Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
286/15.6T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DESPACHO LIMINAR
INDEFERIMENTO
QUESTÃO DE DIREITO
JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – FIGUEIRA DA FOZ – SECÇÃO CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 21º DO DECRETO-LEI Nº 149/95, DE 24 DE JUNHO; ARTº 590º DO NCPC.
Sumário: Havendo duas correntes jurisprudenciais expressivas e antagónicas sobre uma questão de que depende a decisão de mérito, sendo que o alegado no articulado inicial, à luz da interpretação que uma delas faz da lei - ao invés daquilo que sucede na perspectiva legal seguida pela outra corrente -, possibilitará atender, a final, a pretensão do Autor, deve o julgador abster-se de, no despacho liminar, afirmar a perfilhação do outro entendimento jurisprudencial, para assim, com base nele, indeferir liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, a petição inicial.
Decisão Texto Integral:

O recurso foi recebido na espécie própria, no modo de subida correcto e no efeito devido.

Decisão (Art.ºs 656º e 652º n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil):[1]

I - Relatório:

A)-1) -M..., S.A.”, sociedade com sede ..., instaurou, em 13/02/2015, na Instância Local da Figueira da Foz - Secção Cível - J1, da Comarca de Coimbra, contra J..., ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho[2], providência cautelar de entrega judicial, cuja petição inicial terminou assim:

“Deve a presente Providência Cautelar de Entrega Judicial ser decretada, sem audiência prévia do Requerido, devendo ser igualmente antecipado o Juízo sobre a causa principal, declarando-se como válida a resolução contratual operada pela Requerente, ou, em alternativa, invertendo-se o ónus do contencioso e, consequentemente:

a) Ser decretada a apreensão imediata do veículo automóvel da marca SMART, modelo ..., com a matrícula IH... e respectivos documentos (documento único automóvel), entregando-se os mesmos à Requerente;

b) Ser a Providência comunicada às Autoridades Policiais para efectiva e imediata apreensão do aludido veículo, ainda que o mesmo se encontre em circulação;

c) Ser ordenado o ofício das autoridades policiais no sentido de inserirem a matrícula IH... na base de dados nacional de viaturas a apreender,

Alegou, em síntese, que:

- Tendo a actividade de locação financeira mobiliária e de aluguer de viaturas sem condutor, celebrou, com o Requerido, o contrato de aluguer de longa duração a consumidor (ALD) de um veículo automóvel, que é sua propriedade, da marca SMART, modelo ..., com a matrícula IH...;

- Ao abrigo desse contrato obrigou-se a ceder ao Requerido o gozo e fruição de tal equipamento, o que efectivamente fez, tendo-se o Requerido obrigado para com ela, entre o mais:

- A pagar-lhe os alugueres contratados, bem como a de suportar todas as despesas e encargos inerentes à utilização e circulação do veículo;

- A, findo e caducado o contrato:

a) Restituir imediatamente, em perfeito estado de conservação, o veículo dado em aluguer;

b) Pagar-lhe os valores vencidos e não pagos, acrescidos dos respectivos juros de mora;

- Findo o prazo, o Requerido não liquidou o valor residual contratualmente previsto, motivo pelo qual caducou o contrato;

- Por carta registada com aviso de recepção comunicou ao requerido a caducidade do contrato, advertindo-o de que estava obrigado a restituir à Requerente o veículo locado;

- O Requerido ainda não procedeu à entrega da viatura, nem dos respectivos documentos;

- Este bem, por efeito do tempo decorrido e da sua utilização, está-se a depreciar e a desvalorizar-se;

- Está impedida de proceder a nova locação ou à venda da viatura em causa;

- Existe o risco dessa viatura se ver envolvida num acidente;

- Trata-se de um bem facilmente dissipável, pelo que o Requerido, ao ter conhecimento da presente providência, certamente dará descaminho ao veículo.

B) - Por despacho de 17-02-2015, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, entendendo não ser aplicável aos autos o procedimento previsto no artº 21º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, e considerando que a Requerente, para ver decretada a apreensão e entrega do dito veículo, ainda que ao abrigo do procedimento cautelar não especificado, teria de demostrar - o que pressupunha a sua prévia alegação, que não fora feita - factos tendentes à prova do “periculum in mora”, ou seja, factos passíveis de dar como verificada a existência de fundado receio de que o Requerido, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, causasse lesão grave e dificilmente reparável ao direito que pretende ver acautelado -, decidiu, em face dessa impossibilidade de demonstração do “periculum in mora”, indeferir liminarmente a providência.

C) - Inconformada, a Requerente recorreu desse despacho de indeferimento, recurso esse que foi recebido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

D) - A finalizar a sua alegação de recurso a Apelante ofereceu as seguintes conclusões:

...

Terminou assim: “…deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser anulada e substituída por outra que leve em consideração o supra exposto e que decrete a apreensão imediata da viatura objecto do contrato de locação.”.

E) - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, versando os preceitos correspondentes do antigo CPC, o Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e o Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[3]).

E a questão a solucionar consiste em saber se o Tribunal “a quo” podia, em lugar de fazer prosseguir os autos com vista a, a final, proferir decisão sobre o peticionado, indeferir liminarmente a providência requerida.

II - Fundamentação:

A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.

B) - Estabelecendo o regime jurídico do contrato de locação financeira, o DL n.º 149/95, de 24 de Junho, que foi objecto de várias alterações, introduzidas, designadamente, pela Rect. n.º 17-B/97, de 31/10 e pelos DLs n.ºs 265/97, de 02/10, 285/2001, de 03/11 e n.º 30/2008, de 25/02, diz logo no seu artº 1º que, “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”.

Por outro lado, estabelece o nº 1 do artº 21º daquele DL n.º 149/95, sob a epígrafe “Providência cautelar de entrega judicial”:

«1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.

2 - Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições técnicas o permitam, por via electrónica.

3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.

5 - A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.

6 - Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7.º

7 - Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.

8 - São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.

9 - O disposto nos números anteriores é aplicável a todos os contratos de locação financeira, qualquer que seja o seu objecto.».

Ora, a Mma. Juíza do Tribunal “a quo”, para indeferir liminarmente a providência, entendeu, em primeira linha, que à mesma, porque não respeitava à apreensão de um veículo dado em locação financeira ao Requerido, mas antes a veículo que fora objecto de aluguer de longa duração, era inaplicável o procedimento específico previsto no aludido DL n.º 149/95, sendo que só ao abrigo do regime deste procedimento e não, também, no âmbito de providência cautelar não especificada, estava a Requerente dispensada da alegação - que omitira - do “periculum in mora”, ou seja, dos factos passíveis de dar como verificada a existência de fundado receio de que o Requerido, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito que pretende ver acautelado.
Sendo certo que há jurisprudência das Relações que diverge mesmo quanto à adequação do procedimento do art.° 21° do DL n.° 149/95, de 24.6, à situação em que o veículo cuja apreensão e entrega se pede, foi objecto de aluguer de longa duração e não de contrato de locação financeira[4], é certo, também, que a esmagadora maioria dos arestos das Relações que se têm pronunciado sobre essa questão têm considerado que o dito procedimento não se adequa às situações em que o veículo cuja apreensão e entrega se pede foi objecto de contrato de aluguer de longa duração (ALD), antes se adequando, nesses casos, o procedimento cautelar comum.[5]

Mas as divergências jurisprudenciais na matéria em causa não se ficam por aqui.

Efectivamente, para uns a locadora, que entregou a outrem, em ALD, um veículo que, findo o contrato, não lhe foi restituído, não pode obter, com base nessa situação - ainda que alegue ter fundado receio de fácil e rápida deterioração e desvalorização desse veículo se tiver que aguardar pelo desfecho da acção -, a apreensão e a entrega desse bem, ainda que no âmbito de um procedimento cautelar comum, por não lograr, dessa forma, demostrar a existência do requisito do “periculum in mora”, exceptuados os casos em que alegue, também, que o locatário não tem disponibilidade financeira para solver a dívida e/ou que é sua intenção dissipar o bem locado.

Segundo outros, porém, a apreensão e entrega do veículo, ainda que pedidas no âmbito do procedimento do art.° 21° do DL n.° 149/95, de 24.6, podem ser concedidos ao abrigo do procedimento cautelar comum (381º do pretérito CPC e artºs 362º e ss. do NCPC), entendendo, como sucede no Acórdão da Relação de Lisboa de 18/11/2010 (Apelação nº 339/10.7TBSSB.L1-8)[6], que, embora não sendo de dispensar a verificação do “periculum in mora” este requisito “tem que ser analisado e apreciado” relativamente ao direito de propriedade “…que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes”, sendo que “a utilização do veículo por parte da Requerida até à decisão da acção determina, só por si, … o risco de a Requerente ficar privada, total e definitivamente, do seu direito de propriedade e das utilidades que ao mesmo são inerentes”.

Seguindo linha de entendimento idêntica a esta última que acabamos de sintetizar, subscrevemos, como 2º Adjunto, o Acórdão desta Relação de 23/09/2008 (Apelação nº 1247/08.7TBFIG.C1), Relatado pelo Exmo. Desembargador Teles Pereira, de onde transcrevemos os seguintes excertos que nos parecem mais significativos para a questão em análise[7]:

«…pressupostos os elementos expostos no antecedente percurso argumentativo, alcançamos a questão fulcral do recurso, respeitando ela ao não decretamento da providência cautelar não especificada, por se entender não verificado o “[…] fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito […]”, como estabelece o artigo 381º, nº 1 do CPC.

Trata-se esta de uma questão que, nas concretas incidências que aqui apresenta (não restituição contumaz de uma viatura alugada, finda a relação contratual respectiva), tem atravessado a jurisprudência da segunda instância, recebendo respostas díspares. Com efeito, para a corrente à qual aderiu a Sentença recorrida, que nela fundou o não acolhimento da pretensão da Apelante, “[o] risco de perda ou deterioração da viatura, no contrato de ALD, é um risco do próprio negócio, inerente ao próprio gozo da viatura”, sendo que, “[p]ara que tal risco possa justificar [um] «fundado receio», tem de exceder o risco normal, impondo-se, ainda, a alegação de que a conduta do locatário torna impossível  ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos [da] locadora, em consequência da demora na entrega da viatura”[22]. Diversamente, outros precedentes jurisprudenciais, sublinham, face a situações em tudo idênticas à presente (nas quais se decidiu, em função da própria situação de privação da viatura, a verificação do periculum in mora, no quadro de providências cautelares comuns), que, “[e]xtinta a relação contratual, e inexistindo motivo para o locatário continuar na detenção do veículo, tem o locador direito à sua restituição como coisa integra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou como mera sucata (risco que corre se apenas em virtude da decisão definitiva vier a ser apreendida e entregue à locadora, sem que esta tenha tido qualquer proveito com a utilização indevida)”[23].

Em apoio deste último entendimento - que adoptaremos no presente Acórdão -, impressiona-nos muito particularmente, constituindo um argumento decisivo, a existência, no nosso direito adjectivo cautelar, de dois tipos de procedimentos com essa específica natureza (cautelar), que prescindem da averiguação concreta do periculum in mora face a situações em tudo idênticas à presente. Referimo-nos aos já mencionados artigos 21º do DL nº 149/95, de 24 de Junho[24] e 15º, nº 1 e 16º, nº 1 do DL nº 54/75, de 24 de Fevereiro[25], visando estes situações (não entrega - cessado o contrato - do bem objecto de locação financeira; não entrega - incumprido o contrato - de viatura objecto de hipoteca ou de reserva de propriedade) cuja identidade substancial à presente situação (um contrato de ALD) é, como se disse, por demais evidente. Esta mesma circunstância foi, aliás, muito justamente sublinhada no voto de vencido constante do Acórdão da Relação de Lisboa de 30/03/2004 ao qual aludimos na nota 23[26].

Trata-se aqui, em função de uma relevante comparação de situações que consideramos ostensivamente semelhantes, de fazer actuar, enquanto critério interpretativo, o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da Constituição), na modalidade de proibição de um tratamento desigual arbitrário de realidades substancialmente iguais. Com efeito, não estando o legislador obrigado a garantir uma forma de tutela cautelar específica, que prescinda, afrouxe ou presuma inilidivelmente a existência de periculum in mora em todas as situações de detenção indevida de uma viatura cedida ao abrigo de um contrato findo, nas quais exista um direito de garantia referido à viatura ou se coloque a questão da restituição da mesma ao cedente, não estando o legislador obrigado a garantir isto, dizíamos, o que não pode é distribuir arbitrariamente este tipo particularmente intenso de tutela por umas situações, negando-a a outras situações absolutamente semelhantes.

(…)

Ora, do que aqui se trata, e essa traduz a consequência do entendimento adoptado pela Sentença recorrida que reputamos não conforme à máxima de igualdade, é de não evitar, neste caso através do acto interpretativo inerente à aplicação, desconsiderando nele a dimensão interpretativa reportada à conformidade constitucional [28], que uma situação relativamente à qual é relevante uma comparação positiva de igualdade (relativamente a situações substancialmente iguais), receba um incompreensível, rectius arbitrário, tratamento diferenciado.

(…)

É nesta dimensão respeitante a um tratamento comparativamente desigual que qualificamos de arbitrário, porque desprovido de um motivo relevante, que deve ser enquadrada a questão da inexistência no ALD (no aluguer de viatura automóvel sem condutor) de uma tutela cautelar (formulada em termos legais expressos) com as especiais, e aqui particularmente relevantes, características da que é conferida ao bem objecto de locação financeira, de reserva de propriedade ou de crédito hipotecário, quando este bem é uma viatura automóvel relativamente à qual existe o que poderíamos definir, na sua essência significativa, como um direito ao alcance do bem pelo cedente, direito em tudo idêntico ao do locador financeiro ou do credor hipotecário, como sucede, desde logo, com o proprietário. Importa ter presente a este respeito - sendo esta a essência do inaceitável tratamento diferenciado -, que na locação financeira, no quadro da providência cautelar prevista no artigo 21º do DL nº 149/95, de 24 de Junho, como constitui interpretação indiscutível, “[…] a entidade locadora não necessita de provar a existência do periculum in mora”[31], o mesmo sucedendo, no caso da apreensão ao abrigo do artigo 15º do DL nº 54/75, de 24 de Fevereiro[32].

Ora, podendo o intérprete obviar a esta arbitrária diferenciação, não vemos fundamento para não aceitar, enquanto expressão de motivos óbvios, muito razoáveis e ponderosos, ligados ao tratamento igual de sujeitos em situação jurídica igual, que no âmbito da não entrega da viatura no fim de um contrato de ALD, o locador possa gozar de uma tutela cautelar idêntica à (tão intensa quanto a) do locador financeiro ou do credor hipotecário, nas mesmas circunstâncias, ou seja, assente numa presunção actuante de que a contínua desvalorização do veículo equivale, enquanto preenchimento dos requisitos de um procedimento cautelar comum, ao fundado receio estabelecido no nº 1 do artigo 381º do CPC. Tal presunção, alcandorada à categoria de inilidível, constitui, com efeito, a razão de ser do regime cautelar especial estabelecido nas apontadas disposições dos DL/s nºs 149/95 e 54/75.

E isto - também aqui o sublinhamos -, independentemente do valor intrínseco, que consideramos ser real, da afirmação, que colhemos nos espécimes jurisprudenciais indicados na nota 24 (e que aqui acompanhamos), de traduzir o senso comum a inferência de ser evidente que a protecção do locador contra o periculum quod est in mora não se compadece com a espera por uma decisão definitiva, no caso de um bem sujeito a uma contínua desvalorização, como sucede com um automóvel.».

Volvendo ao presente caso, começaremos por lembrar que os procedimentos cautelares, devendo ser entendidos como processos especiais, para efeitos do disposto no artº 549º, nº 1, do NCPC (correspondendo, no pretérito CPC, ao artº 463º)[8], seguem, para além das disposições que lhes próprias e em tudo o que as não contrarie, as disposições gerais e comuns e, nos casos não prevenidos numas e noutras, o que esteja estabelecido para o processo comum.

Assim, estando os procedimentos cautelares sujeitos a despacho liminar do juiz (cfr. para além do mais, o artº 226, nº 4, b), do NCPC), tal despacho, sendo de indeferimento da petição inicial, deve assentar num dos fundamentos legais que permitem ao Tribunal essa rejeição, sendo que, de harmonia com o disposto no artº 590º do NCPC “…a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.”.

Ao proferir o despacho de indeferimento liminar, o Juiz, para se assegurar da legalidade do mesmo, tem, previamente, que atentar se a patologia que encontra na petição é susceptível de se enquadrar num dos fundamentos que determinam esse tipo de reacção.

Não se vê que norma tenha sido citada para legitimar o apontado indeferimento, mas, em face do exposto e do constante do despacho recorrido, parece ser legítimo concluir que, embora sem ser revelado desse modo, o fundamento que esteve subjacente ao decidido indeferimento foi o da manifesta improcedência da providência.

Sucede que a manifesta improcedência é situação que só se verifica quando o pedido formulado na petição ou requerimento inicial não possa, à luz de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito comporte, ser atendido.

Efectivamente, sobre a expressão “for evidente que a pretensão do autor não pode proceder”, que justificava o indeferimento liminar da petição à luz do artigo 481º, nº 3º, do Código de Processo Civil de 1939 - e a que vieram a corresponder expressões similares nas várias versões que o CPC de 1961 conheceu, das quais se destacam, a que constava, na sua versão original, na parte final da alínea c), do nº 1 do artº 475º (“for evidente que a pretensão do autor não pode proceder”) e a expressão, “quando o pedido seja manifestamente improcedente”, consignada no artº 234º-A, nº 1, do mesmo CPC, na versão decorrente da reforma introduzida pelo DL nº 180/96, de 25/09 (expressão esta que se manteve, como se vê, no nº 1 do artº 590º do NCPC) - o Professor José Alberto dos Reis[9], advertindo que tal previsão visava “…a hipótese de o mérito da causa se apresentar seriamente comprometido”, ensinava: “…pretensão viável é a que apresenta condições de sucesso, de êxito, de triunfo; pretensão inviável é a que não apresenta tais condições, a que está destinada a malogro, a insucesso, a naufrágio.”.
Entre esses casos e no que à acção declarativa respeita, está, por exemplo, aquele em que o Autor pretende, estribado na usucapião, ver reconhecida a sua propriedade sobre determinado imóvel, mas em que os factos que articula da petição inicial só lhe permitem provar uma situação de posse usucapível com duração inferior ao limite mínimo de tempo que a lei exige para essa forma de aquisição desse direito.
Nessa situação, a pretensão do Autor não encontra amparo na lei, tal como esta é interpretada na pela doutrina e pela jurisprudência, pelo que é seguro dizer que o pedido é manifestamente improcedente.
Ora, o que acontece no presente caso é que - como na própria decisão recorrida se reconhece -, sobre determinada questão essencial para a atendibilidade da pretensão da Requerente, há, essencialmente, duas correntes jurisprudenciais com significado expressivo, que, face à interpretação que fazem da lei, dão soluções opostas uma da outra, sendo que à luz de uma delas a viabilidade da providência, em face do que é alegado, é excluída, enquanto que à luz da interpretação que, dos preceitos legais pertinentes, faz a outra corrente jurisprudencial, a pretensão pode proceder - ainda que após a convolação do procedimento do artº 21º daquele DL n.º 149/95, para o procedimento cautelar comum, previsto no artº 362º do NCPC - se a prova informatória a produzir confirmar o alegado pela Requerente, o que desde logo, salvo o devido respeito, exclui a manifesta improcedência da pretensão como fundamento de indeferimento liminar.

Cabe lembrar, também, o que refere Pais de Amaral[10]: “O juiz deve corrigir, mesmo oficiosamente, o erro na forma de processo. Assim, se foi requerido um procedimento cautelar comum, deve mandá-lo seguir como procedimento especificado quando a situação concreta é subsumível aos respectivos pressupostos e vice-versa.”.[11]

Efectivamente, sendo possível aproveitar a petição para a forma de processo adequada, a nulidade decorrente do erro na forma de processo não acarreta o indeferimento liminar da petição, devendo o juiz “adequar as especificidades da causa à tramitação processual prevista na lei (art.ºs 265º e 265º-A do CPC)”[12].

Por outro lado, no âmbito dos procedimentos cautelares comuns, o juiz não está adstrito à providência concretamente requerida, podendo “…substituir a medida requerida por outra que considere mais adequada à tutela do direito ameaçado.”.[13]
O que se constata, pois, é que a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, sabendo da divergência jurisprudencial exposta, que, aliás, evidenciou no seu despacho recorrido, perfilhou logo aí, para fundar o indeferimento liminar da providência, o 1º dos entendimentos que expusemos quanto à verificação “periculum in mora”, sendo que, como vimos, havia um outro entendimento jurisprudencial, expressivo, segundo o qual o alegado pela Requerente bastaria para se ter como eficazmente invocado esse “periculum in mora”, o que, consequentemente, habilitava o prosseguimento dos autos - com prévia convolação do procedimento instaurado, para está previsto nos artºs 362º e ss. do NCPC - para se decidir, a final, da sorte da providência.
Sendo evidente que, no momento da decisão final, o julgador da 1ª Instância, havendo mais do que um entendimento sobre uma questão essencial ao sentido da decisão a proferir, tem de optar por aquele que se lhe afigura estar mais de acordo com a boa interpretação da lei, perguntar-se-á se não é mais curial fazer logo essa opção na fase inicial, se tem entendimento coincidente com aquele que vê logo a inviabilidade da pretensão em face do alegado, indeferindo logo a petição, de harmonia com esse entendimento, em lugar de produzir prova, dir-se-á, inutilmente, pois, mais tarde, acabará por indeferir a providência?
A resposta, por várias razões, negativa.
Em 1º lugar, decidindo no liminar, havendo outra corrente jurisprudencial expressiva que permitia que a providência viesse a ser decretada a final - ainda que no âmbito do procedimento cautelar comum para o qual se convolaria aquele que fora instaurado -, está o julgador a cortar, desde logo, qualquer hipótese de, mais tarde, produzidas as provas, poder decidir segundo essa outra corrente, no caso de, entretanto, ter mudado o seu entendimento, hipótese que sempre é bom deixar em aberto.
Em 2º lugar, não sabe o julgador, na ocasião do liminar, se vai ser ele, ou, por exemplo, quem lhe suceda ou o substitua no cargo, quem vai decidir a providência, podendo dar-se o caso de, ocorrendo esta última situação, o decisor enfileirar na corrente que permita, em face da prova que se haja produzido, viabilizar a pretensão.
Por último, mas com decisiva importância, importa acentuar que o indeferimento liminarmente da petição, sendo dele interposto recurso, irá dar azo a uma inevitável demora na obtenção da solução da pretensão do Autor - o que assume maior relevo, no âmbito de um procedimento cautelar, que se quer célere -, pois nesse caso, caso a Relação discorde do assim decidido, os autos terão de baixar para prosseguirem na 1ª Instância, o que não sucederia se, ainda que, mantendo o entendimento inicial, o julgador da 1ª Instância viesse, de acordo com ele, a final, a indeferir a providência, pois nesta última hipótese, já poderia a Relação, aproveitando a prova produzida, proferir decisão definitiva sobre a matéria, fosse o seu entendimento coincidente ou não com o do Tribunal “a quo”.
Salvo o devido respeito entendemos prematuro que a 1ª Instância faça valer, logo na fase liminar do procedimento, o entendimento que tem sobre irrelevância do alegado pela Requerente para preenchimento do requisito do “periculum in mora”, indeferindo “in limine”, a providência, quando existe interpretação legal seguida por corrente jurisprudencial expressiva contrária a esse entendimento e que, impedindo alicerçar esse indeferimento na inviabilidade manifesta do pedido, era susceptível de permitir o futuro acolhimento da pretensão da Requerente, ainda que no âmbito do procedimento cautelar comum, para o qual é lícito convolar o procedimento cautelar instaurado.
Não pode subsistir, pois, o indeferimento liminar decidido, havendo que revogar a decisão da 1ª Instância e determinar que o procedimento, ainda que convolado para o que está previsto nos artº 362º e ss. do NCPC, prossiga.

Do exposto, poder-se-á sumariar o seguinte: “Havendo duas correntes jurisprudenciais expressivas e antagónicas sobre uma questão de que depende a decisão de mérito, sendo que o alegado no articulado inicial, à luz da interpretação que uma delas faz da lei - ao invés daquilo que sucede na perspectiva legal seguida pela outra corrente -, possibilitará atender, a final, a pretensão do Autor, deve o julgador abster-se de, no despacho liminar, afirmar a perfilhação do outro entendimento jurisprudencial, para assim, com base nele, indeferir liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, a petição inicial.”.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, julga-se a apelação procedente e, revogando-se o despacho recorrido, determina-se que a 1ª Instância, ainda que seguindo os termos do procedimento cautelar comum, para o que convolará o procedimento instaurado, prossiga os trâmites processuais necessários ao conhecimento dos pedidos formulados pela Requerente.

Custas pela parte vencida a final.

Notifique.

Coimbra, 24/03/2015
Luís José Falcão de Magalhães


[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC. 
[2] Que conheceu as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro e Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25/02.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
[4] Aponta essa desadequação, v.g., o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 1 de Outubro de 2013 (Apelação nº 589/13.4T2AVR.C1), relatado pela Exma. Desembargadora Albertina Pedroso e consultável, tal como os restantes arestos desta Relação de Coimbra que vierem a ser citados sem referência de publicação, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase; Admite que a apreensão e entrega de veículo dado em ALD, seja feita ao abrigo do disposto no DL nº 149/95, o Acórdão da Relação de Évora, de 08/03/2007 (Agravo nº 109/07-2), Relatado pelo Exmo. Desembargador Eduardo Tenazinha e consultável em “http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase”.
[5] Para uma exaustiva escalpelização das diferenças entre o denominado “contrato de aluguer de longa duração” e o contrato de locação financeira, cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/01/2011 (Apelação nº 1320/08.1YXLSB.L1-2), relatado pelo Exmo. Desembargador Henrique Antunes e consultável, tal como os restantes arestos dessa Relação de Lisboa que vierem a ser citados sem referência de publicação, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase.
[6] Relatado pela Exma. Desembargadora Tereza Prazeres Pais; Cfr. tb., Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/02/2015 (Apelação nº 1617/14.1T8SNT.L1-6), relatado pelo Exmo. Desembargador António Martins.
[7] Não se transcreverão também as notas de rodapé atenta a respectiva multiplicidade e dado que o Acórdão está publicado na Internet em texto integral.
[8] Cfr. no âmbito da redacção original do CPC de 1961, o Prof. Castro Mendes, “in” Direito Processual Civil, vol. I, pág. 182, Lisboa 1972.
[9] Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 1981, 3ª edição – reimpressão, páginas 378 e 379.
[10] Direito Processual Civil, 4ª edição, pág.32.
[11] Cfr. artºs 193º, 6º nº 2 e 547º, todos do NCPC, bem como o Prof. Lebre de Freitas “in” Introdução ao Processo Civil. Conceito e princípios gerais à luz do novo código – 3ª edição, pág. 228.
[12] Acórdão da Relação do Porto, de 20/01/2004, Agravo nº 0326458, Relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Samões e consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[13] Pais do Amaral, obra e página citadas e artº 376º nº 3, do NCPC.