Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
227/18.9T9GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
PERDÃO DE PENAS E AMNISTIA DE INFRAÇÕES
APLICAÇÃO DO PERDÃO EM CASO DE CÚMULO JURÍDICO
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 3.º, N.º 4, DA LEI Nº 38-A/2023, DE 2 AGOSTO
Sumário: I- A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude abrangendo, entre outras, as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, perdoando 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos – artigo 3º, nº1.

II- No entanto, o artigo 7º, nº 1, alínea g) exclui o perdão de pena aos condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

III- Tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 1 (um) ano de prisão e de um crime de roubo previsto pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal contra vítima especialmente vulnerável, na pena de dois anos de prisão e em cúmulo jurídico destas duas penas parcelares na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, embora se verifiquem os pressupostos quanto à idade e data da prática de ambos os factos, o perdão apenas pode ser aplicado ao crime de condução de veículo sem habilitação legal dele ficando excluído o crime de roubo.

IV- Sem prejuízo de o nº 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2 Agosto preceituar que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, esta disposição deve ser interpretada cum grano salis, ou seja, o perdão só incidirá sobre a pena única se todos os crimes que integram o respetivo cúmulo jurídico não estiverem excluídos do perdão de pena. Caso a pena única integre um crime que beneficia do perdão e outro que dele está excluído, deve desfazer-se o cúmulo jurídico, aplicar-se o perdão ao crime que dele beneficia e manter a pena do crime que dele está excluído.

V- No concreto caso, no que respeita à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, deverá “desfazer-se” o cúmulo jurídico e declarar-se perdoado o ano de prisão em que o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, mantendo-se intocada a pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, em que o arguido foi condenado pela prática do crime de roubo contra vítima especialmente vulnerável.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

            Recurso nº 227/18.9T9GRD-A.C1. Comarca de Viseu. Juízo Local Criminal de Viseu - Juiz 2.

            Recorrente: Ministério Público.

            Recorrido: AA.


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             Relator: Luís Teixeira.  

Adjuntos: João Abrunhosa; Maria Teresa de Jesus Rocha Coimbra.

           

           


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Relatório

I

            1. Nos autos supra identificados, por despacho judicial de 4.9.2023, foi efetuado um perdão de pena ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto, que incidiu sobre o cúmulo das penas que entretanto tinham sido aplicadas ao arguido AA. Despacho este que entretanto foi aclarado por despacho judicial de 14.10.2023 (que infra ambos se transcreverão).

2. Não se conformando com a decisão, dela recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:


1. No que tange à pena única de 2 anos e 5 meses de prisão referente aos processos 7/16...e 137/16...e em que estavam causa penas parcelares pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de roubo, praticados respectivamente, em 01.02.2016 e em 20.08.2016, a Mm.ª Juíza aplicou o perdão de (até) um ano de prisão ao remanescente da pena de prisão (já considerando o despacho de aclaração);


2. A Mm.ª Juíza a quo, decidindo (e bem) que ao crime de roubo não é aplicável o perdão, entendeu (também correctamente) que, uma vez que é de aplicar o perdão ao crime de condução sem habilitação legal que integra a pena única do concurso, haverá lugar à reformulação do cúmulo efectuado


3. A exclusão do perdão quanto ao crime de roubo, não prejudica a aplicação deste quanto a outros crimes, no caso quanto ao crime de condução sem habilitação legal (7º, nº 3 da lei 38-A/2023 de 02.08)


4. A nossa discordância prende-se com o facto da Mm.ª Juíza, assim decidindo e tendo até dito que há lugar à reformulação do cúmulo jurídico, aplicar o perdão de um ano de prisão previsto no artigo 3º, nº 1 citado, à pena única que engloba penas que podem ser perdoadas e penas que não podem ser perdoadas, não se reformulando o cumulo jurídico e aplicando perdão à pena perdoável deixando intocada a imperdoável.

5. O perdão previsto no artigo 3º desta lei, em caso de condenação em cúmulo jurídico, incide sobre a pena única (artigo 3º, nº 4 da lei em referência) e penas pode ser aplicada à pena única se todos os crimes forem perdoáveis


6. Pois que, se um dos crimes que integrar a pena única, não for perdoável há que desfazer o cumulo jurídico e aplicar o perdão às penas perdoáveis deixando de fora as imperdoáveis.


7. É isso mesmo que inculca a expressão literal deste artigo 3º, nº 4 da lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, dado que não há aplicação de perdão ao crime de roubo, e este normativo dispõe sobre a aplicação de um perdão que “existe”e que se vai aplicar/fazer incidir sobre uma pena ,o que não sucede com, o crime de roubo.


8. Vigora nesta sede o principio geral de direito de que as medidas de graça, como providências de excepção que são, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas, devendo ,pois, ser objecto de uma interpretação declarativa


9. No caso concreto, o reformular do cumulo jurídico reconduzir-se-ia tão só a aplicar o perdão previsto no art. 3º, nº 1 citado, à pena parcelar do crime de condução sem habilitação legal, perdoando-se o ano de prisão que foi aplicado a este crime e deixando intocada a pena não perdoável.


10. Bem sabemos esta é uma das questões que tem tido várias orientações jurisprudenciais ao longo do tempo (relativamente a outras leis de perdão e amnistia) e que a corrente jurisprudencial que se foi firmando em sentido maioritário, depois de inicialmente com posição díspar, não é neste sentido


11. No entanto, esta operação a que a jurisprudência chegou e que foi adoptada era necessária uma vez que a redação do artigo 8º da Lei n.º 15/94, de 11.05, previa “diferentes medidas” do perdão consoante a dimensão da pena,


12. O que não sucede com a lei 38-A/2023 de 02.08, em que não há diferentes medidas de perdão.


13. Sendo que no caso do autos o cumulo é apenas entre duas penas singulares: uma perdoável outra não, pelo que estamos em crer que os pressupostos do perdão sobre a pena única se alteraram.

Porém, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores farão, como sempre, a costumada J U S T I Ç A.

3. O arguido não respondeu ao recurso.

4. Nesta instância, a Exmª PGA emitiu parecer aderindo inteiramente à resposta do Ministério Público em 1ª instância.

5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II

Tem o despacho recorrido o seguinte teor:

“O arguido AA, nascido a ../../1993,  foi condenado nos presentes autos, por sentença cumulatória proferida a 15 de Janeiro de 2020, já transitada em julgado, na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (relativamente ao cúmulo das penas de prisão em que o arguido foi condenado nos processos que correm termos com os números 7/16.... e 137/16....) e na pena única de 1 (um ano) e 4 (quatro) meses de prisão  (relativamente ao cúmulo das penas de prisão em que o arguido foi condenado nos presentes autos e no processo que corre termos com o número 32/17.OPTVIS).

Objecto de cúmulo foram as seguintes condenações:

- A condenação proferida nos presentes autos por sentença proferida a 30 de Abril de 2019, transitada em julgado a 30 de Maio de 2019, pela prática, em data não concretamente apurada mas situada entre 29 de Março de 2017 e 25 de Janeiro de 2018, em autoria material e na forma consumada, de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público previsto e punido pelo artigo 355º do Código Penal na pena de 9 (nove) meses de prisão, substituída por igual período de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz a quantia de 1350,00€.

A condenação proferida a 19 de Outubro de 2016, transitada em julgado a 18 de Novembro de 2016, no processo que correu termos no Juízo Local Criminal da Guarda sob o n.º 7/16...., pela prática, a 1 de Fevereiro de 2016, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo

A condenação proferida a 19 de Dezembro de 2017, transitada em julgado a 8 de Junho de 2018, no processo que correu termos no Juízo Local Criminal da Guarda sob o n.º137/16...., pela prática a 20 de Agosto de 2016, de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

A condenação proferida a 5 de Maio de 2017, transitada em julgado a 5 de Junho de 2017, no processo que corre termos no Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz ..., sob o n.º 32/17.OPTVIS, pela prática, a 29 de Março de 2017, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 11 (onze) meses de prisão a cumprir em sessenta e seis fins de semana, por períodos de trinta e seis horas,

O arguido foi ligado aos presentes autos para cumprimento das penas únicas em que foi condenado no dia 13 de Maio de 2020, encontrando-se actualmente em situação de liberdade condicional (vide fls. 654 a 660).

No que concerne à pena única de 1 (um ano) e 4 (quatro) meses de prisão (relativamente à condenação proferida nos presentes autos pela prática de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público e à condenação proferida no processo que corre termos com o número 32/17.OPTVIS pela prática de um crime de condução sem habilitação legal), considerando a idade do arguido à data da prática dos crimes em que foi condenado, pena aplicada e tipo de ilícitos em causa nos autos e atento o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, a contrario, e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto – publicada a 2 de Agosto de 2023 – e com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2023, estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá lugar ao perdão de 1 ano de prisão na pena única aplicada, o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal.


*

No que respeita, por seu turno, à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, importa notar que a mesma se reporta à prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e à prática de um crime de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal.

Ora, no que concerne ao crime de roubo, em causa está a prática de um crime contra vitimas especialmente vulneráveis, nos termos previstos no artigo 67.º do Código de Processo Penal, estando, assim, em causa a exclusão de aplicação do perdão que decorre, não no tipo de crime, mas antes do tipo de vítima, conforme expressamente previsto na alínea g) do n.º1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto.

Senão vejamos.

Dispõe o artigo 210.º do Código Penal que:

“1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a

integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - A pena é a de prisão de 3 a 15 anos se:

a) Qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave; ou

b) Se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.

3 - Se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de

prisão de 8 a 16 anos.”

Por seu turno, resulta do disposto no artigo 67.º-A, n.º1, do Código de Processo Penal que se considera “ (…) “Vítima”: i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime; ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte; iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por acção ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica; [considerando-se] b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social; c) 'Familiares', o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima; [considerando-se] d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos. 2 - Para os efeitos previstos na subalínea ii) da alínea a) do n.o 1 integram o conceito de vítima, pela ordem e prevalência seguinte, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e os ascendentes, na medida estrita em que tenham sofrido um dano com a morte, com exceção do autor dos factos que provocaram a morte.

De harmonia com o disposto no artigo 67.º-A, n.º3, do Código de Processo Penal “As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.” (sublinhado nosso).

Deste modo, resultando do disposto no n.º3 do mencionado artigo 67.º A do Código de Processo Penal que as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, importa ainda atentar no disposto no artigo 1.º quanto à criminalidade violenta, criminalidade especialmente violenta e de terrorismo.

Com efeito, ali se prevê que “[p]ara efeitos do disposto no presente Código considera-se: (...) i) 'Terrorismo' as condutas que integram os crimes de infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo; j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos; l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos(...)”.

O crime de roubo previsto no n.º 1 do artigo 210.º do Código Penal é punível com pena de prisão de 1 a 8 anos, na forma consumada e na pena de 1 mês e 5 anos e 4 meses de prisão, na forma tentada, sendo que, atentando nos bens jurídicos protegidos por tais ilícitos, o crime de roubo integra conceito de criminalidade violenta (neste sentido vide, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Junho de 2022, disponível para consulta in www.dgsi.pt), estando em causa crime doloso, dirigido à liberdade das pessoas e à sua integridade física.

Decorre, assim, do exposto que, no que ao crime de roubo concerne, que está em causa a excepção prevista alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei 38-A/2023, de 2 Agosto.

Diferentemente, no que tange ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, considerando a idade do arguido à data da prática do crime, pena aplicada e tipo de ilícito e atentando ao disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto – publicada a 2 de Agosto de 2023 – e com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2023, ainda que quanto ao crime de roubo não se aplique perdão, quanto àquele ilícito, haverá lugar à reformulação do cúmulo efectuado.

Com efeito, decorre do disposto no n.º3 do citado artigo 7.º que a exclusão do perdão não prejudica a aplicação deste quanto a outros crimes, mais resultando expresso do disposto no n.º4 do artigo 3.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Neste conspecto, no que respeita à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, considerando a idade do arguido à data da prática dos crimes em que foi condenado, penas aplicadas e tipo de ilícitos em causa nos autos e atento o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, a contrario, e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto – publicada a 2 de Agosto de 2023 – e com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2023, estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá [também] lugar ao perdão de 1 ano de prisão na pena única aplicada, o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal.

Considerando que o perdão é concedido sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º1 da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, mais determino que, neste particular, os autos aguardem por 1 ano, após juntando CRC actualizado  e solicitando informação ao TEP quanto à situação do condenado.

Notifique e comunique ao TEP”.


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III . Por sua vez, tem o despacho de aclaração o seguinte teor:

“Referência n.º 6160171:

Informe o TEP que a extensão dos perdões concedido por despacho proferido nos autos a 4 de Setembro de 2023, corresponde ao remanescente das penas, caso existam, até 1 ano de prisão (quanto a cada uma das penas únicas).


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            Por forma a aclarar-se a redacção do despacho proferido a 4 de Setembro de 2023, deverá ler-se no final do terceiro parágrafo de folhas 2,  “(…) estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá lugar ao perdão do remanescente da pena única de prisão aplicada, caso exista, até 1 ano de prisão, o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal.” e deverá ler-se no final do antepenúltimo  parágrafo de folhas  “(…) estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá [também] lugar ao perdão do remanescente da pena única de prisão aplicada, caso exista, até 1 ano de prisão, o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal”.

Corrija-se em conformidade.

Notifique”.


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Fundamentação:

O objeto do recurso é delimitado pelo próprio recorrente quando diz na motivação:

“O nosso recurso vem, agora, e apenas, interposto quanto ao perdão aplicado à pena única referida em a), ou seja, quanto à pena única de 2 anos e 5 meses de prisão referente aos processos 7/16.... e 137/16.... e em que estavam causa penas parcelares pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de roubo”.

Como resulta dos autos e do despacho recorrido, a pena única de 2 anos e 5 meses de prisão resulta do cúmulo jurídico das seguintes penas em que o arguido foi condenado:

“condenação proferida a 19 de Outubro de 2016, transitada em julgado a 18 de Novembro de 2016, no processo que correu termos no Juízo Local Criminal da Guarda sob o n.º 7/16...., pela prática, a 1 de Fevereiro de 2016, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Condenação proferida a 19 de Dezembro de 2017, transitada em julgado a 8 de Junho de 2018, no processo que correu termos no Juízo Local Criminal da Guarda sob o n.º137/16...., pela prática a 20 de Agosto de 2016, de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo”.

E quanto a esta pena, decide-se no despacho recorrido:

“No que respeita, por seu turno, à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, importa notar que a mesma se reporta à prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e à prática de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal.

Ora, no que concerne ao crime de roubo, em causa está a prática de um crime contra vítimas especialmente vulneráveis, nos termos previstos no artigo 67.º do Código de Processo Penal, estando, assim, em causa a exclusão de aplicação do perdão que decorre, não no tipo de crime, mas antes do tipo de vítima, conforme expressamente previsto na alínea g) do n.º1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto.

(…)

Decorre, assim, do exposto que, no que ao crime de roubo concerne, que está em causa a excepção prevista alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei 38-A/2023, de 2 Agosto.

Diferentemente, no que tange ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, considerando a idade do arguido à data da prática do crime, pena aplicada e tipo de ilícito e atentando ao disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto – publicada a 2 de Agosto de 2023 – e com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2023, ainda que quanto ao crime de roubo não se aplique perdão, quanto àquele ilícito, haverá lugar à reformulação do cúmulo efectuado”[1].

Esta análise e posição merecem a nossa inteira concordância.

Com efeito, resultando a pena única em causa de 2 anos e 5 meses de prisão do cúmulo jurídico de dois crimes, um abrangido pelo perdão do artigo 3º, nº 1 da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, ou seja, o crime de condução sem habilitação legal e outro, o crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal, excluído da aplicação do perdão da mesma lei – v. alínea g) do n.º1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto – para que o arguido beneficie do perdão quanto ao crime de condução sem habilitação legal, terá de desfazer-se (dar sem efeito) o respetivo cúmulo jurídico, aplicar o perdão a este crime, ficando a perdurar tão só a pena do crime de roubo, uma vez que o mesmo está excluído do benefício do perdão.

No presente caso deverá ser assim porque a pena única integra ou resulta apenas de dois crimes, um que beneficia e outro que não beneficia do respetivo perdão.

Diferentemente seria se se estivesse perante um cúmulo jurídico que integrasse vários crimes, uns que beneficiassem do perdão e outros não. Nessa situação, desfeito o cúmulo jurídico, aplicar-se-ia o perdão ao crime ou crimes que dele pudessem beneficiar e seria feito novo cúmulo jurídico relativamente aos crimes que dele (perdão), estivessem excluídos.


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Mas se o tribunal recorrido andou bem ao decidir que para ser aplicado o perdão de pena ao crime de condução de veículo sem habilitação legal e excluído quanto ao crime de roubo, deveria haver lugar à reformulação do cúmulo efectuado, a verdade é que acabou por decidir em contradição com o que afirmara antes, pois não só não desfez o cúmulo jurídico da pena de 2 anos e 5 meses de prisão como decidiu aplicar o perdão de um ano de prisão àquela pena única:

“Neste conspecto, no que respeita à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, considerando a idade do arguido à data da prática dos crimes em que foi condenado, penas aplicadas e tipo de ilícitos em causa nos autos e atento o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, a contrario, e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto – publicada a 2 de Agosto de 2023 – e com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2023, estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá [também] lugar ao perdão de 1 ano de prisão na pena única aplicada[2], o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal”.

É certo que o nº 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2 Agosto preceitua que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.

Mas esta disposição tem e deve ser interpretada cum grano salis, ou seja, o perdão incidirá sobre a pena única se todos os crimes que integram o respetivo cúmulo jurídico não estiverem excluídos do perdão de perda. Caso a pena única inclua crimes excluídos da aplicação do perdão, terá de proceder-se como acima se deixou exposto:

“Diferentemente seria se se estivesse perante um cúmulo jurídico que integrasse vários crimes, uns que beneficiassem do perdão e outros não. Nessa situação, desfeito o cúmulo jurídico, aplicar-se-ia o perdão aos crimes que dele pudessem beneficiar e seria feito novo cúmulo relativamente aos crimes que dele (perdão), estivessem excluídos”.

A não se entender ou decidir assim, seria deixar entrar pela janela o que se proíbe entrar pela porta, ou seja, aplicar-se-ia, pela solução trilhada pelo tribunal recorrido, a aplicação do perdão, ainda que parcialmente, a um crime legalmente excluído dessa aplicação.

Pegando nas palavras do recorrente Ministério Público,

“No caso concreto, o reformular do cumulo jurídico reconduzir-se-ia tão só a aplicar o perdão previsto no art. 3º, nº 1 citado, à pena parcelar do crime de condução sem habilitação legal, perdoando-se o ano de prisão que foi aplicado a este crime e deixando intocada a pena não perdoável, ou seja, mantendo o roubo (uma vez que inexistem outras penas integrantes do cumulo) a sua pena originária de dois anos de prisão.

O que, salvo o muito respeito por opinião diversa, não se pode fazer é, como se fez, aplicar à pena única de 2 anos e 5 meses de prisão, um perdão de 1 ano de prisão, porquanto desta forma se atinge parte da pena não perdoável. Há pois uma parte da pena não perdoável de 7 meses de prisão que foi abrangida pelo perdão (29 meses de pena única – 12 meses de perdão = 17 meses que é inferior à pena imperdoável de 24 meses em 7 meses), e que, salvo melhor opinião, não o poderia ser dado que o perdão não incide sobre a pena única decorrente de cumulo jurídico que englobe uma das penas parcelares por condenação de um dos crimes excluídos”.


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Perante o exposto, afigura-se-nos que a melhor solução/decisão se traduz, no que respeita à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, que é a que está em causa e é objeto do presente recurso, se deverá “desfazer” o cúmulo jurídico e declarar-se perdoado o ano de prisão em que o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, mantendo-se incólume/intocada a pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, em que o arguido foi condenado pela prática do crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal.


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Dispositivo:

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, pelo que, quanto à pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, declara-se perdoado o ano de prisão em que o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, mantendo-se incólume/intocada a pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, em que o arguido foi condenado pela prática do crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, n.º1, do Código Penal.


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Sem custas.

Coimbra, 25.9.2024.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários subscritores Relator e Adjuntos.


[1] Sublinhados nossos.
[2] Sublinhado nosso.