]): a) Se ocorre insuficiência da matéria de facto dada como provada, implicando aditamento fáctico com base em prova documental (conclusões 21 e 28); b) Se o Tribunal a quo errou na interpretação da norma jurídica do art.º 730.º, al.ª b), do CCiv. (conclusões 8 a 20); c) Se deve ter-se por verificada causa interruptiva da prescrição – assunção/reconhecimento (conclusão 39); d) Se os AA./Apelados incorreram em exercício abusivo do direito (conclusões 32 e 40). * III – Fundamentação A) Da necessidade de aditamento fáctico, com alteração da decisão da matéria de facto Como visto, invoca o Apelante ocorrer insuficiência da materialidade fáctica dada como provada, pugnando, por isso, por um aditamento fáctico, fundando-se em prova documental junta aos autos (conclusões 21 e 28), matéria que cabe começar por apreciar. É o seguinte o facto considerado em falta: «Através da escritura pública de compra e venda outorgada em 24/07/2012, os autores declararam conhecer a hipoteca a favor do R. Município, declararam comprar com tal hipoteca em vigor e convencionaram o seu cancelamento ulterior a realizar nos termos clausulados nessa escritura.». Sustenta-se o Recorrente, no plano probatório, no «DOC. Nº 3 junto com a Petição Inicial», tratando-se, assim, do documento de fls. 21 a 25 do processo físico, referente a escritura pública de “COMPRA E VENDA”, datada de 24/07/2012, a que também alude o ponto 4 dos factos dados como provados. Ali os AA. declararam, como segundos outorgantes (compradores), que “aceitam a presente venda nos termos exarados”, o que fizeram após a primeira outorgante (declarante vendedora) ter declarado vender-lhes, através de tal escritura, «livre de ónus ou encargos, o prédio urbano (…)», sobre o qual «incidem três hipotecas, duas a favor da U (…), E.P., registadas pelas inscrições resultantes das Ap. 3 de 1986/09/24 (de 3443/3550 avos) e Ap. 4 de 1987/05/07, e uma a favor do MUNICÍPIO DE Ó(…), registada pela inscrição resultante da Ap. 23 de 1987/04/29 (doravante também designadas abreviadamente e em conjunto por “HIPOTECAS”), cujo cancelamento declara encontrar-se assegurado», tendo ainda declarado que «se obriga a diligenciar pelo cancelamento das HIPOTECAS até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze, sem prejuízo de, sendo necessário recorrer à via judicial, o referido prazo poder ser alargado pelo prazo necessário para a conclusão do respectivo procedimento judicial (…)» e, bem assim, que, «caso o cancelamento das HIPOTECAS não ocorra até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze ou, no caso de a PRIMEIRA OUTORGANTE recorrer à via judicial para o cancelamento das HIPOTECAS, as mesmas não estejam canceladas no prazo máximo de cinco anos após a propositura da respectiva acção judicial, os SEGUNDOS OUTORGANTES têm direito a fazer sua a totalidade da quantia que se encontre depositada, nessa data, na Conta 1, ficando os SEGUNDOS OUTORGANTES, desde já, pela presente escritura, autorizados a solicitar ao Banco indicado a transferência daquele montante para uma conta titulada por qualquer um dos SEGUNDOS OUTORGANTES, sem que o banco ou a PRIMEIRA OUTORGANTE se possam opor a essa transferência», tal como que «será responsável por quaisquer custos, seja de que natureza forem, que seja necessário incorrer com o cancelamento das HIPOTECAS e respectivo registo, bem como manterá os SEGUNDOS OUTORGANTES indemnes de quaisquer danos e/ou prejuízos que possam decorrer da existência das HIPOTECAS, incluindo, mas não se limitando a, à sua execução pelos respectivos beneficiários» e ainda que «se obriga a informar os SEGUNDOS OUTORGANTES, mensalmente, das diligências efectuadas, a cada momento, tendo em vista o cancelamento das HIPOTECAS». Ora, nada obstando a que esta factualidade, provada documentalmente (por via de documento autêntico), integre o elenco de factos apurados, como pretende o Recorrente, será a mesma transposta, em aditamento, para a factualidade provada – posto também poder relevar para apreciação da questão do invocado abuso do direito –, com acréscimo, pois, de um novo número e o seguinte teor: «10. Na escritura pública aludida em 4. ficou a constar que: a) Os aqui AA. declararam, como segundos outorgantes (compradores), que “aceitam a presente venda nos termos exarados”, o que fizeram após a primeira outorgante (declarante vendedora) ter declarado vender-lhes, através de tal escritura, «livre de ónus ou encargos, o prédio urbano (…)», sobre o qual «incidem três hipotecas, duas a favor da U (…), E.P., registadas pelas inscrições resultantes das Ap. 3 de 1986/09/24 (de 3443/3550 avos) e Ap. 4 de 1987/05/07, e uma a favor do MUNICÍPIO DE Ó(…), registada pela inscrição resultante da Ap. 23 de 1987/04/29 (doravante também designadas abreviadamente e em conjunto por “HIPOTECAS”), cujo cancelamento declara encontrar-se assegurado» b) Tendo ainda declarado aquela primeira outorgante que «se obriga a diligenciar pelo cancelamento das HIPOTECAS até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze, sem prejuízo de, sendo necessário recorrer à via judicial, o referido prazo poder ser alargado pelo prazo necessário para a conclusão do respectivo procedimento judicial (…)» e, bem assim, que, «caso o cancelamento das HIPOTECAS não ocorra até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze ou, no caso de a PRIMEIRA OUTORGANTE recorrer à via judicial para o cancelamento das HIPOTECAS, as mesmas não estejam canceladas no prazo máximo de cinco anos após a propositura da respectiva acção judicial, os SEGUNDOS OUTORGANTES têm direito a fazer sua a totalidade da quantia que se encontre depositada, nessa data, na Conta 1, ficando os SEGUNDOS OUTORGANTES, desde já, pela presente escritura, autorizados a solicitar ao Banco indicado a transferência daquele montante para uma conta titulada por qualquer um dos SEGUNDOS OUTORGANTES, sem que o banco ou a PRIMEIRA OUTORGANTE se possam opor a essa transferência», tal como que «será responsável por quaisquer custos, seja de que natureza forem, que seja necessário incorrer com o cancelamento das HIPOTECAS e respectivo registo, bem como manterá os SEGUNDOS OUTORGANTES indemnes de quaisquer danos e/ou prejuízos que possam decorrer da existência das HIPOTECAS, incluindo, mas não se limitando a, à sua execução pelos respectivos beneficiários» e ainda que «se obriga a informar os SEGUNDOS OUTORGANTES, mensalmente, das diligências efectuadas, a cada momento, tendo em vista o cancelamento das HIPOTECAS». Procede, assim, esta vertente da impugnação recursiva.
B) Matéria de facto a considerar 1. - A factologia considerada como assente na decisão recorrida é a seguinte: «1. Por escritura de compra e venda outorgada, em 09.10.1992, no 1º Cartório Notarial de Santarém, R (…) e S (…) declararam vender a H (…), que declarou comprar, o prédio urbano sito no (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ó(…) sob o nº 8(…)/19911118 e inscrito na matriz sob o artigo 1(…) (documento 1 junto com a petição inicial). 2. Tal aquisição foi inscrita no respetivo registo predial através da AP. 3 de 1992/11/12 (documento 2 junto com o mesmo articulado). 3. Por Ap. 3159 de 2012/03/09, foi inscrita a aquisição do referido prédio, por sucessão testamentária, a favor de H (…) (mesmo documento 2). 4. Por escritura pública de 24.07.2012, outorgada no Cartório Notarial de (…) a cargo da Notária (…), H (…) declarou vender o identificado imóvel aos aqui autores, que declararam aceitar a venda, tendo o marido da primeira declarado prestar o seu consentimento para a mesma (conforme documento 3 junto com a petição inicial). 5. A aquisição a favor dos autores foi inscrita no respetivo registo predial por AP. 2786 de 2012/07/24 (citado documento 2). 6. O prédio a que se vem aludindo integra o loteamento que se mostra registado pela inscrição Ap. 22 de 1987/04/29 (documento 2). 7. E, para o mesmo, foi emitida, em 17.04.1990, pela Câmara Municipal de Ó(…), o alvará de licença de utilização nº 27. 8. Incide, sobre o referido prédio, uma hipoteca voluntária a favor o aqui réu Município de Ó(…), com o capital de Esc.30.000.000,00 (correspondendo, na moeda atual, a €149.639,37), para garantia de uma caução destinada a assegurar a execução de obras de infraestruturas e urbanização, registada pela inscrição resultante da AP. 23 de 1987/04/29 (documento 2). 9. As obras aludidas em 8. foram concluídas em data anterior a 25.07.2008, tendo o aqui réu Município de Ó(…) certificado, em 24.09.2008, que, na sequência da execução coerciva das mesmas obras, era credor da quantia de €1.333.204,97 (documento 1 junto com a contestação).» ([7]). 2. - A esta factualidade adita-se o seguinte: «10. Na escritura pública aludida em 4. ficou a constar que: a) Os aqui AA. declararam, como segundos outorgantes (compradores), que “aceitam a presente venda nos termos exarados”, o que fizeram após a primeira outorgante (declarante vendedora) ter declarado vender-lhes, através de tal escritura, «livre de ónus ou encargos, o prédio urbano (…)», sobre o qual «incidem três hipotecas, duas a favor da U (…), E.P., registadas pelas inscrições resultantes das Ap. 3 de 1986/09/24 (de 3443/3550 avos) e Ap. 4 de 1987/05/07, e uma a favor do MUNICÍPIO DE Ó(…), registada pela inscrição resultante da Ap. 23 de 1987/04/29 (doravante também designadas abreviadamente e em conjunto por “HIPOTECAS”), cujo cancelamento declara encontrar-se assegurado» b) Tendo ainda declarado aquela primeira outorgante que «se obriga a diligenciar pelo cancelamento das HIPOTECAS até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze, sem prejuízo de, sendo necessário recorrer à via judicial, o referido prazo poder ser alargado pelo prazo necessário para a conclusão do respectivo procedimento judicial (…)» e, bem assim, que, «caso o cancelamento das HIPOTECAS não ocorra até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e doze ou, no caso de a PRIMEIRA OUTORGANTE recorrer à via judicial para o cancelamento das HIPOTECAS, as mesmas não estejam canceladas no prazo máximo de cinco anos após a propositura da respectiva acção judicial, os SEGUNDOS OUTORGANTES têm direito a fazer sua a totalidade da quantia que se encontre depositada, nessa data, na Conta 1, ficando os SEGUNDOS OUTORGANTES, desde já, pela presente escritura, autorizados a solicitar ao Banco indicado a transferência daquele montante para uma conta titulada por qualquer um dos SEGUNDOS OUTORGANTES, sem que o banco ou a PRIMEIRA OUTORGANTE se possam opor a essa transferência», tal como que «será responsável por quaisquer custos, seja de que natureza forem, que seja necessário incorrer com o cancelamento das HIPOTECAS e respectivo registo, bem como manterá os SEGUNDOS OUTORGANTES indemnes de quaisquer danos e/ou prejuízos que possam decorrer da existência das HIPOTECAS, incluindo, mas não se limitando a, à sua execução pelos respectivos beneficiários» e ainda que «se obriga a informar os SEGUNDOS OUTORGANTES, mensalmente, das diligências efectuadas, a cada momento, tendo em vista o cancelamento das HIPOTECAS».
C) Aspeto jurídico do recurso 1. - Da errada interpretação da norma do art.º 730.º, al.ª b), do CCiv. (conclusões 8 a 20) Na decisão recorrida venceu o entendimento no sentido de dever o prazo de prescrição da hipoteca – com previsão no art.º 730.º, al.ª b), do CCiv. – contar-se a partir do registo da primeira aquisição a favor do terceiro adquirente do prédio hipotecado (como pretendido pelos AA./Recorridos) e não a partir do registo da data de aquisição pelo terceiro adquirente que invoque tal prescrição (como defende o R./Apelante). Dispõe o art.º 730.º, al.ª b), do CCiv. que a hipoteca se extingue por prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação. Esgrimiu-se no saneador-sentença ora impugnado que «(…) o legislador optou pela consagração, entre as demais causas de extinção da hipoteca, da sua prescrição a favor do adquirente do prédio hipotecado – sucedendo que aqui a prescrição não incide sobre a obrigação principal, mas atinge diretamente a hipoteca –, sendo, portanto, aplicáveis as regras gerais do instituto da prescrição. E estabelece dois prazos cumulativos para a prescrição: o de vinte anos a partir do registo da aquisição do prédio e o de cinco anos a partir do vencimento da obrigação, sendo o decurso de qualquer deles, de per si, irrelevante.». Para depois se adiantar, à luz da disposição conjugada do art.º 308.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv. ([8]): «Aplicando o sentido (e o espírito) de tal norma ao específico caso da prescrição da hipoteca previsto na norma inserta na citada alínea b) do artigo 730º, pensa-se (…) assistir razão aos autores, não podendo deixar de se entender que, uma vez registada a aquisição do prédio hipotecado a favor de um terceiro, passa a correr o aludido prazo de prescrição, que continua em curso no caso de transmissão do seu direito de propriedade a outro terceiro. Assim, por força do disposto no citado artigo 308º do Código Civil, entende-se que o prazo de 20 anos de prescrição da hipoteca se iniciou com o registo da primeira aquisição do prédio hipotecado a favor de terceiro, sem que as posteriores transmissões do respetivo direito de propriedade hajam inutilizado o prazo anteriormente decorrido e aproveitando este aos ulteriores adquirentes. Na decorrência desse entendimento e na ausência de causa interruptiva ou suspensiva da prescrição – cuja invocação incumbia ao réu –, julga-se estarem integralmente decorridos ambos os prazos cumulativos previstos no mencionado artigo 730º, alínea b), e, consequentemente, extinta, por prescrição, a hipoteca melhor identificada sob o facto provado 8.». Ora, como referem Pires de Lima e Antunes Varela ([9]), «(…) a prescrição, em vez de incidir sobre a obrigação principal, pode atingir directamente a hipoteca. (…) Não admitiu o novo Código a prescrição em termos gerais (cfr. o art. 664.º, quanto à consignação de rendimentos, e o art. 677.º quanto ao penhor), mas admitiu-a a favor do adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação (alín. b)). É uma figura de fundamento análogo ao da usucapio libertatis a que se refere o artigo 1574.º, e que se baseia na protecção que merece, nestes casos, o interesse do terceiro adquirente, mais do que o interesse do credor, que pode facilmente assegurá-lo por outras vias. Trata-se, porém, de um caso de prescrição, nos termos expressos na lei (…). As disposições aplicáveis são, assim, as dos artigos 300.º e seguintes, incluindo as relativas à suspensão e interrupção da prescrição. Estabelecem-se dois prazos cumulativos para a prescrição: o de vinte anos a partir do registo da aquisição do prédio e o de cinco anos a partir do vencimento da obrigação. O decurso de qualquer deles, de per si, é irrelevante.». Estamos, então, no campo das garantias do crédito, posto a hipoteca ser, como é consabido, uma garantia estabelecida em benefício do credor, não podendo, por isso, olvidar-se o quadro da dicotomia relacional entre credor e devedor – e garante da obrigação –, com os respetivos interesses contrapostos. É sabido que, no âmbito das garantias especiais das obrigações, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (cfr. art.º 686.º, n.º 1, do CCiv.), deixando, assim, aberta a porta para o cumprimento coercivo da obrigação, através da ação executiva, cuja penhora começa, no caso de garantia hipotecária que onere bens pertença do devedor, pelos bens objeto de hipoteca (cfr. art.º 752.º do NCPCiv.), mas podendo demandar-se diretamente também, no campo executivo, o terceiro titular dos bens que constituam garantia hipotecária (art.º 54.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Cód.). Bem se compreende, pois, a afirmação de Pires de Lima e Antunes Varela no sentido de o interesse do credor poder ser facilmente assegurado por outras vias, tornando menos compreensível que um credor hipotecário, em inexplicável inércia, demore décadas para intentar obter a satisfação do seu crédito garantido, demitindo-se de usar da ação executiva, mas insistindo em não abrir mão da garantia, de que, porém, não mostra retirar efeitos práticos com vista ao cumprimento. Concorda-se, pois, com aqueles ilustres Autores, quando enfatizam que a figura sob espécie se baseia, indubitavelmente, na proteção do interesse do terceiro adquirente, subalternizando, por consequência, o contraposto interesse do credor ([10]). Mais, tratando-se da extinção da garantia por prescrição – assim o define a lei –, colhem aplicação as normas do instituto da prescrição, as (como salientado) dos art.ºs 300.º e seguintes, incluindo as relativas à suspensão e interrupção da prescrição. Equacionável é também, como dito na decisão recorrida, o disposto no art.º 308.º do CCiv. (sob a epígrafe “Transmissão”). Sendo certo que no art.º 730.º, al.ª b), do CCiv. são elencados dois prazos cumulativos de prescrição, um de vinte anos a partir do registo da aquisição do prédio e outro de cinco anos a partir do vencimento da obrigação, aquele art.º 308.º começa por proclamar que, iniciada a prescrição, ela continua a correr, ainda que o direito seja transmitido ([11]), passando para novo titular (n.º 1). Assim, a transmissão do direito – no caso, o direito garantido – em nada impediria (ou obstaculizaria) a extinção por prescrição da hipoteca e o decurso do respetivo prazo. Depois, afirma o n.º 2 do mesmo art.º 308.º que, sendo a dívida assumida por terceiro, a prescrição continua a correr em benefício dele, exceto se a assunção importar reconhecimento interruptivo da prescrição. No caso, não resulta que os AA./Recorridos, enquanto sub-adquirentes em face do(s) originário(s) terceiro(s) adquirente(s), tivessem assumido a dívida garantida pela hipoteca do imóvel que lhes foi transmitido. Com efeito, tais aqui AA./Apelados apenas declararam, como compradores, aceitar “a presente venda nos termos exarados”, após a declarante vendedora ter declarado vender-lhes, «livre de ónus ou encargos, o prédio». Assim, muito embora fosse conhecida a incidência de «três hipotecas», uma delas «a favor do MUNICÍPIO DE Ó(…), registada pela inscrição resultante da Ap. 23 de 1987/04/29», foi expressamente declarado pela aludida parte vendedora que o cancelamento se encontrava assegurado, obrigando-se, para tanto, «a diligenciar pelo cancelamento das HIPOTECAS» até determinada data. Não, estamos, pois, in casu, salvo o devido respeito, perante uma assunção da dívida (para com o R./Recorrente) pelos aqui Apelados, que em nada pretenderam assumir tal dívida (nem com aquele negociaram), mas apenas adquirir um bem imóvel, embora, consabidamente, hipotecado, aquisição essa a quem se obrigou ao cancelamento das três hipotecas, declarando mesmo vendê-lo livre de ónus ou encargos. Em suma, no caso nem ocorreu transmissão do direito garantido, nem assunção da correspondente dívida por terceiro (os AA./Apelados). Donde que não colha aplicação, a nosso ver, o disposto no art.º 308.º do CCiv.. O que ocorreu foi, isso sim, a transmissão do imóvel hipotecado, transmissão essa, por via de contrato de compra e venda (aquisição derivada), para quem é sub-adquirente em face de um terceiro adquirente inicial/originário. Assim sendo, os AA., adquirindo, ingressaram na posição e nos direitos de quem lhes transmitiu o bem, isto é, em última linha, na posição que foi do primitivo terceiro adquirente, beneficiando, por força das regras da aquisição derivada, dos direitos e deveres daquele, inclusive para efeitos prescricionais quanto à garantia hipotecária. Quer dizer, se a norma do art.º 730.º, al.ª b), do CCiv., logo protege diretamente o terceiro adquirente do prédio hipotecado, os seus sub-adquirentes encontram-se protegidos, desde logo, por ingressarem, por transmissão, no direito que àquele cabia, ocupando a posição do seu transmitente (com os inerentes benefícios e ónus). Nem se compreenderia, salvo o devido respeito, que o originário terceiro adquirente estivesse protegido pelo âmbito da norma, beneficiando da prescrição desde o registo da sua aquisição, e os seus sub-adquirentes – por qualquer modo de aquisição derivada, inclusive por sucessão hereditária – não o estivessem, sabido que recebem do seu transmitente o direito que a este cabia, sem limitações, a não ser que pactuadas, ingressando na posição que àquele cabia. Isto é, na nossa interpretação – e ressalvado, sempre, o devido respeito – aquela norma do art.º 730.º, al.ª b), protege, a um tempo, os terceiros adquirentes, seja o terceiro adquirente originário, seja, do mesmo modo, os seus sub-adquirentes, aqueles a quem o mesmo transmitiu o prédio hipotecado, funcionando de pleno as regras da aquisição derivada ([12]). Donde que deva improceder a argumentação em contrário do Apelante, ficando prejudicadas as demais questões que se prendem com a aplicação do disposto no art.º 308.º do CCiv.. Mas mesmo que assim não fosse entendido, nem por isso poderia proceder a agora pretendida invocação de causa interruptiva da prescrição – assunção/reconhecimento (conclusão 39). Com efeito, e como salientado na decisão em crise, constata-se ausência de invocação, no local próprio, de “causa interruptiva ou suspensiva da prescrição – cuja invocação incumbia ao réu”. Na verdade, este nada invocou nesse sentido no seu articulado de contestação, pelo que o princípio da concentração de todos os meios de defesa na contestação, com o decorrente efeito preclusivo (cfr. art.º 573.º do NCPCiv.), sempre o impediriam, fora do âmbito da superveniência ou das matérias/questões de conhecimento oficioso, de proceder a uma invocação posterior, necessariamente votada, por isso, à extemporaneidade, mormente na fase recursiva. Por outro lado, sempre haveria de considerar-se estarmos perante questão nova, por não colocada perante a 1.ª instância – e, por isso, não decidida pelo Tribunal a quo –, de que não poderia conhecer-se no recurso. Com efeito, é consabido que as questões a decidir no recurso não podem ser questões novas – exceto as de conhecimento oficioso –, mas apenas as já colocadas ao Tribunal recorrido e por este decididas. Na verdade, os recursos não servem para apreciar questões novas, não colocadas ao Tribunal recorrido, mas para reapreciar a decisão sobre questões/matérias por aquele julgadas ([13]). Donde que a questão, somente colocada na apelação, da existência de causa interruptiva da prescrição não pudesse ser apreciada nesta sede, estando vedado às partes – como tem de concluir-se – apresentá-la na fase recursiva e ao Tribunal de recurso conhecê-la.
2. - Do exercício abusivo do direito pelos AA. Dedica-se o Apelante, sob as conclusões 32 e 40, à questão do invocado abuso do direito, matéria esta de conhecimento oficioso do Tribunal de recurso, a dever, por isso, ser conhecida mesmo que não invocada perante a 1.ª instância. Esgrime o Recorrente com o argumento da existência de comportamento contraditório por parte dos AA./Apelados, fazendo-os incorrer na subespécie do venire contra factum proprium, já que, por um lado, declararam comprar o imóvel, mesmo sabendo que estava sujeito a hipoteca, clausulando os termos do cancelamento desta, para depois negarem que assumiram tal hipoteca, com vista a eximirem-se às consequências da compra do bem onerado com a garantia em vigor. Acrescenta que os Recorridos, ao comprarem o prédio, conformaram o negócio – com a contraparte no contrato de compra e venda – de harmonia com a hipoteca a favor do Recorrente, pelo que não podem agora invocar a prescrição de uma garantia que livremente assumiram. Ora, já se viu que não houve qualquer assunção da dívida, nem houve assunção da garantia perante o credor, posto os Apelados nada terem convencionado com o Apelante, sendo patente que no negócio de compra e venda se exarou que a transmissão era intencionada «livre de ónus ou encargos», cabendo à parte transmitente proceder/diligenciar com vista ao respetivo cancelamento. Por outro lado, se é líquido que os AA./Recorridos declararam comprar o imóvel, mesmo conhecendo a pendência da hipoteca, já não é exato que tenham clausulado no sentido de se conformarem com ela, posto, ao invés, ter ficado como obrigação da parte transmitente o respetivo cancelamento. Ora, se esta obrigação não foi cumprida pela parte vendedora, tal não é, obviamente, imputável aos adquirentes, que não podem ficar, por via disso, impedidos de invocar a prescrição da garantia. Inexiste, pois, que se veja, qualquer comportamento contraditório dos AA./Apelados no tocante à garantia hipotecária, que se consubstanciasse em abuso do direito, isto é, uma conduta gravemente violadora – em manifesto excesso de limites – da boa-fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito (cfr. art.º 334.º do CCiv.). Nada se lhes pode imputar, na sua conduta provada, que os pudesse inibir, enquanto sub-adquirentes em face de um terceiro adquirente inicial/originário, de invocar a prescrição da garantia hipotecária que atingia o prédio transmitido e de que, por aquisição derivada, se tornaram proprietários. Em suma, improcede a apelação. * IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): 1. - O prazo de vinte anos de prescrição da hipoteca, previsto no art.º 730.º, al.ª b), do CCiv., conta-se a partir do registo da primeira aquisição a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, ainda que este tenha depois transmitido a outrem e seja um sub-adquirente a invocar a prescrição da garantia, e não a partir da data do registo de aquisição pelo sub-adquirente que invoque a prescrição. 2. - Na norma aludida, o legislador procedeu à ponderação dos interesses em presença, optando pela proteção do interesse do terceiro adquirente, subalternizando, por consequência, o contraposto interesse do credor. 3. - Se aquela norma logo protege diretamente o terceiro adquirente do prédio hipotecado, os seus sub-adquirentes encontram-se protegidos por ingressarem, por transmissão, no direito que àquele cabia, ocupando a posição do seu transmitente (com os inerentes benefícios e ónus), valendo de pleno as regras da aquisição derivada. 4. - Não incorre em abuso do direito, por comportamento contraditório, o sub-adquirente que invoca a prescrição da hipoteca, com referência à data do registo de aquisição pelo primitivo terceiro adquirente, sabendo, ao tempo da sua aquisição, que a garantia se encontrava vigente, razão pela qual ficou exarado na escritura que o imóvel era transmitido livre de ónus ou encargos e que cabia ao transmitente proceder ao respetivo cancelamento. *** V – Decisão Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, por isso, a decisão recorrida. Custas da apelação pelo Recorrente.
*** Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior). Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.
Vítor Amaral (relator) Luís Cravo Fernando Monteiro
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