Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | PREENCHIMENTO ABUSIVO LIVRANÇA EM BRANCO | ||
Data do Acordão: | 02/07/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 10º E 77º DA LULL. | ||
Sumário: | 1. Quem emite ou subscreve uma livrança em branco atribui – expressa ou tacitamente – àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato – o pacto de preenchimento – pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento e é a violação deste acordo ou contrato que consubstancia o preenchimento abusivo. 2. Estando definido e assente, por acordo das partes, qual era a relação jurídica subjacente, a circunstância de a livrança aludir a um outro número de contrato (fosse por erro ou por quaisquer outras circunstâncias) não configura qualquer preenchimento abusivo. 3. Como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos – enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. O A...., S.A. com sede na Rua (...) , Lisboa, instaurou execução contra B... e contra C... Unipessoal, com sede na Rua (...) , Coimbra, pedindo o pagamento da quantia de 47.824,39€ e juros no valor de 359,21€, com base numa livrança subscrita pela 2ª Executada e avalizada pelo 1º Executado, emitida em 17/07/2015 e vencida em 02/09/2015.
A Executada, C... Unipessoal, veio deduzir oposição, invocando o preenchimento abusivo da livrança em virtude de a mesma se referir a um contrato de mútuo distinto daquele que foi resolvido pelo Exequente e invocando a ineptidão do requerimento executivo em virtude de o mesmo não identificar o contrato ao abrigo do qual foi preenchida a livrança. Mais alega que o “título” que serviu de base à presente execução era uma livrança em branco emergente do contrato de mútuo 383-044-001095-85, facto este não alegado e/ou sequer mencionado no requerimento executivo e que, não podendo inferir-se do mencionado “título” os factos constitutivos da relação subjacente, não podia a exequente ter avançado para uma acção executiva por não estarem preenchidos os pressupostos legais para tal. Alega ainda que o pretenso título executivo foi preenchido em «2 de Setembro de 2015», desrespeitando o prazo para colocar termo à hipotética mora, que era de apenas 5 dias, contados da recepção da carta junta como doc.2, remetida em 31 de Agosto de 2015, concluindo que estamos perante um caso de inexigibilidade da obrigação exequenda, não suprida na fase introdutória da execução, e perante factos modificativos daquela tal como foi trazida aos presentes autos, verificando-se mora do credor, pelo que não podia a exequente ter interposto uma acção executiva.
O Exequente contestou, dizendo que a execução se funda numa livrança cujas características próprias – como a abstracção e a literalidade – o dispensam de fazer apelo à relação jurídica subjacente, não tendo, por isso, o ónus de alegar a origem da obrigação exequenda, a causa do título executivo e os factos constitutivos da relação jurídica subjacente. De qualquer forma – alega – a livrança dada à execução foi subscrita em caução e garantia do contrato de mútuo celebrado 06.12.2012, que junta aos autos (facto do qual a Embargante demonstrou ter perfeito conhecimento), bem sabendo a Executada quais as prestações que se encontram vencidas. Alega, por último, que a livrança foi emitida em 17.07.2015, tendo-lhe sido aposta a data de vencimento de 2.09.2015, sendo que a execução apenas foi intentada em 17.09.2015 ou seja muito tempo depois dos 5 dias concedidos á executada para o respectivo pagamento. Conclui pela improcedência dos embargos.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, onde se decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos de executado.
Inconformada com essa decisão, a Embargante veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: 1. Deve ser revogado o douto saneador-sentença, desde logo porque os presentes autos não estavam em condições processuais de serem imediatamente conhecidos, porque existiu omissão de pronúncia quanto à questão da falta de correspondência entre o número aposto na livrança dada à execução e aquele para a qual a mesma foi efetivamente emitida pela embargante. 2. Tal omissão de pronúncia do saneador sentença redundou na violação entre outros dos arts. 615º, nº1, al.d), 413º, 611º, 4º, e 590º, nºs5 e 6, todos do CPC, e aqui dados por reproduzidos para os respetivos efeitos legais. Sem conceder, 3. Não corresponde à verdade que não exista, nem a embargante tenha invocado, qualquer problema com a livrança dada à execução, como se refere no saneador sentença. 4.Com efeito, a embargante referiu tratar-se de uma livrança em branco (fato admitido pelo exequente pelo menos nos arts.7º e 8º da contestação), por um lado, e ter existido um preenchimento abusivo da mesma, por outro. 5. Acresce que, relativamente a tal preenchimento abusivo é suscitada uma questão relacionada com o fato da livrança dada à execução, como ressalta do próprio título - que remete para o contrato de mútuo 0384-044-01549-28 -, se referir a um contrato de mútuo distinto daquele que foi celebrado pela embargante com o exequente, a saber o contrato de mútuo 383-044-001095-85. 6. Prova disso mesmo é que a livrança dada à execução tinha dois avalistas, e não um, fazendo dela só por aí um mero quirógrafo. 7. Sobre tal questão, o saneador-sentença, não se pronuncia, reduzindo todo o petitório da embargante à ineptidão do requerimento executivo e à inexigibilidade da obrigação que julga não verificadas com o singelo fundamento que se passa a transcrever: «Vale, pois, a livrança, por si só, enquanto título executivo, sem ser mero quirógrafo e, portanto, sem ser necessário invocar a relação subjacente». 8. Basta percorrer a contestação apresentada pela exequente, para se verificar que a questão é bem mais complexa, e que, uma vez mais, existiu omissão de pronúncia no saneador-sentença, como se deixa arguido para os devidos efeitos legais previstos no art. 615º, nº1, al.d), do CPC. Sem prescindir, 9. Dispõe o art.703º do CPC refere, no seu nº1, que: «À execução apenas podem servir de base: (…)(alínea c)) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;». 10. O exequente reconhece, pelo menos, nos arts.7º e 8º da contestação que o título executivo era uma livrança em branco, admitindo que a preencheu, asseverando que foi tudo corretamente preenchido. 11. Também na contestação, em lugar algum, justificou os valores apostos na livrança por si preenchida, tornando assim impossível a verificação de que prestações se encontram vencidas e não pagas e de que contrato (cfr.art.14º da oposição). 12. Mas nada disto importou no saneador-sentença que sem estar munido de todos os elementos para decidir, logo avançou para a prolação de sentença sem cuidar de deslindar se efetivamente estava perante uma livrança ou quiçá um mero quirógrafo, e se de fato a quantia constante do título (essa ou qualquer outra) já seria efectivamente exigível. 13. Dispõe o Artigo 458.º (Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida) do C.C. que: «1.Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. 2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental». 14. Só que importa notar, no aproveitamento da norma contida no nº1 do art. 458º do C.C. para o contexto que nos ocupa, que este preceito estabelece que fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, mas não de a alegar - tanto mais que esta alegação é essencial à exequibilidade do quirógrafo. 15. E, in casu, atenta a literalidade vertida no título que serviu de base à presente execução, que era uma livrança em branco, e em que é feita a alusão expressa ao contrato de mútuo 383-044-001095-85, 16. Facto este não alegado e/ou sequer mencionado no requerimento executivo, e não se podendo também inferir do mencionado “título” os factos constitutivos da relação subjacente, 17. Não estava o exequente dispensado de especificar tais fatos no requerimento executivo, alegando a relação subjacente, dado que o título que apresentou só pode valer como mero quirógrafo. 18. Por conseguinte, conforme decorre do art.615º (Causas de nulidade da sentença) do C.P.C.: «1 — É nula a sentença quando (…) d) O juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;». 19. A total omissão da invocação da relação subjacente não admite qualquer forma de suprimento, já que na acção executiva, a lei é bastante mais exigente na fixação dos requisitos de validade formal da instância. 20. Por força do disposto no art. 10º nº5 do CPC, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva” – quod non est in titulo non est in mundo. E a insuficiente densificação da relação causal equivale, na demanda executiva, à falta de indicação da causa de pedir, na ação declarativa. 21. Não sendo possível individualizar qualquer relação material controvertida causal, está a demanda executiva condenada ao naufrágio. Neste sentido, cfr. o Ac. do TRP de 24-10-2011 (1528/10.0TJVNF-A.P1); cfr., ainda, o Ac. do TRP de 29-10-2012 (1615/10.4TBAMT-B.P1). 22. Sendo o vício de conhecimento oficioso, e na total falta de densificação da relação causal, não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, com vista à alegação da relação subjacente, pois não cabe ao tribunal promover alterações da causa de pedir. É de uma alteração da causa de pedir que se trata, quando a natureza do título executivo inicialmente invocada — título de crédito — é alterada para mero quirógrafo, acompanhado da alegação da relação subjacente. Se o documento apresentado não tiver força executiva, é conhecida a falta de titulo executivo bastante (art. 726º, nº , al. A) do CPC). 23. E, por força do princípio da estabilidade da instância, depois de citado o executado, a demanda executiva deve manter-se a mesma quanto à causa de pedir (art. 260º do CPC), pois o executado tem o direito de se defender, mediante embargos, de uma demanda claramente definida isto é, de um objeto devidamente circunscrito. 24. Por esta razão, estava vedado ao exequente servir-se da contestação aos embargos para invocar serodiamente a existência de uma relação subjacente.
Não foram apresentadas contra-alegações. ///// II. Questões a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – as questões a apreciar e decidir poderão ser resumidas da seguinte forma: • Saber se o Exequente estava ou não obrigado a alegar a relação subjacente à livrança que apresentou como título executivo; • Saber se existiu omissão de pronúncia quanto à questão da falta de correspondência entre o número do contrato aposto na livrança dada à execução e aquele para a qual a mesma foi efectivamente emitida pela embargante e apurar se tal circunstância poderá configurar um preenchimento abusivo do título ///// III. Na 1ª instância, consideraram-se provados os seguintes factos: 1. Nos autos principais de execução, serve como título executivo a livrança junta aos autos a fls. 6, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 2. A livrança mostra-se subscrita pela sociedade executada. 3. Na livrança está aposta na emissão a data 17 de Junho de 2015 e no vencimento a data de 02 de Setembro de 2015. 4. A embargante foi interpelada a 31 de Agosto de 2015, tendo sido concedidos cinco dias para o pagamento da quantia exequenda. 5. A execução foi instaurada a 17 de Setembro de 2015. ///// IV. Entrando na apreciação do objecto do recurso, importa dizer, desde já, que o mesmo é claramente improcedente. Passamos, então, a enunciar as razões determinantes dessa improcedência.
Em primeiro lugar: O Exequente veio exigir, na presente execução, a obrigação titulada por uma livrança. A livrança corresponde a um título de crédito que, como tal, incorpora uma obrigação cambiária, literal, autónoma e abstracta, que existe nos termos que constam do título e independentemente da relação subjacente que deu origem à sua emissão. Com efeito, apesar de a obrigação cambiária pressupor a existência de uma relação jurídica anterior (relação subjacente ou fundamental) de onde decorre a obrigação que dá causa e origem à emissão do título, a obrigação cambiária, uma vez constituída, separa-se e destaca-se da relação subjacente, tudo se passando como se fosse uma obrigação sem causa. Assim, porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstracta, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respectivo pagamento não carece de invocar a sua causa (a relação subjacente ou fundamental) e, portanto, poderá limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação, correspondendo esta obrigação cambiária à causa de pedir da acção/execução onde se exige o seu cumprimento[1]. É certo, portanto, que o Exequente, enquanto portador da aludida livrança pode exigir aos obrigados cambiários o cumprimento (pagamento) da obrigação cambiária que nela está incorporada, sem necessidade de alegar e provar a existência e os contornos da relação jurídica que lhe esteja subjacente (já que, como se disse, a obrigação cambiária existe por si e independentemente da relação jurídica que deu origem à sua constituição). Inexiste, portanto, qualquer ineptidão do requerimento executivo e tão pouco percebemos a razão pela qual a Apelante afirma que a aludida livrança “…só pode valer como quirógrafo”. A livrança apenas valeria como quirógrafo se a obrigação cambiária já não existisse (designadamente por força da respectiva prescrição) e se o exequente se apresentasse a exigir a obrigação subjacente, apresentado a livrança como quirógrafo/prova dessa obrigação subjacente. Mas não é isso que acontece no caso sub judice, porquanto o Exequente não veio exigir o cumprimento da obrigação subjacente; o Exequente veio exigir o cumprimento da obrigação cambiária que está incorporada no título e que, como dissemos, existe nos termos que constam do título e independentemente da relação subjacente que lhe deu causa. Também não compreendemos a afirmação da Apelante quando afirma, a dado passo, que “…a livrança dada à execução tinha dois avalistas, e não um, fazendo dela só por aí um mero quirógrafo”. A livrança pode ter um, dois ou mais avalistas, sem que deixe, por isso, de corresponder a uma obrigação cambiária que está incorporada no título e que, sendo autónoma e abstracta, possa ser exigida pelo portador do título independentemente da relação subjacente. Refira-se que os Acórdãos da Relação do Porto citados pela Apelante (Acórdãos de 24/10/2011 e de 29/10/2012, proferidos nos processos nºs 1528/10.0TJVNF-A.P1 e 1615/10.4TBAMT-B.P1[2]) reportam-se a situações diferentes daquela que está em causa nos autos; no primeiro, estava em causa uma letra de câmbio que, por força da prescrição da obrigação cambiária, apenas valia como quirógrafo da obrigação subjacente e, no segundo, estava em causa um documento de confissão de dívida. Ao contrário do que acontecia nessas situações, a obrigação exigida, no caso sub judice, não é a obrigação subjacente mas sim a obrigação cambiária que está incorporada na livrança, obrigação essa que não prescreveu e que se mantém enquanto tal. O mesmo acontece com os demais Acórdãos citados pela Apelante nas suas alegações, uma vez que todos eles se reportam a situações em que o título de crédito não vale enquanto tal – porque prescreveu ou porque está desprovido dos necessários requisitos legais – mas apenas como quirógrafo da obrigação causal ou subjacente, o que – reafirma-se – não acontece no caso sub judice, na medida em que a obrigação em causa (exigida pelo Exequente) é a obrigação cambiária incorporada na livrança que se mantém enquanto tal porque nada permite concluir pela sua inexistência ou pela sua extinção (designadamente por prescrição).
Em segundo lugar: O que acabámos de dizer – ou seja, a circunstância de o portador da livrança poder exigir a obrigação cambiária nela incorporada sem necessidade de alegar a relação subjacente – não impede, obviamente, os obrigados cambiários de invocar qualquer excepção fundada na relação subjacente, desde que a letra de câmbio ainda se encontre no domínio das relações imediatas (cfr. art. 17º e 77º da LULL) Ora, sendo certo que o título de crédito aqui em causa ainda não havia entrado em circulação, encontrando-se ainda no domínio das relações imediatas, a Executada/Apelante (subscritora da livrança) poderia invocar quaisquer excepções fundadas na relação subjacente ou fundamental que havia estabelecido com o Exequente e que teria dado causa à relação cambiária. Mas estes factos – que impediriam, no âmbito das relações imediatas, a exigibilidade da obrigação cambiária incorporada no título – correspondem a excepções que, como tal, teriam que ser demonstradas pela Executada. A Executada/Apelante alegou que a relação subjacente à livrança correspondia a um contrato de mútuo com o nº 383-044-001095-85 e que, na livrança, havia sido aposta uma referência a um contrato de mútuo distinto, invocando, em face dessa circunstância, o preenchimento abusivo da livrança que havia sido subscrita em branco e dizendo, nas suas alegações de recurso, que a sentença recorrida não apreciou essa questão e que, como tal, é nula. Não vislumbramos, contudo, qual a relevância dessa questão e não vislumbramos como essa circunstância poderia configurar, só por si, um preenchimento abusivo da livrança. Com efeito, independentemente da referência feita no próprio título a um número de contrato diferente, o Exequente aceitou expressamente que a relação subjacente à livrança corresponde ao contrato de mútuo que é invocado pela Executada. Ficou, portanto, definido e assente, por acordo das partes, qual era a relação jurídica subjacente. Mas, como parece evidente, a circunstância de a livrança aludir a um outro número de contrato (fosse por erro ou por quaisquer outras circunstâncias, designadamente as que são alegadas pelo Exequente) não configura qualquer preenchimento abusivo. O preenchimento abusivo pressupõe que o título (subscrito e entregue em branco) tenha sido preenchido com violação do pacto de preenchimento (cfr. art. 10º e 77º da LULL). Com efeito, quem emite ou subscreve uma livrança em branco atribui – expressa ou tacitamente – àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato – o pacto de preenchimento – pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento e é a violação deste acordo ou contrato que consubstancia o preenchimento abusivo. Mas, como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos; era, portanto, a Executada que tinha o ónus de alegar e provar esses factos – enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título – e, como tal, era ela que tinha o ónus de alegar e provar a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e que o título havia sido preenchido sem a sua autorização e em desconformidade com o que havia sido acordado. Assim, além de alegar a concreta relação subjacente que esteve na origem da subscrição da livrança, a Executada/Apelante, no sentido de alegar e provar o seu preenchimento abusivo, tinha que alegar os concretos termos dessa relação e do acordo celebrado com vista ao preenchimento da livrança e tinha que alegar que a mesma havia sido preenchida sem a sua autorização e em desacordo com o pacto de preenchimento (designadamente porque havia sido preenchida com um valor superior àquele que era devido e que estava contemplado no pacto de preenchimento ou porque havia sido preenchida em momento anterior ou com data de vencimento diversa daquela que estava prevista naquele pacto). A Executada/Apelada nada alegou a esse propósito, limitando-se a alegar que a referência feita na livrança ao número de contrato não correspondia à realidade e que a relação subjacente correspondia a um determinado contrato de mútuo que identificou. Assim é efectivamente; o Exequente aceitou que era essa a relação jurídica subjacente. E então? A livrança está em desacordo com as obrigações emergentes dessa relação jurídica e com o pacto de preenchimento que foi celebrado? Não sabemos; a Executada nada alegou a esse propósito e, como referimos, era a Executada que tinha o ónus de provar essa excepção, alegando e provando a relação jurídica subjacente, o pacto de preenchimento e o preenchimento da livrança em desconformidade com esse pacto.
É certo, portanto, em face do exposto, que os embargos não poderiam proceder. Tal como se referiu, o Exequente veio exigir o cumprimento da obrigação cambiária incorporada na livrança – ou seja, uma obrigação abstracta e autónoma que se destaca da relação subjacente e que dela é independente – não estando, por isso, obrigado a alegar a relação subjacente/causal e a justificar os valores apostos na livrança, ainda que esta lhe tivesse sido entregue em branco. Eram os Executados que tinham o ónus de alegar e provar qualquer circunstância que pudesse obstar à existência e exigibilidade dessa obrigação, podendo invocar, designadamente, qualquer excepção fundada na relação subjacente ou fundamental que haviam estabelecido com o Exequente, uma vez que o título ainda se encontrava no âmbito das relações imediatas. Nessa perspectiva, eram os Executados que tinham o ónus de alegar e provar essa relação jurídica subjacente e as excepções que, com base nela, pudessem invocar, designadamente qualquer facto extintivo, impeditivo ou modificativo dessa obrigação. A Executada invocou a relação subjacente mas não invocou qualquer excepção dela decorrente, na medida em que não invocou qualquer facto ou circunstância dela decorrente com base no qual se pudesse concluir que a obrigação já se havia extinguido ou não era exigível, limitando-se a aludir a um pretenso preenchimento abusivo sem alegar os termos do contrato celebrado e do pacto de preenchimento e sem alegar, portanto, que os concretos termos em que a livrança havia sido preenchida estavam em desconformidade com os termos que haviam sido acordados entre as partes (sendo certo que a mera circunstância de ter sido aposta na livrança uma referência a um contrato de mútuo cujo número não coincide com aquele que inicialmente lhe havia sido atribuído não corresponde a qualquer preenchimento abusivo). É certo, portanto, que os embargos teriam que improceder e, portanto, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Improcede, portanto, o recurso. ///// V.
Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves Des. Adjuntos: António Magalhães Ferreira Lopes
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