Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
95536/23.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROPOSITURA DA ACÇÃO POR SERVIÇOS DE ELECTRICIDADE
PRAZO
PRESCRIÇÃO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º; 3.º; 5.º E 10.º, DA LEI DOS SERVIÇOS PÚBLICOS (LEI 23/96, DE 26/7)
ARTIGOS 298.º; 303.º; 304.º, 1; 318.º; 323.º, 1 E 2; 326.º; 328.º A 331.º; 333.º; 618.º; 890.º; 1410.º, 1 E 1817.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Os prazos para propositura de ações podem ser de prescrição e podem ser de caducidade, consoante a sua razão de ser.
2. Sempre que, por força da lei ou da vontade das partes, exista determinado prazo especial para o exercício de um direito, imperam as regras da caducidade, salvo expressa referência ao regime da prescrição, que, nessa hipótese, se aplicará (art.º 298º, n.º 2 do CC).

3. Na prescrição, intervêm razões objetivas de segurança - sendo também inspirada no interesse social da paz jurídica -, temperadas pela ideia da negligência do titular e pela da disponibilidade da outra parte quanto a valer-se da prescrição. Existe sobretudo o interesse privado e supõe a negligência do titular do direito prescrito.

4. Na caducidade, por motivos puramente objetivos e, em regra, de ordem pública, visa-se a rápida definição da situação jurídica, que a situação se defina dentro do prazo fixado. Prescinde, por conseguinte, da negligência do titular ou das suas intenções.

5. O n.º 1 do art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26.7, prevê uma prescrição propriamente dita, extintiva ou liberatória.

6. O prazo para propositura da ação, previsto no art.° 10°, n.° 4, da Lei 23/96, de 26.7, é de caducidade.

Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Carlos Moreira
                  Moreira do Carmo


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                 (…)

         *


           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           I. EDP Comercial-Comercialização de Energia, S. A., instaurou procedimento especial de injunção, ao abrigo do disposto no art.º 10º, n.º 1, do DL n.º 62/2013, de 10/05, contra A..., Lda., visando o pagamento do montante global de € 130 188,87 (a título de capital, juros de mora e custas), com fundamento no fornecimento de serviços de eletricidade de 01.8.2022 a 17.01.2023, cujo preço consta das faturas que emitiu e juntou aos autos.

           A Requerida deduziu oposição e concluiu pela total improcedência da ação, invocando, por um lado, a prescrição de três das faturas emitidas, referentes ao período de 01.8.2022 a 01.11.2022, por terem decorrido mais de 6 (seis) meses desde a data de fornecimento de energia elétrica a que se reportam até à notificação judicial avulsa efetuada pela Requerente, importando igualmente a extinção da obrigação de juros, e, por outro lado, a caducidade do direito de exigir o pagamento do preço a que se reportam as primeiras cinco faturas, com exceção da que se reporta aos serviços prestados entre 01.01.2023 e 17.01.2023[1], por à data em que foi notificada da injunção também já terem decorrido seis meses sobre a data da prestação do serviço pela requerente à requerida.

            A A. respondeu à matéria de exceção, alegando que mesmo que se considerem prescritas as três primeiras faturas, não o estão os respetivos juros de mora, e que a notificação judicial avulsa, além de interromper o prazo de prescrição das restantes faturas, configura o exercício do direito para o exercício da ação, pelo que o prazo para a propositura da injunção não caducou, sob pena de a notificação operada perder o seu efeito útil.

           Observado o contraditório, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo julgou procedente a exceção de prescrição invocada relativa às faturas ...91, no valor de € 8 177,61, ...93, no valor de € 39 278,57 e ...13, no valor € 18 216,61, absolvendo a Ré do seu pagamento; e julgou procedente a exceção de caducidade relativamente ao direito de instaurar a presente ação e, como tal, absolveu a Ré do pedido de capital e juros formulado relativamente a quaisquer das faturas.

            Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - O Tribunal a quo interpretou o prazo mencionado no art.º 10º, n.º 4 da LSP como sendo um prazo de caducidade.

            2ª - Que, como tal, nos termos e para os efeitos do art.º 328º do Código Civil (CC), “não se suspende nem se interrompe”.

            3ª - Este entendimento não é unânime na jurisprudência.

            4ª - De facto, se entendermos o prazo do art.º 10º, n.º 4 da LSP como um prazo de caducidade, a Notificação Judicial Avulsa, lato sensu, perderá todo o seu efeito útil.

           5ª - E os prestadores de serviços, como a Recorrente, serão forçados a avançar, num curto espaço de tempo, para os tribunais, numa tentativa de conseguirem alcançar o pagamento dos serviços prestados, sob pena do prazo para exercício deste direito caducar.

           6ª - O que fará com que haja um abuso excessivo de recurso aos Tribunais, bem como colocará gravemente em causa o Princípio da Economia Processual.

           7ª - No mais, o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo parece colocar o prestador de serviços, como a Recorrente, num “beco sem saída”, na medida em que, mesmo que os prestadores de serviços pretendam dar uma margem temporal para que os clientes paguem voluntariamente os valores em dívida, até para tentarem preservar a boa relação contratual estabelecida, sempre serão forçados a avançar para Tribunal, no prazo de 6 meses contados desde a prestação dos serviços, sob pena deste direito caducar.

            8ª - A este respeito, há entendimento jurisprudencial que defende que o prazo estabelecido no art.º 10º, n.º 4 da LSP se trata de um prazo de prescrição.

            9ª - E, sendo este prazo interpretado como sendo prescricional, nos termos e para os efeitos do art.º 323º, n.º 1 do CC, “(…) interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.

           10ª - Por conseguinte, interpretando o prazo referido no art.º 10º, n.º 4 da LSP como sendo de prescrição, as faturas ...14, ...34 e ...29, ainda eram exigíveis à data em que a Recorrente deu entrada do procedimento de injunção.

           11ª - Pelo que, mesmo que se entenda que há faturas que já se encontravam prescritas à data da Notificação Judicial Avulsa da Recorrida, a mesma continua a ser devedora dos montantes titulados pelas faturas ...14, ...34 e ...29, uma vez que o prazo de prescrição foi interrompido em maio de 2023, aquando da interpelação judicial à Recorrida.

           12ª - Nesta medida, impunha-se uma decisão diversa à que foi tomada pelo Tribunal a quo.

           Remata pedindo a revogação da decisão recorrida, a substituir por uma outra que considere que o prazo estabelecido no art.º 10º, n.º 4 da LSP é um prazo de prescrição e que foi devidamente interrompido em maio/2023 pela Recorrente, com a Notificação Judicial Avulsa da Recorrida.

            A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa decidir, principalmente, se transcorreu prazo preclusivo (de caducidade) do exercício do direito de propositura da presente ação.


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            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:  

            1) A A. dedica-se à atividade de compra e venda de energia sob a forma de eletricidade, gás natural e outras, envolvendo a prestação de serviços de energia, designadamente, de fornecimento de energia.

            2) A Ré dedica-se à atividade de olaria de barro.

           3) No âmbito da respetiva atividade, em 03.5.2022, a A. celebrou com a Ré um contrato de fornecimento de energia elétrica em média tensão (MT), nos termos do qual a primeira se obrigou a fornecer à segunda energia elétrica no ponto de consumo CPE ...52..., contra o pagamento do preço vigente em cada momento.

           4) Entre 01.8.2022 e 17.01.2023, a A. forneceu eletricidade à Ré, e emitiu, para o efeito, as faturas correspondentes:

           a) - Fatura n.º ...91, emitida em 27.01.2023 e vencida em 27.02.2023, no valor de € 8 177,61 e referente a serviços prestados entre 01.8.2022 e 04.9.2022;

           b) - Fatura n.º ...93, emitida em 27.01.2023 e vencida em 27.02.2023, no valor de € 39 278,57 e referente a serviços prestados entre 04.9.2022 e 04.10.2022;

           c) - Fatura n.º ...13, emitida em 23.02.2023 e vencida em 27.3.2023, no valor de € 18 216,61 e referente a serviços prestados entre 04.10.2022 e 01.11.2022;

           d) - Fatura n.º ...14, emitida em 06.4.2003 e vencida em 08.5.2003, no valor de € 29 455,16 e referente a serviços prestados entre 02.11.2022 e 01.12.2022;

           e) - Fatura n.º ...34, emitida em 07.4.2023 e vencida em 08.5.2002, no valor de € 21 149,62 e referente a serviços prestados entre 01.12.2022 e 01.01.2023;

           f) - Fatura n.º ...29, emitida em 08.4.2023 e vencida a 08.5.2023, no valor de € 8 827,07 e referente a serviços prestados entre 01.01.2023 e 17.01.2023.

           5) Em 03.5.2023, a A. requereu a notificação judicial avulsa da Ré, interpelando-a para proceder ao pagamento das faturas referidas em 4).

           6) A Ré foi notificada no dia 08.5.2023.

           7) O requerimento de injunção deu entrada no dia 07.9.2023.

           8) A Ré foi notificada para deduzir oposição em 14.9.2023.

           2. Cumpre apreciar e decidir, começando pela indicação dalgumas normas da Lei n.º 23/96, de 26.7 (designada como Lei dos Serviços Públicos/LSP)[2], que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais.

           - A referida lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente (art.º 1º, n.º 1). São os seguintes os serviços públicos abrangidos: a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia elétrica; c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; d) Serviço de comunicações eletrónicas; e) Serviços postais; f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais; g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos. h) Serviço de transporte de passageiros (n.º 2). Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo (n.º 3). Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão (n.º 4).

           - O prestador do serviço deve proceder de boa fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger (art.º 3º).

           - A prestação do serviço não pode ser suspensa sem pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior (art.º 5º, n.º 1). Em caso de mora do utente que justifique a suspensão do serviço, esta só pode ocorrer após o utente ter sido advertido, por escrito, com a antecedência mínima de 20 dias relativamente à data em que ela venha a ter lugar (n.º 2). A advertência a que se refere o número anterior, para além de justificar o motivo da suspensão, deve informar o utente dos meios que tem ao seu dispor para evitar a suspensão do serviço e, bem assim, para a retoma do mesmo, sem prejuízo de poder fazer valer os direitos que lhe assistam nos termos gerais (n.º 3).

           O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação (art.º 10º, n.º 1). Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento (n.º 2). A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efetuar o pagamento (n.º 3). O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos (n.º 4). O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia elétrica em alta tensão (n.º 5).

           Quando as partes, em caso de litígio resultante de um serviço público essencial, optem por recorrer a mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, suspendem-se, no seu decurso, os prazos previstos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 10º (art.º 15º, n.º 2).

            3. Dispõe a lei civil substantiva:

            - Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (art.º 298º, n.º 1, do CC). Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição (n.º 2). Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade (n.º 3).

           - O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (art.º 303º do CC).

         - Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, n.º 1, do CC).

           - A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (art.º 323º, n.º 1, do CC). Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias (n.º 2). É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido (n.º 4).

           - A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo seguinte (art.º 326º, n.º 1, do CC).

            - O prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine (art.º 328º do CC).

           - O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido (art.º 329º do CC).

           - São válidos os negócios pelos quais se criem casos especiais de caducidade, se modifique o regime legal desta ou se renuncie a ela, contanto que não se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes ou de fraude às regras legais da prescrição (art.º 330º, n.º 1, do CC).

           - Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo (art.º 331º, n.º 1, do CC). Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (n.º 2).

           - A caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (art.º 333º, n.º 1, do CC). Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável à caducidade o disposto no artigo 303º (n.º 2).

4. Sabemos que a caducidade (do direito ou da ação), ditada por razões objetivas de certeza e segurança jurídica, pelo interesse social de definição das situações a que respeita (só o aspeto objetivo da certeza e segurança é tomado em conta)[3], pode genericamente definir-se como a extinção ou perda de um direito ou de uma ação pelo decurso do tempo (pelo facto do seu não exercício prolongado por certo tempo)[4].

Certos direitos devem ser exercidos durante certo prazo, para que ao fim desse tempo fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes, sendo que é de interesse público que tais situações fiquem, assim, definidas duma vez para sempre, com o transcurso do respetivo prazo.[5]

          5. Estando em causa o exercício de determinado direito por via judicial,  são prazos de caducidade, entre outros, os previstos nos art.ºs 618º, 890º, 1410º, n.º 1 e 1817º, do CC, sabendo-se, como se referiu, que a caducidade enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercício em determinado prazo, procura satisfazer os interesses da certeza e estabilidade das rela­ções jurídicas, os quais exigem a sua rápida definição, impulsionando os titulares dos direitos em jogo a exercê-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a comina­ção da sua extinção.[6]

            6. Quanto ao estatuído no n.º 1 do art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26.7, domina o entendimento de que estamos perante uma prescrição propriamente dita, extintiva ou liberatória, que extingue pura e simplesmente um direito. E ela, a prescrição extintiva, é que constitui a regra, por razões de interesse e ordem pública com a certeza do direito e a segurança do comércio jurídico.[7]

           E o fundamento decisivo é de ordem pública, da chamada ordem pública de proteção ou ordem pública social, própria da relevante temática da tutela do consumidor, tirado da necessidade de prevenir a acumulação de dívidas, que o utente pode (deve) pagar periodicamente, mas encontrará dificuldades em solver se excessivamente agregadas, o que deverá determinar que os prestadores de serviços mantenham uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente fornecimento/consumo.[8]

           Por esta via, entendeu o legislador proteger utentes e consumidores da tentação do sobreendividamento, dando-lhes mais certezas e segurança, ao não os deixar à mercê de credores desmesuradamente retardatários na exigência judicial de créditos periódicos por serviços públicos essenciais, designadamente, o serviço de fornecimento de energia elétrica.[9]

            7. A prescrição pode ser interrompida ou suspensa.

           A interrupção é um facto que anula o efeito do tempo já decorrido, visto revelar da parte do credor ou do devedor a vontade de confirmar a existência da obrigação; começa depois a correr uma nova prescrição com a natureza e a duração da precedente (cf. art.ºs 323º e seguintes do CC).

           No que toca à suspensão da prescrição, ela faz com que o prazo deixe de correr enquanto a suspensão dura, voltando a correr depois e acrescendo ao já decorrido antes de se dar a suspensão (cf. art.ºs 318º e seguintes do CC).

           8. Da prescrição distinguem-se os prazos prefixos, que são os estabelecidos pela lei para exercício de um direito ou a prática de um ato e cujo decurso faz com que o direito não possa ser exercido ou o ato praticado, aconteça o que acontecer, produzindo, portanto, uma caducidade.

           Os prazos prefixos distinguem-se dos de prescrição em que esta tem em vista, não só «pôr fim às incertezas incómodas e prevenir reclamações tardias», mas «presumir que depois de certo tempo uma obrigação foi cumprida ou, mais geralmente, que o devedor foi regularmente liberado», pelo que «é um modo de prova ou antes uma dispensa de prova, tanto mais que um modo de liberação», ao passo que, com os prazos prefixos, quer a lei apenas obrigar o titular do direito a decidir-se rapidamente, não se preocupando com as suas intenções.

            9. As regras aplicáveis aos prazos prefixos são diferentes das da prescrição: em princípio, eles não comportam suspensão nem interrupção (art.º 328º do CC), não lhes obstando sequer um caso de força maior; em geral, não podem ser modificados pelos interessados, nem mesmo no sentido de abreviarem os prazos (art.º 330º do CC); operam fora e contra a vontade daquele que beneficiam; em regra, o juiz pode e deve apreciá-los ex officio - a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (art.º 333º, n.º 1, do CC); verificada a caducidade, o direito extingue-se absolutamente.[10]

           10. Tem-se afirmado, com insistência, o princípio de que são de caducidade, e não de prescrição, os prazos para propositura de ações, o que não é exato: os prazos para propositura de ações podem ser de prescrição e podem ser de caducidade, consoante a sua razão de ser.[11]

           Na prescrição, intervêm razões objetivas de segurança, pois a prescrição é também inspirada no interesse social da paz jurídica; mas tais razões não são exclusivas, aparecendo, antes, temperadas pela ideia da negligência do titular e pela da disponibilidade da outra parte quanto a valer-se da prescrição – é assim que a prescrição pode suspender-se ou interromper-se; que o juiz não pode conhecer oficiosamente dela; etc.

           Ela existe sobretudo no interesse privado e supõe a negligência do titular do direito prescrito.

           11. Mas pode dar-se o caso de a lei querer, por motivos puramente objetivos (i. é., atento o seu objetivo/motivo/finalidade), que um direito seja exercido dentro de certo prazo; visa-se a rápida definição da situação jurídica, que a situação se defina dentro do prazo fixado. Prescinde, por conseguinte, da negligência do titular, ao contrário do que faz na prescrição. Por outro lado, podem aqueles motivos ser (e são-no, em regra), de ordem pública - envolvendo interesses materiais ou substantivos -, de sorte que o juiz deva oficiosamente conhecer da extinção do direito pelo decurso infrutífero do prazo.

           Agora, o instituto aplicado não é já a prescrição, mas a caducidade, cujos motivos inspiradores e regime diferem profundamente dos da prescrição.

           Não parece haver, assim, dúvida de que a caducidade tem de ser reconhecida como instituto diverso da prescrição, por ser ditado por objetivos distintos e, como consequência disso, regulado por normas distintas também.[12]

           12. O ato impeditivo da caducidade (se se trata do direito de propor uma ação) é a proposição da ação, não a citação do réu. Se a lei fixa um prazo para a propositura de uma ação, natural é que a caducidade seja impedida pela proposição da ação.

           A caducidade extingue definitivamente o direito, dado que o prazo é estabelecido para se definir rapidamente a situação jurídica em questão. Por conseguinte, decorrido o prazo de caducidade, nada resta do direito que ela extinguiu.

           Quanto à caducidade estabelecida em matéria indisponível pelas partes, ela extingue ipso iure o direito: a ulterior decisão judicial que a declare não faz mais do que verificar que tal facto se produziu.

           Se a caducidade for estabelecida em matéria disponível pelas partes, só podendo, portanto, ser atendida pelo tribunal quando alegada pelo seu beneficiário, a solução será análoga à da prescrição, i. é, o direito extingue-se ipso iure, de modo que, alegada a caducidade pelo seu beneficiário, o direito considera-se extinto desde a data em que a caducidade se produziu.[13]

           13. As partes concluíram entre si um contrato de fornecimento de energia elétrica - cf. II. 1. 3), supra.

           Perante o descrito quadro normativo (em particular, o definido pelo art.º 10º, n.ºs 1 e 4, da LSP), o que fica explanado e a factualidade indicada em II. 1. supra, afigura-se, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que nada será de objetar ao decidido na 1ª instância.

            Se dúvidas não restam - inclusive, na perspetiva agora defendida pela própria A./recorrente -, relativamente à prescrição do crédito (do direito ao recebimento do preço do serviço prestado) baseado no fornecimento de energia elétrica (em média tensão) indicado em II. 1. 4) alíneas a) a c), supra, porquanto necessariamente à margem do procedimento interruptivo (seu eventual ou potencial efeito) dito em II. 1. 5) e 6), supra[14] , também se deverá considerar ter caducado o prazo para a propositura da presente ação (prazo  - de seis meses,  após a prestação do serviço - para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços - n.º 4 do cit. art.º), porquanto, aquando da apresentação da injunção, por terem decorrido mais de seis meses após o fornecimento de energia elétrica em causa (a que se reportam as seis faturas aludidas em II. 1. 4), supra), já o direito de intentar a mesma havia caducado[15] - cf., ainda, II. 1. 7), supra.[16]

            14. In casu, releva a situação decorrente do decurso do tempo, sendo que a caducidade, uma vez em funcionamento, é inelutável.[17]

           15. Demonstrando-se que a caducidade atingiu a totalidade do direito de crédito feito valer em juízo, nada é devido.

           16. Soçobram, desta forma, as conclusões da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela A./apelante.


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10.9.2024



[1] Pese embora a requerida total improcedência da ação, existirá lapso (atento o depois aduzido e a conclusão que aqui se encerra), como decorre da matéria dada como provada em II. 1. 4), alínea f), 7) e 8), infra (independentemente do explanado em sede de fundamentação do presente acórdão quanto à relevância dos atos da correspondente tramitação).
[2] Na versão atual, com as alterações introduzidas (por último) pela Lei n.º 51/2019, de 29.7.
[3] Vide, nomeadamente, C. A. da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 376.
[4] Vide, ainda, entre outros, M. J. de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, 2016, pág. 1123, que alude à seguinte diretriz básica: sempre que, por força da lei ou da vontade das partes, exista determinado prazo especial para o exercício de um direito, imperam as regras da caducidade, salvo expressa referência ao regime da prescrição, que, nessa hipótese, se aplicará (art.º 298º, n.º 2 do CC).
[5] Vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, Almedina, 1974, pág. 464.

[6] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 604 e vol. III, 2ª edição, 1987, Coimbra Editora, pág. 372; M. J. de Almeida Costa, ob. cit., pág. 875; e, entre outros, acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 401/2011, de 22.9.2011 e 394/2019, de 03.7.2019, publicados no DR, II Série, de 03.11.2011 e 03.10.2019, respetivamente, e da RC de 17.9.2019-processo 3244/18.5T8PBL-A.C1 e 15.12.2020-processo 281/13.0TBPCV.C2, publicados no “site” da dgsi.
[7] Vide J. Calvão da Silva, in RLJ, ano 132º, págs. 152 e seguintes (onde, a sustentar a fisionomia extintiva da prescrição em causa, enumera, pelo menos, nove “razões”).

[8] Sobre a perspetiva indicada por último, cf., de entre vários, acórdão da RG de 20.10.2022-processo 16107/21.8YIPRT-A.G1, publicado no “site” da dgsi.
[9] Vide J. Calvão da Silva, RLJ, cit., págs. 154 e seguinte.
[10] Vide A. Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 105º, págs. 10, 12 e 13, e 106º, 213, estudo publicado no âmbito da “Reforma do Código Civil de 1867 (Código Seabra)”, cujos ensinamentos permanecem, em muitos aspetos, com plena atualidade.
[11] Vide A. Vaz Serra, estudo cit., BMJ, 106º, pág. 236 e 107º, págs. 188 e seguintes.
[12] Vide A. Vaz Serra, estudo cit., BMJ, 107º, págs. 191 e seguinte e 217.
[13] Ibidem, págs. 230 e seguinte, 246 e 276.

    Em idêntico sentido, na lição de Aníbal de Castropelo art.º 267º do CPC [de 1961/a que corresponde o art.º 259º do CPC de 2013] enquanto a caducidade do prazo para a propositura das ações é impedida pela entrada da petição na Secretaria, a prescrição interrompe-se pela citação” (in A Caducidade, 2ª edição, pág. 20); também Manuel de Andrade nos diz que “evita-se a caducidade propondo a ação dentro do prazo respetivo, isto é, apresentando em juízo o competente requerimento (a chamada petição inicial)” (ob. e vol. cit., pág. 465).

  Cf., ainda, designadamente, acórdãos do STJ de 21.01.2003-processo 02A4233 e 29.9.2011-processo 326/2002.E1.SI, publicados no “site” da dgsi.

[14] Como se refere na decisão recorrida: “(...) aquando da notificação da Ré, em 08.5.2023, da Notificação Judicial Avulsa, já havia decorrido o prazo de prescrição de seis meses sobre a data dos serviços prestados nas faturas suprarreferidas”.

[15] Além do expendido na fundamentação do presente aresto e do que decorre do n.º 2 do art.º 298º do CC, no sentido de que se trata de situação de caducidade (e não de prescrição), vide, nomeadamente, David Falcão, Algumas Notas Sobre a Tutela do Utente de Serviços Públicos Essenciais, Revista Eletrónica de Direito, outubro/2020, n.º 3 (vol. 23), FDUP, pág. 38 (e nota 40) - afirma-se, designadamente, que “O n.º 4 do artigo 10º, reforçando o disposto no n.º 1, determina que o prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos”; “trata-se de um prazo de caducidade que ao contrário do prazo de prescrição se interrompe na data de entrada da ação judicial ou injunção (artigo 331º do CC)” (sublinhado nosso) - e, de entre vários, acórdãos da RP de 24.02.2015-processo 28627/14.6YIPRT.P1 [consta do sumário, e da fundamentação, que o n.º 4 do art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26.7, não estabelece nenhuma causa de interrupção da prescrição prevista no n.º 1 do mesmo preceito, mas sim um prazo de caducidade para o exercício da ação], RL de 05.4.2016-processo 93017/13.2YIPRT.L2-7 e RC de 03.11.2020-processo 3834/18.6T8VIS.C1 [interveio o mesmo coletivo de juízes, sendo relator o aqui 1º adjunto; refere-se no sumário: «II - O prazo de 6 meses de caducidade e de prescrição previsto no art.º 10º n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 23/96 de 26/7 não se aplica aos direitos e ações derivados de apropriação indevida de eletricidade nos termos do DL 328/90 de 22.10»; decorre, ainda, da fundamentação que o prazo daquele n.º 1 é um “prazo prescricional”] e 28.3.2023-processso 93/22.0T8PCV.C1 [afirma-se na fundamentação, designadamente (sublinhado nosso): «(...) Sempre na lógica de proteção dos utentes de serviços essenciais que notoriamente a anima, a lei estabelece que, se por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do recebimento da diferença do preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento (art.° 10°, n.° 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, na sua redação atual). O prazo para a propositura da ação é, também, de seis meses, contados desde a prestação do serviço ou do pagamento inicial, conforme o caso (art.º 10°, n.º 4, da Lei 23/96, de 26 de julho, na sua redação atual). / A tutela do utilizador é, portanto, neste particular, prosseguida por recurso ao instrumento técnico da caducidade. (...)»], publicados no “site” da dgsi.

   Com entendimento diverso, cf., por exemplo, acórdão da RP de 12.01.2015-processo 98356/13.0YIPRT.P1 [com o sumário: «(...) II - De acordo com a interpretação do n.º 4, do art.º 10º, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, reconhecemos que o prazo para a instauração da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos, sendo este um prazo de prescrição. (...)»] e da RG de 30.6.2022-processo 97648/21.9YIPRT-A.G1 (que se reportou àquele aresto da RP de 12.01.2015), publicados no “site” da dgsi.

[16] Obviamente, como se diz na decisão sob censura, a Notificação Judicial Avulsa requerida em 03.5.2023 e recebida pela Ré em 08.5.2023, apesar de ter interrompido o prazo prescricional quanto às primeiras três faturas peticionadas no requerimento injuntivo, não tem a virtualidade de interromper o prazo da caducidade para a propositura da injunção - cf. ainda, nomeadamente, II. 9. e 12., supra, e J. Calvão da Silva, RLJ, 132º, págs. 155 e 159 e A. Vaz Serra, estudo cit., BMJ, 107º, pág. 231.
[17] Sem prejuízo das especificidades previstas, por exemplo, nos art. ºs 329º e 331º, n.º 1, do CC.