Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2344/13.2TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, Nº 3, E 287.º, DO CPP
Sumário: I - Quando o Ministério Público não acusa o assistente pode requerer a abertura de instrução mas, o RAI apresentado deve demonstrar a verificação da prática de factos criminalmente punidos, bem como do seu autor.

II - Ao assistente, no RAI, não basta contrapor argumentos aos argumentos apresentados pelo Ministério Público aquando do arquivamento, sem cuidar de conformar esses argumentos à estrutura de uma acusação. O RAI tem que assumir as vestes de uma acusação, que o processo não tem, sendo este requerimento que, uma vez admitido, vai conformar o desenvolvimento de todo o processo.

III - A instrução não é um segundo inquérito, pelo que não visa averiguar se alguém cometeu factos qualificados como crime. Antes se destina a comprovar a bondade da decisão anteriormente tomada pelo Ministério Público, cabendo-lhe apurar se a decisão de acusar ou de não acusar correspondeu aos indícios existentes nos autos.

IV - Na instrução o juiz não averigua o que quer, não pratica as diligências que entende serem convenientes, apenas averigua se as razões de discordância do requerente são, ou não, fundadas e apenas pratica as diligências consentâneas com um tal desiderato.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.
Em 19-11-2013 A... apresentou queixa contra B... e C..., alegando que:
- no âmbito do processo nº 2119/11.3TALRA, que corre no 1º juízo do Ministério Público de Leiria, diz-se que B... «dizia a toda a gente que ele iria pagar muito caro por tê-lo enfrentado» por ser uma «pessoa muito influente»;
- C... é amigo de B... e fez-lhe vários favores, nomeadamente deu o seu aval em letras de câmbio aceites por este, letras estas sacadas não só pelo participante, familiares ou firmas das quais é sócio gerente/administrador, mas também por terceiros, nomeadamente G...;
- em 13-10-2009 foi penhorado parte do vencimento de C... no âmbito de uma destas letras de câmbio;
- nas diligências levadas a cabo para obter o valor em causa B... disse aquilo que acima ficou exposto;
- o participante tem vindo a receber emails sobre faltas de liquidação de IVA, desconhecendo os períodos a que respeita e a que título deve;
- já tentou consultar o processo no serviço de finanças mas o acesso foi-lhe negado;
- não obstante, tem declarações das finanças a dizer que nada deve;
- também a empresa F..., para onde os emails são dirigidos, não tem qualquer dívida;
- por isso estranha estar acusado dos crimes de corrupção passiva e acesso ilegítimo no âmbito do processo nº 2119/11.3TALRA;
- razão pela qual receia que possam estar a deturpar ou falsear documentos junto da Autoridade Tributária e Aduaneira;
- B... tinha consigo documentação sigilosa participante relativa ao IRS;
- as ameaças feitas por este ao participante foram, assim, concretizadas;
- o processo 26/11.9IDLRA teve origem numa denúncia anónima por alegadas ilegalidades praticadas pela empresa F...;
- o participante é conhecido como “o A... da E...”, sendo que o dono da empresa é o seu irmão D...;
- no âmbito deste processo e do processo 178/12.0GALRA surgiram nas sociedades E... e F..., ao mesmo tempo, pessoas a perguntar pelo participante, crendo que eram do mesmo dono;
- no âmbito deste segundo processo a diligência feita na E... tem origem numa carta anónima remetida à autoridade tributária, sendo que o quem era nesta denunciada era a empresa F...;
- os mandados de busca em ambos os casos são de Julho de 2012, mas estão a ter tratamento diferente;
- para obstruir o acesso do participante ao processo 2119/11.3TALRA C... disse que se não desistisse do seu direito creditório iria manchar o seu nome e reputação;
- e fez isso, nos termos explanados;
- e tudo está a ser tentado nesse sentido porque quem intervém nos processos referidos são os colegas de trabalho de C..., os mesmos que foram ouvidos como testemunhas.

O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento porque, em síntese:
- no processo nº 2119/11.3TALRA investigam-se alegados crimes de injúrias, difamação, ameaça, corrupção passiva e acesso ilegítimo cometidos pelos denunciados;
- no processo nº 26/11.9IDLRA investigam-se alegados crimes de fraude fiscal qualificada e de branqueamento de capitais cometidos pelo denunciante;
- por força do princípio ne bis in idem parte dos factos alegados não podem dar origem a um novo processo porque já estão a ser investigados;
- para além disso, os demais factos visam descredibilizar as testemunhas indicadas no processo.
*

O denunciante requereu a abertura de instrução, nos seguintes termos:
«1º Compulsados os autos de inquérito verifica-se que nenhuma diligência foi efetuada por parte do Ministério Público, a não ser "(...) compulsados os autos, verifica-se que (...)"
2º Nenhum meio de prova foi feito, a não ser a audição do denunciante e "compulsar" os autos do NUIPC 2110/11.3TALRA e NUIPC 26/11.9IDLRA.
3º Nada mais! Isto é, nenhuma diligência de prova fez.
4º O denunciante referiu os fatos que pretendem ser investigados, pois recebeu notificação das Finanças da Chamusca com o processo nº 1996201206003850 com indicação de que infringiu o artigo 29º nº 8 (T) CIVA por falta de liquidação de IVA e artigo 114º nº RGIT por falta de entrega da prestação tributária.
5º E explicou que nunca foi sujeito de passivo de IVA nem nunca teve a seu cargo trabalhadores para reter um qualquer IRS.
6º O denunciante não sabe o que existe verdadeiramente de dívida nas finanças, o que referiu em sede de inquirição.
7º Parece claro que, o que se pretende com a denúncia é saber junto da Repartição de Finanças da Chamusca a que se deve a notificação referida no artigo 4º supra (junta como doc. nº 7 na participação), bem como os emails juntos como docs. n.sº 6, 7 e 8 da queixa crime.
8º Quando, por outro lado, as certidões da Autoridade Tributária e Aduaneira vêm dizer que o denunciante nada deve e nenhum processo existe (cifra docs. n.sº 2, 3, 4 e 5 da participação).
9º O mínimo exigido (a qualquer cidadão), face a estas notórias contradições junto da AT, seria indagar junto da Repartição de Finanças da Chamusca quais os documentos que sustentam a notificação referida no artigo 4º supra, o que se requer desde já.
10º Já que junto da Repartição de Finanças da Chamusca foi dito que não poderiam explicar o conteúdo da documentação de suporte da notificação e emails expedidos, o que foi referido também pelo denunciante em sede de inquirição.
11º Face aos fatos vertidos e depoimento testemunhal (o que para tanto basta ler as inquirições das testemunhas) no processo nº 2119/11.3TALRA, é normal que o denunciante (como qualquer cidadão) tenha receio do que possa existir na Repartição de Finanças da Chamusca vindo de Leiria.
12º Acontece que a queixa apenas visa saber que documentação possa existir contra o aqui denunciante, falsa esclareça-se, junto da Repartição de Finanças da Chamusca, vinda de Leiria, o que parece não ter sido compreendido pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador que decidiu arquivar os autos de inquérito, nada mais.
13º Sendo certo que as referências aos autos 2119/11.3TALRA e 26/11.9IDLRA apenas serviriam para melhor concretizar o que se pretendia.
14º E, salvo o devido respeito, nenhuma diligência nos autos de inquérito foi feita nesse sentido.
15º Ora, pode verificar-se que a presente participação é intentada logo após receber a notificação já acima referida pela Repartição de Finanças da Chamusca, num momento temporal certo e concreto.
16º E, se a notificação, nada tem a ver com o inquérito n.º 26/11.9IDLRA? É que o processo de inquérito nº 26/11. 9IDLRA ainda não está concluído na presente data, pelo que tal notificação não pode respeitar aos fatos do mesmo, o que é notório!
17º É que, lendo o douto despacho de arquivamento, salvo o devido respeito, fica-se sem saber isso mesmo, por manifesta falta de obtenção de meios de prova no âmbito do inquérito, o que devia ter sido feito e não o foi.
18º É que o denunciante desconhece por completo qual é(são) a(s) aprestação(ões) tributária(s) cuja suposta(s) entrega(s) não foi(oram) feita(s).
19º VITOR HUGO ADVOGADO
19º Sendo que já tentou consultar junto do Serviços de Finanças da Chamusca e foi-lhe negada quaisquer esclarecimentos.
20º De fato, o participante não tem quaisquer dívidas fiscais.
21º Pelo que, tudo se mostra estranho já que o denunciante nunca foi sujeito passivo de IVA nem nunca teve qualquer funcionário a seu cargo para efeitos de IRS.
22º O denunciante defendeu-se no âmbito do processo de contraordenação nº 1996201206003850 do Serviço de Finanças da Chamusca, tendo receio de que possam estar a deturpar ou falsear documentação junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e por isso intentou a participação para se investigar aquela notificação em concreto, nada mais.
23º Naturalmente que para o denunciante, tais fatos agora sob análise têm a ver com os denunciados, face ao que se tem dito na presente peça processual e na participação.
24º E por isso se intentou participação para investigar eventuais fatos criminais.
25º Pois o participado B... continua ainda hoje a dizer em público que só parará quando destruir por completo o denunciante, tudo porque não pretende pagar a dívida que contraiu.
26º Crendo que possa ter sido o mesmo, em conluio com o outro participado, a deturpar e falsear declarações junto da AT (ou eventualmente terceiras pessoas que se desconhecem).
Termos em que e nos demais de direito requer a V. Exa. que seja declarada a abertura de instrução e, em consequência, proferido despacho no sentido de que se investigarem os fatos constantes na douta participação, ou, caso se venham a apurar fatos suficientes contra os aqui denunciados ou terceiros, seja proferido despacho de pronúncia contra os mesmos pela prática dos crimes que se vierem a apurar, o que se requer.
Mais se requer:
A) Que seja oficiada a Repartição de Finanças da Chamusca para vir juntar todos os documentos do processo n.º 1996201206003850, bem como todos os documentos que com ele estão em conexão;
B) Que seja oficiada a Repartição de Finanças de Leiria 1º e 2º para vir juntar aos autos eventuais participações que tenham sido feitas para a Repartição de Finanças da Chamusca referente ao denunciante, bem como todos os documentos que estão em conexão;
C) Que seja oficiada os serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leiria para vir juntar aos autos eventuais participações que tenham sido feitas para a Repartição de Finanças da Chamusca referente ao denunciante, bem como todos os documentos que estão em conexão;
D) Requer-se a inquirição das seguintes testemunhas:
…».

2.
O processo foi remetido para tribunal, tendo sido proferido despacho rejeitando o pedido por se entender verificar-se inadmissibilidade legal de instrução, nos seguintes termos:
«… o requerente omite a descrição concreta dos factos no seu encadeamento lógico, e no espaço e tempo, bem como omitindo a referência aos elemento subjectivo concreto do ilícito em causa.
Na verdade, limita-se a tecer considerações quanto à discordância do despacho de arquivamento com apreciação dos concretos meios de prova testemunhal e documental, concluindo com o requerimento de diligências de prova.
Note-se que a falta de referência ao elemento subjectivo do crimes em causa permite enquadrar os factos numa conduta negligente e como tal não punida por lei.
No caso de despacho de arquivamento proferido pelo MP, o requerimento de abertura de instrução constitui substancialmente uma acusação com as exigências elencadas no art.º 283º, n.º 3 do CPP.
Salvo o devido respeito pelo subscritor do requerimento de abertura de instrução existe uma completa omissão de factos encadeados na sua lógica de modo, espaço e tempo bem como dos respectivos elementos objectivos de ilícitos e não caracterizando o elemento subjectivo do crime ou crimes em causa, e daí a dificuldade em concluir pela pronúncia de um concreto crime.
Ora dispõe o art. 287º nº 2 do C.P.P. que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre quer disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz Leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283º nº 3 b) e c).
Ora, no caso concreto, existe uma ausência de factos pelo que três soluções possíveis se colocam:
- o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, e não se verificando, terá o juiz que abrir sempre a instrução e depois será no debate instrutório onde não pronunciará …
- o juiz de instrução deverá convidar o requerente a aperfeiçoar o seu requerimento …
- não há base legal para o aperfeiçoamento …
*
1. A figura do aperfeiçoamento encontra-se prevista no art.º 508º do CPC mas não têm aplicação «ex vi» do art.º 4º no CPP, pois trata-se de um acto perfeitamente anómalo em face de regras procedimentais do processo penal as quais são claras e transparentes mercê dos direitos em causa no âmbito do processo criminal.
O anómalo aperfeiçoamento a existir teria de ser concedido a tudo e a todos, o que implicava a existência de aperfeiçoamentos de acusações. O processo penal português tem, como refere o Prof. Figueiredo Dias (Princípios estruturantes do processo penal, in Código de Processo Penal, vol. II, t. II, p. 22 e 24, Assembleia da República), uma "estrutura acusatória integrada por um principio de investigação oficial", estabelecendo-se por força do principio da acusação que a entidade julgadora não pode ter funções de investigação e de acusação no processo antes da fase de julgamento, podendo apenas investigar dentro dos limites da acusação fundamentada e apresentada pelo Ministério Público ou pelo ofendido (Lato sensu), onde se inclui o requerimento de abertura de instrução.
Ou, nas considerações de juristas, não menos eminentes - Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 3ª edição, p. 206 «A estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura de instrução ...»;
A admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que certamente, o actual C.P.P. não pretende. Por outro lado, como assinala o Ac. da Relação Lisboa nº 10685/2001, rel. Dr. Trigo Mesquita, "( ... ) o convite dirigido às partes, pelo juiz, para a correcção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa".
2. Não tem aplicação, no caso a reparação oficiosa da irregularidade processual prevista no art.º 123º, n.º 2 do C.P, já que tal insuficiência não é susceptível de reparação oficiosa em virtude da violação do princípio do acusatório.
3. Não pode, no caso, ter aplicação o disposto no art.º 288º, n.º 4 do CPP que refere que incumbe ao juiz investigar autonomamente os factos que constituem objecto da instrução, já que, o que está verdadeiramente em causa é a falta de factos;
O STJ veio a tomar posição quanto à questão no Ac. STJ de 7/2005 de fixação de jurisprudência entendendo que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287º, n.º 2 do CPP, quando for omisso em relação à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», publicado no DR 1-A Série, de 4 de Novembro de 2005
Seguindo este entendimento em relação à falta de elementos subjectivos dos crimes em causa o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7-01-2009, proferido no Recurso Penal n.º 621/08-4ª Secção, acessível in www.dgsi.pt: «Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução do assistente o requerimento de abertura de instrução que não descreva os elementos subjectivos do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido».
Na verdade, e se o requerimento de abertura de instrução não contém os elementos subjectivos dos crimes imputados nunca pode o juiz de instrução ter em conta tais elementos ainda que viesse a considerar suficientemente indiciados os restantes elementos objectivos dos crimes em causa. Nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia dos requeridos em causa nos autos e isto porque tendo aplicação o disposto no art. 283º, nº 3 este impõe a descrição sintética de todos os elementos que sejam necessários para fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. Note-se que se tais factos forem incluídos na pronúncia, uma vez que não constam do requerimento de abertura de instrução, implicarão uma alteração substancial, e como tal geram uma nulidade prevista no art. 309º, nº 1 do CPP.
Em suma, a "falta de indicação de factos pode gerar a inexistência do processo e consequente inadmissibilidade do requerimento por falta de objecto" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, verbo, vol. 3, 2ª ed., p. 144 nota 3), como é o caso ainda que tão só em relação aos elementos subjectivos dos crimes em causa.
Assim, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução (art. 287º nº 3 do C.P.P.) nos termos expostos.
…».

3.
O denunciante, entretanto constituído assistente, recorreu e concluiu:
«1ª O Tribunal a quo decidiu, por inadmissibilidade legal, rejeitar o requerimento de abertura da instrução, sendo que o mesmo mostra-se legal e admissível.
3ª Assim, compulsados os autos de inquérito e atos jurisdicionais, verifica-se que nenhuma diligência foi efetuada por parte do Ministério Público nem pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução.
4ª Nenhum meio de prova foi feito, a não ser a audição do assistente, e nenhuma diligência de prova fez.
5ª O assistente referiu os fatos que pretendem ser investigados, pois recebeu notificação das Finanças da Chamusca com o processo nº 1996201206003850 com indicação de que infringiu o artigo 29º nº 8 (T) CIVA por falta de liquidação de IVA e artigo 114º n.0 RGIT por falta de entrega da prestação tributária.
6ª E explicou que nunca foi sujeito de passivo de IVA nem nunca teve a seu cargo trabalhadores para reter um qualquer IRS.
7ª O assistente não sabe o que existe verdadeiramente de dívida nas finanças, o que referiu em sede de inquirição, pois nenhuma explicação e/ou resposta obtém, o que se mostra estranho.
8ª Parece claro que, o que se pretendia com a denúncia era saber junto da Repartição de Finanças da Chamusca a que se deve a notificação e emails juntos na participação.
9ª Quando, por outro lado, as certidões da Autoridade Tributária e Aduaneira vêm dizer que o assistente nada deve e nenhum processo existe, tal como demonstram os documentos também juntos.
10ª O mínimo exigido (a qualquer cidadão), face às regras previstas na Constituição da República Portuguesa, face a estas notórias contradições junto da AT, seria indagar junto da Repartição de Finanças da Chamusca quais os documentos que sustentam a notificação referida, o que sempre se requereu e sempre foi negado.
11ª Já que junto da Repartição de Finanças da Chamusca foi dito que não poderiam explicar o conteúdo da documentação de suporte da notificação e emails expedidos, o que foi referido também pelo assistente em sede de inquirição.
12ª Face aos fatos vertidos e depoimento testemunhal (o que para tanto basta ler as inquirições das testemunhas) no processo n.º 2119/11.3TALRA, é normal que o assistente (como qualquer cidadão) tenha receio do que possa existir na Repartição de Finanças da Chamusca vindo de Leiria.
13ª Acontece que a participação apenas visa saber que documentação possa existir contra o aqui assistente, falsa esclareça-se, junto da Repartição de Finanças da Chamusca, vinda de Leiria, o que parece não ter sido compreendido pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador, bem como Juiz de Instrução, que decidiu arquivar os autos de inquérito e rejeitar por inadmissibilidade legal da instrução, respetivamente, nada mais.
14ª Sendo certo que as referências aos autos 2119/11.3TALRA e 26/11.9IDLRA apenas serviriam para melhor concretizar o que se pretendia.
15ª E, salvo o devido respeito, nenhuma diligência nos autos de inquérito e na instrução foi feita nesse sentido.
16ª Ora, pode verificar-se que a presente participação é intentada logo após receber a notificação já acima referida pela Repartição de Finanças da Chamusca, num momento temporal certo e concreto.
17ª E, se a notificação, nada tem a ver com o inquérito nº 26/11.9IDLRA? É que o processo de inquérito n. 0 26/11. 9IDLRA ainda não está concluído na presente data, pelo que tal notificação não pode respeitar aos fatos do mesmo, o que é notório.
18ª É que, lendo o douto despacho de arquivamento e despacho de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, salvo o devido respeito, fica-se sem saber isso mesmo, por manifesta falta de obtenção de meios de prova no âmbito do inquérito e instrução, o que devia ter sido feito e não o foi.
19ª É que o assistente desconhece por completo qual é (são) a (s) aprestação (ões) tributária (s) cuja suposta (s) entrega (s) não foi (oram) feita (s).
20ª Sendo que já tentou consultar junto do Serviços de Finanças da Chamusca e foi-lhe negada quaisquer esclarecimentos e acesso a documentação e, de fato, o assistente não tem quaisquer dívidas fiscais.
21ª Pelo que, tudo se mostra estranho já que o assistente nunca foi sujeito passivo de IVA nem nunca teve qualquer funcionário a seu cargo para efeitos de IRS.
22ª O assistente defendeu-se no âmbito do processo de contraordenação nº 1996201206003850 do Serviço de Finanças da Chamusca, tendo receio de que possam estar a deturpar ou falsear documentação junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e por isso intentou a participação para se investigar aquela notificação em concreto e pessoas já identificadas e envolvidas, nada mais.
23ª Naturalmente que para o assistente, tais fatos agora sob análise têm a ver com os agentes identificados, que nem sequer foram ouvidos, registe-se, face ao que se tem dito na presente peça processual, requerimento de abertura de instrução e na participação.
24ª E por isso se intentou participação constante nos autos para investigar eventuais fatos criminais, o que lhe foi negado.
25ª Pois as pessoas identificadas como participados continuam ainda hoje a dizer em público que só parará quando destruir por completo o assistente, tudo porque um deles não pretende pagar a dívida que contraiu.
26ª Tudo, crendo que possam ter sido os mesmos, em conluio, a deturpar e falsear declarações junto da AT (ou eventualmente terceiras pessoas que se desconhecem).
27ª Requereram-se diligências e nada foi feito ou investigado ou requerido.
28ª Os fatos estão concretamente identificados, devidamente descritos e com desencadeamento lógico, no espaço e tempo.
29ª E, por isso se propugna que o douto despacho de rejeição se mostra ilegal, pois deveria haver lugar à instrução e proferir-se despacho no sentido de que se investigarem os fatos constantes na douta participação e, nesse seguimento, despacho de pronúncia contra os denunciados pela prática dos crimes que se viessem a apurar.
30ª Pois se assim não acontecer, fica o assistente sem saber quais as declarações que estão como suporte de tal notificação, violando claramente as normas vertidas na Constituição da República Portuguesa.
31ª O assistente participou fatos que não foram investigados, nem na fase de inquérito nem na instrução, como era obrigação.
32º De fato nos autos supra não houve inquérito nem instrução, direitos que foram vedados ao assistente, pelo que tanto do despacho de arquivamento como o despacho sob análise são nulos.
33º O que, nos termos do artigo 119º, alínea d), e 120º, nº 3, alínea c), ambos do C.P.Penal, comporta uma nulidade insanável, nulidade que desde já se invoca para os devidos efeitos legais.
34º Bem como comporta uma nulidade nos termos do artigo 120º nº 3, alínea c), do C. P. Penal.
35º Pelo que deve ser ordenado o inquérito e/ou a instrução, investigando-se os fatos participados pelo assistente, nos termo do artigo 122º do C. P. Penal».

4.
O recurso foi admitido.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, defendendo a manutenção do decidido por entender que do RAI é omisso relativamente a elementos essenciais à configuração de um ilícito penal.

Nos mesmos termos se pronunciou o Exmº P.G.A., defendendo que o RAI não cumpre a lei porque não expõe os factos praticados, nada diz sobre o elemento subjectivo do ilícito denunciado, não identifica os crimes que entende terem sido cometidos não possibilitando, deste modo, a aplicação de qualquer pena, como determina o art. 283º, nº 3, al. b), do C.P.P.

5.
Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
*
*

DECISÃO
Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à suficiência do RAI apresentado pelo assistente.

*
Nos termos dos art. 286º, nº 1, e 287º, nº 1, al. b), e nº 2, do C.P.P. a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, e deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação.
Trata-se de uma fase processual facultativa destinada a sindicar a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito ou deduzir acusação.

Quando o Ministério Público acusa o objecto da instrução é a comprovação judicial desta acusação. Se o juízo final for no sentido da sua comprovação o julgamento a realizar vai ter por base aquela acusação, pois é ela que define o objecto do processo.
Nos casos em que o Ministério Público não acusa o assistente pode requerer a abertura de instrução.
Quando assim sucede o RAI apresentado visa, naturalmente, demonstrar a verificação da prática de factos criminalmente punidos, bem como do seu autor. Por isso tem que assumir as vestes de uma acusação, que o processo não tem, sendo este requerimento que, uma vez admitido, vai conformar o desenvolvimento de todo o processo.

Consubstanciando o RAI, materialmente, uma acusação, para ser bem sucedido tem que obedecer aos requisitos enumerados no nº 3 do art. 283º do C.P.P. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 130..
Conforme decidiu o S.T.J. «o requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução. O requerimento de abertura da instrução, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal … Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação. O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório» Acórdão do S.T.J. de 24-9-2003, processo 03P2299..
A instrução não é um segundo inquérito, pelo que não visa averiguar se alguém cometeu factos qualificados como crime. Antes se destina a comprovar a bondade da decisão anteriormente tomada pelo Ministério Público, cabendo-lhe apurar se a decisão de acusar ou de não acusar correspondeu aos indícios existentes nos autos. Na instrução o juiz não averigua o que quer, não pratica as diligências que entende serem convenientes, apenas averigua se as razões de discordância do requerente são, ou não, fundadas e apenas pratica as diligências consentâneas com um tal desiderato.
Portanto, percebe-se os motivos que determinam que o requerimento de abertura de instrução tenha que ser, formal e substancialmente, uma verdadeira acusação.

No caso o Ministério Público arquivou o inquérito dizendo que relativamente aos factos a que se refere o processo 2199/11.3TALRA a conduta imputada já está a ser investigada e quanto ao processo 26/11.9IDLRA os factos com este relacionados são investigados no âmbito deste processo.

No RAI rejeitado não consta a referência ao elemento subjectivo de um qualquer crime, tal como também não se imputa a prática de qualquer ilícito penal concreto. O que o assistente faz é, apenas, contrapor argumentos aos argumentos apresentados pelo Ministério Público aquando do arquivamento, sem cuidar de conformar esses argumentos à estrutura de uma acusação.

Mas, ao fim e ao cabo, face ao texto do requerimento o assistente não pretende imputar factos concretos nem um qualquer ilícito penal. O que ele pretende é que o tribunal investigue da prática dos factos que alega, primeiro, e que depois, caso a sua prática fique demonstrada, que aja em conformidade.
O assistente invoca os múltiplos problemas que tem tido com o serviço de finanças da Chamusca, que lhe imputa uma dívida. Diz que nada deve, diz que nem sequer sabe que processo é esse de onde emerge a referida dívida e depois diz: «… o que se pretende com a denúncia é saber junto da Repartição de Finanças da Chamusca a que se deve a notificação referida …».
Reforçando isto mesmo repete «que a queixa apenas visa saber que documentação possa existir contra o aqui denunciante, falsa esclareça-se, junto da Repartição de Finanças da Chamusca … o que parece não ter sido compreendido pelo Exmo. sr. dr. Procurador que decidiu arquivar os autos de inquérito …».
Portanto, o que o arguido pretende é que no âmbito da instrução requerida o tribunal averigúe os motivos que levam a Repartição de Finanças da Chamusca a reclamar-lhe o pagamento de dívidas, como se de um inquérito se tratasse.
É evidente que perante tudo isto nunca o pedido de abertura de instrução poderia ter tido êxito.

Para além disso, e como também se refere, os factos alegados pelo assistente estão estreitamente relacionados com aqueles a que se reportam os processos 26/11.9IDLRA e 2199/11.3TALRA, sendo nestes que a sua invocação tem sentido.
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Nos termos do nº 3 do art. 287º do C.P.P. – norma à luz da qual o RAI foi rejeitado -, «o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução».
Considerando que o pedido não foi extemporâneo, nem que o juiz é incompetente, a decisão é legal se o motivo invocado enquadrar a hipótese de inadmissibilidade legal da instrução.
E são enquadráveis no conceito de inadmissibilidade legal da instrução os casos em que o requerimento de abertura da instrução não respeita o disposto no art. 283º, nº 3, do C.P.P.?

Concedendo que a questão será discutível, a verdade é que muita doutrina e a maior parte da jurisprudência entendem que estas situações integram, efectivamente, o conceito de inadmissibilidade legal da instrução, isto porque sendo a descrição dos factos ilícitos essencial ao julgamento e posterior condenação, um requerimento de abertura de instrução que seja omisso nestes elementos essenciais nunca pode fundamentar uma pronúncia e, consequentemente, a realização de um julgamento, pois o juiz não pode, por sua iniciativa, substituir-se ao assistente e acrescentar, na pronúncia, os factos em falta, essenciais à imputação do crime em questão. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução.
Daí que uma instrução que não possa conduzir a uma pronúncia, por omissão de elementos essenciais à sua prolação, é uma instrução ilegal, porque inútil.
Em tal caso verificar-se-á, pois, inadmissibilidade legal de instrução.
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DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Fixa-se em 4 Ucs a taxa de justiça.



Coimbra, 12-11-2014

Olga Maurício (relatora)

Luís Teixeira (adjunto)