Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/10.5TATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO INTELECTUAL
FALSAS DECLARAÇÕES A AUTORIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CP
Sumário: I - O segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do CP - “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” - apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção, consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade, que exige concomitantemente a feitura do documento.

II - Deste modo, a declaração de factos falsos destinados a escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular 18/10.5TATND do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, após realização da audiência de julgamento com documentação da prova oral, em 1 de Julho de 2013 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto julgo provada e procedente toda a acusação pública formulada contra os arguidos e, em consequência, condeno os arguidos pelo crime de falsificação de documento autêntico previsto e punido artigo 256º, nº 1 al. b) agravado pelo nº 3, nas seguintes penas:

A) Os arguidos A... e B..., a cada um, numa pena de 180 dias de multa á taxa diária de €6,00, o que perfaz um total de €1.080,00 e que corresponde a uma pena de prisão subsidiária de 120 dias;

B) Os arguidos C..., e D..., numa pena de 120 dias de multa à taxa diária de €5,00 o que perfaz um valor de €600,00 e que corresponde a uma pena de prisão subsidiária de 90 dias.

C) Mais condeno os arguidos ao pagamento da taxa de justiça que fixo em 2 UC para cada um (artigo 513º do Código de Processo Penal).

Inconformados com a decisão, dela recorreram os arguidos A... e B..., extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida em 01/07/2013 os arguidos foram condenados por um crime de falsificação de documento autêntico previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, al. b), agravado pelo n.º 3, cada um, a uma pena de 180 dias de multa à taxa diária de €6,00, o que perfaz um total de €:1.080,00 e que corresponde a uma pena de prisão subsidiária de 120 dias.

2. Salvo o devido respeito, os arguidos não podem concordar com tal decisão, dela recorrendo

3. Da douta sentença do Tribunal a quo se recorrerá no tocante ao preenchimento do tipo legal de crime de falsificação de documento (art. 256º/1/d e da agravação do crime, nos termos do n.º 3 do art. 256.º do CP.

Do preenchimento do tipo legal de crime de falsificação de documento.

4. O tipo legal de falsificação de documento visa proteger o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.

5. Não é toda a segurança do tráfico jurídico que se pretende proteger mas apenas a relacionada com os documentos, atentas as suas duas funções: "função de perpetuação que todo os documentos têm de em relação a uma declaração humana" e a "função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs.

6. O crime de falsificação de documentos é um crime de perigo abstrato.

7. O art. 255, al. a) do C.P define o conceito de documento como sendo “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente relevante e que permite reconhecer a generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”

 8. É a lei civil que elenca as modalidades de documentos escritos - cfr. Artigo 363.º do Código Civil

9. A lei civil reserva aos documentos autênticos uma força probatória plena.

10. A noção de documento em direito civil diverge da noção de documento em processo penal. Enquanto para o direito civil, documento é o objeto em que se incorpora uma declaração, para o direito penal, “o documento, para efeitos do crime de falsificação, é a declaração e não o objeto em que ela se incorpora”.

11. O objeto do crime de falsificação é o documento enquanto meio de prova de facto juridicamente relevante, que será “um facto que, por si só ou ligado a outros dá origem a relações jurídicas, as extingue ou as altera”.

12. No caso sub judice, vem o recorrente A... declarar que havia adquirido por doação verbal, feita em 1987, dois prédios na freguesia de x(...), concelho de Tondela, e que por terem decorrido mais de 20 anos sendo a sua posse ser plena, de boa fé, pública e pacífica, os havia adquirido por usucapião (arts. 1287.° e 1258.° a 1262.° do CC). Tais declarações foram posteriormente confirmadas pelos co-arguidos. (cfr. Pontos. 2 a 9 dos Factos Provados).

13. O tribunal a quo errou ao fazer a subsunção dos factos provados nas normas de direito aplicáveis ao caso.

14. Pois, se por um lado o Tribunal dá como provado que o recorrente A... adquiriu o prédio por compra que fez, em data que não conseguiu apurar, aos titulares inscritos, e que apenas fez a escritura de justificação por a vendedora se encontrar em parte incerta no Brasil, e assim conseguir obter um título para proceder ao registo dos prédios

15. Por outro lado, entende que a intenção do recorrente era manter em erro os proprietários dos prédios vizinhos, para que eles não pudessem exercer os direitos que a lei civil substantiva lhes reconhece.

16. A intenção por parte do agente de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”, constituem os elementos subjetivos do tipo de ilícito.

17. No tipo subjetivo do crime de falsificação de documento pressupõe um dolo específico, traduzido na intenção do agente causar prejuízo a outra pessoa ou de obter para si um benefício específico.

18. Mas estes dolo específico não altera o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação (da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental).

19. Ora, salvo o devido respeito, no caso sub judice as declarações prestadas, nomeadamente quanto à posse por mais de vinte anos - em nada põem em causa o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.

20. E o mesmo se diga quanto à declaração de que a transmissão dos prédios havia sido feita por doação.

21. Entende o M. Juiz a quo que tal declaração foi proferida com intenção de prejudicar terceiros, nomeadamente, os proprietários dos prédios vizinhos, não lhes permitindo exercer os direitos que a lei civil lhes reconhece. Sucede, porém, que o Tribunal a quo não logrou provar que houvesse qualquer direito de preferência que tivesse ficado coartado com tal declaração; pelo contrário, foi dito pela testemunha/assistente C...que o procurador dos anteriores proprietários lhes comunicou que pretendia vender os terrenos, tendo-o vendido ao arguido Augusto e esposa, tendo referido o preço do mesmo. E mesmo que houvesse tal direito, sempre o titular do direito poderia lançar mão de uma ação judicial civil para impugnar a escritura e seguidamente fazer valer o seu direito.

22. O Código Penal de 1995 não incluiu na falsificação de documentos a chamada falsidade, falsificação indireta ou falsa documentação indireta.

23. A declaração inverídica feita pelo recorrente ao notário e inserida na escritura pública não é suscetível de integrar a prática de um crime de falsificação de documento do artigo 256.º do C.P, o documento não exibe qualquer aspecto suscetível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado nem alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exato (regular) que contém uma declaração inverídica.

24. Nestes termos, devem os arguidos ser absolvidos do Crime de Falsificação de documentos (art. 256.º/1/d).

Da agravação do crime, nos termos do n.º 3 do art. 256.º do CP

25. O Tribunal a quo condenou os aqui arguidos por um crime de falsificação agravada, p.p. pelo n.º 3 do artigo 256.° do CP, pelo facto de as declarações terem sido prestadas perante notário.

26. A pena é agravada em função do tipo de documento.

27. Quando se trata de documentos autênticos ou com força igual a pena e agravada em função da especial credibilidade no tráfico jurídico destes documentos.

28. "documento" para efeitos de moldura penal é o escrito ou qualquer objeto material que incorpora a declaração."

29. No caso sub judice, não existe qualquer alteração do “objecto material que incorpora ação”; isto é o documento que serve de suporte à declaração não foi por qualquer modo alterado, não foi maculado por parte dos arguidos, quer ao nível físico, quer ao nível da declaração propriamente dita que o documento comporta.

30. Nestes termos, devem os recorrentes ser absolvidos do crime de falsificação de documentos agravado.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada sentença, proferindo-se acórdão que absolva os arguidos dos crimes por que foram condenados.

Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

I - Os recorrentes/arguidos ao proferirem as declarações constantes da escritura de justificação notarial, sabiam que as mesmas não correspondiam à verdade e que causavam prejuízo a outrem, fizeram constar na referida escritura fato juridicamente relevante.

II - Os recorrentes/arguidos sabiam que ao omitirem a não correspondência à verdade dessas declarações abalavam a confiança e credibilidade na autenticidade e genuinidade do documento autêntico e atentavam contra a fé pública que merecem as escrituras de justificação notarial.

III - Sabiam, também, que ao proferirem tais declarações pretendiam iludir os proprietários dos prédios confinantes para que estes não pudessem exercer o direito legal de preferência na aquisição dos prédios em causa.

IV - Os fatos dados como provados, determinam a condenação dos recorrentes/arguidos na prática do crime de falsificação de documento.

V - Pelo que acima se expõe, não se verifica que a sentença tenha violado qualquer disposição legal.

VI - Em face dos motivos que ficaram enunciados, entendemos que o recurso interposto pelos recorrentes/arguidos não deverá merecer provimento, devendo manter-se o teor da sentença nos moldes em que a mesma foi proferida pelo tribunal "a quo",

VII - E, assim, negar-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto pelos recorrentes/arguidos.

Vªs Exªs. farão a costumada JUSTIÇA.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não houve réplica.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

Constam da sentença recorrida os seguintes fundamentos de facto:

De facto:

Procedeu a julgamento tendo-se apurado os seguintes:

Factos provados:

1. Em data não concretamente apurada mas situada antes do dia 23 de Abril de 2009, o arguido A... formulou o propósito de fazer inscrever dois prédios, um rústico e outro urbano, que havia adquirido anteriormente a seu favor.

2. Para o efeito, acordou com os restantes arguidos em outorgar escritura de justificação notarial na qual invocava a posse de tais prédios que, por efeito da usucapião, lhe conferia o direito de propriedade sobre os mesmos, sendo que os restantes arguidos confirmariam perante o notário que tais declarações eram verdadeiras.

3. Assim, em execução deste plano previamente elaborado pelo arguido A... com a anuência dos restantes arguidos, no dia 23 de Abril de 2009, a hora não determinada, estes dirigiram-se ao Cartório Notarial de Tondela a fim de outorgar em escritura de justificação notarial, cfr. certidão de fls. 7 e segs..

4. Nesse local e para os efeitos por si queridos, perante a Notária, a Exm.s Dr.s E..., o arguido A... declarou “que é, com exclusão de outrem, dono e legítimo possuidor dos seguintes prédios, omissos na Conservatória do Registo Predial de Tondela, (…):

• Urbano, sito na (...), freguesia de x(...), concelho de Tondela, composto por palheiro com lage e terreno de mato, com a superfície coberta de dezasseis metros quadrados e a área descoberta de duzentos e trinta e quatro metros, que confronta do norte com (...), do sul e do nascente com C... e do poente com o caminho, inscrito na matriz, em nome de (...), sob o artigo (...), com o valor patrimonial de €55, 75 e com o valor atribuído de cem euros; (…)

• Rústico, sito em (...), freguesia de y(...), concelho de Tondela, composto por pinhal, cultura com videiras em cordão, com a área de quatro mil oitocentos e cinquenta metros quadrados, confronta do norte e poente com (...), nascente com a ribeira e do sul com (...), inscrito na matriz, em nome de (...), sob o artigo (...), com o valor patrimonial de €72, 56 e com o valor atribuído de quinhentos euros”.

5. Este arguido declarou ainda que “adquiriu a totalidade dos mencionados prédios em mil novecentos e oitenta e sete, ainda solteiro, por doação que lhe foi pelo referido titular inscrito e mulher O..., residentes no Brasil, sem que no entanto, ficasse a dispor de qualquer titulo formal.

6. Que, desde então, vem possuindo os identificados prédios, de boa fé, na convicção de ser o único dono e plenamente convencido de que não lesava quaisquer direitos de outrem, à vista de toda a gente e sem a menor oposição de quem quer que fosse desde o início dessa posse, a qual sempre exerceu sem interrupção, com aproveitamento de todas as suas utilidades, nomeadamente, no urbano, guardando lá produtos e alfaias agrícolas, no rústico, lavrando e semeando a terra, plantando e cortando as árvores, (…), tudo como fazem os verdadeiros donos, pelo que esta posse, em nome próprio, de boa fé, pacífica, contínua e pública, por mais de vinte anos, conduziu à aquisição dos imóveis por usucapião, não tendo todavia, dado o modo de aquisição, documento que lhe permita fazer prova do seu direito de propriedade perfeita”.

7. Estas declarações foram confirmadas pelos arguidos B..., C... e D... e ainda pelo já falecido Q.....

8. Nesse acto, os arguidos foram advertidos pela Notária de que incorreriam na pena aplicável ao crime de falsas declarações perante Oficial Público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestaram ou confirmaram declarações falsas, nos termos do disposto no artigo 97º, do Código do Notariado.

9. Através desta escritura de justificação, no dia 30/06/2009, o arguido A... logrou proceder ao registo dos aludidos prédios em seu nome na Conservatória do Registo Predial de Tondela.

10. Contudo, o declarado por este arguido e confirmado pelos restantes arguidos não corresponde inteiramente à verdade, pois, o primeiro arguido não está na posse pública e pacífica daqueles prédios há mais de vinte anos comportando-se como se fosse o verdadeiro proprietário.

11. Na verdade, o primeiro arguido adquiriu - e não recebeu em doação - os referidos prédios em data não concretamente apurada mas sempre posterior ao ano 2007, por compra que efectuou ao já falecido Q...., que era nessa época procurador da anterior proprietária do terreno - O..., residente em parte incerta no Brasil, por valor também não concretamente apurado.

12. Além disso, o arguido tinha apenas autorização desta proprietária, por intermédio do seu procurador, para cultivar o terreno, pelo que nunca poderia actuar pensando que era o verdadeiro dono do terreno.

13. Ademais, quem efectivamente utiliza o palheiro que é referenciado como o prédio urbano com o número matricial (...) de x(...) é C... e não o arguido.

14. Com esta declaração falsa, o arguido visou que a notária, que é oficial pública, exarasse em documento legalmente considerado como autêntico factos que ele bem sabia não corresponderem à verdade, de forma a poder proceder ao registo daqueles prédios a seu favor perante as autoridades registais e fiscais, intento que logrou alcançar.

15. Com a menção de que tinha obtido a posse dos mesmos por via de doação, este arguido pretendeu iludir os proprietários dos prédios confinantes para que estes não pudessem exercer o seu direito legal de preferência aquando do negócio da compra dos prédios, bem como pretendeu obter um título bastante para proceder ao competente registo predial.

16. Para poder praticar com sucesso estes actos, o arguido beneficiou da participação dos restantes arguidos que, perante oficial público, confirmaram como verdadeiras as suas declarações, ficando as mesmas exaradas em documento autêntico, isto apesar de bem saberem que tal factualidade não correspondia à verdade, agindo com o propósito querido e concretizado de auxiliarem o arguido A... a obter um benefício injustificado.

17. Com as suas atitudes, os arguidos pretenderam e conseguiram, através das declarações que sabiam serem falsas, induzir em erro Oficial Público para que, com a força probatória reconhecida aos documentos públicos, o arguido A... pudesse fazer inscrever prédios a seu favor no registo predial e perante a Administração Fiscal e ainda mantivesse em erro os proprietários dos prédios confinantes aos que, na realidade, adquiriu, levando-os a crer que o negócio não tinha sido oneroso, pretendendo e conseguindo, desta forma, obter, para si, um benefício patrimonial não justificado.

18. Os arguidos agiram assim de forma livre, voluntária e plenamente consciente, em conjugação de esforços e sob acção de um mesmo plano que por eles foi delineado e acordado, sabendo perfeitamente do carácter ilícito da sua conduta que era punida por lei penal.

Além da acusação provou-se que:

19. Os arguidos não possuem antecedentes criminais.

20. Os arguidos são reputados em x(...) como pessoas sérias, honestas e trabalhadoras.

21. Os arguidos A... e B... são casados entre si, ambos trabalham na “....” na zona Industrial da ...., têm dois filhos com 14 e 4 anos de idade ambos estudantes.

22. Residem em casa própria pagando uma prestação de valor aproximado de €300,00.

23. Auferem, conjuntamente cerca de 1300,00/Mês de salário.

24. O arguido C... encontra-se aposentado auferindo cerca de €670,00 mês reside em casa própria conjuntamente com a esposa que é doméstica.

25. O arguido D... encontra-se aposentado auferindo uma reforma de €275,00/mês vivendo conjuntamente com a esposa que é doméstica.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão.

Fundamentação da decisão de facto:

Para julgar como provados os factos que antecedem

Na prova documental: Certidões de fls. 7 e segs., 52 e segs., 57 e segs., da qual resultam as declarações prestadas perante o notário, dos documentos de fls. 12 e segs., 84 e segs., das fotografias de fls. 61 e segs., 76 e segs. das quais resulta que o terreno andava de monta, ou seja não era agricultado há muito, tendo em conta a vegetação existente e seu desenvolvimento, denotando arbustos que não eram cortados há muito.

Cópias de certidões de fls. 123 e segs.; da informação de fls. 131 e segs.

Tais documentos são compatíveis com o depoimento das testemunhas C... , vizinho da propriedade, que descreveu que a mesma há mais do que 20 anos não era cultivada, e que o mesmo sempre usou de forma exclusiva o prédio urbano supra referido, como palheira, para guardar gado e outras actividades sendo que nunca viu por aquelas bandas os arguidos A..., e que o procurador dos anteriores proprietários lhes comunicou que pretendia vender o terreno, tendo-o vendido aos arguidos A... e esposa, tendo referido o preço dos mesmo.

No depoimento de H... , casada, agricultora, residente em x(...), que relatou ir ajudar a testemunha C... e que nunca viu a palheira ser usada por pessoa diferente da mesma, sendo que o terreno justificado se encontrava de monte, ou seja sem ser cultivado.

I... , casado, agricultor, residente em x(...) Tondela, que corroborou o depoimento que antecede.

No depoimento de J... , viúvo, residente em x(...), L..... , pedreiro, residente em x(...), P...., casado, motorista/reformado, residente em x(...), Tondela;

M.... , casado, horticultor/desempregado, residente em x(...), todas pessoas que prestaram ou ajudaram em trabalhos agrícolas para C... e que descreveram da mesma forma não são a utilização como o estado em que se encontrava o terreno justificado.

No depoimento de N... , casado, agricultor, residente em x(...), irmão da anterior proprietária do terreno, O..... , que relatou a situação da irmã, as suas dificuldades económicas, de ser viúva e ter a seu cargo os netos, e ter vivido em Portugal alguns meses a suas expensas antes das dificuldades financeiras.

De tais declarações resultou de forma clara que não haverá qualquer doação dos bens, que não ocorreu a transferência da posse na data constante na escritura, tanto mais que o donatário teria, à data, 16 anos, o que é incompatível com a idade do mesmo, e que o terreno, após as partilhas entre os filhos de seu pai, há mais dos que 50 anos, ficaram, durante muitos anos, por cultivar, por tratar.

Quanto às condições económicas e sociais dos arguidos no depoimento das testemunhas F...., casado, agricultor/reformado, residente em x(...), G..., casado, empresário, residiste em x(...), pessoas que os conhecem há muito e que abonaram a seu favor.

Quanto aos antecedentes criminais no CRC dos autos.

Quanto aos factos não provados, por os arguidos se terem remetido ao silêncio e por falta de prova quanto aos mesmos.


***

III. Apreciação do Recurso

Embora os actos da audiência hajam sido objecto de documentação, os recorrentes não impugnam a matéria de facto em que assentou a decisão recorrida, restringem o recurso a matéria de direito, pelo que este Tribunal conhece apenas de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nº 2 e nº 3 do mesmo diploma legal.

Ou seja, a matéria de facto dada como provada na primeira instância deve ter-se por assente. Só poderia ser sindicada por este Tribunal se e na medida em que padecesse de algum dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, o que não ocorre (cfr. acórdão de uniformização do S.T.J. nº 7/95 de 19.10.1995).

            Sem embargo do exposto sempre se impõe clarificar – em face do teor da conclusão 21, em que os recorrentes contestam a intenção de prejudicar terceiros que no seu entender não se provou, citando declarações do assistente – que efectivamente não impugnaram a decisão proferida sobre matéria de facto nos termos e com os ónus consignados no artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, como não formularam pedido correspondente, sendo, portanto inócua tal alegação.

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Os recorrentes cindem a alegação de que os factos constantes da decisão recorrida não integram a prática de um crime de falsificação simples como também não integram a prática de um crime de falsificação agravada. Não vemos motivo para formular duas questões autónomas posto que tendo os arguidos sido condenados pela autoria de crime agravado pelo nº 3 do artigo 256º do Código Penal, o que compete equacionar é se efectivamente a factualidade provada integra a prática desse crime.

Resulta, assim, das conclusões do recurso interposto e acima transcritas que se coloca para apreciação deste Tribunal a questão de saber se as declarações que o recorrente A... prestou perante notário e que os restantes arguidos confirmaram, no sentido de que adquiriu os prédios que constam de escritura de justificação em 1987, quando ainda solteiro, por doação e que desde então os vem possuindo de boa fé, na convicção de ser o único dono, não correspondentes à verdade, são susceptíveis de integrar a prática do crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea d) e nº 3 do Código Penal.

Apreciando:

A questão proposta já foi debatida nesta Relação e teve no acórdão relatado pela Exmª Desembargadora Maria José Nogueira, de 18.12.2013, publicado em www.dgsi.pt exposição detalhada e clara que subscrevemos integralmente e que passamos a transcrever:

(Início de transcrição)

“Conforme referido em sede de delimitação do objecto do recurso a questão que surge como «controvertida» no âmbito dos autos, traduz-se em saber se incorre no crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código Penal, quem, faltando à verdade, declara [caso da primeira arguida] ou confirma [caso das demais arguidas], perante o notário, o facto de ser «dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, pelo facto de lhe ter sido doado verbalmente (…), doação nunca titulada por escritura pública (…)» de prédio urbano - identificado nos autos - declarações por aquele feitas consignar na escritura de justificação lavrada a 16.02.2009, o que tornou possível o registo e subsequente venda do dito prédio pela primeira arguida a um terceiro.

Trata-se de matéria que, a nosso ver, não dispensa um excurso sobre o modo como, ao longo do tempo e actualmente, no domínio da legislação, tem vindo a ser «encarada».

Vejamos.

Sobre tais «falsas declarações», no âmbito do processo de justificação notarial, dispõe o artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 207/05, de 14 de Agosto:

«Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».

O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 340/05, de 22 de Junho, contrariando, então, o juízo de inconstitucionalidade orgânica, formulado na decisão recorrida, do artigo 97º do Código do Notariado, procedendo a uma pormenorizada resenha da evolução legislativa verificada, deixou consignado:

 «O artigo 107º da versão originária do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de Março de 1967, tinha o seguinte teor:

“Artigo 107º

(Advertência aos outorgantes)

Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura.”

Com o Decreto-Lei n.º 87/90, de 1 de Março, que procedeu a várias alterações ao Código do Notariado de 1967, o tipo legal de crime em causa passou a constar do artigo 106º e a ter a seguinte redacção:

“Artigo 106º

(Advertência aos outorgantes)

Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura”.

Esta redacção foi transposta para o artigo 97º do actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto.

(…)

Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito – bem como o artigo 106º que o precedeu – ter passado a remeter para a pena prevista para o crime de “falsas declarações perante oficial público” – enquanto que o artigo 107º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena prevista para o crime de “falsidade” …

O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107º do Código do Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI – “Das falsidades”, onde se incriminavam as “declarações falsas” e que incluía as seguintes Secções: I – “Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado”; II – “Da falsidade de escritos”; III – “Da falsidade de selos, cunhos e marcas”; IV – “Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo”; V – “Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados”; VI – “Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”.

O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades” e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nelas se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que – tal como os de falsificação de documentos, moeda, peso e medidas – são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são considerados “crimes contra a realização da justiça” e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360º do mesmo Código …».

Ainda a propósito do percurso do preceito que nos vem ocupando extracta-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, de 12 de Julho:

«A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107º do Código de Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado “Das falsidades”. Desse capítulo constava uma secção (secção II), prevendo (artigo 216º) o crime de “falsificação de documentos autênticos ou que fazem prova plena”. O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos tem por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o “falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”. Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de “falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade”.

Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216º e a do artigo 242º, espelhava normativamente a distinção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico – cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra 1993, 214. Para Maia Gonçalves (Código Penal Português, 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há-de resultar em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está em harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (…) reguladora do concurso aparente de infracções (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”, RLJ, ano 70º, 257).

Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (BMJ, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (BMJ, 173º, 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no art. 216º do C.P., quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar».

Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em procedimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27º da Lei n.º 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa “declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas”, prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei n.º 40.603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como “o crime previsto no § 5º do artigo 238º do Código Penal”. Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos».

É com o Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 42565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas aplicáveis ao “crime de falsidade” (artigo 276º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre “do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública” – a secção VI, que justamente abria com o artigo 238º - para o situar na secção II, que tratava “da falsificação de escritos”(…).

O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei 47.619, de 31 de março de 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve as penas aplicáveis ao crime de falsidade.

Com o Código de Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 67/90, a incriminação passou (…) para o artigo 106.º. É com esta incriminação que surge a remissão para o “crime de falsas declarações perante oficial público”, mantida na versão em vigor.

Perante esta alteração é difícil sustentar (…) que a norma continuou a visar a punição do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta matéria, impunha o abandono da designação “crime de falsidade”, por ter desaparecido esta categoria genérica, de forma alguma aconselhava a nova designação, se a intenção fosse deixar substancialmente tudo como dantes. Na verdade, a fórmula “crime de falsas declarações perante oficial público” está patentemente mais próxima da que designa o crime de “falsas declarações perante a autoridade”, previsto e punido, anteriormente à citada revisão, no artigo 242º, e que passou a integrar um novo capítulo, referente aos “crimes contra a realização da justiça”, aí dando corpo a um segmento do artigo 402º. Esta norma, abandonando a distinção entre as inquirições contenciosas e não contenciosas, incriminava (também) o falso testemunho e as falsas declarações «perante tribunal ou funcionário competente para receber, como meio de prova, os seus depoimentos (…)». Tal funcionário, tratando-se de elaboração de uma escritura pública, só poderia ser, à época, uma autoridade ou um oficial público.»

Aresto, este, que acabou por julgar inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Constatada, assim, com referência à evolução legislativa traçada, a dificuldade na defesa de que a dita norma do Código do Notariado [artigo 97.º] continuou a contemplar a punição do crime de falsificação intelectual em documento, enfrentemos, agora, a perspectiva da assistente.

Sobre a problemática realça-se o «Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública», de 10.03.2011, da autoria de Paulo Dá Mesquita, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 134, pág. 79 e ss. [que, de acordo com a Nota Introdutória do autor, «… foi elaborado no âmbito da Procuradoria – Geral da República, em 2011, tendo sido remetido pelo então Procurador-Geral da República para o Ministério da Justiça a fim de ser ponderado em eventual reforma legislativa. De acordo com informação divulgada pelo Governo, este parecer terá sido equacionado com vista a iniciativa legislativa avulsa que posteriormente veio a ser integrada na revisão do Código Penal de 2013 e no novo artigo 348.º - A com a epígrafe Falsas declarações …»], no qual, a propósito, se refere:

«A problemática das falsas declarações perante oficial ou outro agente com funções públicas que fará constar de documento essas declarações pode ainda suscitar a questão do eventual enquadramento jurídico-penal no tipo de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, d) do Código Penal, que em regra se designa como falsidade intelectual…

(…)

Com efeito, pode considerar-se que as falsas declarações perante agente com funções públicas e que vai elaborar documento oficial baseado nessas declarações implica uma lesão do mesmo bem jurídico do tipo de falsificação, «a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental …». Valor que no tipo de falsificação se apresenta indissoluvelmente ligado às duas funções que o documento pode ter, a «função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana» e a «função de garantia», «pois cada autor [de] documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs …».

De qualquer modo, independentemente da ênfase no bem jurídico, afigura-se-nos inequívoco que o princípio da tipicidade implica na ordem jurídico-penal um recorte da punibilidade pelo tipo (objectivo e subjectivo). Daí que se afigure essencial abordar a questão a partir das previsões legais e seu âmbito aferido em primeira linha à luz dos critérios gerais de interpretação.

No processo de revisão que culminou na alteração de 1995 do Código Penal, o presidente da comissão revisora, Professor FIGUEIREDO DIAS, ao identificar e apresentar o problema da integração da falsidade intelectual no tipo de falsificação, de forma inequívoca expôs a sua posição no sentido de que a alínea em causa «consagra uma situação anómala; confunde-se a falsificação com a falsidade intelectual», acrescentando ainda que «se se eliminar esta alínea, dever-se-á então indagar que falsidade intelectual haverá que consagrar no Código …»

Na discussão, o então Procurador – Geral da República CUNHA RODRIGUES pronunciou-se no sentido da «manutenção da alínea […] pois além de ter tradição é solução também acolhida em outros ordenamentos jurídicos (…). Na acta da reunião de 3 de Abril de 1990, relativamente aos outros membros da comissão revisora, apenas consta a verbalização da perspectiva de COSTA ANDRADE no sentido da eliminação do preceito, e que a «comissão acordou em manter a alínea até nova apreciação …». «Salientou, no entanto, o Senhor Professor FIGUEIREDO DIAS que a alínea não contempla qualquer falsificação de documento mas sim uma falsa declaração em documento regular. A ficar, tornar-se-á necessária uma interpretação restritiva, papel a desempenhar pela doutrina …».

Assentando o autor em que «não é típica a conduta do agente que faz declarações de um facto falso juridicamente irrelevante», prossegue o Autor «Integram-se no tipo de falsificação os casos em que o agente pratica um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante (na modalidade de falsificação por força de falsidade intelectual relativa a declarações contrárias à verdade sobre factos juridicamente relevantes). Será esse o caso, por exemplo, da «integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada …»

Também se integrará na referida dimensão o fazer constar de facto falso por força do exercício de poderes próprios sobre a elaboração e redacção do documento, por exemplo a autoridade que dirige determinada diligência emite uma ordem para quem elabora o auto no sentido de que deve fazer constar do mesmo facto falso juridicamente relevante (…).

Falsidades consubstanciadas no exercício de um poder sobre os termos em que é elaborado o documento, «quando num documento existe divergência entre o que o documento relata e que de facto ocorreu, ou seja o documento mente …». Poder de conformação do documento de que não dispõe quem apenas presta declarações a uma entidade estadual por via de um dever jurídico …»

Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …»

Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.

Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação  …»

Daí que no caso do arguido que, por exemplo, presta falsas declarações sobre factos juridicamente relevantes e relativamente aos quais tem o dever de depor com verdade, ao que se sabe, nunca foi problematizada a eventual integração de um crime de falsificação por via de as mesmas constarem de auto com força de documento autêntico.

Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.

Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro.

(…)

Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).»

Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores».

De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe:

«1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» [destaques nossos].

Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado."

(Fim de Transcrição)

Posteriormente esta mesma orientação foi seguida nos Acórdãos de 19.02.2014, da mesma Relatora e do Relator, Exmº Desembargador Luís Coimbra, mas já anteriormente no Acórdão de 19.06.2013 do Exmº Desembargador Brízida Martins se havia decidido no mesmo sentido nesta Relação.

Em suma e sintetizando, o segmento normativo da alínea d) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal "fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante" apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade que exige concomitantemente a feitura do documento.

Com efeito, o que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito.

Do que decorre que a acção dos arguidos de declararem factos falsos para constarem em escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação por que foram condenados na sentença recorrida, importando absolver não só os recorrentes, como também os restantes arguidos por força do disposto no artigo 402º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal.

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IV. Decisão
Posto o que precede, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos A... e B... e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou os arguidos, absolvendo-os (todos os arguidos) da imputada comissão em co-autoria de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea d) e nº 3 do Código Penal, revogando-a igualmente na parte em que os condenou em custas.
Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto.

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Coimbra, 26 de Março de 2014


 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins)