Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CARLOS MOREIRA | ||
Descritores: | CONCLUSÕES DO RECURSO PONTOS DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNADA ARRESTO CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRA PARTICULAR FORMA ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL | ||
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Data do Acordão: | 03/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 364º, 393.º E 822.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL ARTIGOS 391.º, N.º 1, 392.º, N.º 1, 640.º, N.º 1 ALS. A) E C), E 762.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ARTIGO 26.º DA LEI N.º 41/2015, DE 3 DE JUNHO E PORTARIA N.º 212/2022 DE 23 DE AGOSTO | ||
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Sumário: | I - Os pontos de facto impugnados e a decisão pretendida têm de constar, adrede e inequivocamente, nas conclusões do recurso – artº 640º nº1 als. a) e c) do CPC.
II - Se a celebração do contrato estiver sujeita a forma legal tarifada: documental - vg. empreitada de obra particular com valor superior a 20 mil euros: artº 26º da Lei41/2015, de 03.06 – e tal forma inexistir, tal acarreta duas consequências, a saber: i) substantivamente é nulo; ii) adjetivamente a sua prova apenas pode ser feita através de documento com força probatória superior – artº 364º do CC -, estando vedada a prova testemunhal – artº 393º do CC. III – Não se provando que a relação material controvertida inicialmente gizada pelos requerentes de arresto contra a sociedade requerida – empreitada - se estabeleceu com esta, a ela falece legitimidade substantiva, devendo ser absolvida do pedido. IV - Ademais, provando-se indiciariamente, que os defeitos/irregularidades da obra são imputáveis a atuação dos requerentes, falece desde logo o primeiro requisito da providência: a probabilidade da existência do crédito; e, assim, irrelevando a existência, ou não, do segundo: o fundado receio da perda da garantia patrimonial. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Relator: Moreira do Carmo Adjuntos: Alberto Ruço Fonte Ramos * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1.
AA, e BB, instauraram contra a “A... Unipessoal, Lda, todos com os sinais dos autos, procedimento cautelar de arresto.
Pediram: Que para garantia de um seu crédito sobre a requerida, fosse determinado o arresto de bens da sua titularidade. Alegaram, em síntese: Os Requerentes são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano, que é um terreno para construção, que identificam. Em fevereiro de 2023 contrataram com o Sr. CC, que se apresentou como gerente da sociedade “B...”, com vista à construção de uma casa no terreno supramencionado, destinada a tornar-se a habitação própria e permanente dos Requerentes. Posteriormente, foi assinado um documento, que é um orçamento para execução de obra, com um montante previsto de 243.220,00€ (duzentos e quarenta e três mil duzentos e vinte euros) entre o aqui 1º Requerente e o Sr. CC, que interveio e assinou como sendo representante da sociedade “A... Unipessoal,LDA”, aqui Empreiteira e ora Requerida. Para efeitos de início do contrato, foi pago o montante 20.000,00€ (vinte mil euros) para a Requerida iniciar os trabalhos. No dia 23 de março de 2023 a Requerida iniciou os trabalhos de construção. Em junho de 2023, constataram que a obra revelava defeitos de construção graves, tendo os trabalhos ficado suspensos, por acordo, até que fosse encontrada uma solução conjunta entre o Diretor de fiscalização, Diretora de Obra e Empreiteira. Defeitos que foram reconhecidos por e-mail e em reunião mantida entre as partes. Em agosto de 2023, a Requerida solicitou o pagamento adicional de 20.000,00€ (vinte mil euros) para avançar com a construção dos muros, que os Requeridos transferiram. Em novembro de 2023 a execução dos muros praticamente não foi realizada e, do pouco realizado, não respeitou o devido projeto. Em 18 de janeiro de 2024 ficou estipulado que a Requerida iria demolir a obra existente e, posteriormente, proceder à reconstrução da obra, solução que, para os Requerentes, seria adequada. Até à presente data não foi realizada qualquer obra de demolição acordada encontrando-se a obra abandonada desde 10 de junho de 2023; recusando-se a Empreiteira a assumir a sua responsabilidade perante os defeitos. A Requerida encontra-se com outras obras paradas, em situação semelhante à sua. A Requerida tem uma ação a decorrer neste momento no Juízo de Competência Genérica de ..., enquanto Ré, tribunal do local da sua sede social. No dia 15 de abril de 2024, a Requerente BB deslocou-se aos escritórios da Requerida com vista a requerer o livro de obra e inteirar-se da atuação da Requerida, tendo os trabalhadores da Requerida, nomeadamente o Sr. CC, recusado a entregar o livro de obra, expulsando de forma violenta a Requerente. A Requerida, perdeu o interesse na execução da obra e, consequentemente, interpelaram-na para os indemnizar dos prejuízos causados, através de carta enviada no dia 5 de setembro de 2024; porém, não logrou a Requerida levantar a carta, tendo esta sido devolvida no dia 18 de setembro de 2024. Para além dos aludidos 40.000,00€ (quarenta mil euros), sobre os quais acrescem juros bancários, acresce, ainda, o custo do valor da demolição, cujo montante se cifra em 19.000,00€ (dezanove mil euros), os custos do relatório técnico sobre os defeitos da obra no montante de 645,75€ (seiscentos e quarenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), danos em virtude da mora e incumprimento definitivo, valor que os Requerentes não conseguem ainda determinar; o que, em todo o caso, tudo perfaz um montante global nunca inferior a 70.000,00€ (setenta mil euros) entre custos já incorridos e expectáveis;
Procedeu-se à produção da prova.
2. Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:
«Pelo exposto, o Tribunal julga improcedente o presente procedimento cautelar, decidindo não decretar o arresto requerido.»
3. Inconformados recorreram os requerentes. Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões: A. Os Recorrentes contrataram a Recorrida para executar o projeto aprovado pela Câmara Municipal ..., tendo pago o preço, no montante de EUR 40.000 (quarenta mil euros), tendo a Recorrida emitido devida quitação; B. Há cumprimento dos pressupostos para o decremento da providência cautelar de arresto no termos dos artigos artigo 391.º, n. º1 e do artigo 392.º, n. º1, do Código de Processo Civil, uma vez que fez prova do direito, que é uma relação contratual sinalagmática, em que foi pago um preço, tendo sido aceite, através da emissão do respetivo recibo, e tendo sido prestada uma execução, essa defeituosa; C. Está também cumprido o pressuposto do justo receio, uma vez que apresentou factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, e, segundo uma avaliação dependente das regras de experiência comum, que há receio em que o seu ressarcimento não seja cumprido uma vez que houve o abandono de obra, o capital social ser insuficiente para o alegado crédito dos Recorrentes, a Recorrida não atender às notificações, terem processos de execução a decorrer; D. O Tribunal a quo esteve em erro na apreciação da matéria de facto, Em concreto, i. Quando deveria ter concluído pela relação contratual e sinalagmática, entre Recorrentes e Recorrida, quer na prova testemunhal, quando a testemunha refere que a Recorrida foi contratada para a execução da obra em janeiro de 2023, referindo inúmeras vezes ao longo do seu depoimento, que era a Empreiteira da Obra, conforme [registo gravado com a ref.ª Diligencia_10696-24.2T8LRS_2025-01-14_14- 21-25 (00:06:58 a 00:07:05)]: “Em janeiro de 2023 a empresa A... (Recorrida – itálico nosso) foi contratada para executar a obra e a partir daí a obra foi iniciada.” Quer na prova documental, conforme documento de transferência do preço e respectiva quitação, respectivamente, documento 8, 5 e 12 juntos aos autos; ii. Quando deveria ter concluído pela existência de um crédito, uma vez que os defeitos resultantes de obra não resultaram pela falta de entrega de novo levantamento topográfico, como o testemunho da Diretora quer parecer crer, uma vez que se demonstrou que este documento é meramente instrumental e serve o propósito do processo Camarário e limitação de áreas com os confinantes para efeitos Cadastrais, não relevando para apuramento de defeitos, cujo elenco consta no Relatório Técnico documento 6; iii. E quando deveria ter concluído pela existência de um crédito, também porque a diretora técnica assume que a Recorrida teve responsabilidade na execução deficiente da obra, conforme [registo gravado com a ref.ª Diligencia_10696-24.2T8LRS_2025-01-14_14-21-25 (00:11:33 a 00:12:13)]: “O senhor CC acordou isso e que não teria problema em fazer. O problema é que o Sr. CC subcontratou uma pessoa para construir a casa, mas não passou as informações corretamente. Ou seja, quando chegámos lá e detetámos o problema, havia uma diferença de quase 2 metros de comprimento da laje, e os pilares do piso 0 haviam sido locados errados e o buraco da escada também havia sido feito de maneira incorreta.” [registo gravado com a ref.ª Diligencia_10696-24.2T8LRS_2025-01-14_14- 21-25 (00:12:50 a 00:13:05)]: “Juiz de Direito: Essa empresa subcontratada, onde é que errou? Testemunha: Ela fez a locação do piso 0 errado. A implantação do piso 0. Também houve negligência por parte da C... ( ou seja, a Recorrida – sublinhado e itálico nosso) para com a implantação do projeto como um todo.” E. Pelo que deverá ser declarada a nulidade da sentença por violação da alínea c) do número 1 do artigo 615.º do CPCivil na parte em improcede com o pedido da procedência do arresto, uma vez que conforme os factos dados como provados se chega a um resultado diferente; F. E, caso assim não se entenda, deve ser sempre revogada a sentença na parte em que se conclui pelo erro na apreciação da matéria de facto, nos termos do número 1 do artigo 640.º do CPC, e subsistida nos termos aqui peticionados. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, que serão doutamente supridos por V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente e provado e, por via disso, declarada nula a sentença recorrida, e deve ser emitida decisão revogando e alterando a sentença “a quo”, decidindo-se pela procedência da providência cautelar de arresto formulada pelos Recorrentes.
Inexistiram contra alegações.
4. Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:
1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto. 2ª- Decretamento da providência cautelar.
5. Apreciando. 5.1. Primeira questão. 5.1.1. No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5 do CPC. Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175. O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245. Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas. Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas. Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt. Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt. Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro. Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro. O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis. Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114. Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que: «Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010,, p. 73/2002.S1. in dgsi.pt pt; e, ainda, Ac. STJ de 02-02-2022 - Revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1. 5.1.2. Por outro lado, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos. A lei exige que os meios probatórios invocados imponham (não basta que sugiram) decisão diversa da recorrida. Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova. Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz. Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando - objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão. Se assim não for, e: «Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC. Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.» - Ac. do STJ de 14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.(sic). Ademais, e como é outrossim comummente aceite, esta pretensão apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida. E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt; 5.1.3. Finalmente urge ter presente os requisitos formais da impugnação. Neste sentido, estatui o artº 640º do CPC: «1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;» Certo é que o cumprimento destes requisitos formais deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ - que o não cumprimento, apenas nas conclusões, do requisito da al. a) do nº2 – indicação com exatidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório. – cfr. Ac. do STJ de 19.06.2019, p. 7439/16.8T8STB.E1.S1. Porém, os requisitos constantes no nº1 devem constar, adrede e inequivocamente, nas conclusões. É esta, tanto quanto alcançamos, a posição jurisprudencial uniformizada, aliás no seguimento do entendimento da doutrina nesta matéria. Assim: «Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso…» - Ac. do STJ de 21.03.2019, p. 3683/16.6T8CBR.C1.S2. A rejeição do recurso quanto à decisão de facto deve verificar-se, para além do mais, nas situações de falta «de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados», tal como de falta «de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação», constituindo, aliás, exigências que «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.» - A . Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, ps. 126 /128. (sublinhado nosso) No mínimo dos mínimos, ao menos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnados devem constar nas conclusões. Efetivamente: «A rejeição do recurso de apelação a respeito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto apenas pode radicar, atendo-nos propriamente ao conteúdo das conclusões, na falta de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados. Todos os demais elementos legalmente mencionados, em especial no art. 640.º, n.º 1, do CPC – especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, menção sobre o sentido da decisão pretendido e indicação exacta das passagens da gravação em que o recurso de funda –, apenas se faz indispensavelmente mister que constem da motivação – corpo alegatório – de tal recurso.» - Ac. do STJ de 19.06.2019, p. 7439/16.8T8STB.E1.S1. De notar que a falta da indicação dos pontos factuais impugnados nas conclusões não admite convite ao seu aperfeiçoamento- cfr. vg., Ac. do STJ S 27.10.2016, p. 110/08.6TTGDM.P2.S1 e Cons. Henrique Antunes, in RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO, https://www.stj.pt › wp-content › uploads › 2015/07. 5.1.4. In casu. O Julgador fundamentou as respostas nos seguintes termos: «A convicção do Tribunal …fundando-se desde logo, no que ao constante de 1- a 6- e 14-, última parte, dos factos indiciariamente provados, no conteúdo dos documentos juntos com o requerimento inicial. Quanto ao descrito de 7- a 14-, 1.ª parte e 15- a 19-, dos factos indiciariamente provados, resultou o mesmo do depoimento de DD – arquiteta e diretora de obra – a qual, confirmou tais factos, fazendo-o de forma clara, segura, com isenção e espontaneidade, sendo, por isso, merecedor de credibilidade. Quanto às declarações de parte, não se atendeu às mesmas porquanto a declarante revelou falta de isenção e omissão de factos relevantes para a decisão, tentando com isso privilegiar-se, como é o caso de omitir os problemas detetados ao nível do levantamento topográfico e que, por inteira responsabilidade sua e do seu companheiro, o mesmo não foi retificado antes do início dos trabalhos de construção, o que esteve na base de parte das desconformidades edificativas detetadas, além de que, omitiu igualmente as ilegais alterações que pretendeu fazer na construção da obra – não contempladas no projeto – e que parte do que designa por “defeitos” se prende justamente com a pretensão de edificação não aprovada ao nível da cave. Já os recorrentes entendem que o depoimento da testemunha inquirida não merece credibilidade «dado que foi ela que assumiu a direção de obra em 12 de janeiro de 2023, assinando Termo de Responsabilidade, que consequentemente titula o alvará de obras de construção nº 49/23….tendo o interesse em contradizer, em sede de Ação Principal.» Ademais, com base no depoimento da testemunha consideram que se provou a celebração da empreitada com a sociedade requerida. Perscrutemos. Desde logo os recorrentes não cumprem adequadamente e com perfeição os requisitos do nº1 do artº 640º. É que não indicam, adrede e inequivocamente, nas conclusões, os concretos pontos de facto impugnados e a concreta decisão que pretendem. Porém, numa interpretação possível, parece-nos que pretendem que se dê como provado o facto não provado, a saber: «não se provou indiciariamente que a sociedade requerida tenha celebrado com os requerentes qualquer contrato relativo à construção de uma habitação.». Quanto ao mais, e ainda que pugnem pela existência de um crédito, por defeitos na obra, há a considerar que o termo «defeitos» é conclusivo, devendo decorrer de factos concretos que, a montante, fundamentem e permitam tal conclusão/qualificação. Mas não indicando eles os pontos de facto impugnados, provados ou não provados, nos quais estão concretizadas as deficiências/irregularidades, nesta parte o recurso não pode ser apreciado por não concretização bastante do seu objeto.
Não obstante, o cerne desta questão recursiva é a resposta ao aludido teor factual não provado. Como se viu, para prova da empreitada com a requerida, os recorrentes invocam, essencialmente, o depoimento da testemunha inquirida. Desde logo, este depoimento, só por si, é insuficiente. Efetivamente dimana do depoimento que a testemunha se refere à sociedade requerida como empreiteira, em termos amplos e informais, quiçá por o CC estar à frente da obra e ele a tal sociedade se referir. Mas CC não é gerente da sociedade. E inexistem nos autos elementos bastantes para se concluir que o trato que este fez com os requerentes, significa ou representa qualquer legitimação ou vinculação da requerida sociedade para com eles. Pelo que este depoimento, bem como a entrada do dinheiro na conta da requerida, não são os bastantes para dar como provada a realização da empreitada com a sociedade demandada.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, tal prova sempre estaria vedada por lei. Na verdade, o presente contrato de empreitada, porque abrange o valor de mais de 200 mil euros, está sujeito a documento escrito. Sendo que o respeito desta forma é condito sine qua non da sua validade. Assim o impõe o artº 26º da Lei 41/2015, de 03 de Junho, a saber: Artigo 26.º Forma e conteúdo 1 - Os contratos de empreitada e subempreitada de obra particular sujeitos à lei portuguesa, cujo valor ultrapasse 10 /prct. do limite fixado para a classe 1, são obrigatoriamente reduzidos a escrito, neles devendo constar, sem prejuízo do disposto na lei geral, o seguinte: a) Identificação completa das partes contraentes; b) Identificação dos alvarás, certificados ou registos das empresas de construção intervenientes, sempre que previamente conferidos ou efetuados pelo IMPIC, I. P., nos termos da presente lei; c) Identificação do objeto do contrato, incluindo as peças escritas e desenhadas, quando as houver; d) Valor do contrato; e) Prazo de execução da obra. 2 - Incumbe sempre à empresa de construção contratada pelo dono da obra assegurar o cumprimento do disposto no número anterior, incluindo nos contratos de subempreitada que venha a celebrar. 3 - A inobservância do disposto no n.º 1 determina a nulidade do contrato, não podendo, contudo, esta ser invocada pela empresa contratada pelo dono da obra. A classe 1 tem um valor máximo de 200 mil euros – Portaria 212/2022 de 23.08. Logo, empreitadas cujo valor exceda os 20 mil euros, como a presente, têm de assumir a forma escrita. Ora nos termos dos artºs 364º e 393º do CCivil: Artigo 364.º (Exigência legal de documento escrito) 1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
Artigo 393.º (Inadmissibilidade da prova testemunhal) 1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
No caso vertente nenhum contrato de empreitada se encontra celebrado com a requerida através de documento, seja de que natureza for. Quando muito terá existido um contrato meramente verbal. Tal acarreta duas consequências. A nível substantivo, a sua invalidade, rectius a sua nulidade – nº3 do artº 26º da cit. Lei 41/2015, de 03 de Junho. A nível adjetivo, máxime na vertente probatória, a restrição da sua prova nos termos plasmados nos arrº 364º e 393º, ou seja, a prova apenas pode ser documental, e estando vedada a prova testemunhal. Tal justifica-se por razões de certeza e segurança das relações jurídicas em casos de negócios jurídicos que, pela sua especial natureza ou significativo valor envolvido, assumem ou podem assumir relevantes consequências na esfera jurídica dos intervenientes. Assim: «I. O artigo 29.º, nº 1 do Dec.-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, na redação que lhe deu o art.º 7.º do Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, - hoje artº 26º da Lei 41/2015, de 03 de Junho - em conjugação com a Portaria nº 1371/2008, de 02.12, consagra a forma escrita para o contrato de empreitada e subempreitda de obra particular de construção civil, com o valor superior a € 16.600,00. II. A inobservância dessa forma escrita, que constitui uma formalidade ad substantiam, determina, conforme prescreve o nº 4 do citado artigo 29º, a nulidade do contrato. III. Trata-se de uma nulidade atípica, que apenas pode ser invocada pelo dono da obra (no caso das empreitadas) e pelo empreiteiro (no caso das subempreitada), não podendo ser conhecida ex officio pelo Tribunal. IV. A falta da forma escrita exigida pelo nº1 do citado artigo 29º como condição sine quo non da validade do contrato de empreitada com o valor superior a € 16.600,00 só pode ser suprida nos termos limitados do disposto no artigo 364º, nº1 do Código Civil, pelo que a prova da existência ou da outorga de um tal contrato, só pode ser feita por via de outro documento com força probatória superior, não podendo ser substituída por prova testemunhal, por confissão ou por presunção judicial, atento disposto nos artigos 393º, nº1, 354º, al. a) e 351, todos do Código Civil». - Ac. do STJ de 16.05.2019, p. 2966/16.0T8PTM.E1.S2 (sublinhado nosso) No caso vertente, estamos perante um caso de celebração contratual com exigência de forma legal tarifada, qual seja, apenas por via documental, ao menos de cariz particular. Pelo que a sua prova da empreitada também é tarifada apenas podendo ser efetivada mediante documento autenticado ou autêntico, e estando vedada a prova testemunhal. Inexistindo nos autos tal documento, a prova do presente e invocado contrato de empreitada com a requerida está vedada, ex vi lege. 5.1.4. Decorrentemente, e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber: 1. Mostra-se inscrito, pela Ap. n.º 1553, de 20.03.2023, em nome de AA e de BB o direito de propriedade sobre do prédio urbano, correspondente ao Lote n.º ...3, sito no ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...18, freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...28, da mesma freguesia e concelho; 2. A sociedade “A... Unipessoal, Lda” tem por objeto, além do mais, a construção de edifícios (residenciais e não residenciais), e a sua sede no Largo ..., ..., em ...; 3. A sociedade “A... Unipessoal, Lda” tem como única gerente EE; 4. Em Fevereiro de 2023, AA e de BB acordaram com o Sr. CC na construção de uma habitação no lote descrito em 1., pelo montante total de € 243.220,00 (duzentos e quarenta e três mil e duzentos e vinte euros); 5. O acordo referido em 2. (quereria dizer-se em 4.) teve por base um orçamento para construção apresentado no dia 5.01.2023 pela empresa “B...”, junto a fls. 16v a 22, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, o qual foi aceite por AA e de BB; 6. Para efeitos de início do contrato, AA e de BB pagaram o montante 20.000,00€ (vinte mil euros), mediante transferência para a conta n.º PT50...03, de que é titular a sociedade “A... Unipessoal, Lda”; 7. Em momento anterior ao início dos trabalhos de construção da obra referida em 2. e 3., AA e de BB foram informados por DD – arquiteta e diretora de obra – que existiam incorreções no levantamento topográfico do lote em questão, as quais deveriam ser objeto de correção junto da Câmara Municipal, tendo aqueles recusado fazê-lo; 8. Antes do início dos trabalhos de construção AA e de BB comunicaram a CC que desejavam que a construção da cave fosse diversa do que constava no projeto, com maior área, para que, após a emissão de licença de utilização, fosse objeto de aproveitamento para arrumos; 9. Em Março de 2023, foram iniciados os trabalhos da obra de construção da habitação referida em 2., por meio da intervenção de uma empresa contratada por CC; 10. Em 10 Junho de 2023, a diretora da obra constatou que a mesma apresentada irregularidades no que se refere à implantação no terreno, desde logo, no que se refere ao piso 0, resultantes das deficiências que o levantamento topográfico apresentava; 11. Mais constatou, a diretora de obra, que a construção da cave foi realizada de acordo com o projetado e não como pretendido por AA e BB, tendo, por via disso, os trabalhos sido suspensos; 12. As irregularidades detetadas na construção da obra eram passíveis de correção, sem grande acréscimo de trabalhos, com um novo projeto de estabilidade; 13. AA e de BB não aceitaram as correções propostas, por considerarem que a obra deveria ser demolida e novamente alvo de edificação, o que não foi aceite por CC; 14. Em setembro de 2023, a construção da obra foi retomada por CC ao nível dos muros de vedação, tendo AA e de BB procedido ao pagamento adicional de 20.000,00€ (vinte mil euros) para tais trabalhos; 15. Por força dos erros do levantamento topográfico, a construção dos muros não foi executada corretamente no que se refere à implantação no terreno; 16. Face ao desentendimento entre AA, BB e CC e por aqueles não terem promovido a retificação do levantamento topográfico nem dado entrada do pedido de alteração do projeto ao nível da cave, a diretora da obra não deu autorização para a sua continuação, tendo a mesma ficado parada; 17. Só em 21 de Dezembro de 2023 AA e BB entregaram o novo levantamento topográfico à diretora da obra, mas até à presente data, não foram reunidas condições técnicas para que a construção da obra pudesse continuar, por falta da assinatura da documentação necessária; 18. Apesar de solicitado, o Sr. CC recusou entregar o livro de obra; 19. Em 6 de Março de 2024 a diretora de obra pediu a exoneração do cargo de diretora de obra;
5.2. Segunda questão. 5.2.1. No tribunal recorrido foi decidido nos seguintes, fulcrais, termos: «Os procedimentos cautelares são um instrumento processual privilegiado para protecção eficaz de direitos subjectivos ou de outros interesses juridicamente relevantes, (...) representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumário (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni juris) e o receio justificado de que o mesmo seja cautelar (periculum in mora)». Conforme resulta do disposto no artigo 619.º, nº 1, do Cód. Civil, o direito de requerer o arresto é um direito conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial, consistente no património dos seus devedores. Sendo um direito conferido ao credor, este terá que demonstrar essa qualidade à data da instauração da providência, visto o arresto se destinar a garantir créditos actuais e não futuros, apenas não tornando necessário que o requerente o faça de um modo certo e seguro, já que a prova da existência do crédito nessas condições se pode reservar para a acção principal. Porém, é indispensável que pelo menos seja demonstrado o crédito em termos de probabilidade (“fumus boni iuris”), de harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 392.º do Cód. Proc. Civil. Deste modo, apresentam-se como condições do decretamento do arresto, quer a existência de um crédito do requerente sobre o requerido no momento em que a providência é requerida, quer o justo receio de que sem a providência requerida se venha a frustrar ou a tornar consideravelmente difícil a satisfação do crédito do requerente. Por conseguinte, são pressupostos da providência cautelar de arresto a aparência do direito invocado (cfr. art.º 392.º n.º 1, do Cód. Proc. Civil) e o receio justificado de perda de garantia patrimonial do seu crédito (cfr. art.º 391.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), sendo o receio justificado o "periculum in mora", ou seja, o risco ou ameaça de dano jurídico iminente, no caso "sub judice" a perda iminente da garantia patrimonial do crédito. O arresto requerido reveste a natureza preventiva, pois «..tem por fim evitar que determinado direito de crédito fique insatisfeito, por não encontrarem, no património do devedor, bens suficientes para o pagamento. Aqui é nítida a feição cautelar: perigo de insatisfação do direito.» No caso dos autos, …verifica-se ser improvável a existência do crédito alegado pelos requerentes sobre a sociedade Requerida, atentos os factos dados como indiciariamente provados. De facto, não resultou indiciariamente provado que a sociedade requerida se tenha vinculado a qualquer obrigação com os requerentes e, desse modo, que estes, com base em incumprimento contratual, sobre a mesma sejam detentores de um crédito. É certo que se indicia que existiram pagamentos dos requerentes para uma conta bancária da requerida, cujo IBAN lhes foi fornecido por CC, mas daí não se poderá extrair a vinculação contratual que os requerentes pretendem, dada a falta de legitimidade de CC para vincular a requerida perante terceiros. Com efeito, do art.º 260.º, do C.S.Comerciais, extrai-se que a vinculação das sociedades perante terceiros faz-se por meio de atos praticados pelos seus gerentes, em nome da sociedade. No caso dos autos, não se indicia probatoriamente que CC seja gerente da requerida, que tenha sequer atuado em nome da mesma – note-se que o orçamento que assinou se refere a empresa “B...”, …por isso, não poderá concluir-se ter existido qualquer vinculação da requerida perante dos requerentes. Em todo caso, ainda que se tivesse demonstrado probatoriamente a vinculação contratual com a requerida, sempre a pretensão dos requerentes soçobraria, por se entender que não ficou indiciariamente provado a existência do crédito sobre a mesma, resultante de incumprimento contratual, dado que se apurou terem os alegados “defeitos” edificativos se ficado a dever ao facto de os requerentes não terem promovido, no devido tempo, à realização novo levantamento topográfico e, bem assim, ao facto de terem pretendido fazer uma edificação em desconformidade com o projeto que fora aprovado na Câmara Municipal, além do que, pese embora CC se tenha disponibilizado para retificar tais desconformidades edificativas – solução tecnicamente possível segundo a diretora de obra – os requerentes exigiram a demolição total da obra e nova edificação, o que, por irrazoável, aquele veio a declinar.» (sublinhado nosso) 5.2.2. Esta argumentação apresenta-se curial, em tese, e para o caso concreto, alcança-se adequada, atentos os contornos fáctico circunstanciais apurados. Pelo que urge corroborá-la. Em seu abono, quiçá ad abundantiam, mais se dirá o seguinte. Uma das funções e finalidade, porventura primordial, de todos os procedimentos cautelares é a obtenção de decisão provisória do litígio, quando ela se mostre necessária para assegurar a utilidade da decisão, o efeito útil da ação definitiva a que se refere o artigo 2.° n° 2, do CPC, ou seja, a prevenir as eventuais alterações da situação de facto que tornem ineficaz a sentença a proferir na ação principal, isto é, que essa sentença (sendo favorável) não se torne numa decisão meramente platónica - A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 23 e Ac. do STJ de 08.06.2006, p. 06A1532. dgsi.pt., como os infra cits. Efetivamente: «Os procedimentos cautelares constituem instrumentos processuais destinados a prevenir a violação grave ou de difícil reparação de direitos, derivada da demora natural de uma decisão judicial, donde que seja necessário, em primeiro lugar, que o requerente do procedimento cautelar justifique, mesmo de forma sumária, o seu direito» - Ac. da RC de 18-10-2005, p. 2692/05. E de entre todos os procedimentos cautelares o arresto assume-se como aquele cuja natureza simplesmente conservatória mais sobressai. Na verdade com o arresto visa-se apenas a conservação da garantia patrimonial do credor. Ou seja, assume apenas uma função meramente garantística ou instrumental – porque não antecipatória dos efeitos a obter na ação principal, como acontece noutras providências, vg. restituição provisória da posse e alimentos provisórios - relativamente à ação definitiva. O arresto de bens do devedor constitui a “garantia da garantia patrimonial”, assegurando que os bens apreendidos se irão manter na sua esfera jurídica até que, vg., no processo executivo, seja realizada a penhora e satisfeito o crédito. Garantia esta que se revela mais eficaz do que outras – vg. impugnação pauliana ou ação sub-rogatória - pois que, decretado o arresto, os atos posteriores de disposição são ineficazes em relação ao credor, repercutindo-se na esfera jurídica de terceiros - embora condicionado ao registo, quando incida sobre bens a ele sujeitos – artºs 622º e 819º do CC e artºs 2º nº1 al. n), 5º, 6º e 92º nº2 al.n) do CRP. Derivando ainda a utilidade do arresto do facto de os efeitos da penhora retroagirem à data da efetivação daquele – artº 822º nº2 do CC e 762º do CPC. Nesta conformidade estatui o artº 391º nº1 do CPC: «O credor que tenha fundado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, pode requerer o arresto de bens do devedor.» Prescrevendo, por seu turno, o artº 392º nº1: «O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos…». Perante estes normativos verifica-se que são dois os requisitos do arresto, a saber: - A probabilidade da existência do crédito; - O fundado receio da perda da garantia patrimonial. Quanto ao primeiro e conforme resulta da literalidade da lei, não é exigível a prova da certeza e indiscutibilidade da dívida, designadamente que esta esteja assegurada por decisão judicial. Bastando que o requerente prove que ocorrem grandes possibilidades ou probabilidades de ela existir – cfr. Ac da RC de 25.03.1993, BMJ, 425º, 641. Pois que no arresto – maxime porque de cariz meramente preventivo que não antecipatório – funciona o padrão de verosimilhança do direito invocado que é típico dos procedimentos cautelares. Aliás, atenta a natureza e os objetivos do arresto, nem sequer o crédito tem de ser exigível à data em que é requerida a providência, «tanto se justificando o seu decretamento quando já exista incumprimento ou mora do devedor, como naquelas situações em que o devedor adopta comportamentos que colocam em perigo a garantia patrimonial, de tal modo que, com antecedência, se revele uma situação de impossibilidade ou de grave dificuldade na sua futura cobrança» - A. Geraldes, Temas, 2ª ed., 4º, 184. No concernente ao segundo requisito, a lei - e contrariamente ao regime inicial do CPC de 1961 em que se exigia o justo receio da insolvência do devedor – contenta-se com o fundado receio da perda da garantia patrimonial. Assim, para que tal requisito se verifique, basta que o requerente prove indiciariamente o temor de uma próxima perda da sua garantia patrimonial, em função dos atos já praticados, ou que provavelmente o virão a ser, do devedor sobre o seu (dele) património. Certo é que tal temor não pode ser apreciado em função do seu subjetivismo pessoal, ie., com base nas suas convicções, desconfianças ou suspeições. Antes ele tem de emergir de uma análise objetiva e crítica e prudente, operada sobre factos concretos que nesse sentido têm de ser alegados e provados pelo requerente. Apenas se concluindo pela sua verificação se tal requisito for de aceitar relativamente ao homem comum, a qualquer pessoa de são critério, colocada no lugar do credor e perante o circunstancialismo envolvente, o qual, face ao modo de agir do devedor, e não se impedindo imediatamente este de continuar a dispor livremente do seu património, também temeria vir a perder o seu crédito. Sendo que o factualismo apto a preencher a previsão legal do conceito de “justo receio”, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial do devedor, a qual, designadamente dado o seu cariz deficitário, faça temer por uma insolvência ou perigo de insolvência, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito - cfr. Almeida Costa, Obrigações, 3ª ed. p.613, Acs. da RC de 13.11.1979 e de 02.03.1999, BMJ, 293º, 441 e 485º, 491; Acs. do STJ de 20.01.2000 e de 01.06.2000, Sumários, 37º, 40 e 42º, 28. Efetivamente, ainda que a atual ou iminente superioridade do passivo sobre o ativo constitua certamente um nítido elemento através do qual se pode reconhecer uma situação de perigo para a satisfação do crédito justificativa do arresto, esta conclusão não exige necessariamente tal situação formalmente deficitária, antes se podendo sustentar na análise de outros fatores de que a mesma possa objetivamente retirar-se, fatores esses semelhantes, vg., aos factos índices constantes no artº 20º do CIRE, vg. a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – cfr. A. Geraldes, Temas, 2ª ed. p.188. Neste sentido vide o Ac. da RC de 06.10.2015, p. 17/14.0TBCBR-B.C1, relatado pelo presente Relator, no qual se sumariou: « 1.-O decretamento do arresto, porque providência meramente conservatória, não implica a prova da exigibilidade imediata do crédito do requerente, nem a prova de minuciosos factos que clamem a conclusão do inexorável inadimplemento do requerido. 2.- Para o justo receio da perda da garantia patrimonial é suficiente a alegação e prova de um núcleo factual que demonstre ou indicie um perigoso decréscimo da solvabilidade do devedor, a dissipação ou extravio de bens, a desproporção entre o seu activo e passivo, a natureza ocultável do património, ou a ocorrência de qualquer outra situação que aponte no sentido de que o devedor não pode solver a dívida. 3.- Comprovando-se que a requerente suportou despesas, ascendentes a vários milhares de euros que aos requeridos competiam, e que estes, construtores, têm hipotecados imóveis em montantes superiores ao seu valor, afirmaram que pretendiam cessar a sua actividade, e têm processos judiciais pendentes, no âmbito dos quais foi até pedida a penhora» E, finalmente, atente-se no Ac. da RC de 06.03.2018, p. 1833/17.4T8FIG.C1: «I - No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.» 5.2.3. No caso vertente, a providência não pode ser concedida pelas razões aduzidas na sentença. Em primeiro lugar, não se apurou que a requerida tenha intervindo, ao menos formalmente, nos termos legalmente exigidos, na relação jurídica invocada pelos requerentes, qual seja, o alegado contrato de empreitada. Assim sendo, a providência teria de ser negada, desde logo por ilegitimidade substantiva da requerida. Efetivamente, a requeria começou por ter, desde logo, legitimidade adjetiva ou processual, pois que, perante a causa de pedir delineada, e o pedido formulado pelos requerentes, ela tinha interesse em contradizer – Artº 30º nº3 do CPC. Porém, discutida a causa, conclui-se, que, afinal, tal interesse inexiste, pois que não interveio, ao menos regular e validamente nos termos legais exigidos, na relação material controvertida invocada. Pelo que a pretensão introduzida em juízo pelos requerentes, contra ela não pode ser direcionada e efetivada, do que decorre a necessidade da sua absolvição do pedido. Efetivamente: «I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. II - A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.» - Ac. STJ de 18.10.2018, p. 5297/12.0TBMTS.P1.S2, in dgsi.pt. Por outras palavras: «I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada. II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido. III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, …bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio...» - AC. TRP de 04.10.2021, p. 1910/20.4T8PNF.P1. Em segundo lugar, e mesmo que não se verificasse o fundamento anterior, certo é que, como se refere na sentença, não se apurou que os requerentes assistisse jus a exigirem da requerida qualquer indemnização. Pois que dos factos apurados emerge que as desconformidades ou defeitos verificados na obra, aos mesmos - ao menos perfuntória e tendencialmente que nesta sede é o qb – devem ser imputadas, ou, no mínimo, contra eles não podem ser esgrimidos. Naquela vertente, porque resultaram dos erros do levantamento topográfico do terreno cuja atempada retificação os requerentes não efetivaram, apesar de tal lhes ter sido solicitado. Nesta ótica, porque as irregularidades detetadas na construção da obra eram passíveis de correção, sem grande acréscimo de trabalhos, com um novo projeto de estabilidade, não tendo os requerentes aceitado tal, antes exigindo que a obra fosse demolida e novamente reedificada. Ora tal atitude é, no mínimo intoleravelmente desproporcionada, podendo até incluir-se – se o erro matricial atinente ao levantamento topográfico e à sua não correção não fosse seu, que foi, como se provou – constituir atuação em abuso de direito: artº 334º do CPC.
Improcede o recurso.
6. Deliberação. Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pelos requerentes.
Coimbra, 2025.03.25.
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