Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
409/22.9T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA USADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
VÍCIO DA COISA
DESGASTE NORMAL
PRAZO DE GARANTIA
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 916.º E 917.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 2.º; 3.º, 1 E 2 E 5.º DO DL 67/2003
ARTIGO 5.º-A, DO DL32/2003
Sumário:
i) Sendo a coisa vendida usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal;

ii) O desgaste normal das coisas usadas não consubstancia vício da coisa;

iii) Mesmo que se aceite que uma corrente de distribuição usada que se estraga ao fim de cerca de 166.500 kms possa ser um defeito, se decorreram 3 anos e uma semana sobre a data da entrega da viatura, está afastado o funcionamento do prazo legal de garantia de 2 anos previsto no DL 67/2033 e o de 3 anos de uma hipotética garantia voluntária.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

1. AA, residente em ..., propôs acção declarativa contra L..., com sede em ..., peticionando que a mesma seja condenada a pagar-lhe a importância de 7.512,98 €, acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em suma, que, em 16 de Agosto de 2018, adquiriu à R., pelo valor de 20.900 €, um ... a diesel usado, com quilometragem de 117.811 km, achando-se publicitado que a sobredita viatura seria entregue «devidamente recondicionada com a verificação técnica de 288 pontos, reparação mecânica e cosmética» e garantidos os Kms anunciados e histórico de manutenção, com entrega da viatura com revisão geral. O automóvel foi-lhe entregue em 1.9.2018, tendo efectuado revisões nos dias 18.11.2019, 5.2.2020 e 5.8.2020, as quais não incidiram sobre a corrente de distribuição em virtude de esta ter sido indicada pela R. como substituída no manual de revisões do veículo. No dia 8.9.2021, e por ocasião do uso da viatura, a corrente de transmissão veio a desintegrar-se e a provocar danos internos no motor que o inutilizaram, isto numa ocasião em que a viatura havia percorridos 48.713 kms desde a data da aquisição. Em resultado de tal problema, o veículo careceu de ser rebocado para uma oficina, tendo-se aqui constatado que a sobredita corrente não havia sido substituída. Denunciou o defeito à R., em 17.9.2021, por forma a que esta assumisse a reparação, tendo aquela contraposto que os 36 meses de garantia haviam já decorrido, não tomando, como tal, em consideração os períodos em que a viatura esteve imobilizada em virtude da pandemia COVID-19. Teve de suportar a reparação a substituição do motor recondicionado no valor global de 7.512,98 €.

A R. contestou, invocando, que falha denunciada pela A. ocorreu mais de 3 anos após a conclusão do contrato, em momento ulterior ao prazo convencionalmente definido da garantia de usado de 12 meses, com extensão para 36 meses apenas em determinados eventos. No qual não se inscreve a substituição ou reparação da correia em virtude do desgaste natural. Aquele prazo de 36 meses havia já findado em 16 de Agosto de 2021 sem que a pandemia COVID possa justificar uma sua qualquer prorrogação, pois que não obstava ao exercício dos direitos, designadamente extrajudiciais, que a lei confere ao consumidor. E o prazo legal de 2 anos (da compra e venda de bens defeituosos) para exercitar direitos também caducou. Não foi prestada qualquer informação à A. de que a corrente de distribuição da viatura tivesse sido substituída, nem a mesma podia constar do livro de revisões. A corrente nunca ostentou qualquer anomalia ou desgaste, nem nas próprias revisões materializadas pela A. Antes de entregar a viatura à A. efectuou inspeção à mesma e nenhum defeito foi detectado. Durante o prazo de garantia e apesar da pandemia a A. nunca se manifestou junto da R. para o estender, pelo que agora invocar as normas que disciplinaram as restrições impostas, como motivo de força maior ´´e conduta abusiva de direito.  

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo-se a R.

*

2. A A. recorreu, concluindo que:

1ª) Perante os elementos probatórios constantes do processo e, da documentação da prova nele gravada, os pontos concretos de facto:

Dos considerados “provados”, sob as alíneas w) e x):

(… transcrição do texto) ;

Dos considerados “não provados”, constantes dos pontos 1); 2); 3); 4):

(… transcrição do texto).

A A. considera-os incorrectamente julgados, por erro de leitura, análise, interpretação, apreciação e julgamento. De facto,

2ª) Face aos concretos meios probatórios assinalados no corpo das presentes alegações, aqui reiterados e dados por integralmente reproduzidos, como sejam:

- os documentos especificados;

- as passagens dos depoimentos assinalados e, cuja transcrição se efectuou;

Impunham decisão diversa da proferida.

3ª) A decisão que, no entender da recorrente, deve ser proferida, deverá ser antes:

 Os enunciados sob as alíneas W) e x), devem ser eliminados dos factos provados, por não se revelarem matéria factual e/ou de direito e, como, não se consubstancia ou se define a sua fundamentação, em quais os elementos probatórios, a que, o tribunal a quo, firmou a sua convicção.

 Por outro lado e, ao invés, os factos tidos por “não provados”, enumerados sob os pontos 1 a 4, antes atento, os elementos probatórios, constantes dos autos e, rectius contratuais e especificadamente, lidos, analisados e interpretados de forma crítica, reflexiva, conjugada com as concretas passagens assinaladas, aos depoimentos das testemunhas e transcritos, impunham, tal matéria de facto, fosse julgada provada – justamente – dada a sua demonstração cabal e, o acervo probatório indicado.

Efectivamente,

4ª) A A. ficou convicta, aquando da compra da viatura que, a corrente de distribuição havia sido substituída pelos motivos e factos alegados, além de demonstrados e; que tinha a garantia de bom funcionamento, sem vícios ou defeitos, pelo prazo de 3 anos, com todas as coberturas constantes do contrato de compra e venda, datado de 17/03/2018.

5ª) Sendo-lhe assegurada a precisão dos quilómetros anunciados e, com recondicionamento de 228 pontos.

6ª) O veículo ...-OM-..., só foi entregue à A. em 01/09/2018, já com a quilometragem de 118.453 kms.

7ª) Trata-se de uma viatura de marca ..., modelo ....18 diesel, pelo preço de € 29.000,00; adquirido à Ré, como empresa que exerce o comércio de viaturas usadas, perante a A., como consumidora.

8ª) À Ré, incumbia alegar e provar que, a viatura em causa, não apresentava vícios de funcionamento, nem defeitos de fabrico.

9ª) Perante a desintegração da corrente de distribuição, com danificação do motor, a A. interpelou a Ré, para assegurar a sua reparação; ao que, a mesma considerou caducada a garantia prestada. Afinal, quando;

10ª) A corrente de distribuição não havia sido substituída, desde a sua entrada em circulação, não obstante terem existido problemas com outras viaturas da mesma marca, modelo e série, devido ao mesmo componente de corrente de distribuição.

11ª) Até a Ré, soube ter a A. apenas percorrido com a viatura cerca de 48.000 kms, desde a sua compra.

12ª) E, que, devido à pandemia que ocorreu, sendo facto público e notório, com restrições por confinamento no domicilio e, de circulação, para lá do próprio concelho da sua residência.

13ª) A não assunção de responsabilidade, por escassos 7 dias, para além do limite temporal da garantia, acrescida de 36 meses, após o período da entrega, constitui – face a motivos de força maior, de não utilização ou redução de utilização da viatura – um manifesto abuso de direito.

14ª) A acção devia ser julgada procedente e, a Ré condenada a indemnizar a A.

15ª) A decisão de facto nas questões impugnadas e, a decisão de mérito, não se revelam as mais assertivas, nem congruentes, com os princípios fundamentais do Direito Constitucional e do Direito Civil, do Direito de Defesa do Consumidor e, do direito processual civil; bem como, dos comandos legais atinentes. Em suma,

16ª) Por erro de interpretação e aplicação, foram violados os arts. 20º, nº 4; 202º, nº 2 da CRP;

arts. 227º, nº 1; 405º; 406º; 562º; 874º; 913º; 914º; 921º do Código Civil; art. 2º, nº 2, al. d) do

DL nº 67/2013; arts. 410º; 411º; 607º, nº 4 e 662º do CPC.

O recurso deve merecer provimento, revogando-se a decisão posta em crise, julgando-se a ação procedente, em conformidade.

JUSTIÇA.

3. Inexistem contra-alegações.

III – Factos Provados

a) A Ré L... é uma sociedade por quotas que tem como objeto, designadamente, a compra, venda, aluguer, manutenção e reparação de máquinas e veículos automóveis [artigo 1.º da p.i. e cetidão de fls. 98],

b) Laborando sob a gíria comercial de C... [artigo 1.º da p.i.];

c) No dia 16 de Agosto de 2018, a Autora AA ajustou com a Ré L... a aquisição de um veículo de marca ..., modelo ... diesel, e a ostentar a matrícula ..-OM-.. pelo preço de € 29.000,00 [artigos 7.º e 11.º da p.i.],

d) Datando a correspondente matrícula de 17 de Março de 2014 e apresentando uma quilometragem de 117.811kms [artigo 7.º da p.i.];

e) O veículo descrito em c) foi adquirido pela Autora AA para o usar nas deslocações pessoais e familiares quotidianas [artigo 5.º da p.i.];

f) A Ré L..., previamente ao negócio descrito em c), mantinha a viatura ..-OM-.. anunciada como a ser entregue devidamente recondicionada com a verificação técnica de 288 pontos, reparação mecânica e cosmética [artigo 9.º da p.i.],

g) Assegurando a precisão dos quilómetros anunciados, do histórico da manutenção recomendada pelo fabricante e com revisão geral realizada previamente à sua entrega [artigo 10.º da p.i.];

h) Por ocasião do negócio descrito em h), a Autora AA e a Ré L... ajustaram o documento junto a fls. 21 e do qual, sob a designação «Contrato de Garantia L... Usados», consta, com a aposição da assinatura da primeira, que “declaro que li, compreendi e aceito as condições de Garantia ...0”,

i) Isto sendo que, no documento designado «Garantia de Usado – L...» e que tem aposto LP194/10 junto a fls. 88, consta, designadamente, o seguinte:

A) COBERTURA

A Garantia de Usados L... abrange veículos usados ligeiros de passageiros (…)

O prazo definido é de 12 meses e inicia-se na data da alienação pela L... a favor do comprador.

O prazo referido no parágrafo anterior estende-se, a título de garantia facultativa, até 36 meses mas apenas para os Eventos Cobertos mencionados em c), em veículos que no fim dos primeiros 12 meses, não tenham percorrido 60.000 quilómetros desde a data da venda, nem tenham atingido uma quilometragem máxima de 200.000kms para veículos movidos a Gasóleo e 180.000kms para veículos movidos a Gasolina.

(…)

B) CONDIÇÕES GERAIS

Nos termos da Lei em vigor, o objecto da Garantia consiste na reparação gratuita de qualquer não conformidade não decorrente do desgaste natural resultante da utilização do veículo garantido e que se verifique após a sua venda, nomeadamente avarias mecânicas, eléctricas e/ou electrónicas (incluindo mão de obra, peças e componentes), que possam ocorrer em peças do veículo vendido, durante o período de vigência da Garantia e nos termos adiante referidos.

(…)

Entende-se por avaria mecânica, eléctrica e/ou electrónica, a incapacidade de uma peça funcionar conforme a especificação do Fabricante em consequência de falha mecânica, eléctrica e/ou electrónica.

(…)

C) EVENTOS COBERTOS

As coberturas da Garantia aplicáveis após os primeiros 12 meses, devem ser consideradas de acordo com a descrição abaixo, tendo em conta os prazos e quilómetros, o que ocorra primeiro.

Avarias cobertas dos 12 meses aos 36 meses ou 60.000kms após venda mas que não excedam um total de 200.000km para motor a Diesel e 180.000km para motor a Gasolina, estando sempre excluídas situações de desgaste decorrentes de uso.

Motor: Cabeça do Motor e Bloco do Motor (componentes internos). Sistema de distribuição (decorrente de avaria)

(…)

E) EXCLUSÕES GERAIS

(…)

A substituição, reparação ou afinação de peças ou órgãos, causadas por mau uso ou pelo desgaste natural, resultante da utilização do veículo (correias, grupo de embraiagem, volante de motor, escape, filtro partículas, amortecedores, jantes, pneus, baterias, lâmpadas, pastilhas e calços de travões, tubos de borracha, controlos e afinações, incluindo alinhamento da direcção, calibragem das rodas e regulação da suspensão).

[artigo 15.º da p.i. e artigo 3.º da contestação];

j) O veículo ..-OM-.. foi entregue à Autora AA em 1 de Setembro de 2018 [artigo 12.º da p.i.];

k) A Autora AA, entre a ocasião mencionada em h) e 8 de Setembro de 2021, percorreu 48.713kms com o veículo ..-OM-.. [artigo 21.º da p.i.],

l) Tendo, nesse seguimento, concretizado revisões de manutenção periódica em 5 de Fevereiro de 2020 e em 5 de Agosto de 2020 na BOMCAR, enquanto concessionário e reparador oficial da ..., e em 6 de Abril de 2021 na oficina ROADY [resposta explicativa aos artigos 17.º e 18.º da p.i.];

m) No dia 8 de Setembro de 2021, a corrente de distribuição da viatura ..-OM-.. desagregou-se quando a Autora AA se achava a concretizar a correspondente condução [artigo 21.º da p.i.],

n) Tendo os seus fragmentos provocados danos internos no motor [artigos 21.º e 22 da p.i.],

o) Ficando os pistons, ademais, presos com paralela paralisação da viatura ..-OM-.. em consequência do sobreaquecimento pela perda de lubrificação interna do motor [artigo 23.º da p.i.];

p) O veículo ..-OM-.. ficou imobilizado na sequência do descrito em m) a o) [artigo 23.º da p.i.],

q) Tendo sido, nesse seguimento, rebocado para a oficina ROADY CENTRO AUTO [artigo 24.º da p.i.];

r) A reparação da viatura ..-OM-.. obrigou à substituição da corrente de distribuição e do motor [artigo 65.º da p.i.],

s) Tendo a Autora AA despendido o valor de € 7.512,98 nesse mesmo conserto [artigo 58.º da p.i.];

t) A corrente de distribuição da viatura ..-OM-.. não havia sido substituída desde a sua entrada em circulação [artigo 25.º da p.i.];

u) Na decorrência do descrito em m) a o), a Autora AA contactou com a Ré L..., em 17 de Setembro de 2021, a comunicar o ocorrido e a solicitar que esta assumisse os custos de reparação [artigos 31 e 34.º da p.i. e artigo 3.º do aperfeiçoamento sob Ref. 8982595],

v) Tendo a Ré L..., em resposta, informado que o prazo de garantia havia já decorrido [artigo 36.º da p.i.];

w) Foi materializada revisão (global) da viatura ..-OM-.. previamente à entrega mencionada em j) junto da Y... enquanto reparador oficial da ... [artigo 68.º da contestação],

x) A viatura ..-OM-.., nessa sequência, ficou capacitada a circular [artigos 69.º e 72.º da contestação]; (Não ostentando a viatura ..-OM-.., nessa sequência, qualquer falha e achando-se capacitada a circular [artigos 69.º e 72.º da contestação]);

*

Factos não provados:

1. A Autora AA determinou a concretização de revisão periódica ao veículo ..-OM-81em 18 de Novembro de 2019 [artigo 5.º da p.i.];

2. Por ocasião da entrega da viatura ..-OM-.. mencionada em h), a corrente de distribuição constava como tendo sido substituída no correspondente Manual de Revisões [artigo 19.º da p.i.];

3. A marca ... recomenda a substituição da corrente de distribuição aos 80.000kms [artigo 28.º da p.i.];

4. A Autora AA, por ocasião do negócio descrito em c), ficou crente que a corrente de distribuição da viatura ..-OM-.. havia sido substituída [artigo 29.º da p.i.].

*

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Obrigação de indemnização pela R.

2. A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados w) e x) e não provados 1. a 4., face aos documentos especificados e passagens dos depoimentos assinalados, indicando a decisão a proferir (cfr. conclusões de recurso 1ª a 3ª).

O julgador, quanto à decisão da matéria de facto, exarou a seguinte motivação:

a) Para a decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal tomou em consideração todas as provas constantes dos autos tal como produzidas e analisadas em audiência de julgamento com recurso às regras da lógica e da experiência de vida.

Atente-se, desde logo, que a matéria plasmada em a) a d), h), j) a l), m), s), t) e u) figura como circunstancialismo reconhecido por ambos os sujeitos processuais e que não reclama qualquer contextualização adicional.

b) Já no que respeita à demais matéria controvertida, cabe, no imediato, assumir a sua relativa inocuidade para a solução final do litígio. Pois que, como teremos a oportunidade de expor, a falência da pretensão da Autora AA ocorre logo no plano da caducidade em virtude de os supostos defeitos reclamados terem ocorrido já após o decurso do prazo de garantia. Afirmação que se achava passível de ser deduzida da factualidade plasmada pelos sujeitos processuais nos correspondentes articulados… E que só não foi conhecida em sede de saneador-sentença porque se anteviu nos artigos 19.º, 29.º, 30.º da p.i. uma insinuação [ainda que distante] da ocorrência de dolo por parte da Ré L... que poderia contender com os normais prazos de caducidade aplicáveis [artigo 917.º, n.º 1 do Código Civil]. Que justificou, no entender do Tribunal, um aprofundamento da actividade probatória quanto à temática em discussão…

Sendo patente, da factualidade provada, que esse mesmo dolo [ou, no que releva, a existência de um qualquer defeito] ficou claramente por demonstrar!

Importa, assim, realçar que, em matéria de defeitos do veículo, o ónus da prova da não conformidade da viatura ..-OM-.. impendia sobre a Autora AA [ver, por todos, o Acórdão do Tribunal da Reação de Lisboa de 19 de Abril de 2007]. Impendendo, por seu turno, sobre a Ré L... o ónus da demonstração da não anterioridade ou contemporaneidade dos defeitos à data do contrato [Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Janeiro de 2019 e do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Outubro de 2021].

E a realidade é que a prova produzida nos autos vai ostensivamente no sentido de viabilizar a afirmação que o ocorrido com a corrente de distribuição tal como descrito em m) a o) não deriva de uma qualquer falta de conformidade do veículo reportável ao negócio descrito em c).

c) Atente-se que a imputação de defeito materializada pela Autora AA se processa em função dos seguintes vectores:

i) A corrente de distribuição de um veículo deve ser usualmente substituída aos 100.000kms [artigos 28.º da p.i. e 10.º do aperfeiçoamento sob Ref. 8982595];

ii) A ... tem vindo a recomendar uma substituição preventiva daquele componente aos 80.000kms em virtude de outras viaturas da marca terem ostentado problemas precoces [artigos 27.º e 28.º da p.i.];

iii) A Ré L..., não obstante ter alineado o veículo ..-OM-.. com 117.811kms, não proveu pela substituição da sobredita corrente [artigo 25.º da p.i.],

iv) Tendo, no entanto, feito constar a informação oposta do manual de revisões da sobredita viatura [artigos 19.º e 30.º da p.i.],

v) Isto ao ponto de Autora AA, até porque confiou que “a verificação técnica de 288 pontos” envolveria identicamente tal substituição, ter pressuposto que aquela substituição havia sido realizado [artigo 29.º da p.i.].

Todo o raciocínio da Autora AA se ancora, como tal, no pressuposto que a corrente de distribuição já tinha atingido a sua normal longevidade à data da alienação descrita em c). E que incumbiria, como tal, à Ré L... operar a substituição desse componente previamente ao negócio. Não se percepciona, no entanto, como alcança a Autora AA aquela grandeza de 80.000kms como supostamente correspondente à durabilidade da corrente de distribuição dos veículos de marca .... Pois que a mesma se acha ostensivamente incorrecta 2 E, mesmo a não estar, sempre se divisaria um claro erro de raciocínio da Autora AA quando se atente que o veículo ..-OM-.. ostentava já 166.524kms à data da ocorrência mencionada em m). Ao ponto de, a ser certeira a longevidade que a Autora AA assaca à corrente de distribuição, dever esta ter sido sempre substituída uma segunda vez aos 160.000kms [e, designadamente, por ocasião da revisão constante de fls. 38]. E, por conseguinte, num momento em que a responsabilidade por tal intervenção sempre impenderia sobre a própria Autora AA.

… Assim como incorrecta [em termos algo acessíveis a qualquer normal titular de uma viatura] se afirma a menção que mesmo um veículo de outra marca carece de substituir a corrente de distribuição aos 100.000kms

Não se divisa, efectivamente, um qualquer elemento que suporte o enunciado pela Autora AA. Atente-se que o documento junto a fls. 138 mais não é do que a tradução para português de uma inscrição na Wikipedia [o que a Autora AA não revela, mas que, ainda assim, se retira de https://en.wikipedia.org/wiki/BMW_N47] com consequente precisão técnica ignorada mas que, de qualquer forma, não aborda os limites de quilometragem da corrente de distribuição dos motores ....

É, pelo contrário, a testemunha BB que, não obstante ter sido arrolado pela Autora AA, vem a contrariar uma qualquer necessidade de substituição daquele dispositivo aos 80.000kms. Note-se que aquele, figurando como mecânico da R... e a quem a Autora AA atribuiu aparentemente uma capa de um conhecimento qualificado, expôs, com conhecimento da matéria, que

A corrente de distribuição é o que comanda o motor todo.

A corrente ainda não estava no termo da quilometragem em que aconselham a mudar a corrente de distribuição. A ... aconselha a mudar aos 150.000kms. São motores recentes e começaram a dar problemas aos 150.000km(…)/160.000kms.

(…)

Cada marca tem a sua bitola. A ... aconselha a mudar aos 150.000km… Nós normalmente faríamos aos 140.000km ou aos 160.000kms. Quanto está na altura de mudar, o carro também começa a fazer barulho.

(…) [sublinhado nosso]

É, pois, a própria prova oferecida pela Autora AA que motiva a conclusão que a corrente de distribuição não carecia de ter sido substituída por ocasião da venda materializada pela Ré L.... Pois que a mesma, nessa ocasião, teria ainda uma vida útil de cerca de 30.000km… E não cabendo certamente a um vendedor de veículos usados, como teremos a oportunidade de expor em sede de enquadramento jurídico, proceder à substituição de peças que não ostentam ou se aproximem do desgaste necessário a um possível mau funcionamento. Tanto mais quando, tomando em consideração o exposto por BB e a fazer fé no documento de fls. 138, o motor começa a fazer um ruído de “chocalho” [certamente demonstrativo que a corrente está folgada] quando se verifica um desgaste excessivo da corrente de distribuição

Diga-se, aliás, que o que se poderá problematizar do testemunho prestado por BB [e que, de qualquer forma, não cabe aqui deslindar] centra-se na aferição se não caberia à BOMCAR ou à ROADY aconselhar a própria Autora AA que procedesse a tal substituição da corrente de distribuição por ocasião das revisões respectivamente concretizadas aos 146.127kms [fls. 29] e aos 158.000kms [fls. 38]. Ou, se deram tal recomendação, porque razão a Autora AA, tanto mais estando convicta da longevidade de 80.000kms, não o materializou…

d) E sendo consabido que a recomendação da ... vai no sentido de a corrente de distribuição poder dar problemas tão somente aos 150.000kms, mostra-se claramente compreensível e ajustado que a Ré L... não tenha materializado tal substituição. É que, pura e simplesmente, nenhuma razão se divisava para efectivar essa intervenção aos 117.000kms e, por conseguinte, num momento em que essa mesma corrente asseguraria ainda pelo menos 30.000kms adicionais… E não procedendo certamente a Ré L... à substituição de peças que não ostentem sinal de desgaste que obrigue ou aconselhe a correspondente troca.

É certo que tal não significa que a Ré L... não possa, por erro, ter indevidamente transmitido à Autora AA a informação que tal troca havia sido concretizada. Ao ponto de esta, sob tal pressuposto, ter transmitido também às oficinas onde efectivou a revisão que não se justificava materializar nova substituição da corrente…

Sucede que a prova produzida não suporta tal narração… É, desde logo, demonstrativo que a Autora AA não tenha apresentado no processo o suposto manual de revisões que, aparentemente, faria menção à materialização da substituição! Isto não obstante ter sido expressamente convidada a tal acto probatório por parte do Tribunal [despacho sob Ref. 100818829], não se achando, obviamente, credível que esse mesmo manual [que todo o condutor tem no interior do veículo em receptáculo próprio para tal efeito] se tenha extraviado. Mas mesmo que tal extravio corresponda à realidade, a realidade é que a falta de junção desse mesmo manual, porque fulcral na afirmação da transmissão da informação errónea que a corrente havia sido substituída, não pode deixar de jogar a seu desfavor. Até porque, como se disse supra, o ónus da prova da ocorrência do defeito impendia sobre a sua pessoa…

Também a circunstância de a viatura surgir com a menção de ter sido objecto de «uma verificação técnica de 288 pontos» [o que se acha estranhamente impugnado pela Ré L... mas surge suportado nos seus anúncios tal como constantes de fls. 140 a 146] não permite, por qualquer forma, extrair a conclusão que a corrente havia sido, só por essa razão, substituída. Significando tão somente que a viatura foi sujeita a uma revisão exaustiva [e, porventura, à corrente de distribuição] e que não se divisou qualquer falha nos seus componentes.

No que não se pode efectivamente afirmar que a Autora AA ficou minimamente convencida que a corrente havia sido substituída em face dos elementos que haviam sido propalados na p.i. como correspondendo à sua fonte de tal informação errónea.

É certo que, em julgamento, CC [cônjuge da Autora AA] acrescentou que essa informação lhe foi também transmitida pelo vendedor por ocasião da visita ao stand para efeitos de materialização do negócio mencionado em c). Em narração, aliás, corroborada por DD [cunhado da Autora AA] que supostamente o terá acompanhado nessa aquisição. Expôs, para tanto, CC que

Indagámos o comercial se, como já tinha alguma quilometragem, havia necessidade de fazer alguma reparação. Até porque já tinha os pneus um pouco gastos… Pelo que indaguei se havia necessidade de mais algo! Ou seja, no motor de arranque, na corrente de distribuição, etc.. O vendedor disse que estava tudo impecável. E que a corrente tinha sido substituída.

As minhas perguntas também se justificaram pois que tenho um vizinho que tinha tido alguns problemas com um .... Fiquei com a percepção que este modelo era propício a ter problemas com a corrente de distribuição.

(…)

O EE era o nome do vendedor. Foi ele que disse que a corrente havia sido danificada.

Trata-se de história, cabe dizê-lo, pouco credível. Afirmação que nem sequer deriva dos laços familiares que unem tais depoentes à Autora AA. Mas antes dos paradoxos e incoerências que ali se adivinham…

Acha-se, desde logo, extraordinária a epifania que CC só granjeou em julgamento quanto à propalada conversa do vendedor. Note-se que o mesmo assume ter encabeçado a concretização do negócio mencionado em c)… No que não se percepciona a razão pela qual a p.i. cala quanto a essa inovadora fonte de informação errónea. Na verdade, aquela peça processual indexa a génese da percepção mantida pela Autora AA [e, por conseguinte, por CC] que a corrente havia sido substituída à «verificação com 288 pontos» e à inscrição no manual de revisões. Atente-se, ademais, que o Tribunal, ciente da possível relevância de tal dado, teve o complementar cuidado de convidar a Autora AA a clarificar se esses eram os únicos fundamentos da sua ciência. Estabelecendo-se, no despacho sob Ref. 100818829, que

Se bem logra percepcionar o Tribunal o teor da enunciação concretizada – que não se acha absolutamente linear ou perceptível no português mobilizado –, a percepção que a Autora AA assumiu de que a correia de distribuição havia sido substituída derivou exclusivamente da circunstância de o livro de revisões, que lhe foi apresentado, fazer menção à concretização dessa mesma substituição numa das intervenções anteriores na viatura. Cabe, por conseguinte, indagar a Autora AA se a percepção assumida pelo Tribunal se acha correcta.

E em resposta a tal convite, temos que a Autora AA renovou, sob Ref. 8982595, que

A A. assumiu que, a correia de distribuição havia sido substituída, porquanto; derivou da informação prestada pelo plano oficial de revisões definido pelo fabricante da marca ..., cujo programa de manutenção, tem a ver com períodos de tempo e/ou em número de quilometragem; para assim, se conhecer sobre a fiabilidade do veículo, como decorre – também - do portfólio da Ré, onde vem anunciando, a viatura ter sido entregue devidamente recondicionada, com a verificação técnica de 288 pontos, tanto de reparação mecânica, como estética, e da própria “garantia de usados sem nada a esconder” (cf. informação da net, igualmente, obtida essa informação.

Ou seja, tendo-lhe sido concedida nova hipótese de precisar a origem da sua convicção que a corrente havia sido substituída, constatamos que a Autora AA persistiu na ausência de qualquer referência à transmissão verbal e directa de tal informação por parte do vendedor. No que se acha, no mínimo, anómalo que tal revelação só se tenha manifestado a CC já em julgamento [estabelecendo este e DD, inversamente, que, afinal, não se consultou o manual de revisões para obter essa informação!!!]

Trata-se, por outra via, de narração irrazoável… Pois que não era minimamente necessário ou racional que esse dado erróneo fosse transmitido por parte do suposto funcionário EE [cujo depoimento, aliás, nunca foi peticionado pela Autora AA]. Pela simples razão que a corrente apenas carecia de ser substituída aos 150.000kms. No que a Ré L... não teria, naturalmente, concretizado a sua substituição em momento prévio! E se confrontado com alguma questão de CC quanto à durabilidade da corrente de distribuição, bastava a esse mesmo funcionário ter explicado ao futuro comprador que a marca ... apenas aconselhava à propalada substituição aos indicados 150.000kms. Enquanto grandeza que o carro, ostensivamente, não havia ainda atingido… Não carecendo, para tanto, de adulterar dados no sentido de estabelecer que a intervenção havia sido já concretizada!

Acresce, por último, que o demais exposto por CC se acha algo inconciliável com a sobredita preocupação com a corrente de distribuição em função dos problemas que divisou a um vizinho. Pois que aquele acrescentou que “nas revisões que fiz, disse para fazerem o necessário. Nunca exigi nada de específico. Também nunca questionei ou informei as oficinas [BOMCAR e ROADY] de nada quanto à corrente de distribuição. Mesmo que o Sr. EE não me tivesse dito nada quanto à substituição da corrente, eu não teria informado nada a esse respeito”. Note-se assim que CC, não obstante afirmar tal manifesta apreensão com a corrente de distribuição por ocasião da aquisição, nunca mais se veio a interessar por esse componente. Isto não obstante estar convicto, segundo a versão da p.i., que a mesma apenas teria uma durabilidade de 80.000kms. No que o natural seria que aquele, pelo menos por ocasião da revisão de fls. 38 [ocasião em que a «nova» corrente já teria, também ela, atingido a sua longevidade], indagasse a oficina quanto ao estado da mesma peça e da necessidade da sua substituição. E, não obstante, terá calado, segundo o seu próprio depoimento, quanto a tal permência… Reconhecendo, paralelamente, que também nada diria mesmo a não ter sido informado que a corrente fora substituída! Na assunção, desta feita, de uma inesperada indiferença para quem sabia que o modelo era propício a ter problemas com a corrente de distribuição. E revelando, ademais, que essa informação errónea, mesmo a existir, em nada contribuiu para a não substituição em tempo da peça [que deveria ter sido aconselhada pela BOMCAR aos 146.127kms de fls. 29 ou pela ROADY aos 158.883kms de fls. 38 tendo em atenção que nunca lhes foi transmitida a informação que a corrente já havia sido substituída]

No que ficam claras as razões pelas quais o Tribunal não logrou divisar credibilidade ao exposto por CC e DD.

e) Temos, por último, que o constante de i) flui do documento de fls. 88 e que, atenta a sua própria designação, não pode deixar de ser a Garantia objecto da subscrição descrita em h). Quanto ao exposto em l) e no ponto 1 dos factos não provados, tratamos de matéria que resulta de fls. 23 a 29 e 38. Isto sendo que o documento de fls. 23 não retrata uma revisão mas apenas a substituição de uma pilha.

Os danos que derivaram da desagregação da corrente de distribuição para o motor e consequente reparação tal como plasmados em n) a q) resultaram do testemunho de BB. O qual logrou, também nesta matéria, oferecer depoimento credível… Já os cuidados que a Ré L... teve na materialização de revisão global da viatura ..-OM-.. nos termos inscritos em w) e x) figura como matéria que deriva da factura de fls. 109 e que surge como inferência lógica da materialização da «verificação de 288 pontos» posta em relevo pela Autora AA. Bem como da circunstância de o veículo ter, nesse seguimento, circulado por 40.000kms sem outro problema que extravase o descrito em m) a o) [e que, como se viu, resulta do desgaste ulteriormente sofrido pela corrente].”.

2.1. Relativamente aos factos provados w) e x), propõe a recorrente a sua eliminação por não revelarem matéria factual e não se definir a sua fundamentação, em quais os elementos probatórios, a que, o tribunal a quo, firmou a sua convicção.

Começando por esta última parte deve afirmar-se que não se procedeu a uma leitura adequada da dita motivação. Na verdade, no último parágrafo da mesma (atrás transcrita) lá se encontra a justificação do julgador de facto para a resposta a tal matéria. Queda, pois, incorrecta aquela afirmação.

Respeitante a ser ou não matéria factual diremos que a factura de fls. 109, mencionada pelo julgador, revela uma revisão da viatura, mas não global, pois cingiu-se aos items nela mencionados. Há, assim, que expurgar de tal facto essa expressão “global” que é de facto de pendor conclusivo e que do referido documento não emerge. Assim, vai eliminar-se a mencionada expressão do apontado facto (que ficará em letra minúscula). 

Também o uso da expressão “qualquer falha” por absolutista e conclusiva deve ser rejeitado, face aos items indicados na factura, objecto de revisão, nem a menção “a verificação de 288 pontos”, referida pelo julgador é suficiente para tanto, pois, a final de contas, não se sabe em concreto quais eram esses 288 pontos. O que se sabe, seguramente, é que a viatura na sequência dessa revisão circulou por mais de 40.000 kms sem outro problema que extravasasse o descrito em m) a o), como se menciona na motivação da decisão de facto. Assim, há que fazer corresponder o aludido facto ao apurado (ficando a anterior redacção em letra minúscula).  

2.2. Quanto aos factos não provados, enumerados 1. a 4., a recorrente pretende que eles passem provados.

2.2.1. Relativamente ao facto não provado 1., a A. tinha alegado tal revisão periódica no art. 18º da p.i, fundando-se no doc. 4 que juntou (a fls. 23/24). Como tal documento se refere não retrata uma revisão mas apenas a substituição de uma pilha, como o julgador de facto acertadamente assinalou, o referido facto tinha de merecer uma resposta de não provado. Agora, em recurso, a recorrente vem invocar o depoimento da testemunha BB para basear a resposta que pretende. Nem sequer ouvimos, nesta parte, a prova gravada, visto que o pequenino excerto que a recorrente transcreve (a fls. 12 das suas alegações) não corrobora, de maneira nenhuma, a comprovação do alegado facto. Diremos até que é pouco séria esta maneira, tão ligeira, de impugnar factos.

Não procede, obviamente, a impugnação nesta parte.

2.2.2. No que respeita ao facto não provado 2. a apelante propugna a resposta de provado com base em presunção legal, partindo-se dos factos provados f) a i), l) e t), e depoimentos das testemunhas FF e DD.

Face ao teor dos apontados factos provados f) – quanto a este nem a menção “verificação de 288 pontos, reparação mecânica”, é suficiente para tanto, pois, a final de contas, não se sabe em concreto quais eram esses 288 pontos e que reparação mecânica foi especificamente efectuada -, g) – quanto a este a menção a “revisão geral” é abstracta pois sabemos do anteriormente referido doc. de fls. 109 que assim não foi -, h),  i) e l), não se vislumbra como, com recurso a presunção judicial, se possa dar como provado o facto não provado 2., isto é, que por ocasião da entrega da viatura a corrente de distribuição constava como tendo sido substituída no correspondente Manual de Revisões. E, tal ilação, ainda menos se justifica com fundamento no facto provado t), pois dele resulta o contrário, nunca a dita corrente havia sido substituída desde a entrada em circulação do veículo.

A maneira fácil de comprovar tal facto era juntar aos autos tal manual de Revisões, o que a A. nunca fez, apesar de ter alegado tal facto logo na p.i., e mesmo depois de o tribunal a quo a ter convidado/notificado a juntar tal manual. Sibi imputet.           

Resta o depoimento das aludidas testemunhas, gravado em CD.

O FF, esposo da A., e o DD, cunhado da A., disseram que o vendedor lhes transmitiu que a corrente de distribuição tinha sido substituída, tal como assinalado na motivação do julgador de facto. Mas só por esta afirmação nunca se poderia responder afirmativamente a tal facto, visto que o seu conteúdo é bem diferente, e diferente, mesmo, da alegação da A. na p.i., que aí não mencionou esta factualidade em concreto. Estaria votado, pois, ao insucesso a impugnação nesta parte. Todavia, em contra - instância, acabaram por revelar que nunca consultaram o aludido Manual, esclarecendo o L. Mourato que não o fez por ter confiado na declaração do vendedor, circunstância aquela que definitivamente afasta a hipótese de dar como provado tal facto.

Não procede, por isso, a impugnação nesta parte.

2.2.3. Respeitante ao facto não provado 3., a A. baseia a sua impugnação nos doc. 3, por si junto com a p.i, e 1, 2, 4 e 5, juntos pela R., com a contestação e depoimento da testemunha BB. O indicado doc. nº 3 é uma declaração de venda sem qualquer referência a substituição de corrente de distribuição. Dos docs. juntos pela R., com a contestação, o nº 1 reporta-se ao contrato de compra e venda, sem, também, referência a substituição de corrente de distribuição, o nº 2 é a respectiva factura, e os 4 e 5 são a Garantia de Usado da R., onde não se menciona, igualmente, qualquer substituição de corrente da distribuição. Quanto ao depoimento da testemunha BB para basear a resposta que pretende, mais uma vez não ouvimos, nesta parte, a prova gravada, visto que no pequenino excerto que a recorrente transcreve (a fls. 16 das suas alegações) a testemunha refere 150.000/160.000 kms, como o julgador de facto referiu na sua motivação. Portanto, a testemunha menciona uma quilometragem que é o dobro da defendida pela A., e esta mesmo assim quer se dê como provada a sua versão factual !?. Mais uma vez, uma maneira pouco séria, por evidente ligeireza, de impugnar factos. 

Improcede, claramente, a impugnação nesta parte.

2.2.4. Por fim, no que respeita ao facto não provado 4., não se divisa qual a sua relevância para o mérito do recurso, a saber o que é que a crença da A. interfere com a solução da causa, nem a apelante a indica. A corrente ou foi substituída ou não foi (e até sabemos que não foi, face ao facto provado t), não impugnado pela A.).

Ora, é apodíctico que a impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.

Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  

Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante ou insuficiente para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.

Por isso, nestes casos de irrelevância ou insuficiência jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

Isto porque, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos que forem impugnados será irrelevante, insuficiente ou desnecessária se nenhuma interferência tiver na dita solução de direito.

No nosso caso verifica-se que o conhecimento do mencionado facto acaba por ser desnecessário, por não ter importância para o recurso da A. e para a solução jurídica da causa. A provar-se tal factos, ele, em concreto, não é relevante, por si, para influir na decisão final do recurso e do mérito da causa.

Considerando o explicitado, e tendo em conta que a impugnação de facto deduzida pela A. visa factualidade que acaba por se tornar dispensável para a sorte do seu recurso, então a referida impugnação, relativamente à apontada factualidade não tem de ser conhecida.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

a)

(,,,)

O nosso ordenamento jurídico tem, não obstante, o cuidado de tutelar de forma ainda mais intensa o adquirente de coisa defeituosa sempre que o mesmo se arvore consumidor. O que materializa, actualmente, por intermédio da disciplina plasmada no Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro. O qual, no entanto e à luz do correspondente artigo 53.º, não se aplica aos contratos celebrados previamente à sua entrada em vigor. No que regerá, a estar em causa venda de bem de consumo outorgado em data prévia [como sucede in casu], o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 28 de Abril. Enquanto diploma que procedeu à transposição para o direito interno da Directa n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a cetos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores [artigo 1.º].

b) (…)

Significa, pois, o exposto que o presente litígio se inscreve no âmago da disciplina da compra e venda de bens de consumo defeituosos. Domínio onde rege o disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 ao estabelecer, sob a epígrafe «Conformidade com o contrato», que

1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.

2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;

b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;

c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

3 - Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.

(…)

Temos, como tal, que o preceito transcrito estabelece um conjunto de presunções ou «factos-índices» de não conformidade. Refere CALVÃO DA SILVA 4JOÃO CALVÃO DA SILVA, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, Coimbra, 2008, 5.ª Edição, página 40, nesta vertente, que

A sujeição de vício e falta de qualidade ao mesmo regime é a primeira coisa a sublinhar. Acertadamente, dada a ausência de critério distintivo inequívoco entre ambos e, sobretudo a certeza e uniformidade que tal simplificação promove.

Deste modo, através da equiparação no tratamento, o legislador torna inútil, melhor, sem interesse prático, a discussão jurídica acerca da distinção (ociosa) entre vício ou defeito e falta de qualidade, evita controvérsias doutrinais e previne soluções jurisprudenciais contraditórias e mesmo arbitrárias (...)

A lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera (...)

Deste modo, à luz do destino da coisa fixado pelas partes ou, na sua falta ou insuficiência, à luz do uso corrente ou função normal das coisas da mesma categoria, é que o tribunal apreciará a existência da defeituosidade, de vício (...) e da falta de qualidades asseguradas ou necessárias para a realização do fim esperado (...)»

Também MENEZES LEITÃO 5LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição, 2006, página 120 tem o cuidado de ressalvar que

A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato.

Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações

Cabe, por outra via, atentar que o ónus da prova da existência de defeito impende sobre o comprador. É este que tem, para tanto, o dever de demonstrar que o bem alienado se mostra desconforme ao contrato celebrado. Isso mesmo é abundantemente afirmado em sede jurisprudencial [vejam-se, para tanto e entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Abril de 2007 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Janeiro de 2019]... E corresponde, ademais, a um entendimento do direito comunitário tolerado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão Froukje Faber [Froukje Faber contra Autobedrijf Hazet Ochten BV, Processo n.º C-497/13, ECLI:EU:C:2015:357] ao preconizar que

No caso de a falta de conformidade se ter manifestado no prazo de seis meses a contar da entrega do bem, o artigo 5.º, n.º 3, da Diretiva 1999/44 atenua o ónus da prova que incumbe ao consumidor, prevendo que se presume que a falta existia no momento da entrega.

Para beneficiar dessa atenuação, o consumidor deve, contudo, fazer prova de certos factos. Em primeiro lugar, o consumidor deve alegar e fazer prova de que o bem vendido não está em conformidade com o contrato em causa na medida em que, por exemplo, não possui as qualidades acordadas no referido contrato ou ainda é impróprio para o uso habitualmente esperado para esse tipo de bem. O consumidor está obrigado a provar a existência da falta. Não está obrigado a provar a causa da mesma nem que a sua origem é imputável ao vendedor.

Em segundo lugar, o consumidor deve provar que a falta de conformidade em causa se manifestou, isto é, se revelou materialmente, num prazo de seis meses a contar da entrega do bem. Demonstrados estes factos, o consumidor está dispensado de demonstrar que a falta de conformidade existia à data da entrega do bem. A ocorrência dessa falta no curto período de seis meses permite pressupor que, caso esta apenas se tenha revelado posteriormente à entrega do bem, já estava presente, «em estado embrionário», no mesmo aquando da entrega [v. exposição de motivos da Proposta de Diretiva COM (95) 520 final, p. 12]. Incumbe, então, ao profissional, se for caso disso, fazer prova de que a falta de conformidade não estava presente no momento da entrega do bem, demonstrando que essa falta tem como causa ou origem um ato ou omissão posterior a essa entrega.

No caso de o vendedor não demonstrar cabalmente que a causa ou a origem da falta de conformidade reside numa circunstância ocorrida depois da entrega do bem, a presunção estabelecida no artigo 5.º, n.º 3, da Diretiva 1999/44 permite ao consumidor alegar os direitos que retira dessa diretiva».

c) Sabemos, para tanto, que o veículo transmitido, percorridos 48.713kms após o negócio entre os sujeitos processuais, assistiu à correspondente corrente de distribuição a desintegrar-se. O que danificou de forma irreparável o motor e inviabilizou a consequente circulação da viatura…

O objecto do contrato de compra e venda celebrado entre a Autora AA e a Ré L... traduz-se num veículo automóvel. Tornando-se verdadeiramente ocioso afirmar que uma viatura é feita para circular. Logo, deve dispor de todas condições aptas a esse fim. No que os danos do motor e consequente imobilização do veículo ..-OM-.. postos em relevo, para além de impedirem cabalmente o fim a que o mesmo se destina, desvalorizaram-na na sua afectação normal.

Sucede que tratamos, in casu, de problema que deriva exclusivamente do normal desgaste do componente que é a corrente de distribuição… Que, no decurso da concretização de uma dada quilometragem [mais precisamente de 150.000kms], deveria ter sido substituída. Ao ponto de, não tendo ocorrido tal intervenção, o desfecho em questão se mostrar inevitável. Isto quando distaram 48.713kms entre a venda do bem e a desintegração do mesmo componente.

Atente-se que não cabia à Ré L... substituir a corrente de distribuição por ocasião da venda. Esta encontrava-se necessariamente num estado adequado [pois que ainda fez 48.713kms adicionais] ao ponto de não caber ao vendedor prover pela troca de componentes que não se achem em condições deterioradas.

E não podemos olvidar, nesta matéria, que tratamos de uma viatura em segunda mão. O que pode, desde logo, conduzir ao encurtamento do prazo de garantia nos termos definidos no artigo 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003. Na verdade, também CALVÃO DA SILVA 6JOÃO CALVÃO DA SILVA, Venda (…), página 116. alude, essencialmente e nesta matéria, ao possível encurtamento dos prazos de garantia definidos naquele preceito. Argumentando a “mais baixa expectativa que o consumidor razoavelmente terá acerca da qualidade e performance de bem já usado e com (mais ou menos) idade. Pense-se na venda de automóveis usados: a qualidade e o comportamento razoavelmente esperável pelo consumidor terá em conta o tempo da precedente utilização e mesmo a idade do veículo”.

Referindo-se às coisas usadas, escreve, por seu turno, PEDRO ROMANO MARTINEZ 7Apud Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8 de Março de 2018. que “o defeito não se identifica com a deterioração motivada pelo uso ou pelo decurso do tempo. O bem usado pressupõe-se com um desgaste normal em função da utilização (p. ex. número de quilómetros percorridos) ou do tempo (p. ex. número de anos a contar da data do fabrico), mas não tem de ser defeituoso”. Isto sendo certo que “no sistema jurídico português a distinção entre coisas novas e usadas não tem consagração legal e não pode ser fundamento para efeitos de excluir a responsabilidade”, ainda que “sendo vendida uma coisa usada, o acordo incide sobre um objecto com qualidade inferior a idêntico novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação, na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal”.

Mas tal constatação obsta à necessária qualificação de desconformidade de tudo o que traduza o desgaste normal do bem… E, vice-versa, não impede a paralela qualificação como desconformidade de tudo o que exceda esse mesmo desgaste. Como se estabelece no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Janeiro de 2014,

O facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, comprado pelo preço de 2.250,00 €, e que, tendo sido examinado no momento da celebração do contrato não apresentava defeitos, não afasta por, si só, a responsabilidade do vendedor, não se afigurando contrárias à boa-fé as pretensões do comprador à reparação das deficiências manifestadas menos de dois meses após a entrega – sobreaquecimento do veículo – ou à sua substituição por um outro equivalente.

(…)

E será que o facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, nos autorizaria a concluir que o comprador não poderia ignorar a ausência de qualidades que se vieram a manifestar pouco depois da sua aquisição, considerando-se que aceitou o produto tal como ele se apresentava?

(…)

Encontrando-se assente: a) a existência de “defeitos”; b) que os mesmos se manifestaram nos dois meses seguintes à sua entrega ao autor; é quanto basta para se considerar verificada a responsabilidade do vendedor pela não conformidade com o contrato, sem que se descortine qualquer má-fé por parte do autor nessa tentativa de responsabilização.

(…)

Contudo, se um bem usado pressupõe um desgaste normal em função da sua utilização ou do tempo, esse desgaste não poderá nunca por em causa a sua funcionalidade e performance, tendo em consideração o fim a que o mesmo é destinado. E, o mínimo que se pode esperar de um veículo automóvel, ainda que adquirido em segunda mão, é que circule sem problemas e sem risco de ficar imobilizado por excessivo aquecimento do motor.

Assim, se o comprador de um automóvel usado terá de ter a consciência de que o mesmo terá sido sujeito a algum desgaste, correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos, que os bancos poderão estar puídos, que os pneus e outras peças de desgaste mais rápido, tendo tido algum uso, poderão ter de vir a ser substituídos num prazo mais curto que se fossem novos, de qualquer modo, será suposto que se trate de um veículo que se encontre apto a funcionar, pelo que, qualquer avaria que importe a paralisação do veículo caberá dentro da responsabilidade do vendedor, desde que ocorra dentro daquele período de um ano após a compra, a não ser que o vendedor, com os seus especiais conhecimentos, alegue e prove que a avaria em questão se deve a alguma peça de desgaste rápido, que sempre teria de ser sujeita a substituição periódica (ou que a avaria se devesse a imprudente utilização ou ato do comprador).

Ora, no caso em apreço, embora a ré alegue, na sua contestação, que o sobreaquecimento da viatura se deveu à “junta da colaça queimada”, e que este é um órgão sujeito a desgaste e a manutenção, o certo é que tais factos não foram dados como provados.

[sublinhado nosso]

O já exposto permite-nos, como tal, assumir diversas conclusões. Desde logo que, a ter ocorrido a falha em apreço após a alienação, se afirmaria esta como clara desconformidade para efeitos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 67/2003. Ou seja, se a viatura, acto contínuo à transmissão, tivesse conhecido a realidade descrita em m) a o), seria então óbvio que a mesma havia sido vendida com a corrente de distribuição em mau estado. Tratando-se, nessa hipótese, de falha que não poderia deixar de ser assumida pelo vendedor…

Sucede que, como vimos, a corrente não ostentava qualquer falha por ocasião da venda… A corrente de substituição estava ainda distante da grandeza aconselhada para a substituição. Tendo sido o uso durante os 48.713kms adicionais sem a materialização dessa troca [que deveria ter ocorrido aos 150.000kms] que veio a determinar o resultado descrito em m) a o). Ora, a Autora AA, quando se decidiu a adquirir um bem com matrícula de 2014 e com 117.811kms, não poderia deixar de saber que os correspondentes componentes ostentavam um gasto ajustado à sobredita idade e quilometragem. Por isso mesmo despendeu um valor claramente inferior ao correspondente à compra de uma viatura nova! No que poderia razoavelmente contar que os componentes que tivessem conhecido o seu prazo de longevidade teriam sido já [uma ou mais vezes] substituídos [como sucede, por exemplo, com pneus, discos ou pastilhas de travão]. Mas não poderia, naturalmente, expectar que outros componentes que ostentavam ainda durabilidade [como, por exemplo, motor, transmissão, correntes de distribuição, etc.] tivessem sido objecto de troca. O valor de aquisição de uma viatura usada tem obviamente em atenção este natural desgaste… Não confiando o comprador de veículo em segunda mão, a título de exemplo, que o motor tenha sido substituído. Não ficando o adquirente desonerado de proceder, ele próprio e a suas expensas, à substituição dos componentes que forem conhecendo o seu limite de longevidade em momento ulterior. Ou seja, de proceder ele próprio à manutenção da viatura! A única excepção a esta regra será, pois, a de substituição das peças e componentes que, à data da venda em 2.ª mão, tenham já ultrapassado [ou estejam próximas] o limiar de durabilidade ou que apresentem, em si mesmo, defeitos.

Só assim não seria, obviamente, caso a Ré L... tivesse assumido com a Autora AA que a corrente de substituição havia sido substituída previamente à alienação. Ao ponto de ser legítimo a esta expectar, no seu ajuste contratual, que esse mesmo componente tivesse uma longevidade equivalente a uma peça nova. Sucede que, não obstante ter alegado essa mesma assunção, a Autora AA não logrou demonstrar o por si articulado.

No que não se pode sequer afirmar que o retratado em m) a o) se traduza numa qualquer desconformidade do veículo ..-OM-.. com o contrato de compra e venda. Tratamos, inversamente, de uma pura falha da Autora AA de desenvolver a manutenção regular de uma viatura em termos que apenas a ela competiam.

d) Ainda que assim não fosse, sempre se acharia evidente que, à data da ocorrência do mencionado em m), a Autora AA já não podia aceder aos direitos definidos no Decreto-Lei n.º 67/2003 ou, outrotanto, ao regime de venda de coisas defeituosas definido no Código Civil.

Atente-se, para tanto, que o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 define, sob a epígrafe «Prazo da garantia», que

1 - O consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.

(…)

Carece tal preceito de ser, ademais, articulado com o artigo 3.º, n.º 2 do mesmo diploma legal. Por intermédio do qual se estabelece uma presunção de anterioridade da falta de conformidade. Assim equiparando o prazo da garantia legal de conformidade ao da presunção da anterioridade dos defeitos. Definindo, para tanto, este mesmo artigo 3.º, sob a epígrafe «Entrega do bem», que

1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Compreendemos, como tal, que o momento relevante para determinar se o bem se encontra em conformidade com o contrato é o da sua entrega [e não, como propugnado pelos sujeitos processuais, o da venda]. Presumindo o feitor da lei que as desconformidades que se manifestam num dado lapso temporal existiam já nessa mesma ocasião. Sem prejuízo, naturalmente, da faculdade que o vendedor tem de ilidir tal presunção [ver, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Janeiro de 2019 e do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Outubro de 2021]… Nos dizeres de JORGE MORAIS CARVALHO 9JORGE MORAIS CARVALHO, idem, página 564

Esta presunção liberta o consumidor da difícil prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, não deixando, no entanto, de ter de provar a falta de conformidade. Se o bem (por exemplo, um telemóvel) deixa de funcionar um ano depois da entrega, o consumidor tem de provar o defeito de funcionamento (falta de conformidade com o contrato, uma vez que este incidia num bem que funcionasse) e, conseguindo fazer essa prova, a lei presume que esse defeito de funcionamento já existia no momento da entrega, embora apenas se tenha manifestado posteriormente.

O vendedor pode ilidir a presunção, provando que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe seja imputável. Por exemplo, o vendedor pode provar – e não basta alegar – que o mau funcionamento do bem resulta de uma queda. O principal meio utilizado pelos profissionais para ilidir esta presunção é exactamente através da prova do mau uso ou do uso incorrecto do bem pelo consumidor. O mau uso apenas pode ser invocado pelo profissional se a falta de conformidade dele resultar directamente, não podendo servir para evitar a responsabilidade em relação a todas as anomalias relativas ao bem.

O artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 32/2003 estabelece, ademais, prazos determinados para a denúncia do defeito e subsequente exercício dos direitos do consumidor. Sob pena de caducidade [que carece de ser invocada, como, aliás, o foi pela Ré L...]… Essa denúncia deverá, como tal e conquanto se trate de bem móvel, ser materializada num prazo de 2 meses após a detecção da falha [artigo 5.º-A, n.º 2]. E os subsequentes direitos deverão ser, nessa sequência, exercidos no prazo de dois anos a contar da data da denúncia [artigo 5.º, n.º 3]. Isto quando a jurisprudência vai no sentido de inscrever o ónus da invocação e demonstração dessa mesma caducidade no vendedor [assim, e como se referiu supra, Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Novembro de 2017 e do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Abril de 2018]…

Na verdade, define o artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, sob a epígrafe «Prazo para exercício de direitos», que

1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.

3 - Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.

4 - O prazo referido no número anterior suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem.

(…)

Ora, a factualidade provada permite-nos compreender que os problemas mencionados em m) ocorreram decorridos mais de 3 anos desde a entrega da viatura. Efectivamente, esta deu-se em 1 de Setembro de 2018 ao passo que a corrente de distribuição se desagregou em 8 de Setembro de 2021. E aquele lapso temporal obriga à necessária constatação que qualquer direito que a Autora AA se poderia arrogar em resultado da aquisição do veículo ..-OM-.. já não podia ser exercido em 8 de Setembro de 2021.

Efectivamente, mesmo a estarmos em face de uma efectiva avaria [e não de um desgaste normal de componente que não foi acautelado com a respectiva substituição], não caberia, sequer, aferir se a desagregação da corrente de distribuição se enquadra no prazo curto de 12 meses ou no prazo alargado de 36 meses definidos na garantia elencada em i). Pois que mesmo este prazo extendido se havia já exaurido à data em que a corrente se desagregou.

(…)

Menos sentido tem ainda a argumentação que a Autora AA não pôde conduzir o seu veículo automóvel nos períodos em questão. Desde logo porque tal se acha incorrecto… Efectivamente, a utilização de viatura, mesmo nos períodos de maior restrição em virtude da Pandemia COVID, nunca foi vedada por lei. O que se verificou foi, a dados momentos, confinamento domiciliário e impossibilidade de circular para fora do concelho de residência. Mas mesmo tais restrições conheciam diversas excepções [algumas delas acessíveis a qualquer concidadão] ao ponto de não se poder falar de uma absoluta impossibilidade de uso do veículo. Ainda que assim não fosse, a realidade é que o decurso do prazo de garantia se acha associado não só à utilização mas também ao puro decurso do tempo. Tanto assim é que, com excepção da restrição definida no n.º 4 do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, a sua suspensão nunca surgiu como pura consequência derivada do não aproveitamento do bem. A ser assim, nunca poderia aquele prazo iniciar-se ou prosseguir na eventualidade de alguma incapacidade tolher o correspondente titular. O que não é, certamente, o propósito visado pelo legislador.

Outrotanto se diga a desejar-se mobilizar os prazos de reacção previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil. Que são, inclusivamente, mais curtos do que os definidos no Decreto-Lei n.º 67/2003. E que também já não poderiam ser, como tal, impulsionados.

e) Com o que o já exposto se mostra suficiente, sem necessidade de outras considerações, para concluir que não subjaz qualquer fundamento ao pedido da Autora AA. Que decai, assim, na presente acção.”.

A apelante discorda pelas razões constantes das suas conclusões de recurso (4ª a 16ª).

A transcrita fundamentação jurídica merece a nossa concordância, mencionando os normativos pertinentes, interpretando-os e aplicando-os bem, com reforço adicional de jurisprudência e doutrina adequada, pelo que importa chancelar tal discurso. Apenas havendo que retorquir à recorrente e precisar determinados aspectos que obstam à pretendida procedência do recurso. Vejamo-los, então.

- na fundamentação de direito o tribunal a quo entendeu que não estávamos perante um defeito, em rigor um vício, segundo o art. 2º do DL 67/2003, mas antes perante uma não conformidade decorrente do desgaste natural da peça indicada, a corrente de distribuição. Entendemos que o fez acertadamente.

A propósito de defeito e referindo-se às coisas novas e usadas, escreve P. Romano Martinez (em Cumprimento Defeituoso, Em Especial na Compra e Venda …, Teses, Ed. 94, págs. 235/236) que “o defeito não se identifica com a deterioração motivada pelo uso ou pelo decurso do tempo. O bem usado pressupõe-se com um desgaste normal em função da utilização (p. ex. número de quilómetros percorridos) ou do tempo (p. ex. número de anos a contar da data do fabrico), mas não tem de ser defeituoso. Para além do desgaste normal, a coisa usada pode ter um vício oculto. Assim, se o sistema de travagem do veículo que foi vendido em segunda mão não funciona convenientemente, há um defeito que excede o desgaste normal.

“No sistema jurídico português a distinção entre coisas novas e usadas não tem consagração legal e não pode ser fundamento para efeitos de excluir a responsabilidade. Todavia, sendo vendida uma coisa usada, o acordo incide sobre um objecto com qualidade inferior a idêntico novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação, na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal” – os sublinhados são nossos.

No mesmo sentido vai J. Calvão da Silva (em Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª Ed., pág. 46 e Ac. do STJ de 27.4.2006, Proc.06A866, em www.dgsi.pt), cabendo ao comprador provar tal excesso como facto constitutivo do seu direito.

Ou seja, os ditos autores e aresto referido só identificam desconformidade/defeito nas coisas usadas se o defeito exceder o desgaste natural.

E a propósito da d) do nº 2 do referido e supratranscrito art. 2º do DL 67/23, seu inicial segmento “as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo á natureza do bem”, refere, ainda, J. Calvão e Silva (em Venda de Bens de Consumo, 4ª Ed., pág. 89) que, “Quanto à natureza do bem relevará a sua idade ou vetustade, a coisa ser nova ou usada, pouco ou muito usada, assim como os diferentes preços por que sejam oferecidos bens do mesmo tipo dotados das características imprescindíveis à sua utilização habitual”, acrescentando mais à frente (a pág. 116) quando alude a possível redução convencional dos prazos de garantia definidos no art. 5º daquele DL “à mais baixa expectativa que o consumidor razoavelmente terá acerca da qualidade e performance de bem já usado e com (mais ou menos) idade.

Pense-se na venda de automóveis usados: a qualidade e o comportamento razoavelmente esperável pelo consumidor terá em conta o tempo da precedente utilização e mesmo a idade do veículo”.      

Sucede, atendo ao apurado, que no nosso caso estamos perante o normal desgaste da componente que é a corrente de distribuição, que era a original desde o início de circulação do veículo – facto provado t) -, e que na data da venda e entrega da viatura, com matrícula de 2014 e já com cerca de 118.000 kms, aparentemente – vide facto provado w) - não precisava de ser substituída (aparentemente deveria ser aos 150.000/160.000 kms). Mas claro já tinha uso sensível, ainda para mais tratando-se de uma viatura da R. que publicamente opera no mercado do renting (com uso alargado por terceiros, ou individual ou uso plural por vários condutores, em bastantes kms). E que mesmo assim, só se estragou cerca de 48.000 kms e tal e 3 anos e tal depois nas mãos da A., apesar de esta ter, no ínterim, efectuado 3 revisões – facto provado l).     

Sem esquecer que se trata de uma viatura em segunda mão, importa sublinhar que qualquer comprador de um automóvel usado tem a consciência de que o mesmo terá sido sujeito a algum desgaste, correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos, pelo que poderá ser necessário ter de vir a ser substituir componentes de maior desgaste natural, salvo se a eventual avaria vier a ocorrer em prazo relativamente curto indiciador de real defeito no veículo.

É-nos, pois, legítimo concluir que à data da aquisição, a A., quando se decidiu a adquirir um bem com matrícula de 2014 e com 117.811kms, e por preço claramente inferior a uma viatura nova, não poderia deixar de saber que os correspondentes componentes ostentavam um gasto natural ajustado à sobredita idade e quilometragem. Importava, pois, que a A. fosse vigiando e efectuando a devida manutenção, pois não se provou que a corrente de substituição havia sido substituída previamente à alienação, ao ponto de esta esperar que tal componente durasse o equivalente a uma peça nova. 

Concluímos, portanto, que o estrago da corrente de distribuição não traduz um qualquer defeito do veículo, inversamente se concluindo que se tratou de uma peça que se desgastou naturalmente.

Adite-se, por fim, que mesmo na garantia convencional – facto provado i) – se excluiu da mesma, nas condições gerais da B), eventos cobertos da C) e exclusões gerais da E) as desconformidades advindas de desgaste natural resultantes do uso da viatura.

- na fundamentação de direito o tribunal a quo entendeu que mesmo perante a consideração que se trataria de um defeito, a garantia legal e convencional estava afastada. Entendemos, mais uma vez que o fez acertadamente.

O comprador tem de provar o defeito no momento em que o bem lhe é entregue (art. 3º, nº 1, do referido DL 67/03). Mas depois o nº 2, do mesmo preceito, estabelece uma presunção de anterioridade da falta de conformidade.

Veja-se o dito art. 3º:

1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Presumindo a lei que as desconformidades que se manifestam num dado lapso temporal existiam já nessa mesma ocasião, salvo as duas situações aí previstas (vide L. Menezes Leitão, D. Obrigações, Vol. III, 5ª Ed., págs. 150/151).  

Por outro lado, decorre do art. 5º, nº 1, do mesmo DL, alusivo a prazos de garantia, que o consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois anos a contar da entrega do bem, tratando-se de coisa móvel.

E o art. 5º-A, nº 1 a 3, do mesmo DL estabelece prazos de caducidade para os direitos do consumidor atribuídos no art. 4º, para a denúncia do defeito e subsequente exercício dos direitos do consumidor, sob pena de caducidade, que a R. invocou, denúncia essa que deverá, quanto a bens móveis, ser efectivada num prazo de 2 meses após a verificação da desconformidade, e após ela exercer os correspondentes direitos no prazo de dois anos. 

Veja-se o referido art. 5º-A:

1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.

3 - Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.

4 - O prazo referido no número anterior suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem

Da factualidade provada decorre que a corrente de transmissão se estragou em 8.9.2021, mais de 3 anos desde a entrega da viatura ocorrida em 1.9.2018. Isto é para além do prazo da garantia legal de 2 anos (1.9.2018 – 1.9.2020).

E mesmo, a estarmos perante uma avaria – uma vez que a corrente de distribuição não vem elencada nas exclusões da E) do facto i), mas também não vem incluída nos Eventos Cobertos da C), que é a que permite o alargamento do prazo de garantia voluntária de 12 meses para 36 -, ela, na melhor das hipóteses, o seu enquadramento na dita C), igualmente, já não estaria dentro do prazo de garantia convencional máximo de 36 meses, pois terminou em 1.9.2021.

- no que respeita ao argumento da apelante relacionado com a COVID, a justificação apresentada pelo tribunal a quo afigura-se-nos acertada. E aqui a reiteramos.

A utilização de viatura, mesmo nos períodos de maior restrição em virtude da Pandemia COVID, nunca foi vedada por lei. O que se verificou foi, a dados momentos, confinamento domiciliário e impossibilidade de circular para fora do concelho de residência. Mas mesmo tais restrições conheciam diversas excepções (algumas delas acessíveis a qualquer cidadão) ao ponto de não se poder falar de uma absoluta impossibilidade de uso do veículo. Ainda que assim não fosse, a realidade é que o decurso do prazo de garantia se acha associado não só à utilização mas também ao puro decurso do tempo. Tanto assim é que, com excepção da restrição definida no nº 4 do art. 5º-A, acima transcrito, a sua suspensão nunca surgiu como pura consequência derivada do não aproveitamento do bem. A ser assim, nunca poderia aquele prazo iniciar-se ou prosseguir na eventualidade de alguma incapacidade tolher o correspondente titular. O que não é, certamente, o propósito visado pelo legislador.

- por fim, defende a apelante que a não assunção de responsabilidade da R., por escassos 7 dias para além do limite temporal da garantia, de 36 meses, após a entrega do bem, constitui, face a motivos de força maior, de não utilização ou redução de utilização da viatura, um manifesto abuso de direito.

Como dissemos no antepenúltimo travessão, partindo da hipótese de estarmos perante uma avaria, como já dissemos e repetimos, não temos por evidente que o prazo de garantia voluntário se estendeu aos 36 meses, antes pelo contrário, face ao que resulta dos Eventos Cobertos da C), atrás referida, que não cobrirá a corrente de distribuição. Por isso afirmar peremptoriamente que só por 7 dias falhou tal garantia e a R. fugiu à sua responsabilidade é temerário senão mesmo incorrecto.

Perante o que se disse no penúltimo travessão, sobre a Covid, não vemos motivo de força maior para não utilização do veículo. Embora se aceite uma redução de utilização, mas sem implicação ou consequência para correspectivamente alargar o prazo de garantia convencional. Nem a A., aliás, defende isto.

E, por último, não divisamos que manifesto abuso de direito terá praticado a R., pois nem a recorrente o fundamenta juridicamente e de modo mínimo, limitando-se a uma mera conclusão sem qualquer justificação, construção ou densificação jurídica. Porque é que há manifesto abuso de direito ? Explicação da apelante é zero.

(…)

 

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a sentença recorrida.  

*

Custas pela A.

*

                                                                     Coimbra, 12.7.2023

                                                                     Moreira do Carmo

                                                                     Luís Cravo

                                                                     Fernando Monteiro