Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/15.6GAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: IN DUBIO PRO REO
FORMAÇÃO DA CONVICÇÃO DO JULGADOR
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 01/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL DO FUNDÃO – SECÇÃO CRIMINAL J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 32.º, N.º 2, 205.º, N.º 1, DA CRP; ARTS. 127.º, 379.º , N.º 1, AL. A), E 412, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - O princípio in dubio pro reo dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.

II - Na fase de recurso a demonstração da sua violação passa pela respectiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, tem que resultar da fundamentação desta, de forma patente, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

III - Perante duas versões opostas dos acontecimentos, uma apresentada pela arguida e ora recorrente, outra apresentada pela assistente, a Mma. Juíza, depois de relatar, sinteticamente, as razões de ciência de cada testemunha inquirida e de fazer a apreciação e valoração, individual, do respectivo depoimento, conjugou-a com a valoração probatória que fez com as declarações de arguida e de assistente, com a prova pericial e com a prova documental e concluiu, que a versão que correspondia à realidade era a trazida por esta última.

IV - Lida a sentença recorrida e, muito particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que a Mma. Juíza tenha ficado na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou provados.

V - Nada impede que, face à oposição de versões, como ocorre na esmagadora maioria dos julgamentos, a convicção do juiz se forme com base num único meio de prova, v.g., as declarações do arguido ou do assistente, ou o depoimento de uma única testemunha, ainda que, em sentido contrário, sejam as declarações ou os depoimentos de outros e porventura, maioritários, meios de prova.

VI - A fundamentação é a parte integrante da sentença que visa permitir o seu pleno entendimento pelos destinatários e, de um modo, geral, pela comunidade, facultando, ao mesmo tempo, ao respectivo autor a possibilidade de a auto-controlar e, em momento posterior, ao tribunal de recurso, a possibilidade de fiscalizar a actividade desenvolvida pela 1ª instância.

VII - A exposição dos motivos de facto consiste na descrição, completa embora concisa, das provas fundamentadoras da convicção do tribunal e da sua análise crítica.

VIII - A exposição dos motivos de direito tem por objecto a determinação do direito aplicável aos factos provados e a sua aplicação ao caso concreto.

IX - À recorrente assiste o direito de dela discordar, mas tal discordância não significa que a fundamentação da sentença seja insuficiente e, muito menos, que determine a sua nulidade.

X - A impugnação da matéria de facto não tem por objecto a crítica, sempre subjectiva, de quem recorre, às razões expostas pelo julgador na motivação de facto que, contudo, repete-se, in casu, não se mostra feita de forma genérica e imprecisa, mas a demonstração, objectiva, do erro de julgamento cometido sobre o facto.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Castelo Branco – Fundão – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, da arguida A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

 

A assistente B.... deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 2.000, por danos não patrimoniais sofridos.

Por sentença de 16 de Junho de 2016 foi a arguida condenada, pela prática do imputado crime, na pena de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 1.260 e no pagamento à assistente da indemnização de € 600.


*

            Inconformada com a decisão recorreu a arguida, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

a) Por douta sentença, a arguida foi julgada autora de um crime de ofensa à integridade simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal e condenada a Pena de Multa.

b) O n.º 2 do artigo 32º da CRP estipula o seguinte: "Todo o Arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação …".

c) Ou seja, no Processo Penal cabe à acusação provar, acima de qualquer dúvida razoável que o Arguido é culpado.

d) Sucede porém que, no caso sub judice existiu uma inversão do ónus da prova.

e) Inversão essa que é assumida, totalmente, pela Meritíssima Juiz a quo na decisão ora recorrida.

f) Senão vejamos: "Quanto às declarações da Arguida: A qual negou a prática dos factos que lhe vinham imputados na acusação pública referindo que é a Assistente que a persegue constantemente, SEM NO ENTANTO CONVENCER ESTE TRIBUNAL, POR FALTA DE SUPORTE PROBATÓRIO …".

g) Assim sendo, segundo a douta sentença cabia à Arguida convencer o Tribunal da sua inocência.

h) Como não o conseguiu e face às declarações da Queixosa é condenada.

i) Com o devido respeito, mas esta interpretação viola, claramente, o princípio do in dubio pro reo e consagra o princípio da in culpa para o reo.

j) Ora, conforme supra exposto a decisão viola, bastando ler as palavras da Meritíssimo Juiz a quo o n.º 2 do artigo 32° da CRP.

k) O que invoca e obrigará a uma renovação total da prova.

I) Acresce que, a sentença ora recorrida é nula, nos termos do nº 2 do artigo 374º e al. a) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.

m) Com efeito, dão-se como provados todos os factos constantes da acusação.

n) Todavia no que concerne à motivação da desta decisão, a mesma não passa de uma análise ligeira e não concisa das declarações das testemunhas. Apenas referindo que as testemunhas da defesa não viram nada, sem fundamentar, minimamente, essa conclusão.

o) Ora, a fundamentação dos factos provados e provados é a essência de uma sentença, que concerne à matéria de facto dada como provada ou não provada.

p) A referência genérica a depoimentos não nos permite impugnar, especificadamente e cumprir o vertido no artigo 412º do CPP n.º 3.

q) Pensamos que, no caso em apreço caberia à Juiz a quo fundamentar, concisamente, expondo, de forma completa, os motivos de facto e direito que fundamentam a decisão, além de indicar e examinar criticamente as provas que serviram a convicção do Tribunal.

r) Ora, no caso sub judice a Meritíssima Juiz a quo apenas plasmou para justificar as suas conclusões meras generalidades. O que desde logo impedem a ora recorrente de cumprir o vertido no n.º 3 do artigo 412º.

s) Na verdade, como vamos indicar as concretas passagens que fundam a impugnação, quando a matéria a impugnar é genérica e sem qualquer precisão.

t) Ou seja, o tribunal transformou, inovou, criou um texto diverso, inventou factos diferentes.

u) Deste modo, a sentença é nula – nº 2 do artigo 374º e al. a) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.

v) Face ao exposto, é manifesto que a sentença sub judice é ilegal, já que viola o direito de defesa do Arguido, além de não ter qualquer sustentação legal.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente Recurso, determinando V. Exas. a modificabilidade da Sentença.

Assim, se fará a costumada Justiça.


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. O tribunal a quo fez uma adequada valoração dos preceitos legais, tendo andado bem ao condenar a arguida pela prática de um crime de ofensa a integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do CP, na pena de 180 dias de multa, a taxa diária de 7,00 €.

2, N a verdade, o tribunal a quo fez uma adequada e acertada valoração da prova e uma correcta subsunção dos factos ao Direito, que não merece qualquer reparo, nem existe qualquer nulidade que a invalide.

3. A arguida tenta descredibilizar os depoimentos da ofendida e da testemunha C..., todavia estas prestaram um depoimento isento, objectivo e rigoroso de todos os factos que presenciaram, sendo por isso credíveis.

4. Ao invés, a arguida apresentou testemunhas de compromisso, que se apurou não terem presenciado os factos sob julgamento.

5. Face ao exposto, concluímos que, a douta decisão recorrida deve ser mantida, por não ter violado quaisquer preceitos legais ou constitucionais, não devendo merecer provimento o recurso interposto pela arguida.

V. Ex.as, Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão JUSTIÇA.


*

            Respondeu também ao recurso a assistente, afirmando a correcção e prudência da sentença recorrida, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público, pronunciando-se no sentido da suficiente fundamentação da sentença recorrida, da não violação do princípio in dubio pro reo, e da não inversão do ‘ónus da prova’, e concluiu pela integral manutenção da sentença recorrida.

*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

           

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A inconstitucionalidade da sentença, pela inversão do ónus da prova;

- A nulidade da sentença por falta de fundamentação;

- A impossibilidade de cumprimento do ónus previsto no art. 412º, nº 3 do C. Processo Penal.


*

Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

1. No dia 11/07/2015, pelas 10H00, a ofendida B... estava na Rua Direita, em Salvador, a conversar com uma cunhada.

2. Nessa altura, a arguida A... muniu-se de um pau com uma moca na ponta e abeirou-se da ofendida, por trás, e, de forma injustificada e inopinada, desferiu vários golpes com o referido pau na cabeça, tórax e braços da ofendida B... .

3. Na sequência de tal agressão, a ofendida B... sofreu lesões, dores e incómodos.

4. Com efeito, a ofendida sofreu as lesões descritas e examinadas a fls. 20 a 23, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente:

                - Crânio: hematoma na região frontal direita de cor esverdeada com 4 x 3 cm e escoriação na região frontal esquerda com 0,6 x 0,2 cm.

- Tórax: hematoma na região posterior do ombro direito de cor esverdeada com 7 x 4 cm.

- Membro superior esquerdo: hematoma na face lateral externa do antebraço de cor esverdeada com 12,5 x 6,5 cm.

- Tais lesões foram causa directa e necessária de 5 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

5. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de ofender corporalmente a ofendida B... , bem sabendo que a sua conduta era adequada a nesta causar as referidas lesões, dores e incómodos.

6. Sabia, a arguida, também, que tal comportamento lhe era proibido e punido pela lei penal como crime.

7. Em consequência das agressões sofridas, a assistente sofreu transtornos, ansiedade, inquietação e dores físicas.

8. A arguida não tem antecedentes criminais.

9. A arguida trabalha como industrial de padeira, auferindo um rendimento líquido mensal de cerca de 600,00 euros. É viúva, tem dois filhos, com 30 e 41 anos de idade, respectivamente, ambos independentes, social e economicamente. Reside em casa própria. Tem como habilitações literárias a 5 ª classe.

(…)”.

B) Não existem factos não provados e dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Fundou o tribunal a sua convicção no conjunto das declarações prestadas pela arguida, declarações da assistente e depoimentos prestados pelas testemunhas produzidos em sede de audiência final , bem como no teor da prova documental e pericial junta aos autos , analisada de forma critica , no cotejo das regras de experiencia comum – cfr. Arts. 127 e 163 , ambos do C. P. Penal.

I – Foi considerando a nível documental:

O teor do auto de denuncia junto a fls. 3 a 4.

O teor do relatório de urgência do Hospital Amato Lusitano, junto a fls. 10 a 15.

O teor do C.R.C. junto a fls. 145.

II – Foi considerado a nível pericial:

O teor do relatório de perícia médica efectuado pelo Gabinete Médico-Legal de Castelo Branco, junto a fls. 20 a 23.

Incidindo, agora, sobre a demais prova produzida, nomeadamente, as declarações da arguida, da assistente e os depoimentos prestados pelas testemunhas, importa reter que a apreciação de todos estes elementos, que redundam no juízo fáctico já supra concretizado, teve como presente a especial natureza dos factos em causa e as suas especificidades.

III – Quanto às declarações da arguida:

A qual negou a prática dos factos que lhe vinham imputados na acusação pública, referindo que é a assistente quem a persegue constantemente, sem no entanto convencer este T. J., por falta de suporte probatório para tal no contexto da prova produzida, atento, pois, as declarações da assistente, e o depoimento presencial prestado pela testemunha C... quanto às lesões sofridas e as circunstancias fácticas que determinaram a sua ocorrência.              

Mais esclareceu quanto à sua situação sócio-económica e familiar, a qual teve lugar por dever de oficio deste T.J..

IV – Quanto às declarações prestadas pela assistente:

B... , a qual esclareceu, de forma convincente, mas também sentida e dorida, quanto às agressões que a arguida lhe infligiu, referindo que as mesmas foram provocadas por aquela, por detrás, com uma moca de pau , nas costas e na cabeça Na ocasião , encontrava-se acompanhada da sua cunhada C... , a conversar ao telefone com a filha desta.

Esclareceu que se encontra de relações cortadas com a arguida, desde há cerca de seis anos, por causa de um acidente sofrido pelo seu marido, do qual resultou a morte, na sequência de prestação de serviços para o então casal composto pela arguida e seu marido.

Quanto aos motivos que determinaram a atuação da arguida, referiu não saber explicar tal atitude, à falsa fé, cometida por aquela.

Esclareceu, ainda, quanto às dores e padecimentos sofridos em consequência das agressões infligidas pela arguida.

V – Quanto aos depoimentos das testemunhas:

C... , cunhada da assistente, a qual, depondo de uma forma profícua e credível, esclareceu quanto às agressões infligidas pela arguida à assistente, contextualizando e situando a ocorrência das mesmas, espácio-temporalmente. Nessa sequência, referiu que, na ocasião, cerca das 11 horas , encontrando-se a conversar com a assistente , na esquina da padaria da arguida, e estando aquela ( assistente ) a falar com a sua filha ao telefone, apareceu, de forma rápida, a arguida, com uma moca, de pau, na mão e, ato contínuo, desferiu golpes nas costas e na cabeça da mesma. Esclareceu que não entendeu por que razão a arguida bateu com o pau na sua cunhada. Mais referiu que, no local, não se encontrava mais ninguém , para além de si e da vítima.

D... , sobrinha da assistente, a qual, depondo de uma forma profícua e credível, esclareceu quanto às dores e padecimentos sofridos por aquela, tendo revelado conhecimento direto sobre tal factualidade, mercê da circunstância de convívio próximo e direto com a mesma.

E... , comadre da assistente, a qual em nada esclareceu sobre a factualidade em apreço , porquanto não assistiu à mesma, referindo, tão somente, a existência de um episódio isolado em que viu, num sábado do mês de junho de 2015, a assistente a entrar a correr, e muito apressada, no interior da padaria da arguida, estando a arguida com uma colher de pau na mão, e, depois, a mesma a sair, correndo, tendo caído cá fora.

F... , nora da assistente e com a qual se encontra de relações cortadas por motivos de ordem familiar, a qual em nada esclareceu sobre a factualidade em apreço, porquanto não assistiu à mesma, referindo, tão somente, a existência de um episódio isolado em que viu, num sábado do mês de junho de 2015, a assistente a entrar a correr, e muito apressada, no interior da padaria da arguida, estando a arguida com uma colher de pau na mão, e, depois, a mesma a sair, correndo, tendo caído cá fora.

Questionada sobre se o sucedido coincide com o dia elencado nos autos, referiu não saber e também não ter certeza do dia em que viu a assistente a entrar no interior da padaria da arguida.

VI – Perante o cotejo da prova acima elencada e analisada , não tem este Tribunal qualquer dúvida de que as circunstancias conhecidas e provadas ao nível da factualidade de cariz objectivo , permitem e impõem , mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, concluir de forma firme, segura e sólida, no que concerne à prova dos factos de índole subjectiva , que os mesmos se passaram nos termos vertidos nos factos dados como provados supra.

Com efeito, no que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação da arguida, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, vol. I, 1981, pág. 282, quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta – presunções naturais e não jurídicas –, a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados, o que sucedeu «in casu», sendo, no entanto, certo que a assistente fazia-se acompanhar da testemunha C... , a qual presenciou as agressões e identificou precisa e concretamente a autora das mesmas, como sendo a arguida.

Em todos estes elementos assentou a convicção do Tribunal.

(…)”.


*

Da inconstitucionalidade da sentença, pela inversão do ónus da prova

1. Alega a recorrente – conclusões b) a k) – que na sentença recorrida a Mma. Juíza a quo assumiu a inversão do ónus da prova, quando refere que as suas [da recorrente] declarações não confessórias, não lograram convencer o tribunal por falta de suporte probatório, tendo sido condenada face às declarações da queixosa, o que viola o princípio in dubio pro reo e o art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa [doravante, CRP], e obrigará a uma renovação total da prova. Em sentido contrário opina o Ministério Público para quem a o tribunal recorrido fez uma correcta apreciação e valoração da prova, não tendo sido violadas normas constitucionais e infraconstitucionais.

Vejamos então a quem, em nosso entender, assiste razão.

Dispõe o art. 32º, nº 2 da CRP que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. A Lei Fundamental consagra, portanto, um princípio de prova que, brevitatis causa, consiste em o non liquet em matéria de prova ter que ser, sempre, decidido a favor do arguido. Sendo o in dubio pro reo decorrência da presunção de inocência, a questão do ónus da prova, em processo penal, não tem verdadeira relevância. Com efeito, saber sobre que sujeito processual recai a prova de determinados factos e/ou saber as consequências da falta de tal prova, é questão que fica ultrapassada pela vigência do princípio da aquisição da prova, que se basta com a sua válida produção e aquisição no processo (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, 3ª Edição, 2002, Editorial Verbo, pág. 110 e ss.).

Assim, a questão suscitada pela recorrente não pode ser analisada nos estritos termos em que a colocou – inversão do ónus da prova – mas no da violação do in dubio pro reo.

O pro reo dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Se, produzida a prova, no espírito do julgador subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Na fase de recurso, em que nos encontramos, a demonstração da sua violação passa pela respectiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, tem que resultar da fundamentação desta, de forma patente, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
Sucede que a dúvida relevante para este efeito, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.
Dito isto.

2. A recorrente aponta a violação do pro reo ao segmento da motivação de facto da sentença onde a Mma. Juíza a quo fez constar que a sua versão dos factos – negando a respectiva prática – não logrou convencer o tribunal, por falta de suporte probatório. Porém, a recorrente, convenientemente, esqueceu o que mais ali deixou escrito a Mma. Juíza designadamente, que a convicção do tribunal assentou nas declarações da assistente conjugadas com o depoimento da testemunha C... e com as lesões sofridas pela primeira o que vale dizer, o boletim da urgência hospitalar e o relatório da perícia médico-legal. E ainda que a ‘arrumação’ dada à motivação de facto possa causar alguma fragmentação da exposição respectiva, a Mma. Juíza não se ficou por aqui e explicou ainda as razões pelas quais não credibilizou os depoimentos das testemunhas E... e F... , ambas arroladas pela recorrente.
Pois bem. Perante duas versões opostas dos acontecimentos, uma apresentada pela arguida e ora recorrente, outras apresentada pela assistente, a Mma. Juíza, depois de relatar, sinteticamente, as razões de ciência de cada testemunha inquirida e de fazer a apreciação e valoração, individual, do respectivo depoimento, conjugou-a com a valoração probatória que fez com as declarações de arguida e de assistente, com a prova pericial e com a prova documental e concluiu, que a versão que correspondia à realidade era a trazida por esta última.
A opção do tribunal recorrido mostra-se devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional e tem suporte manifesto nos meios de prova valorados pela Mma. Juíza, nos termos supra referidos. Não se vê, por outro lado, que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo assim sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 127º do C. Processo Penal).

3. Revertendo agora para a específica questão da violação do pro reo, lida a sentença recorrida e, muito particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que a Mma. Juíza tenha ficado na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou provados [aliás, em lado algum a recorrente especificou os factos que, em seu entender, foram incorrectamente julgados]. Pelo contrário, na motivação de facto mostra-se claramente exposto o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os mesmos.

Neste âmbito, se bem percebemos a alegação, é entendimento da arguida e ora recorrente que, tendo negado a prática das agressões e tendo tal prática sido afirmada pela assistente que, diz, caiu e por isso, se lesionou, a existência de ‘palavra contra palavra’ não permite ultrapassar a dúvida razoável e alcançar a convicção plena necessária à condenação.

Salvo o devido respeito, não é assim. A dúvida relevante para a aplicação do pro reo é a que o juiz não logrou ultrapassar, e não é aquela que o recorrente, pela própria valoração probatória que faz, entende que o julgador não podia ter ultrapassado. Ora, a valoração da prova, a aferição do peso relativo de cada meio de prova e a sua integração ou não, no todo probatório, não é uma mera operação aritmética em que, digamos assim, para simplificar, o juiz conta as testemunhas que suportam cada uma das versões em confronto e, em caso de empate, aplica o pro reo. Na verdade, nada impede que, face à oposição de versões, como ocorre na esmagadora maioria dos julgamentos, a convicção do juiz se forme com base num único meio de prova, v.g., as declarações do arguido ou do assistente, ou o depoimento de uma única testemunha, ainda que, em sentido contrário, sejam as declarações ou os depoimentos de outros e porventura, maioritários, meios de prova. O que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção alcançada seja credível e a opção de facto tomada, lógica e razoável.

Em suma, a sentença recorrida não padece de inconstitucionalidade – vício este que, em bom rigor, é privativo dos actos legislativos e não, dos actos judiciais –, não viola a presunção da inocência, prevista no art. 32º, nº 2 da CRP, nem viola o princípio in dubio pro reo


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            Da nulidade da sentença por falta de fundamentação

            4. Alega a recorrente – conclusões l) a o), q) e u) – que a sentença é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal pois, tendo considerado provada toda a matéria da acusação, a respectiva motivação foi ligeira, limitando-se, quanto às testemunhas de defesa, a referir que nada viram, sem fundamentar a decisão ou seja, a Juíza a quo não expôs de forma completa os motivos da decisão de facto, nem examinou criticamente as provas fundamentadoras da sua convicção.

            Vejamos de lhe assiste ou não razão.

A fundamentação é a parte integrante da sentença que visa permitir o seu pleno entendimento pelos destinatários e, de um modo, geral, pela comunidade, facultando, ao mesmo tempo, ao respectivo autor a possibilidade de a auto-controlar e, em momento posterior, ao tribunal de recurso, a possibilidade de fiscalizar a actividade desenvolvida pela 1ª instância. Por isso que o dever de fundamentação, não apenas das sentenças, mas de todas as decisões judiciais tenha assento no art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal, na parte que para o caso releva, é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº 2 do art. 374º do mesmo código. Por sua vez, estabelece este nº 2:

Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

A enumeração dos factos não suscita qualquer dificuldade de definição. É a narração dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, integrantes do todo sobre o qual o tribunal tinha que emitir pronúncia [portanto, os levados à acusação ou pronúncia, relevantes para a fixação dos pressupostos de que depende a aplicação da pena, os levados à contestação, relevantes para o afastamento daqueles pressupostos ou para a escolha e determinação da pena, os levados ao pedido de indemnização, relevantes para a respectiva quantificação, e os que, relevando para qualquer um destes aspectos, resultaram da discussão da causa].

A exposição dos motivos de facto consiste na descrição, completa embora concisa, das provas fundamentadoras da convicção do tribunal e da sua análise crítica. Trata-se, afinal, da explicação do processo de formação de tal convicção, pela indicação das razões e critério lógicos determinantes da credibilização probatória de certos meios de prova e da desconsideração probatória de outros meios de prova. Naturalmente que esta análise crítica não exige, nem sequer pressupõe, que da fundamentação da sentença constem verdadeiras assentadas das declarações produzidas na audiência de julgamento, bastando-se, quanto à prova por declarações, com a indicação da razão de ciência de cada declarante, quando ela não seja já óbvia, com uma referência breve à sua posição sobre as diversas questões, por si conhecidas, sobre o objecto do processo, e a credibilidade atribuída pelo julgador, em função da forma como foram prestadas as declarações e, eventualmente, da sua corroboração ou não, por outros meios de prova.

Finalmente, a exposição dos motivos de direito tem por objecto a determinação do direito aplicável aos factos provados e a sua aplicação ao caso concreto.

5. A recorrente restringe a alegação da nulidade à ausência de exame crítico da prova, especificamente, à circunstância de, segundo diz, a referência genérica a depoimentos não lhe permitir ‘adivinhar’ as razões da Mma. Juíza a quo para depois, referir expressamente as passagens de tais depoimentos que põem em causa a decisão de facto. No corpo da motivação, densifica a alegação, perguntando como indicar as concretas passagens em que funda a impugnação quando a matéria a impugnar é genérica e imprecisa, sendo certo que os depoimentos integrais e conjugados das testemunhas E... e F... são o fundamento da discordância, razão pela qual os invoca para impugnação das mencionadas generalidades que conduziram, incorrectamente, a que a matéria dos pontos 1 a 7 fosse considerada provada, pois que, quanto a tais depoimentos, a sentença apenas refere que os factos presenciados pelas testemunhas ocorreram noutra data.

Sem razão, porém.

Concedendo-se que a motivação de facto, no que respeita à análise critica das provas que fundamentaram a convicção do tribunal a quo não seja modelar, ela permite, no entanto, e sem dificuldade de monta, perceber que a Mma Juíza presidente desconsiderou os depoimentos das testemunhas em questão por ter entendido que as mesmas não presenciaram os factos objecto dos autos mas sim, factos que, de acordo com os respectivos relatos, ocorreram numa outra data isto é, também num sábado mas do mês anterior, e credibilizou o depoimento da testemunha C... , que qualificou de credível e profícuo, testemunha que relatou uma agressão perpetrada pela arguida na pessoa da assistente, à esquina da padaria da primeira, com uma moca de madeira, atingindo esta nas costa e na cabeça, como credibilizou também as declarações da assistente que corroboraram, quanto à agressão, este depoimento. Assim, e uma vez que o relatório da urgência hospitalar de fls. 10 a 15 atesta a entrada da assistente nos serviço, pelas 11h29 do dia 11 de Julho de 2015, com lesões físicas, e o relatório de perícia médico legal de fls. 20 a 23, cujo exame foi feito a 14 de Julho de 2015, descreve lesões físicas observadas na assistente, dúvidas não subsistem de que, na sentença em crise, se mostra suficientemente feita a indicação das razões e critério lógicos determinantes da credibilização probatória de certos meios de prova e da desconsideração probatória de outros meios de prova o que vale dizer que o tribunal recorrido fez o exame crítico da prova.

À recorrente assiste, obviamente, o direito de dela discordar, mas tal discordância não significa que a fundamentação da sentença seja insuficiente e, muito menos, que determine a sua nulidade.

Concluindo, não padece a sentença da nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal.


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Da impossibilidade de cumprimento do ónus previsto no art. 412º, nº 3 do C. Processo Penal

            6. Directamente relacionada com a invocada nulidade da sentença, trouxe a recorrente à colação questão diversa, que se prende com a alegada, impossibilidade de, tal como se encontra estruturada a motivação de facto da sentença, estar impossibilitada de cumprir o ónus de especificação previsto no nº 3 do art. 412º do C. Processo Penal e, consequentemente, de poder sindicar a decisão proferida sobre a matéria de facto através da sua impugnação ampla. 

            Sem razão, porém.

            Como é sabido, a impugnação ampla da matéria de facto, regulada, essencialmente, no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, partindo da ideia básica de que o recurso da matéria de facto não se destina a realizar um novo julgamento, como se o efectuado pela 1ª instância não tivesse ocorrido, mas apenas remediar o erro ou erros de julgamento que o recorrente entende terem sido cometidos na decisão proferida, alcançando a sua modificação. Precisamente por isso, as citadas normas impõem ao recorrente, e apenas a este, a identificação precisa do concreto erro que pretende corrigir e as concretas provas que impõem decisão diversa, não bastando, portanto, para este efeito, que tais provas apenas suportem ou permitam decisão diferente da proferida pelo tribunal (cfr. alíneas a) e b), do nº 3 do art. citado). Nesta decorrência, quando as provas especificadas incluírem provas gravadas o que vale dizer, prova por declarações [de qualquer sujeito ou interveniente processual], sobre o recorrente recai também o ónus de indicar as concretas passagens em que funda a impugnação (cfr. nº 4 do mesmo artigo) mas, como é bom de ver, as concretas passagens são, apenas e só, os segmentos das declarações e dos depoimentos gravados na audiência de julgamento que o recorrente entende imporem diversa decisão da recorrida e não, segmentos das referências ou da síntese que na motivação de facto o juiz tenha feito aos diversos meios de prova que serviram para formar a sua convicção.

Vimos, supra, que, contrariamente ao entendimento da recorrente, a sentença recorrida se encontra suficientemente fundamentada, não padecendo da nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal. Por outro lado, a prova por declarações prestada na audiência de julgamento foi gravada pelo que, constando da sentença os factos que o tribunal a quo considerou provados, nada impedia a recorrente de indicar as concretas passagens em que fundava a impugnação ampla da matéria de facto [se a tivesse deduzido], demonstrativas, por exemplo, de ter a Mma. Juíza errado na valoração que fez dos depoimentos das testemunhas E... e F... .

Na verdade, e contrariamente ao que parece pressupor a recorrente, a impugnação da matéria de facto não tem por objecto a crítica, sempre subjectiva, de quem recorre, às razões expostas pelo julgador na motivação de facto que, contudo, repete-se, in casu, não se mostra feita de forma genérica e imprecisa, mas a demonstração, objectiva, do erro de julgamento cometido sobre o facto.

Em suma, não existindo circunstâncias impeditivas da dedução, pela recorrente, de uma verdadeira e própria impugnação ampla da matéria de facto nos termos requeridos pela lei do processo, não a tendo deduzido, ficou prejudicada a apreciação, pelo tribunal ad quem, da decisão de facto proferida.

Improcede pois a questão suscitada.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 18 de Janeiro de 2017


 (Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)