Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
555/10.1TBFND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RÉU
DOMICÍLIO
DIREITO COMUNITÁRIO
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 74º, Nº 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Comunitária: REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001, DE 22/12/2000
Sumário: I – Atendendo à primazia do direito comunitário relativamente ao direito dos Estados-Membros da União Europeia, as normas respeitantes à competência judiciária que estão estabelecidas no Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 prevalecem sobre as normas de idêntica natureza que estejam fixadas no direito interno.

II – Assim, estando em causa uma acção abrangida pelo âmbito de aplicação do referido Regulamento e atendendo à regra geral aí estabelecida (segundo a qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado), que não é afastada por nenhuma disposição especial do mesmo Regulamento, os tribunais portugueses têm competência internacional para uma acção instaurada por uma seguradora contra réus domiciliados em Portugal e por via da qual vem exercer o seu direito de regresso relativamente a indemnização que pagou na sequência de um acidente de viação que ocorreu em Espanha.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A Companhia de Seguros A..., S.A. com sede no ...Lisboa, intentou acção, com processo sumário, contra B.... Transportes, Ldª, com sede na ..., Fundão; C..., residente na Rua ..., Fundão e D...., com domicílio na ... Fundão, pedindo que estes sejam condenados solidariamente a pagar-lhe a quantia de 17.361,12€, acrescida de juros de mora desde a citação.

Alega, para o efeito, que: celebrou com a 1ª Ré, por intermédio do seu gerente (o 2º Réu), um contrato de seguro destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da circulação do reboque de matrícula C- x...; este reboque foi interveniente em acidente de viação que ocorreu em Espanha, no dia 19/03/2003, quando era rebocado por um veículo pesado que se encontrava seguro na Companhia de Seguros A...; as máquinas de grande porte que eram transportadas pelo reboque desprenderam-se das amarras e caíram sobre a via, atingindo dois veículos que circulavam em sentido contrário e embatendo no separador central; em cumprimento das obrigações assumidas no contrato de seguro, a Autora suportou a indemnização dos danos causados pelo acidente, assistindo-lhe agora o direito de regresso contra o tomador do seguro e proprietário do veículo, contra o seu representante legal e contra o condutor do veículo, na medida em que o referido acidente ocorreu devido ao facto de as máquinas não estarem devidamente acondicionadas no reboque.

A 1ª Ré e o 2º Réu contestaram, invocando, designadamente, a incompetência internacional e territorial do Tribunal Judicial do Fundão, atendendo ao local em que ocorreu o acidente que está na génese da presente acção.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a invocada excepção, decidindo-se que o tribunal competente era o Tribunal Judicial do Fundão.

Inconformados com essa decisão, os Réus vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Através da presente acção procura a Autora ser reembolsada do montante indemnizatório que satisfez em consequência de um acidente de viação provocado pela queda da carga transportada pelo veículo segurado, o qual ocorreu em 19 de Março de 2003 na Estrada N-240, em Espanha, no sentido Vitória­-Gasteiz/Bilbao;

2ª - Na verdade, a alínea d) do art. 19° do DL n° 522/85, de 31 Dezembro, concede à seguradora o direito de regresso contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento, sendo que com tal direito de regresso se visa compensar o condevedor que satisfez o direito do lesado para além daquilo que lhe competia;

3ª - Por força do contrato de seguro celebrado com a ré, B..., Lda. (aqui recorrente), nos termos do qual assumiu a responsabilidade civil emergente de acidente de viação relativa à circulação do reboque de matrícula C­ x..., a Autora satisfez os montantes indemnizatórios decorrentes do acidente ora em apreço;

4ª - E daí que, ainda que estando obrigada a satisfazer essa indemnização (cf. art. 29º do DL nº 522/85), atendendo ao alegado circunstancialismo que esteve na origem do acidente, passou a assistir à Autora o direito ao reembolso do que pagou, porquanto (segundo a bondade da tese por ela trazida a juízo) há alguém responsável pelos danos que sofreu em consequência desse cumprimento (desde logo, o condutor do veículo que transportava a presumidamente mal acondicionada carga e a proprietária do mesmo veículo);

5ª - O direito de regresso aqui exercido está conexionado com o acidente de viação e o ressarcimento dos danos dele emergentes, limitando-se a autora a exigir dos co-responsáveis o reembolso do que pagou por causa de uma obrigação comum;

6ª - Ou seja, subjacente ao princípio que emana do citado art. 19º está uma punição civil da conduta dos lesantes que se entendeu não dever ficar a coberto da protecção que lhes advém do seguro e fazer incidir sobre eles a responsabilidade pelo ressarcimento dos respectivos danos;

7ª - Por isso que se entendeu que, nestes casos, a seguradora não deve suportar os danos causados ao terceiro lesado, bem sendo certo que esta obrigação de indemnização mergulha os seus fundamentos na responsabilidade civil;

8ª - Aliás, na situação vertente não basta demonstrar que o acidente foi provocado pela queda da carga transportada no veículo para ser concedido à autora o reembolso das quantias pagas a título indemnizatório: terá ela ainda de demonstrar que a queda da carga se ficou a dever a um seu deficiente acondicionamento.

9ª - O direito de regresso da autora/seguradora baseia-se, portanto, na verificação, na actuação do condutor do veículo, dos pressupostos da responsabilidade civil na ocorrência do acidente, não decorrendo automaticamente do pagamento da indemnização aos lesados; ou seja, nestes casos, as seguradoras terão de alegar e provar que o direito de crédito que se arrogam existiu validamente no anterior credor, o sinistrado.

10ª - Assim sendo, é pelo local onde o evento danoso ocorreu que se afere a competência territorial para o exercício da presente acção, em conformidade com o estatuído no nº 2 do art. 74º CPC.

11ª - Do que resulta que competente internacional e territorialmente para esta acção não é seguramente o Tribunal Judicial do Fundão.

12ª - O despacho em crise violou, entre outras, a norma do art. 74º, nº 2, CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o tribunal recorrido é internacional e territorialmente competente para a presente causa.


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III.

Apreciemos, pois, o objecto do recurso.

A questão de saber e apurar se uma determinada causa deve ser julgada pelos tribunais portugueses ou pelos tribunais de um Estado estrangeiro coloca-se quando essa causa apresenta elementos de conexão – quer no que respeita às partes, quer no que respeita ao pedido ou causa de pedir – com a ordem jurídica portuguesa e com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras.

No caso sub judice, estamos perante uma acção em que a Autora (seguradora domiciliada em Portugal) vem exercer o seu direito de regresso contra o tomador do seguro e proprietário do veículo, contra o respectivo representante legal e contra o condutor do veículo relativamente à indemnização que pagou em virtude de um acidente de viação em que esse veículo foi interveniente e que ocorreu em Espanha. Todos os sujeitos processuais (Autora e Réus) estão domiciliados em Portugal e o único elemento de conexão com a ordem jurídica estrangeira (no caso, a espanhola) é o local onde ocorreu o acidente que está na génese do seu pretenso direito de regresso que a Autora vem exercer.

Discordando da decisão recorrida, consideram os Apelantes que a competência territorial para o exercício da presente acção deve ser aferida pelo estatuído no art. 74º, nº 2, do Código de Processo Civil[1], daí retirando a conclusão de que o Tribunal Judicial do Fundão não é o internacional e territorialmente competente (importa notar que, apesar de sustentarem que o Tribunal Judicial do Fundão não é o competente, os Apelantes não indicam qual seria, na sua perspectiva, o tribunal competente, parecendo decorrer das suas alegações que, por aplicação da norma acima citada, o tribunal competente seria o do lugar onde ocorreu o acidente e, portanto, seriam os tribunais espanhóis).

Como parece evidente, antes de determinar o tribunal territorialmente competente para dirimir o presente litígio, importa saber se os tribunais portugueses têm ou não competência internacional para esse efeito.

Segundo dispõe o art. 61º do Código de Processo Civil, “os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no art. 65º”.

O art. 65º dispõe nos seguintes termos:

Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) (Revogada.)

b) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

c) (Revogada.)

d) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento de conexão, pessoal ou real”.

Na perspectiva dos Apelantes, a situação dos autos cabe na previsão do art. 74º, nº 2, e, portanto, o tribunal territorialmente competente seria o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

A verdade, porém, é que o lugar onde o facto (no caso, o acidente) ocorreu não se situa em Portugal, mas sim em Espanha e, portanto, pela lógica dos Apelantes, os tribunais portugueses não seriam competentes.

Mas, na nossa perspectiva, não têm razão.

É certo que, como decorre do citado art. 65º, os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, assim se estabelecendo aquilo que se designa por princípio ou critério da coincidência[2], determinando-se que, não obstante a existência de elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, os tribunais portugueses têm competência quando, de acordo com as regras de competência territorial previstas na ordem interna, a acção devesse ser instaurada em Portugal. Isso não significa, porém, que os tribunais portugueses sejam internacionalmente incompetentes sempre que, por aplicação das regras de competência territorial, a acção devesse ser instaurada em local que não se situa em território português (como seria aqui o caso, já que o acidente ocorreu em Espanha).

Na verdade, e como decorre da norma acima citada, na determinação da competência internacional importa atender, em primeiro lugar, àquilo que se encontra estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, relevando aqui, em particular, o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 (relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial). De facto, atendendo à primazia do direito comunitário relativamente ao direito dos Estados-Membros da União Europeia[3], as normas respeitantes à competência judiciária que estão estabelecidas no referido Regulamento prevalecem sobre as normas de idêntica natureza que estejam fixadas no direito interno.

Ora, sendo indiscutível que a matéria em causa nos autos está abrangida pelo âmbito de aplicação do referido Regulamento (cfr. o respectivo art. 1º), aí se dispõe – cfr. arts. 2º e 3º - que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, apenas podendo ser demandadas perante os tribunais de outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do capítulo I.

Assim, e por aplicação da regra geral estabelecida no citado Regulamento, os tribunais portugueses teriam competência para a presente causa, na medida em que todos os Réus estão domiciliados em Portugal.

Mas, verificar-se-á alguma das situações enunciadas nas referidas secções 2 a 7 que afaste a aplicação da referida regra geral?

Parece-nos que não.

Importa notar, desde já, que estando em causa uma acção proposta pela seguradora contra o tomador do seguro, a situação poderia eventualmente cair sob a alçada do art. 12º, nº 1, daquele Regulamento, onde se atribui competência exclusiva (como decorre da expressão “…só pode…”) aos tribunais do Estado-Membro em cujo território estiver domiciliado o requerido (regra que também conduziria à competência dos tribunais portugueses).

A única regra constante do citado Regulamento que poderia ser susceptível de atribuir competência aos tribunais espanhóis seria a que se encontra estabelecida no art. 5º, nº 3, onde se determina que, em matéria extracontratual, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso (no caso, em Espanha). Todavia, ainda que se concluísse pela aplicabilidade da regra em questão, a verdade é que a mesma não seria susceptível de afastar a competência dos tribunais portugueses que decorre da aplicação da regra geral que está estabelecida no citado Regulamento, já que a competência aí atribuída ao tribunal onde ocorreu o facto danoso não é uma competência exclusiva, assumindo carácter alternativo relativamente à competência que decorre da aplicação da regra geral.

Com efeito, a expressão “…pode ser demandada…” que é utilizada na norma em questão, sugere claramente o carácter alternativo da competência aí estabelecida, sugestão que é claramente confirmada quer pela redacção do art. 22º (onde claramente se alude a situações de competências exclusivas), quer pelos considerandos 11 e 12 do citado Regulamento, onde se alude claramente ao princípio geral de que a competência tem por base o domicílio do requerido que, com excepção de alguns casos bem determinados, deve estar sempre disponível e onde se afirma que o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça (neste mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 15/12/2011, processo nº 1468/10.2TBBRG.G1.S1[4]).

Assim, tendo em conta o disposto no citado Regulamento e sendo certo que os Réus estão domiciliados em Portugal, os tribunais portugueses têm competência internacional para a presente causa.

Resta saber se o Tribunal Judicial do Fundão é ou não o territorialmente competente para a presente causa.

E parece-nos que sim, quer se considere que a situação cai sob a alçada do art. 74º, nº 1 (como se considerou na decisão recorrida), quer se considere que a mesma se integra no âmbito de previsão do art. 74º, nº 2 (como consideram os Apelantes), quer se considere que a situação não pode ser subsumida ao âmbito de previsão de nenhuma dessas normas, caindo sob a alçada da regra geral prevista no art. 85º.

Com efeito, por aplicação dos arts. 74º, nº 1, e 85º, o tribunal competente seria o do domicílio dos Réus (Fundão) e, não sendo possível a aplicação do art. 74º, nº 2, na medida em que o lugar onde o facto ocorreu não se situa em Portugal, sempre teria que ser aplicada a regra geral prevista no art. 85º.

Portanto, independentemente da posição que se tome relativamente à norma concretamente aplicável, o tribunal com competência territorial para a presente causa será sempre o Tribunal Judicial do Fundão.

Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Atendendo à primazia do direito comunitário relativamente ao direito dos Estados-Membros da União Europeia, as normas respeitantes à competência judiciária que estão estabelecidas no Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 prevalecem sobre as normas de idêntica natureza que estejam fixadas no direito interno.

II – Assim, estando em causa uma acção abrangida pelo âmbito de aplicação do referido Regulamento e atendendo à regra geral aí estabelecida (segundo a qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado), que não é afastada por nenhuma disposição especial do mesmo Regulamento, os tribunais portugueses têm competência internacional para uma acção instaurada por uma seguradora contra réus domiciliados em Portugal e por via da qual vem exercer o seu direito de regresso relativamente a indemnização que pagou na sequência de um acidente de viação que ocorreu em Espanha.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Pais do Amaral, Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 131 e José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág. 138.
[3] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 04/03/2010, processo nº 2425/07.1TBVCD.P1.S1; 15/12/2011, processo nº 1468/10.2TBBRG.G1.S1 e 03/03/2005, processo nº 05B316, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.