Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
998/11.3TBSCD-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
SEPARAÇÃO
BENS
APREENSÃO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 04/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 141º, 146º E 149º DO CIRE; 640º E 662º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: I - A declaração de insolvência constitui o momento desencadeador das actuações processuais de natureza predominantemente executiva, consistentes na apreensão e na venda dos bens do insolvente, bem como na sua eventual separação da massa e consequente restituição a um terceiro titular de direito sobre eles (arts.149º e 141º do CIRE).

II - O art.141º regula o exercício do direito de fazer separar da massa os bens indevidamente apreendidos, o prazo de que o titular dispõe para o efeito, e o processo a seguir. Processa-se como a reclamação de créditos.

III - Em conjugação com o artigo 662º do NCPC, e para possibilitar a alteração da matéria de facto pela Relação, o art. 640º veio sujeitar o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a estes ónus de alegação: indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [al.a)]; quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos [al.b)]; relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos [al.b) e nº2-a)]; decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [al.c)].

IV - O contrato-promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse ao promitente comprador, salvo se este tiver, sobre a coisa objecto do contrato prometido, animus possidendi, sendo então possuidor.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

I.1- Por apenso aos autos de insolvência de pessoa singular de V… e de M…, vieram, R…, A… e C…, intentar, em 06.02.2013, contra a “massa insolvente de V… e M…», os insolventes, e todos os devedores, acção para separação e restituição de bens, nos termos do disposto no art.146º do CIRE, alegando, em síntese, serem os proprietários de um prédio urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão e sótão, com 2 alpendres, sito na Rua …, o qual foi indevidamente apreendido para a massa insolvente.

Citados, veio a «massa insolvente» apresentar contestação alegando, em síntese, que os autores carecem de título formal de aquisição.

Contestou, também, o credor reclamante «B..., S.A.», sustentando, em resumo, que os AA. não têm qualquer título constitutivo do direito de propriedade que invocam, fazendo considerações vagas e infundadas assentes em matéria que não tem cabimento lagal na óptica do direito à separação e restituição de bens previsto no art.146º/CIRE.

No despacho de condensação fixou-se à causa o valor de 80.000,00 €, seleccionaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizado o julgamento com gravação dos depoimentos oralmente prestados, foi proferida sentença a 22.12.2013, com este dispositivo:

“(…)  nos termos do artigo 141º CIRE, julgo totalmente improcedente a acção proposta, mantendo apreendido para a massa insolvente o bem descrito em 1.”.

         I.2- Apelaram os AA..

         Alegando, formularam conclusões que, com utilidade, se sintetizam nestes termos:

I.3- Em resposta, a «massa insolvente» pugna pelo improvimento do recurso e pela condenação dos AA./recorrentes como litigantes de má fé em adequada quantia indemnizatória.

 Por não haver razões que a tal obstem, impõem-se conhecer do objecto do recurso.

II - FUNDAMENTOS

II.1 - de facto

A instância recorrida deu como assente e provada, o seguinte circunstancialismo fáctico:
1. Encontra-se apreendido para a massa insolvente de “V… e de M…” um prédio urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão e sótão, com dois alpendres, … (facto assente A);
2. A casa referida em A) foi construída sem licença camarária (facto 1 da BI);
3. Os insolventes adquiriram tal casa, verbalmente, em 1996 (facto 2 da BI);
4. O negócio não foi reduzido a escrito (facto 3 da BI);

5. Nem foi levado ao registo (facto 4 da BI);

         6. No ano de 2004 os insolventes pediram dinheiro ao autor R… (facto 5 da BI);

7. Nessa sequência, o autor procedeu ao pagamento aos credores de algumas dívidas dos insolventes (facto 6 da BI);

8. Nomeadamente: 11.555,92 € ao «Banco A…», 16.344,45 € à «Direcção Geral do Tesouro», 2.000,00 € ao «Banco B…» (facto 7 da BI);

9. Em 15 de Outubro de 2004 os insolventes declararam prometer vender e os autores declararam prometer comprar, a casa referida em A) (facto 10 da BI);

10. Sobre a casa referida em A. impende ordem de demolição por parte da edilidade municipal (facto 17 da BI).

II.2 - de direito

Questiona-se neste recurso, se os AA./recorrentes são titulares do direito de propriedade sobre o bem imóvel descrito em 1. do elenco factual, que foi apreendido para  a massa insolvente, e, em consequência, se deve ordenar-se a separação de tal bem da massa e a sua restituição áqueles.

A declaração de insolvência constitui o momento desencadeador das actuações processuais de natureza predominantemente executiva, consistentes na apreensão e na venda dos bens do insolvente, bem como na sua eventual separação da massa e consequente restituição a um terceiro titular de direito sobre eles (arts.149º e 141º do CIRE - diploma de que serão os artigos a citar sem menção de origem).

Este efeito substantivo da insolvência tem a sua justificação no próprio fim que comanda o processo de insolvência: a satisfação dos direitos dos credores, à custa do património do insolvente, que se liquidará.

A apreensão de bens da massa insolvente – todo o património do devedor à data da declaração de insolvência e os bens que ele adquira na pendência do processo (art.46º) - é feita pelo administrador, mas já a separação e a restituição só têm lugar após um procedimento declarativo destinado a verificar o direito real do terceiro, do cônjuge ou ao próprio insolvente, tratando-se de bens não afectos à insolvência.

O art.141º regula o exercício do direito de fazer separar da massa esses bens indevidamente apreendidos, o prazo de que o titular dispõe para o efeito, e o processo a seguir. Processa-se como a reclamação de créditos.

A tutela de terceiros que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa vem contemplada na al.c) do nº1. Passado o prazo fixado na sentença para a reclamação de créditos, os pedidos de separação e de restituição são admissíveis, mas já não pelo meio específico previsto no art.141º, devendo o terceiro propor uma acção declarativa comum, a correr por apenso ao processo de insolvência, em que o reclamante assume a posição de autor, e a massa insolvente, os credores e o insolvente a posição de réus (art.146º).

A presente acção veio estruturada nos termos desse artigo 146º, alegando os AA. que o imóvel apreendido lhes pertence por lhes ter sido transmitido pelos insolventes, mercê dum contrato-promessa celebrado em 2004, tendo desde então entrado na posse do imóvel, pagando os respectivos impostos, fazendo obras no mesmo, e tentado proceder à sua legalização sem no entanto o conseguir.

Segundo os AA., a causa desse negócio foi esta: necessitando de liquidar dívidas, os insolventes, pais dos AA., pediram a estes dinheiro, e em contrapartida prometeram transferir-lhes o imóvel que haviam adquirido verbalmente e que está construído de forma ilegal num prédio rústico.

A factualdade pertinente ao negócio e à alegada posse pelos AA. foi levada à base instrutória, e parte dela foi julgada não provada.

Daí que os AA./recorrentes ataquem a sentença recorrida essencialmente sob o ângulo do julgamento da matéria de facto, ao impugnarem a decisão da instância recorrida sobre a matéria controvertida inserida nos pontos 5º, 8º, 9º, 11º a 16º e 18º da b.i. que receberam resposta de teor negativo, conforme acima reproduzido.

Propõem, logicamente, decisão de sentido contrário, afirmando que os mesmos foram incorrectamente julgados, atendendo aos depoimentos das testemunhas que indicam e documentos que juntaram.

         Sendo, portanto, intenção dos recorrentes a alteração da decisão fáctica nos assinalados pontos, então essa modificação não reune condições mínimas de atendimento.

Vejamos porquê.

Dispõe o nº1 do art.662º/NCPC[1] que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância que também julga a matéria de facto, a Relação pode sindicar a decisão assente em prova que foi oralmente produzida e tenha ficado gravada e, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova incumbe-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre determinado facto controvertido.

Em conjugação com este artigo 662º, e para possibilitar a alteração da matéria de facto pela Relação, o art. 640º veio sujeitar o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a estes ónus de alegação: indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [al.a)]; quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos [al.b)]; relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos [al.b) e nº2-a)]; decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [al.c)].

Revertendo à situação concreta, vê-se que os recorrentes deram cumprimento aos ónus estabelecidos nas als. a) e c), especificando os pontos de factos que reputam de incorrectamente julgados e o sentido de orientação das respostas a consagrar.

Mas já não satisfizeram o ónus fixado na al.a) do nº2.

Como se vê da acta de julgamento, a prova aí produzida foi gravada. Todavia, os recorrentes não indicaram com exactidão as passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas que referem, depoimentos esses que no seu ver impunham decisão diversa da adoptada sobre a matéria de facto questionada.

Na verdade, dizem os recorrentes que se impunha responder positivamente aos pontos 5, 8, 9 e 11 por força do depoimento da insolvente M…, e das testemunhas …, sem indicarem as passagens da gravação dos respectivos depoimentos, não bastando, quanto à primeira depoente, a transcrição de curtíssimas frases descontextualizadas do seu depoimento para se ter por cumprido o ónus de alegação referido na parte final da al.a) do nº2.

Em suma, os recorrentes não cumpriram o assinalado ónus da al.a) do nº2 do art.640º, o que implica o não conhecimento do objecto da apelação neste particular.

Afirmam os recorrentes que deveria ter sido dada resposta positiva aos quesitos 12º, 13º, 14º, 15º, 16º e 18º, tendo em conta os documentos juntos com a p.i. – fls.16 a 46.

Trata-se de meros documentos particulares, portanto sem força probatória plena, estando por isso apenas provada a materialidade das respectivas declarações e já não a sua exactidão, livremente apreciados pelo julgador (art.376º/2,C.C. e 607º/5, NCPC).

De todo o modo, ainda que a Relação pudesse ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto sobre os pontos controvertidos, sempre seria inútil a reponderação da decisão de facto. É que, de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa.

No caso em análise, aqueles factos cujo julgamento vem impugnado são irrelevantes segundo o enquadramento jurídico do objecto da prova, como iremos analisar.

Segue-se, assim, que a decisão fáctica se mantém inalterada.

Conforme atrás se referiu, os AA. defendem a propriedade do imóvel em causa, por o terem adquirido no contexto dum contrato-promessa.

Na realidade, está provado que em 15 de Outubro de 2004 os insolventes declararam prometer vender e os autores declararam prometer comprar o imóvel descrito, o qual havia de constituir o objecto mediato do contrato prometido.

O nº1 do art.410º/C.C. define contrato-promessa como a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”. O contrato-promessa é um verdadeiro contrato, contrato preliminar ou preparatório do negócio prometido ou definitivo. Dele não nascem efeitos translativos, mas apenas obrigacionais – o de celebrar o contrato definitivo (prestação de facto positivo).

Sucede que no caso que nos ocupa, os promitentes (vendedores e compradores) não podem celebrar o contrato definitivo de compra e venda do prédio, atendendo à situação ilegal do mesmo.

Na verdade, vem provado que “A casa referida em A) foi construída sem licença camarária”, e que sobre ela impende ordem de demolição por parte da edilidade municipal.

Ora, sem existência da licença de construção do edifício, da qual se fará menção na escritura de compra e venda, os promitentes não podem celebrar o contrato definitivo. Em nome do interesse público de combate à construção clandestina, exige-se a certificação da licença camária de utilização ou construção.

No caso, como patentemente mostram as comunicações enviadas aos AA. pela C.M. de …, o prédio em questão foi ilegalmente construído, à revelia de licença camarária, tendo sido lavrado em 22.01.2002 o respectivo auto de embargo e emitido aviso de demolição, conforme notificação de Setembro de 2009.

Logo, tratando-se de construção clandestina, o contrato definitivo não pode ser concluído, podendo dizer-se que o objecto mediato da promessa é legalmente impossível. Aliás, os próprios recorrentes reconhecem esse obstáculo, quando afirmam nos autos que não podiam registar o imóvel por o mesmo ser ilegal, e que não lhes era possível celebrar o contrato definitivo.

Portanto, os AA., promitentes-compradores, não ignoravam essa situação quando celebraram o contrato, tanto assim que já em Novembro de 2002 fora levantado processo de contra-ordenação e aplicada uma coima ao A. R… por não possuir licença camarária.

Deste modo, não podendo haver para os AA. transmissão da propriedade do bem imóvel por impossibilidade legal de celebração do contrato de compra e venda – contrato prometido -, não poderá dizer-se que a eventual transição do prédio para os AA. os torne verdadeiros possuidores. Mesmo a provarem-se os factos inseridos nos quesitos impugnados, deles decorre uma situação de mera detenção. O contrato-promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse ao promitente comprador, salvo se este tiver, sobre a coisa objecto do contrato prometido, animus possidendi, sendo então possuidor. Não agiram os AA. com este animus, mas com animus detinendi, como possuidores precários, pela simples razão de que estavam cientes de que o contrato definitivo não seria celebrado, e daí não lhes poder ser transmitido o direito de propriedade de um prédio ilegalmente construído.

Vale tudo isto para dizer que, não feita a prova da posse ou propriedade sobre o imóvel apreendido, não pode proceder a pretendida separação e restituição aos AA. do mesmo imóvel.

Como questão nova, portanto, não discutida nem apreciada na instância recorrida, dizem os recorrentes que gozam do direito de retenção.

Sem razão. Ainda que não seja possível conhecer desse tema, dir-se-à, desde logo, que este direito, previsto no art.755º/1-f) do C.C., existe sobre coisa objecto do contrato definitivo de que tenha havido tradição, pelo crédito resultante do incumprimento imputável à outra parte. Ora, se incumprimento definitivo do contrato-promessa houve, ficou a dever-se aos promitentes (vendedores e compradores) pelos motivos acima enunciados. 

Por outro lado, esse direito pressupõe, como é óbvio, a existência de um crédito resultante do não cumprimento, pois ele constitui a garantia real desse mesmo crédito. No caso, não vem alegada a obrigação de entrega da coisa detida legitimamente, nem os AA. se apresentam como credores, sendo certo que este não é o meio adequado para reclamarem créditos.

Quando muito, restará aos AA. o direito à restituição das prestações por eles efectuadas no âmbito do dito contrato, caso se verifiquem os requisitos estabelecidos no art.102º/1 e 3-c).

Posto isto, o recurso improcede, não havendo elementos que evidenciem má fé por parte dos recorrentes, como defende a recorrida «massa insolvente».

Sem alterarem os factos que o tribunal considerou provados, limitaram-se os AA. a pugnar pela revogação da sentença com base em argumentos jurídicos extraídos dos factos assentes, perfeitamente legítimos ainda que discutíveis.

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, e em confirmar a sentença apelada.

Custas pelos apelantes.

COIMBRA, 08.04.2014

Regina Rosa (Relatora)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1]   Diploma aqui aplicável, por a decisão recorrida ter sido proferida depois de 01.09.2013