Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO CONTRATO CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS INCONSTITUCIONALIDADE. | ||
Data do Acordão: | 02/16/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO – J1 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 9º, Nº 4 DO DL 287/93, DE 20/08; ARTº 703º, Nº 1, AL. D) DO NCPC. | ||
Sumário: | I – Preceitua o n.º 4 do artº 9º do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto: «Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades». II - O D.L. 287/93, de 20 de Agosto, não se mostra revogado pelo artigo 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, pelo que se mantem em vigor; assim sendo, e resultando dos documentos as respectivas assinaturas, os mesmos revestem natureza de títulos executivos, cabendo na previsão do art.º 703, n.º 1, al. d), do C.P.C. vigente. III – Em matéria de disposições transitórias, o art. 6º da Lei 41/2013, de 26/06, consagra a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor (cfr nº1), com algumas ressalvas. IV - Essas disposições transitórias não ressalvam a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 por referência a execuções posteriores a essa data, parecendo ser intenção do legislador a aplicação imediata do novo CPC, nomeadamente e para o que ao caso interessa “aos documentos particulares constituídos antes da sua entrada em vigor. Outra tivesse sido a sua intenção e decerto tê-la-ia expressado.” V - Temos para nós que a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do novo CPC - que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – e 6º, nº 3 do seu diploma preambular - que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 - no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra Processo n.º 2673/16.3T8CBR.C1 1.1.- C..., SA, com sede na ..., intentou acção executiva contra A... e ..., residentes na Rua ..., alegando, em síntese, que no exercício da sua actividade creditícia celebrou com a sociedade A..., Lda., os seguintes contratos, com fiança prestada pelos executados ...: um contrato de empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euros), formalizado por contrato considerado perfeito em 5 de Maio de 1998, e inerentes alterações contratuais datando a última de 22 de Agosto de 2006; um contrato de abertura de crédito – PME Investe VI, formalizado por documento dado como perfeito em 03 de Março de 2011, no montante de 50.000,00 € (cinquenta mil euros). Clausulou-se nos referidos contratos as seguintes taxas de juro: que a abertura de crédito vence juros a uma taxa correspondente à EURIBOR a três meses, arredondada para 1/8 superior, em vigor na data do início de cada período de contagem de juros, acrescida de um spread de 1,75%, donde resulta, tomando como referência a informação conhecida das partes no momento da celebração do contrato, a taxa de juro nominal de 5,125% ao ano; que o capital em dívida vence juros a uma taxa correspondente à média aritmética simples das taxas EURIBOR a 3 meses, apurada com referência ao mês imediatamente anterior ao do início de cada período de contagem de juros, arredondada para a milésima de ponto percentual mais próxima e acrescida de um spread de 3,375%, donde resultava, à data da celebração do contrato, a taxa de juro nominal de 4,462% ao ano; que os empréstimos a garantir o pagamento correspondente a um ano de remuneração mínima e despesas comuns, devido ao abrigo do contrato de utilização de loja em centro comercial, a reforço do Fundo de Maneio, nos termos do estipulado nos contratos e em cumprimento dos mesmos, foram creditadas na conta da mutuária as importâncias constantes aludidas nos dos extractos que se juntam como doc. no 3 e doc. no 4, e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido, para garantia das obrigações decorrentes dos contratos supra referidos os executados ... responsabilizaram-se solidariamente como fiadores e principais pagadores por tudo o que, por força deles, viesse a ser devido à ora exequente, conforme doc. n.º 1 e doc. n.º 2, juntos. 1.2. A fls. 37 foi proferido despacho a indeferir liminarmente o requerimento executivo, por falta de titulo executivo, que se transcreve «Os documentos apresentados como títulos executivos direito documentos particulares que documentam a celebração de contratos de abertura de crédito em conta corrente, o qual genericamente se define como a convenção nos termos da qual uma entidade bancária se obriga a conceder a outra entidade um crédito, até certo montante, por tempo determinado ou não, obrigando-se o beneficiário do crédito concedido ao reembolso das somas utilizadas, bem como ao pagamento dos juros e encargos acordados. Constata-se, assim, que o contrato prevê a existência de prestações futuras para a conclusão do contrato de mútuo, isto é, para a conclusão do contrato de mútuo é ainda necessário que se demonstre que efectivamente houve a entrega da quantia alegadamente mutuada dado que estamos perante um contrato real quanto à constituição. Deste modo, exige o artigo 707.º do Código de Processo Civil que tal negócio jurídico conste de documento autêntico ou autenticado, não sendo bastante um mero documento particular com reconhecimento de assinaturas [neste sentido: RUI PINTO, “Manual da Execução e Despejo”, 1.a edição, páginas 186 a 188; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-02-2015 (em www.dgsi.pt – Processo n.o 5901/13.3YYPRT-B.P1); e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-12-2014 (em www.dgsi.pt – Processo n.o 295/13.0TBPNI-A.C1)]. Em conclusão, é manifesta e total a falta de título executivo à luz do artigo 726.º, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Civil, o que conduz ao indeferimento liminar do requerimento executivo». 1.3. Inconformado recorreu a exequente terminando com as seguintes conclusões: ... 1.3. Não foi deduzida resposta. 1.4. Colhidos os vistos cumpre decidir. 2. Fundamentação 2.1. Com interesse para a decisão da causa, consideram-se assentes os seguintes factos: ... 3.-Apreciação 3.1. É, em princípio, pelo teor das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.). A questão a decidir consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento da execução, ou seja, saber se os documentos de contratos de mútuo dados à execução pelo exequente constituem títulos executivos. Vejamos. Como dispõe o nº 5 do artigo 10º do novo C.P.C., é pelo título que «se determinam o fim e os limites da acção executiva». O título executivo «é condição necessária da execução, na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção não podem ser praticados senão na presença dele e é condição suficiente, no sentido de que, na sua presença, seguir-se-á imediatamente a execução sem que se torne necessário efectuar qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere» (cfr. Anselmo de Castro, Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 14). O nº 3 do artigo 6º da lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo diploma processual, estabelece que «o disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos…só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor». A presente execução iniciou-se após a entrada em vigor do novo C.P.C. (cfr. fls. 36) e, nesse sentido, é-lhe aplicável o regime aí consagrado. O artigo 703º, nº 1, do novo C.P.C., dispõe que «à execução apenas podem servir de base: A apelante recorrente apresentou à execução, como títulos, um contrato de empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de 150.000,00€, formalizado por contrato considerado perfeito em 5 de Maio de 1998, e inerentes alterações contratuais datando a última de 22 de Agosto de 2006, e um contrato de abertura de crédito –PME Investe VI, formalizado por documento dado como perfeito em 3 de Março de 2011, no montante de 50.000,00€. A decisão recorrida refere que os documentos apresentados como títulos executivos são documentos particulares que documentam a celebração de contratos de abertura de crédito em conta corrente (…) constatando-se, assim, que o contrato prevê a existência de prestações futuras para a conclusão de contrato de mútuo, isto é, para a conclusão do contrato de mútuo é ainda necessário que se demonstre que efectivamente houve entrega da quantia alegadamente mutuada dado que estamos perante um contrato real quanto à constituição, pelo que o artº 707 do C.P.C. exige que tal negócio jurídico conste de documento autêntico ou autenticado, não sendo bastante um mero documento particular com reconhecimento de assinaturas e seguindo o entendimento de Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, 1.ª edição, páginas 186 a 188,; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/2/2015 (em www.dgsi.pt – processo n.º 5091/13.3YYPRT-B.P1) e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/12/2014 (em www.dgsi.pt – processo n.º 295/13.0TBPNI-A.C1), indeferiu liminarmente o requerimento executivo. A apelante discorda da decisão recorrida, em primeiro lugar por entender que deu à execução, como título executivo, dois documentos particulares, devidamente complementados com o respectivo extracto de conta corrente, documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada a quantia peticionada, que importam a constituição e o reconhecimento de obrigações, ou seja documento não exarado ou autenticado por notário ou por outras entidades profissionais com competência para tal e que se integram assim na previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 703 do CPC. E em segundo lugar, por os documentos (contratos) dados à execução, respectivamente em datados respectivamente de 5/5/1998 e 3/3/2011, serem à data dotados de exequibilidade, devendo por isso continuá-lo a ser, por não estar a contar com a alteração da ordem jurídica. Assim, o primeiro aspeto da questão que se suscita é o de saber se os documentos em causa se podem enquadrar na alínea d) do nº 1 do citado artigo 703º do C.P.C., isto é, «nos documentos a que, por força de disposição especial, seja atribuída força executiva». Preceitua o n.º 4 do art.º 9 do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto «Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades». Cabe desde já referir que o D.L. 287/93, de 20 de Agosto, não se mostra revogado pelo artigo 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, pelo que se mantem em vigor; assim sendo, e resultando dos documentos as respectivas assinaturas, os mesmos revestem natureza de títulos executivos, cabendo na previsão do art.º 703, n.º 1, al. d), do C.P.C. vigente (cfr. neste sentido Ac. Rel. do Porto de 26/1/2015, processo n.º 1162/14.5T8PRT.P1, relatado por António Carvalho, onde se escreve - O artigo 9º, nº 4, do Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, diploma que estabeleceu o regime jurídico da Caixa Geral de Depósitos, S.A., (artigo alterado pelo Decreto-Lei n.º 56-A/2005, de 3 de Maio, mas que manteve a redacção do referido n.º 4), dispõe o seguinte: «os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades». No requerimento executivo, a exequente havia alegado que os contratos dados à execução eram títulos executivos, «porquanto, nos termos do artigo 9º, nº 4, do Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, aplicável por força do artigo 703º, nº 1, alínea d), que transformou a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades. No despacho recorrido seguiu-se o entendimento de que o citado artigo 9º, nº 4, do Decreto-Lei nº 287/93, de 20/8, cessou a sua vigência e, nesse sentido, os contratos dados à execução, configurando meros documentos particulares, não têm natureza de título executivo, dado não se enquadrarem na previsão na previsão contida nas alíneas b) ou d) do nº 1 do artigo 703º do C.P.C. Seguiu-se o entendimento defendido por Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro que, a propósito da norma contida naquele preceito, referem: «Importa ter presente que este título em nada difere de todos os restantes que agora perderam a sua força executiva, sendo o único critério putativamente justificador da sua existência a identidade do credor – a Caixa Geral de Depósitos, S.A. (…) Em face do raciocínio expendido, e ainda que possamos não estar formalmente perante uma norma de direito transitório, resulta da mencionada exposição de motivos que não houve qualquer intenção do legislador em beneficiar a Caixa, mas tão só assegurar uma transição adequada. Não há, pois, qualquer fundamento para se concluir que a revisão dos títulos executivos operada pelo novo Código pretendeu deixar de fora os títulos em análise, considerando que a transição da Caixa já ocorreu há muito – cessante ratione legis cessat ipsa lex. (…) Resta acrescentar que, na reconstrução do pensamento legislativo, importa ter sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artigo 9º, nº 1, do C.C.) O novo Código insere-se num sistema jurídico onde as empresas do sector empresarial do Estado estão sujeitas às regras gerais de concorrência, nacionais e comunitárias. Estas regras impedem que a Caixa Geral de Depósitos, S.A., tenha uma situação de privilégio, podendo criar títulos executivos e, assim, desenvolver a sua actividade em condições diferentes das permitidas às restantes instituições de crédito. De todo o exposto se conclui que cessou a vigência da norma contida no nº 4 do artigo 9º do DL nº 287/93, de 20 de Agosto». Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume II, págs. 192 e 193. Cremos, no entanto, que esta posição não deverá ser aceite, pois o referido preceito legal não foi objecto de revogação expressa, nomeadamente pelo artigo 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, e, por tal razão, afigura-se-nos que os documentos particulares em causa, por titularem actos/contratos realizados pela Caixa, preverem a existência de obrigações por parte da mutuária e estarem assinados pelos devedores (mutuária e fiadores), cabem na previsão do artigo 703º, nº 1, alínea d), do C.P.C., e revestem-se “de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”. Neste sentido, entre os exemplos de documentos particulares que podem constituir título executivo, Lebre de Freitas enumera, precisamente, o documento de contrato de mútuo concedido pela Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20 de Agosto - A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 80. Importa concluir que, ao contrário do entendimento sufragado na decisão recorrida, os contratos de mútuo dados à execução pela exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., nos termos do artigo 9º, nº 4, do DL 287/93, de 20 de Agosto, constituem título executivo». Assim, face ao exposto a pretensão da recorrente, por esta vertente teria de proceder. Em segundo lugar, e a não se entender como supra, se os títulos dados à execução mantinham ou não a qualidade de título executivo. Até à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, vinha sendo entendimento jurisprudencial que estes acordos integravam, como documentos particulares, o elenco dos títulos executivos previstos no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, na redacção do Dec.Lei 226/2008 de 20-11. De facto, nos termos deste preceito legal, podiam servir de base à execução, “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”. Em matéria de disposições transitórias, o art. 6º da Lei 41/2013 consagra a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor (cfr nº1), com algumas ressalvas, dispondo o nº 3 que “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.” Ou seja, as disposições transitórias não ressalvam a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 por referência a execuções posteriores a essa data, parecendo ser intenção do legislador a aplicação imediata do novo CPC, nomeadamente e para o que ao caso interessa, “aos documentos particulares constituídos antes da sua entrada em vigor. Outra tivesse sido a sua intenção e decerto tê-la-ia expressado.” (cfr. Maria João Galvão Teles, in A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos - Julgar on line” de Setembro de 2013). Ora, a ser assim, a nova lei atribui ao destinatário da norma uma consequência diversa e mais gravosa, qual seja a inexequibilidade do título. Ou, como afirma Maria João Telles, “a lei nova estará a ser aplicada a factos jurídicos pré-existentes ou, pelo menos, a efeitos jurídicos pendentes que resultam de tal facto jurídico: os títulos executivos.”, estando-se perante a chamada retroactividade inautêntica, referida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90, que se pronunciou sobre um caso de contornos semelhantes ao dos presentes autos, com aplicação de uma lei nova quando havia um contexto anterior à ocorrência da sua vigência que criava expectativas jurídicas, e nos seguintes termos: “Embora não haja retroactividade que afecte um direito, estamos perante um daqueles casos em que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes não terminadas. Com esta delimitação tem o Tribunal Constitucional Federal alemão falado de «retroactividade inautêntica, retrospectiva», não obstante tivesse esclarecido no início desta jurisprudência, que então «não se levanta o problema da retroactividade» (BVerfGE 11, 139, 146). Relevante é, porém, que aquele Tribunal tem entendido que também na chamada «retroactividade inautêntica» os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de direito, impõem limites que o legislador tem de respeitar, considerando-se ofendida a protecção da confiança, sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida. Para determinação desses limites constitucionais haveria que ponderar a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, por um lado, e a importância do interesse visado pelo legislador para o bem comum, por outro lado … Em particular, tem o tribunal constitucional alemão entendido que esta doutrina é genericamente aplicável à situação jurídica processual, em que a parte se encontra. Mais precisamente, a segurança jurídica e a protecção da confiança como critérios de avaliação de direito constitucional são também exigíveis quando o legislador produz efeitos numa situação jurídica processual, até então dada, em que o cidadão se encontra. Também o direito processual pode fundamentar posições de confiança, nomeadamente em processos pendentes e em situações processuais concretas. No domínio de processos civis ou administrativos, através de alterações do direito processual, com efeito nos processos pendentes, podem ser reduzidas ou eliminadas posições essenciais do cidadão para uma defesa dos seus direitos, com condições de sucesso. Mesmo se em geral a constituição protege menos a confiança na manutenção de posições jurídicas processuais do que na de posições jurídicas materiais, podem aquelas no caso concreto ter um significado e um peso que as torna tão dignas de protecção como estas. A «situação da vida» regulada pelo direito, relevante para a questão da retroactividade, seria aqui o próprio processo, e não a situação da vida que determina o objecto deste (BVerfGE 63, 356, 360)”. O Ac. da Rel. de Évora de 27/2/2014, processo n.º 374/13.3TUVER.E1 pronunciou-se no sentido de que “uma aplicação retroactiva ou retrospectiva da nova lei que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos deve ser declarada inconstitucional com fundamento na violação do princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no artigo 2.º da Constituição (CRP).” Concordamos com este entendimento. De facto, o art. 2º da CRP consagra o Estado Português como um Estado de direito democrático, e este princípio, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “ … é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios constitucionais dispersos pelo texto constitucional” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º edição, 1º volume, pág. 74), abrangendo, entre o demais, limitações à admissibilidade de leis retroactivas. Estando envolvida, como está, a protecção da confiança dos particulares relativamente ao Estado legislador, deparamo-nos com um confronto entre dois valores igualmente acolhidos na Constituição: por um lado, a protecção da confiança dos particulares em não verem frustradas expectativas legítimas quanto à manutenção de um determinado quadro legislativo; e, por outro, a exigência de que o legislador, democraticamente eleito, disponha de uma ampla margem de conformação (e revisibilidade) da ordem jurídica infraconstitucional, com vista à prossecução do interesse público a que está vinculado (neste sentido, (cfr. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 263-264). Sobre estas importantes questões, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, nos seguintes moldes: “Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que «apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio de protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático …. A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária. Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas. Sobre a jurisprudência deste acórdão referiu-se no Acórdão do TC 128/2009, de contornos e decisão semelhante, que “Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: Ou seja, o princípio da confiança traduz-se na protecção da confiança dos cidadãos na actuação do Estado, que não pode legislar alterando, para além de direitos adquiridos, expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas. (cfr. - Ac TC 786/96). Assim, temos para nós, de que a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do novo CPC - que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – e 6º nº3 do diploma preambular - que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 - no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, acompanhando-se aquela que é a posição do citado Acórdão da Relação de Évora e de Maria João Galvão Telles, como supra citado. Os credores que viram reconhecido o seu crédito mediante documentos particulares, constituídos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, e que eram então dotados de exequibilidade, ganharam a legítima expectativa da tutela desses créditos, tutela essa conferida pelo CPC de 1961, daí que a aplicação do disposto no art. 703º do CPC “constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas (cfr. citado Ac. Rel. Évora). Refere, ainda Maria João Galvão Telles, que se cita, “Se, à data da celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo. Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de Agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respectiva acção executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data de entrada em vigor da nova lei. Pode ainda dar-se o caso de, mesmo já tendo havido incumprimento do devedor, o credor não estar, por motivos de ordem pessoal, em condições de intentar imediatamente a respectiva acção executiva. Também nestes casos, a imposição da imediata propositura da acção executiva não é compatível com imperativos de ordem constitucional. Do exposto resulta claro que as expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.”. Sobre esta matéria o Tribunal Constitucional pronunciou-se no Acórdão nº 847/2014 decidindo «julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703º do C.P.C. e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Julho, na interpretação de que aquele artigo 703 se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo C.P.C. e então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do C.P.C. de 1961». Através daquele acórdão o T.C. considerou materialmente inconstitucional o artigo 703º, em conjugação com o artigo 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Julho, por violação do princípio da confiança, na parte em que retirou exequibilidade a documentos particulares que tinham força executiva à luz da lei vigente na data em que foram elaborados. No entanto, o mesmo Tribunal proferiu o Acórdão nº 408/2015, no qual, por violação do princípio da confiança, decidiu «declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do C.P.C. (aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do C.P.C. de 1961, constante dos artigos 703º do C.P.C., e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho». 4. Decisão Desta forma, por todo o exposto, acorda-se: Julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da execução. Coimbra, 16/2/2017 Pires Robalo (relator) Sílvia Pires (adjunta) Jorge Loureiro |