Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
474/14.2TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACTUALIZAÇÃO DA RENDA
RENDIMENTO ANUAL BRUTO CORRIGIDO
RABC
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº6/2006 DE 27/2, DL Nº 158/2006 DE 8/8, LEI Nº31/2012 DE 14/8, DL Nº 266-C/2012 DE 31/12
Sumário: 1. - No âmbito do mecanismo de aumento de rendas nos contratos de arrendamento habitacional anteriores ao RAU, nos termos dos art.ºs 30.º e segs. do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14-08, a regra é a de o RABC (rendimento anual bruto corrigido) ser obtido por referência ao ano civil anterior (art.º 32.º, n.º 3, do NRAU);

2. - O art.º 19.º-A do DLei n.º 158/2006, de 08-08, aditado DLei n.º 266-C/2012, de 31-12, contém disposições transitórias aplicáveis aos casos em que o senhorio iniciou a atualização de rendas no ano de 2012 ou, se em 2013, antes de o serviço de finanças competente poder emitir o documento comprovativo do RABC relativo ao ano civil de 2012;

3. - A exceção à regra aludida em 1.- está prevista naquele art.º 19.º-A, de que resulta um regime transitório que permitia ao arrendatário, no ano de 2012, optar pelo RABC desse mesmo ano civil, com remessa posterior do respetivo comprovativo ao senhorio (em 60 dias a contar da notificação da liquidação de imposto de IRS).

4. - Vigorando nos anos seguintes a regra da referência ao ano civil anterior, não se justificava em 2013 a convocação de RABC referente a esse mesmo ano, sendo, por outro lado, desnecessária/inútil nova comprovação do RABC de 2012 (o do ano anterior).

5. - A norma do art.º 35.º, n.º 5, NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, sofre de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, na interpretação de que impõe ao inquilino a apresentação ao senhorio de comprovativo de RABC, ou comprovativo de requerimento de RABC, a obter junto da entidade tributária, quando seja facto notório que o respetivo rendimento ainda não pode ser apurado, visto o gravoso efeito cominatório previsto, como tal excessivo/desproporcionado, em desfavor do arrendatário.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório ([1])

E (…), com os sinais dos autos,

intentou ([2]) ação declarativa comum (para despejo) contra

M (…), também com os sinais dos autos,

pedindo:

a) Se declare que o valor da renda devido a partir de 01/02/2014, respeitante ao mês seguinte, é de € 400,78;

b) Se declare justificada a recusa do A. em receber o valor de € 139,26 oferecido pela R. para pagamento da renda de março de 2014;

c) Se declare nulo, por insuficiente, o depósito efetuado pela R. em 05 de fevereiro e, consequentemente, nulos também todos os depósitos que a R. venha a efetuar que não sejam no valor da renda devida;

d) Se declare o incumprimento contratual por parte da R. e, consequentemente, resolvido o contrato de arrendamento vigente entre A. e R., ordenando-se o despejo;

e) Se condene a R. a entregar o locado livre de pessoas e bens;

f) Se condene a R. a pagar as rendas vencidas e vincendas na pendência da ação até entrega efetiva do locado;

g) Se condene a R. a pagar a quantia de € 315,56, a título de rendas retroativas devidas desde fevereiro de 2013;

h) Se condene a R. a pagar juros de mora à taxa legal sobre todas as rendas em dívida desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou:

- ser senhorio, sendo a R. arrendatária, com referência a relação locatícia de imóvel para habitação, cujo contrato de arrendamento remonta a 1971, tendo em novembro de 2012 desencadeado o processo de atualização da renda, nos moldes legais, pelo que, com base no RABC (rendimento anual bruto corrigido) do ano de 2012, foi fixado o valor de renda por um ano – com início em fevereiro de 2013 e fim em janeiro de 2014 –, que ascendia a € 139,26;

- assim, em dezembro de 2013, cabia à R. – como fez em 2012 – comprovar o seu RABC e, não o conseguindo por impossibilidade legal, mostrar ter efetuado pedido respetivo junto do serviço de finanças competente, o que não fez;

- por isso, deixando o valor da renda de ter em conta, a partir de então, o RABC anterior, passou a ascender, uma vez fixado em função do valor do locado, a € 400,78, devido a partir de fevereiro de 2014, como o A. comunicou à R.;

- pretendendo esta pagar valor inferior de renda, o A. não o aceitou, nem aceita qualquer depósito nesses termos, pois que nulo por insuficiente, donde que estejam em dívida os montantes peticionados;

- o não pagamento da renda vencida em 01/02/2014 confere ao A. o direito à resolução do contrato, com as legais consequências.

Contestou a R., pugnando pela improcedência da ação, e deduziu reconvenção, pedindo a condenação do A./Reconvindo no pagamento de € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais.

O A. exerceu o contraditório, mantendo o vertido na petição inicial e concluindo pela improcedência da reconvenção, bem como pela condenação da R./Reconvinte, como litigante de má-fé, em multa e indemnização em montante não inferior a € 2.000,00.

Realizada audiência prévia, rejeitado o pedido reconvencional, saneado o processo e fixados o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final.

Por sentença proferida em 11/11/2015 foi a ação julgada procedente, por provada, com a consequente condenação da R. no peticionado.

Inconformada, vem a R. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([3])

«(…)

O A./Apelado contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento da matéria recursória, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito recursório, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4]) –, o thema decidendum, incidindo sobre a decisão da matéria de direito ([5]), consiste em saber ([6]):

1. - Se é lícito o pretendido aumento de valor da renda;

2. - Se há fundamento para a resolução do contrato por incumprimento do locatário;

3. - Se ocorre abuso do direito.


***

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

É o seguinte o quadro fáctico provado pela 1.ª instância:

«1- O Autor é proprietário da Fracção H correspondente ao 1º andar esquerdo, do nº 25, na Rua (....), de tipologia T4, com um logradouro exterior, sito na freguesia de (....), concelho e comarca de Coimbra, inscrito na matriz urbana respectiva sob o art. 8438 e descrito na CRP de Coimbra sob o nº 2172 (1º da p.i.).

2- Por contrato de arrendamento outorgado em 1971 pelo marido da Ré como arrendatário, foi-lhe dada de arrendamento a fracção identificada em 1) (2º da p.i.).

3- Na sequência do divórcio da Ré e do seu marido, o direito ao arrendamento foi transmitido à R, que assim, ocupa a referida fracção desde 1971. (2º da p.i.).

4- Na sequência da aquisição da propriedade da referida fracção em Agosto de 2011, o A. por carta datada do dia 16-08-2011, comunicou à R. a sua qualidade de proprietário e senhorio e a sua morada como local para pagamento das rendas (3º da p.i.).

5- A R. passou a pagar a renda ao A. na morada deste, tendo a primeira renda, recebida no dia 1 de Setembro de 2011, sido no valor de € 62,39 (4º da p.i.).

6- Em início de 2012, a renda foi actualizada, de acordo com o coeficiente legal aplicável à data, para o valor de € 65,00 (5º da p.i.).

7- Por carta registada com aviso de recepção, datada de 12 de Novembro 2012, o A., na qualidade de proprietário do imóvel referido em 1), veio nos termos do NRAU com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, comunicar à R a transição do contrato de arrendamento para este novo regime e actualização da respectiva renda (7º da p.i.).

8- O A. escreveu, na referida carta: “Em conformidade, o novo valor da renda será de € 1.000,00/mês e o contrato de arrendamento destinado a habitação com prazo certo com a duração de 5 anos, sendo o valor do locado de 72.140,00 € nos termos do CIMI conforme cópia de caderneta predial urbana anexa” (7º da p.i.).

9- Em resposta, por carta registada com aviso de recepção datada de 6 de Dezembro de 2012, a R. “…vem nos termos do disposto art. 36º do NRAU dizer: (…) c) “não obstante propõe o montante de 145 € como actualização de renda, atento o seu rendimento anual bruto corrigido, do qual fará prova nos termos do art. 32º da referida Lei 31/12 de 14 de Agosto. (…)

Junta: (…) comprovativo de que requereu junto do serviço de finanças competente o RABC do seu agregado familiar art. 32º da L 31/2012 de 14/08.” (8º da p.i.).

10- Atenta a invocação pela R. do Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC) ser inferior a cinco Rendimentos Mínimos Nacionais Anuais (RMNA), o A., em resposta, por carta registada com aviso de recepção datada de 7 de Janeiro 2013, comunicou que (…) “aguardo a informação documental de tal rendimento, que caso se venha a verificar servirá para o apuramento do valor da renda nova.

Caso tal rendimento não se venha a confirmar (entre outras consequências legais) será devido o valor de 400,78€/mensal nos termos da m/carta datada de 13 de Dezembro passado.

Em qualquer das circunstâncias, o valor actualizado de renda, será sempre devido a partir do dia 1 de Fevereiro de 2013, inclusivé.” (9º da p.i.).

11- Por carta registada com aviso de recepção, datada de 9 de Agosto de 2013, a R enviou ao A. documento comprovativo – Certidão do seu RABC, com base no seu rendimento no ano de 2012 (10º da p.i.).

12- Em resposta, por carta registada com aviso de recepção, datada de 26 de Agosto de 2013, o A comunicou à R o valor da renda nova: € 139,26 (11º da p.i.).

13- O A. enviou à R., que a recebeu, carta registada com aviso de recepção datada de 9 de Janeiro de 2014, em que comunicou à R o valor da renda devido a partir de mês seguinte, isto é, a partir de Fevereiro de 2014, nos seguintes termos: “(…) partir do próximo dia 1 de Fevereiro de 2014 a renda mensal devida será de 1/15 do valor patrimonial do imóvel, ou seja de 400,78€.

A este valor de renda mensal acrescem as rendas já vencidas (retroactivas) e a recuperar até Junho de 2014, sendo então, de Fevereiro de 2014 a Maio de 2014 devida mensalmente a renda no valor total de 470,41€ (=400,78€+69,63€), em Junho de 2014 no valor de total de 437,82€ (=400,78€+37,04€) e a partir de Julho no valor de 400,78€.” Cfr. Doc. 12. (17º da p.i.).

14- Em resposta, a R. remeteu ao A. carta datada de 14 de Janeiro 2014, a enviar declaração da Autoridade Tributária do dia 13 de Janeiro da qual se extrai que “não é possível a emissão do referido documento, pelo facto da liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), relativo ao ano civil anterior à presente solicitação, não ter sido efetuada por ainda não ter decorrido o prazo legalmente previsto no artigo 77.º do CIRS para a referida liquidação”. (18º da p.i.).

15- O A respondeu à R. em 20 de Janeiro de 2014, por nova carta, considerando extemporânea a junção do referido documento e reiterando o teor da carta datada de 9 de Janeiro (19º da p.i.).

16- A R. enviou ao A., que a recebeu, carta datada de 27 de Janeiro, em que refere, além do mais que “(…) Para não existirem futuros mal entendidos informo que as próximas provas anuais do RABC serão enviadas até ao final dos meses de Dezembro.”, à qual o A respondeu por carta de 3 de Fevereiro, reiterando, mais uma vez, a s/ carta de 9 de Janeiro (20º da p.i.).

17- No dia 4 de Fevereiro de 2014, a R. foi a casa do A. e dispôs-se a entregar € 139,26, para pagamento da renda referente ao mês de Março 2014, acrescidos de € 69,63, referentes a retroactivos, tudo num total de € 208,89 (21º da p.i.).

18- O A. disse à R. que entendia que o valor da renda referente ao mês de Março não era de € 139,26 mais os retroactivos, mas sim, o valor correspondente a 1/15 do valor patrimonial do imóvel, que é € 400,78, acrescido do valor dos retroactivos, pelo que aceitaria receber a renda neste valor e não qualquer outro valor inferior. (22º da p.i.).

19- No dia 5 de Fevereiro, a R. fez um depósito na CGD no valor de € 139,26 acrescidos de € 69,63 de retroactivos - € 208,89 - e remeteu o respectivo comprovativo ao A. por carta expedida no dia 6 de Fevereiro 2014 (23º da p.i.).

20- Em Dezembro de 2013 a R. não enviou ao A. qualquer comunicação (33º da p.i.).

21- O valor do locado, avaliado nos termos do CIMI, é de € 72.140,00 (35º da p.i.).

22- Em data não concretamente apurada situado entre o dia 25 e o dia 31 de Dezembro de 2013, o A. telefonou à R., alertando-a para o facto de, até ao final desse mês, ter de apresentar o documento comprovativo de ter pedido o seu RABC, sob pena de o valor da renda deixar de contemplar esse facto (22º da réplica).».


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B) Impugnação de direito

1. - Da licitude do aumento de valor da renda

Em causa está um pretendido aumento do valor mensal de renda nova de € 139,26 para € 400,78 – a valer para o ano de 2014 –, conforme comunicação do A. (senhorio) à R. (locatária), datada de 09/01/2014, em que aquele lhe transmitiu que o novo valor de renda era devido a partir do mês seguinte (fevereiro de 2014), atendendo a 1/15 do valor patrimonial do imóvel, assim desconsiderando o rendimento anual bruto corrigido (RABC), que havia anteriormente sido inferior a cinco rendimentos mínimos nacionais anuais (RMNA), o que levara à fixação da renda anual naquele montante de € 139,26 (para o ano de 2013, com referência aos rendimentos do ano civil anterior, o de 2012).

Invocou, então, o A./Apelado que a contraparte nada comprovou, no tempo devido – ao contrário do que fizera no ano anterior –, quanto ao dito RABC, isto é, em dezembro de 2013 (e com vista à fixação do valor de rendas para o ano seguinte, o de 2014) a locatária não teria apresentado nenhum documento comprovativo, nem certidão do RABC, com base no rendimento no ano de 2013, nem sequer comprovativo de ter requerido junto do serviço de finanças competente tal RABC.

Na sentença, expostos os factos dados como provados, foi dada razão a tal argumentação do demandante, considerando-se que «… sobre o arrendatário que, na resposta a que se refere o art. 31º do NRAU (Lei nº 6/2006, 27/02, na redacção da Lei nº 31/2012, de 14/08) invoque e comprove perante o senhorio que o RABC do seu agregado é inferior a cinco RMNA, recai o ónus de renovar anualmente essa prova, conforme expressamente determina o n.º 5 do artº 35º, “sob pena de não poder prevalecer-se da mesma”.

Efectivamente, tal circunstância deve, não só ser necessariamente invocada e comprovada na resposta do arrendatário habitacional (art. 31º) à comunicação do senhorio, como a sua prova deverá renovar-se anualmente no mês correspondente àquele em que essa invocação haja sido feita, conforme expressamente determina o citado artigo 35º nº 5, sob pena de o arrendatário, caso não cumpra essa obrigação, não poder prevalecer-se da circunstância alegada. Ou seja, o arrendatário que, tendo invocado qualquer das mencionadas circunstâncias, venha no decorrer do período transitório, a não cumprir com a obrigação da renovação da prova (seja até porque a circunstância alegada tenha, entretanto, deixado de verificar-se), deixará de poder auferir dos benefícios desse especial regime de transição».

Tudo para concluir que, «no caso dos autos, o mês correspondente àquele em que essa invocação tinha sido feita no ano anterior era o de Dezembro de 2013, facto para o qual o A. alertou a Ré, por contacto telefónico – facto provado 22). E, uma vez que em Dezembro de 2013, previsivelmente, a Ré não dispunha do respectivo documento comprovativo (tal como não dispusera em Dezembro de 2012), podia e devia, ao invés, ter demonstrado ter requerido documento comprovativo do valor do RABC junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme prevê o art. 32º, n.º 2 do referido NRAU».

Donde, pois, o entendimento – adotado na sentença – no sentido de ter a R./locatária deixado de poder auferir dos benefícios do especial regime de transição, cessando o regime de atualização da renda estabelecido para o período transitório, com fixação da renda nos pretendidos € 400,78.

Vejamos, então.

Dispõe, quanto a arrendamento para habitação, o art.º 30.º do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14-08, que «a transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:

a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;

b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;

c) Cópia da caderneta predial urbana».

Nesse âmbito, estabelece o art.º 31.º do mesmo diploma legal, quanto à resposta do arrendatário:

«1 - O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior.

(…)

3 - O arrendatário, na sua resposta, pode:

a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;

b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º;

(…).

4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias:

a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º;

b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º

(…)

6 - A falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.».

Já o art.º 32.º (com epígrafe “Comprovação da alegação”) dispõe:

«1 - O arrendatário que invoque a circunstância prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo anterior faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo emitido pelo serviço de finanças competente, do qual conste o valor do RABC do seu agregado familiar.

2 - O arrendatário que não disponha, à data da sua resposta, do documento referido no número anterior faz acompanhar a resposta do comprovativo de ter o mesmo sido já requerido, devendo juntá-lo no prazo de 15 dias após a sua obtenção.

3 - O RABC refere-se ao ano civil anterior ao da comunicação.».

Por seu lado, prescreve o art.º 35.º:

«1 - Caso o arrendatário invoque e comprove que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 31.º

5 - No mês correspondente àquele em que foi feita a invocação da circunstância regulada no presente artigo e pela mesma forma, o arrendatário faz prova anual do rendimento perante o senhorio, sob pena de não poder prevalecer-se da mesma» ([7]).

Vem sendo entendido na jurisprudência desta Relação, com pertinência para o caso dos autos, que:

«A Lei 31/2012, de 14.8, introduziu grandes alterações em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, celebrados antes da vigência do RAU, por iniciativa do senhorio, mostrando-se esta matéria regulada, quanto aos arrendamentos para habitação, nos artigos 30º e seg. do NRAU.

Assim, conforme decorre do art.º 27º do NRAU, aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU – DL 321-B/de 15.10 – aplica-se o disposto no art.º 30º a 37º e 50º a 54º, podendo, deste modo e ao que interessa na situação dos autos, por iniciativa do senhorio, fazer transitar o mesmo para o NRAU e actualizar a renda, desde que este faça essa comunicação ao arrendatário, instruída com os elementos mencionados no art.º 30º do NRAU (…).

Na sequência dessa comunicação a lei confere ao arrendatário o direito de resposta – n.º 3 do art.º 31º do NRAU – a exercer no prazo de 30 dias a contar da data da recepção da comunicação feita pelo senhorio, com as seguintes finalidades:

a) aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;

b) opor-se ao valor da renda, proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 33º;

c) em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo e duração do contrato proposto pelo senhorio;

d) denunciar o contrato…

Nessa resposta o arrendatário, se for caso disso, nos termos do n.º 4 do mencionado art.º 33º do NRAU, deve ainda invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias pessoais:

a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35º e 36º;

(…)

A verificação destas circunstâncias determinará a aplicação de regimes especiais a estes contratos que se encontram previstos nos referidos artigos 35º e 36º do NRAU.

A Lei n.º 31/2012, dando nova redacção ao art.º 32º do NRAU, determinou que o arrendatário que invoque a circunstância acima referida na alínea a) deve fazer acompanhar a sua resposta de documento comprovativo emitido pelo serviço de finanças competente, do qual conste o valor do RABC do seu agregado familiar (n.º 1); e se não dispuser, à data da sua resposta, do documento referido no número anterior deve fazer acompanhar a resposta do comprovativo de ter o mesmo sido já requerido, devendo juntá-lo no prazo de 15 dias após a sua obtenção (nº 2), reportando-se o RABC ao ano civil anterior ao da comunicação (n.º 3); (…).

Contudo, o art.º 3º do Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31.12, aditou ao Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8.8, que estabelece o regime de determinação do RABC, o artigo 19.º-A, o qual contém disposições transitórias aplicáveis na hipótese de o senhorio ter iniciado o processo de actualização de rendas ainda durante o ano de 2012 ou em 2013, enquanto o serviço de finanças competente não puder emitir o documento comprovativo do qual conste o valor do RABC relativo a 2012 (n.ºs 1 e 9 do referido art.º 19.º - A). Este novo dispositivo veio regular o procedimento a seguir no caso do arrendatário ter invocado rendimentos inferiores a 5 RMNA relativos ao ano de 2012, quer o senhorio tenha desencadeado o processo de aumento de rendas nesse mesmo ano (n.º 1), o que já tinha sido permitido pelo art.º 11.º, n.º 4, da Lei n.º 31/2012, ou em 2013 (n.º 9).

Tendo presente que as repartições de finanças só estão em condições de emitir esse documento em meados do ano de 2013, apenas se exigiu que esses arrendatários enviassem ao senhorio o documento comprovativo do qual conste o valor do RABC do seu agregado familiar no prazo de 60 dias a contar da notificação da liquidação do IRS relativo ao ano de 2012, emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Assim, o art.º 19.º-A do Decreto-Lei n.º 158/2006, introduzido pelo art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 266-C/2012, derrogou tacitamente o disposto nos três primeiros números do art.º 32.º do NRAU, relativamente aos processos de actualização da renda iniciados durante o ano de 2012 ou em 2013, no período em que o serviço de finanças competente ainda não esteja em condições de emitir o documento comprovativo do qual conste o valor do RABC relativo a 2012» ([8]).

A regra é, pois, a de o RABC ser referente ao ano civil anterior (quanto aos respetivos rendimentos e outros elementos) ao da comunicação do senhorio, sendo que o arrendatário que não disponha, à data da sua resposta, do documento comprovativo (emitido pelo serviço de finanças competente), deve juntá-lo em 15 dias após a sua obtenção (fazendo, porém, acompanhar a resposta do comprovativo de o ter já requerido). É o que resulta do dito art.º 32.º do NRAU.

A exceção é a prevista no também citado art.º 19.º-A do DLei n.º 158/2006, de 08-08, aditado pelo DLei n.º 266-C/2012, de 31-12, preceito de que resulta um regime excecional para o arrendatário – em seu benefício, para sua proteção ([9]) –, já que lhe ficou permitido, a título transitório, durante o ano de 2012, na sua resposta, comunicar ao senhorio a sua opção por RABC referente a esse mesmo ano civil (o de 2012 e não o anterior).

Caso em que o arrendatário ficou obrigado a remeter o comprovativo do RABC ao senhorio apenas no prazo de 60 dias a contar da notificação da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (relativo ao ano de 2012).

Regime excecional protetivo aplicável também, com as necessárias adaptações, ao arrendatário que, durante o ano de 2013, invocasse RABC inferior a cinco RMNA, enquanto o serviço de finanças competente não pudesse emitir o documento comprovativo relativo ao ano de 2012.

Quer dizer, revertendo ao caso dos autos, no ano de 2012 – perante comunicação do senhorio de novembro desse ano – a R./Apelante optou, como lhe permitia a lei (regime transitório/excecional), por RABC referente a esse mesmo ano civil (e não ao ano anterior).

Por isso, pôde dispor de prazo alargado para comprovação junto do senhorio, comprovação a que procedeu em agosto de 2013, após a prova documental lhe ter sido facultada pela entidade fiscal.

Isto quanto ao ano de 2012 e respetivo montante de renda, matéria em que não há controvérsia.

E quanto ao ano de 2013?

É certo dispor o n.º 5 do aludido art.º 35.º do NRAU que o arrendatário faz prova anual do rendimento perante o senhorio, no mês correspondente àquele em que foi feita a invocação inicial e pela mesma forma, sob pena de não poder prevalecer-se da mesma.

A dúvida surge logo quanto ao ano civil relevante para aferição do RABC.

É que a regra, como visto, é a de o RABC ser reportado ao ano antecedente (por referência, pois, ao ano civil imediatamente anterior), o que, no caso, nos transportaria para o ano civil de 2012, com referência ao qual a locatária havia, como é patente, efetuado a prova pertinente cerca de quatro meses antes.

E parece que o regime legal transitório (de exceção) aludido só vale para o ano de 2012: só nesse poderia o locatário optar (mencionado art.º 19.º-A do DLei n.º 158/2006) por RABC referente ao mesmo ano civil (o de 2012), em vez do anterior (2011).

Assim, passado o ano de 2012, nos anos seguintes o RABC teria, à luz do regime legal então vigente, de acordo com a regra estabelecida, de ser reportado ao ano civil anterior (em 2013 com referência ao ano civil de 2012, em 2014 com referência ao ano civil de 2013, e assim sucessivamente).

Doutro modo, estar-se-ia a aplicar uma norma do regime transitório/excecional fora do âmbito da respetiva previsão legal, com tendencial perpetuação da disciplina transitória, quando deveria ser aplicado o regime geral, expressamente previsto.

Na verdade, a nosso ver (e salvo o devido respeito por diverso entendimento), esta vertente do regime transitório apenas está prevista – repete-se – para o ano de 2012, só nesse (com exclusão dos posteriores) podendo o locatário optar por RABC referente ao mesmo ano civil.

Do exposto já decorre, nesta perspetiva, que a prova que cabia à R./Apelante fazer em dezembro de 2013 era a que se reporta ao RABC referente ao ano civil anterior – o de 2012 (ano civil relevante) –, prova essa já efetuada meses antes (em agosto de 2013), pelo que, por inutilidade, não teria de ser repetida.

Se em dois anos seguidos (2012 e 2013) a renda ficava na dependência de um mesmo RABC (o referente ao ano civil de 2012), tal devia-se somente ao dito regime legal transitório, ponderadamente protetivo do arrendatário, no seu desvio à regra geral quanto ao ano de 2012.

Donde, pois, que não possa acolher-se o pretendido aumento significativo do valor da renda, não se mostrando que tenha a locatária perdido o direito a ser-lhe aplicado o regime especial previsto no art.º 35.º do NRAU, não sendo dotada de eficácia a pretensão da contraparte no sentido de o contrato de arrendamento ter passado a estar submetido irrestritamente ao NRAU, mormente quanto a montantes de renda.

Mostrando-se ineficaz a comunicação do A./Apelado datada de 09/01/2014, em que comunicou à R. o valor da renda que considerava devido a partir de fevereiro seguinte (€ 400,78), por demonstrar fica que tenha ocorrido uma alteração válida da renda em causa, pelo que o depósito efetuado pela R./Apelante, em face da recusa de recebimento da renda pelo seu senhorio, era idóneo ao pagamento da renda em vigor, devendo, como tal, ter-se por liberatório.

Acresce que, como referido em Ac. TRL de 22/06/2016 ([10]):

«O artigo 19º, nº 1, do Decreto-Lei nº 266-C/2012, de 31 de Dezembro (…) esclarece que se trata do ano anterior ao da “invocação pelo arrendatário junto do senhorio, de que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA”, “já que, por definição, só depois de terminado o ano se pode saber, com segurança, qual o rendimento auferido pelo agregado familiar do inquilino”.

“Esta solução implica situações de flagrante injustiça: como é o “serviço de finanças competente” que certifica o RABC, há que tomar em consideração a data, a partir da qual, ele o pode fazer – sendo certo que isso depende do momento em que as pessoas singulares estão obrigadas a declarar os seus rendimentos”. “Ora, segundo o calendário fiscal do Portal das Finanças, a entrega das declarações para efeito de liquidação de IRS estende-se pelos meses de março, abril e maio – pelo que, só depois disso, poderá ser certificado o RABC”.

Consequentemente, “quando a iniciativa do senhorio tiver lugar nos primeiros meses do ano, o rendimento a ter em conta deveria ser, não o do ano anterior mas o do ano que antecede este – até porque obriga o senhorio a esperar até junho ou julho pela certidão do serviço de finanças competente”.

De resto, foi precisamente esta a solução que o legislador consagrou, na disposição transitória contida no art. 19º/2 do cit. DL. nº 266-C/2012, para vigorar no decurso do ano de 2013, ao facultar que a determinação do RABC durante o ano de 2012 devesse ter em conta os rendimentos auferidos nesse ano (com a suspensão do pagamento de subsídios de férias e de Natal).

(…)

De resto, dois anos volvidos sobre a publicação da cit. Lei nº 31/2012, o próprio legislador haveria de reconhecer a impraticabilidade da solução legislativa consagrada no cit. nº 5 do art. 35º do NRAU (na redacção emergente daquela Lei), ao exigir que o arrendatário fizesse prova anual do seu rendimento perante o senhorio, sob a cominação de não poder prevalecer-se da circunstância prevista no mesmo preceito (arrendatário com RABC inferior a cinco RMNA), “no mês correspondente àquele em que foi feita a invocação” dessa circunstância.

Efectivamente, o art. 3º da Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro (entrada em vigor a 18/1/2015: cfr. o seu artigo 9º) alterou a redacção daquele nº 5 do art. 35º do NRAU, conferindo-lhe estoutra redacção:

“Nos anos seguintes ao da invocação da circunstância regulada no presente artigo, o inquilino faz prova dessa circunstância, pela mesma forma e até ao dia 30 de setembro, quando essa prova seja exigida pelo senhorio até ao dia 1 de setembro do respetivo ano, sob pena de não poder prevalecer-se daquela circunstância.”

O que significa que, actualmente, o arrendatário que, ao ver-se confrontado com a exigência dum aumento de renda por parte do seu senhorio, tenha invocado o facto de o seu agregado familiar possuir um rendimento anual bruto corrigido inferior a 5 retribuições mínimas nacionais (art. 31º, nº 4, al. a), do NRAU), só carece de voltar a fazer prova dessa circunstância, nos anos subsequentes ao dessa invocação, até ao dia 30 de Setembro de cada ano, e apenas se o senhorio lhe exigir essa prova até ao dia 1 de Setembro de cada ano.

E a disposição transitória contida no nº 6 do art. 6º desta Lei nº 79/2014 mandou aplicar a nova redacção conferida por este diploma ao cit. nº 5 do art. 35º do NRAU “a todas as actualizações da renda efectuadas ao abrigo da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto”.

De todo o modo, como o nº 1 deste art. 6º da Lei nº 79/2014 ressalva da aplicação das alterações por si introduzidas à Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, “os direitos e obrigações decorrentes dos actos já praticados” nos procedimentos de transição para o NRAU, previstos nos artigos 30.º e seguintes e 50.º e seguintes, que se encontrem pendentes na data da sua entrada em vigor, sempre se poderia dizer que de nada aproveitaria à ora Requerida/Apelada a circunstância de, a partir de Janeiro de 2015 (data da entrada em vigor das alterações introduzidas à Lei nº 6/2006 pela cit. Lei nº 79/2014), os arrendatários só carecerem de voltar a fazer prova dos seus rendimentos, nos anos subsequentes àquele em que invocaram tal circunstância para se oporem ao aumento de renda pretendido pelo seu senhorio, até ao dia 30 de Setembro de cada ano e, em qualquer caso, apenas se tal prova lhes for exigida pelo respectivo senhorio até ao dia 1 de Setembro de cada ano, por isso que o acto por ela omitido ocorreu na vigência duma lei que exigia que essa prova fosse feita até ao final do mês de Janeiro de cada ano».

Aresto este que, por sua vez, remete para jurisprudência do Tribunal Constitucional ([11]), considerando inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14-08, segundo a qual “os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção», por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição”.

E, continua aquele Ac. da Relação de Lisboa:

«… por identidade de razão, também sofre de inconstitucionalidade material, “por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição”, a norma que se extrai do cit. art. 35º, nº 5, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, segundo a qual o arrendatário que não faça prova anual do rendimento perante o senhorio, até ao fim do mês correspondente àquele em que foi por ele invocado perante o senhorio o regime de excepção decorrente do facto de o Rendimento Anual Bruto Corrigido [RABC] do seu agregado familiar ser inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais [RMNA], fica automaticamente impedido de beneficiar dessa circunstância, mesmo que não tenha sido previamente alertado pelo senhorio para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção.».

Ora, assim sendo – posto que se concorda com esta argumentação jurisprudencial –, constata-se que, in casu, apenas em data não concretamente apurada de finais de dezembro de 2013 (situado entre 25 e 31 desse mês), o A. telefonou à R., referindo-lhe que, até ao final desse mês, teria de apresentar o documento comprovativo de ter pedido o seu RABC (respeitante ao ano civil de 2013), sob pena de o valor da renda deixar de contemplar esse facto.

Isto é, teria a locatária de comprovar junto do senhorio o seu RABC referente ao ano civil de 2013 ainda no próprio ano de 2013 – o que, consabidamente, lhe era de todo impossível, face aos conhecidos tempos do aparelho fiscal – ou, ao menos, comprovar ter já pedido esse RABC, quando só muitos meses depois (em pleno ano de 2014) o comprovativo de RABC lhe seria entregue pelo serviço de finanças, o que se mostra pouco lógico e afrontaria, volta a dizer-se, a regra do mencionado art.º 32.º, n.º 3, do NRAU, segundo a qual o RABC se refere ao ano civil anterior ao da comunicação.

Por outro lado, o dito telefonema de finais de dezembro de 2013 não poderia, de per si, ter-se por adequado alerta prévio – atendendo à forma escolhida, ao conteúdo veiculado e aos resultados imediatas – para a necessidade de juntar os referidos documentos e consequências da sua não junção, posto que não se mostra que deixasse margem temporal suficiente para uma atempada junção (terminus do prazo no final desse mesmo mês) e vista a ocorrida reação subsequente.

Na verdade, logo depois, em 09/01/2014, o A. enviou à R. carta registada com aviso de receção (já não mero telefonema), comunicando-lhe um novo valor de renda devido, e, perante a pronta resposta daquela – disponibilizando-lhe declaração da Autoridade Tributária, de 13/01/2014, atestando a impossibilidade de emissão do referido documento –, remeteu-lhe nova carta (esta de 20/01/2014), considerando extemporânea a junção do referido documento.

Ora, tal postura do A./Apelado, no quadro de relação contratual tão duradoura, parece mais forçar uma situação de “facto quase consumado”, do que uma conduta conforme à boa-fé objetiva, cuja regra de conduta postula, diversamente, uma atuação leal e proporcional das partes, comprometida com a satisfação do interesse contratual de ambas, em vez do sacrifício evitável do interesse relevante de uma delas, como seria um tão elevado aumento de renda.

E, como referido em aresto da Relação do Porto ([12]):

«… a norma ao artº 35º nº 5 NRAU, na redacção original da Lei nº 31/2012 de 14/8, encontra-se em conflito com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos (como subprincípios concretizadores do Estado de Direito democrático – artº 2º CRP).

Não porque se encontre em causa a calculabilidade e previsibilidade da situação jurídica do indivíduo perante as modificações do ordenamento jurídico (a lei é clara), mas porque é a própria concepção deste sector do sistema jurídico – a fixação de rendas nos contratos de arrendamento urbano, designadamente nos contratos de arrendamento urbano anteriores ao RAU (1990) – que não proporciona a segurança do tráfego jurídico, e potencia de uma forma nítida relações inter-partes no contrato em que seja favorecido o segredo e a ausência de cooperação inter-subjectiva, pois que coloca exclusivamente a cargo do inquilino, como um ónus, acompanhado de pesadas cominações, uma comprovação anual vital para a manutenção do arrendamento, manutenção essa que a lei visou preservar – é certo, com condições.

Que a posição do inquilino habitacional, em contrato anterior ao RAU (1990) merece consideração e cuidado, mesmo em face do normal direito do senhorio de propor uma nova renda, na verdade, um aumento de renda, provam-no os meandros legais a que a lei submete a negociação das partes nos artºs 35º e 36º NRAU.

A norma do artº 35º nº 5 NRAU, na redacção de 2012, ao invés de reduzir o risco de ocorrências que constituam perfeitas surpresas para as partes, designadamente para o inquilino, potencia ainda mais o risco social adveniente da celebração dos contratos de arrendamento e das mutações nos mesmos, pelo aumento de rendas.

(…)

Todavia, não podemos deixar de acentuar, como já fizemos, que a norma do artº 35º nº 5 da Lei nº 31/2012, na sua redacção original, era um convite à falta de colaboração inter-subjectiva no desenvolvimento de uma relação contratual duradoura, estabelecendo uma sanção claramente desproporcionada e desadequada, tendo em vista a relação contratual a que se dirigia, de tal forma que o legislador alterou efectivamente a norma, nos termos a que já aludimos, através da referida Lei nº 79/2014 de 19/12.

Neste sentido, a interpretação da norma em causa que obrigue à apresentação de um comprovativo de RABC ou de um mero comprovativo de requerimento de RABC, junto da Autoridade Tributária, em momento em que seja de conhecimento de todos que o referido rendimento ainda se não encontra em condições de ser calculado, sob pena de o arrendatário habitacional em contrato anterior ao RAU não poder beneficiar das actualizações de renda proporcionadas aos seus rendimentos, referenciadas na al. c) do nº 2 do artº 35º NRAU, tal interpretação, dizíamos, é inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos».

2. - Da existência de fundamento resolutivo

Cabe, agora, apurar se há fundamento para a resolução do contrato por incumprimento do locatário, no que concerne à sua obrigação de pagamento pontual e integral das rendas devidas.

Como visto, ancorava-se o A./Apelado na licitude do pretendido aumento do montante das rendas e no incumprimento contratual da locatária quanto a tal montante aumentado.

Porém, como também já referenciado, mostrando-se ineficaz a comunicação do senhorio de aumento do valor da renda, indemonstrada ficou a pretendida alteração da renda em causa, pelo que o discutido depósito efetuado pela R./Apelante, perante a recusa de recebimento pelo credor/senhorio, era idóneo ao pagamento da renda reclamada, devendo ter-se por liberatório.

O que logo afasta o invocado incumprimento contratual, deixando sem suporte a decorrente resolução do contrato de arrendamento e o pretendido despejo.

Tal como razão não existe, neste percurso lógico, para condenação no demais peticionado, havendo, por isso, em substituição do Tribunal a quo, a R./Apelante de ser absolvida dos pedidos formulados.

Com o que procede a apelação, prejudicado ficando o mais, mormente a questão do abuso do direito.

                                               ***

IV – Sumariando (cfr. art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - No âmbito do mecanismo de aumento de rendas nos contratos de arrendamento habitacional anteriores ao RAU, nos termos dos art.ºs 30.º e segs. do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14-08, a regra é a de o RABC (rendimento anual bruto corrigido) ser obtido por referência ao ano civil anterior (art.º 32.º, n.º 3, do NRAU);

2. - O art.º 19.º-A do DLei n.º 158/2006, de 08-08, aditado DLei n.º 266-C/2012, de 31-12, contém disposições transitórias aplicáveis aos casos em que o senhorio iniciou a atualização de rendas no ano de 2012 ou, se em 2013, antes de o serviço de finanças competente poder emitir o documento comprovativo do RABC relativo ao ano civil de 2012;

3. - A exceção à regra aludida em 1.- está prevista naquele art.º 19.º-A, de que resulta um regime transitório que permitia ao arrendatário, no ano de 2012, optar pelo RABC desse mesmo ano civil, com remessa posterior do respetivo comprovativo ao senhorio (em 60 dias a contar da notificação da liquidação de imposto de IRS).

4. - Vigorando nos anos seguintes a regra da referência ao ano civil anterior, não se justificava em 2013 a convocação de RABC referente a esse mesmo ano, sendo, por outro lado, desnecessária/inútil nova comprovação do RABC de 2012 (o do ano anterior).

5. - A norma do art.º 35.º, n.º 5, NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, sofre de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, na interpretação de que impõe ao inquilino a apresentação ao senhorio de comprovativo de RABC, ou comprovativo de requerimento de RABC, a obter junto da entidade tributária, quando seja facto notório que o respetivo rendimento ainda não pode ser apurado, visto o gravoso efeito cominatório previsto, como tal excessivo/desproporcionado, em desfavor do arrendatário.

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, na procedência da apelação e consequente revogação da sentença recorrida, julgar improcedente a ação, com absolvição da R./Apelante do contra si peticionado.
Custas da ação e do recurso pelo A./Apelado.


Coimbra, 18/10/2016

Escrito e revisto pelo relator

Elaborado em computador

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Segue-se, no essencial, nesta parte, por economia de meios, o relatório da decisão recorrida.
([2]) Em 21/02/2014 (cfr. fls. 47 dos autos em suporte de papel).
([3]) Que se transcrevem, com negrito subtraído.
([4]) Processo instaurado após 01/09/2013 (data da entrada em vigor daquela Lei n.º 41/2013, como resulta do respetivo art.º 8.º).
([5]) O objeto recursório, tal como delimitado pela parte, não contempla impugnação da decisão da matéria de facto, posto que a Apelante, não observando os ónus a que alude o art.º 640.º do NCPCiv., não sinalizou a sua intenção de impugnar a decisão de facto, não indicando quaisquer pontos concretos da matéria de facto que considerasse incorretamente julgados, em aferição perante concretos meios probatórios, nem, do mesmo modo, a diversa decisão fáctica que devesse ser proferida com relevo para a sorte dos autos.
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) Itálico aditado.
([8]) Cfr. Ac. TRC, de 13/01/2015, Proc. 658/13.0TBCVL.C1 (Rel. Sílvia Pires), em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, da mesma Relatora, o Ac. TRC, de 30/06/2015, Proc. 2350/14.0YLPRT.C1, também em www.dgsi.pt.
([9]) Cfr. os n.ºs 8 a 10 deste normativo legal, aludindo ao quadro ocorrido de “suspensão do pagamento do subsídio de férias ou de quaisquer prestações correspondentes ao 13.º mês, como medida excecional de estabilidade orçamental no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira”.
([10]) Proc. 475/15.3YLPRT.L1-1 (Des. Rui Vouga), disponível em www.dgsi.pt.
([11]) Ac. n.º 277/2016, de 04/05/2016 (Proc. n.º 978/15), DR n.º 112/2016, Série II, de 14/06/2016, ps. 18650 a 18658.
([12]) Trata-se do Ac. TRP, de 10/11/2015, Proc. 2188/15.7T8PRT.P1 (Rel. Vieira e Cunha), em www.dgsi.pt.