Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
28/22.0GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS FÍSICOS
MAUS TRATOS PSÍQUICOS
REITERAÇÃO
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 152.º, N.º 1, ALÍNEA D), E N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – No entendimento dominante da doutrina, que seguimos, o crime de violência doméstica tutela a saúde física, psíquica, mental e moral.

II – O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, pois só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial, habitual, pois pressupõe a prática reiterada da mesma acção, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única, e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado, outras de mera actividade, umas vezes de dano, quanto ao bem jurídico, outras de perigo.

III – Devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física, e no conceito de maus tratos psíquicos as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas.

IV – A qualificação de uma conduta como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada acção para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da «respectiva situação ambiente e da imagem global do facto».

V – O preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta violenta se traduza numa lesão grave ou num tratamento cruel ou brutal.

VI – A violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das acções violentas, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade.

VII – A reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo da violência doméstica, embora seja pressuposta como conduta ‘norma’, e daí que o crime seja qualificado como crime habitual.

VIII – A execução é reiterada quando cada acto concreto, cada conduta parcelar, realiza parcialmente o evento, constituindo o somatório dos eventos parciais, o resultado, o evento unitário, o crime único.

IX – A reiteração traduz um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

Por sentença de 17 de Janeiro de 2023 foi o arguido condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, d), 2, a) do C. Penal, na pena de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na respectiva execução por idêntico período, sujeita a regime de prova e subordinada à regra de conduta de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima AA.

Mais foi o arguido condenado no pagamento a AA, da quantia de € 800 para compensação dos danos não patrimoniais causados.


*


Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:

               …

3. Esteve mal aquele Tribunal em não proceder a uma correta apreciação da prova que estava ao seu alcance, bem como, da matéria de facto provada retirou ilações que não poderia ter retirado, condenando o Recorrente de forma que não poderia ter feito.

11. Note-se que, em primeiro lugar, das testemunhas arroladas pela acusação poucas mereceram credibilidade ou nada contribuíram para suportar a acusação, …

32. Após 2018 até data hoje, nunca o arguido atentou contra a vida da mãe ou integridade física, pelo que se fosse esse o seu propósito, como imaginado pelo assistente, por certo já o teria feito.

36. Acontece que o arguido não vem acusado nesse período de 2018 de injuriar a mãe, pelo que se excedeu o Tribunal na pronúncia (Em 2018, o arguido vem acusado de ter tentado estrangular a mãe e quanto a isso a testemunha nada sabe).

41. A defesa do arguido, o que retém deste julgamento e da prova produzida é que estamos perante um drama familiar relacionado com o uso de drogas por parte do arguido, querendo desde sempre esta mãe, como mãe que é, que o filho se trate.

42. Como o arguido nunca aceitou tratar-se, ao contrário do que havia prometido à mãe, quando voltou a viver com esta, a assistente, em desespero de causa, viu na prisão do filho a tábua de salvação, como se de uma casa de recuperação se tratasse.

43. É do senso comum, que se de facto, a assistente fosse vitima de violência doméstica por parte do filho, esta imediatamente o teria expulso de sua casa.

44. Da prova produzida, em momento algum, se faz prova que o arguido quis ofender ou maltratar a mãe ou que teria consciência do que fazia, sendo que na versão da assistente e suas testemunhas, quando isso acontecia, era apenas porque o mesmo estava sob o efeito de drogas e/ou álcool.

45. Já o arguido, apenas quis viver a sua vida longe da mãe e, como resultou provado e, sempre que havia conflitos, ele ia embora. A título de exemplo se relembra que, quando a mãe lhe queimou a droga, foi-se embora, quando a vizinha BB, o mandou sair de sua casa, ele foi-se embora.

55. Acontece que o Tribunal não indica a que danos se refere em concreto e, quais consequências, pelo omissa a D. Sentença quanto a essa matéria, devendo por isso ser o arguido absolvido de qualquer valor a pagar à assistente/mãe.

56. Também a Mma. Juiz a quo, não indica a que atos ilícitos e culposos praticados pelo arguido sobre a assistente se refere, a quais fatos voluntários ilícitos e culposos.

57. Por tudo quanto vai alegado, torna-se claro que a aplicação do artigo 71.º, 72.º e 145.º do C.P. não se encontra devidamente ponderada. Assim, surgem violados os mais basilares princípios constitucionais e penais.

58. Não se poderá esquecer que o Recorrente, nas injúrias proferidas, agiu sob o efeito de drogas e ou álcool, nunca querendo com isso ofender a mãe, porque sem consciência dos seus atos, pelo que não podendo ser por isso culpabilizado.

59. Pelo que se lamenta, que o D. Tribunal a quo, tenha ignorado a falta de culpa do arguido e dado uma importância, exacerbada das injúrias proferidas.

60. Face a isto, é por demais evidente que ao Recorrente não poderia ter sido aplicada uma pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, uma vez que da prova produzida não resultou provado qualquer crime de violência doméstica contra a assistente, pelo que só por isso deveria ter sido o arguido absolvido, bem como do valor a pagar à assistente.

61. Importando a alteração do decisório, devendo a condenação ser revista, absolvendo-se o arguido do crime de que vem acusado.

62. Por outro lado, o quantum indemnizatório acha-se desproporcionado face aos factos, considerando o Recorrente que também desse deverá ser absolvido, e caso assim não se entenda, o que não se concebe, devendo ser reduzido e ajustado de forma proporcional, porquanto se não provaram factos conducentes a valorar na medida aplicada os danos não patrimoniais.

62. A verdade é que o Tribunal não teve em consideração, quer a enorme dispersão temporal (2018, 2020 e 2021), a relativa baixa gravidade das condutas, sem qualquer dano físico, bem como a desculpabilização, por parte da assistente, da irmã, uma vez que insistem em dizer que a culpa é da droga.


*


            O recurso foi admitido.


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, …


*


            Também a assistente AA respondeu ao recurso, …


*

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à resposta do Ministério Público …

 Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- O não preenchimento do tipo do crime de violência doméstica e suas consequências;

- A excessiva medida da pena de prisão.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “(…).

1. A Assistente, AA, nasceu a .../.../1945.

2. AA sofre de uma depressão crónica, tendo sido internada, por duas vezes, no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar de ..., e estando, actualmente, a ser acompanhada em consultas privadas de Neurologia, com o Dr. CC, na Clínica ..., em ..., dados os seus problemas de depressão e ansiedade.

3. O arguido DD nasceu em .../.../1969 e é filho da Assistente, AA.

4. O arguido iniciou consumos de produtos estupefacientes (designadamente, cannabis e cocaína), aos 18 anos de idade.

5. Devido a tais consumos, o arguido chegou a ser acompanhado no “CRI ... até dezembro de 2011.

6. Em meados de fevereiro de 2018 (uma semana antes do dia .../.../2018, em que o marido da Assistente e pai do arguido faleceu), AA disse ao arguido que o pai estava “moribundo e a morrer”.

7. De imediato, o arguido dirigiu-se-lhe nos seguintes termos “tu é que o mataste”.

8. De seguida, sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se com as mãos abertas na direção do pescoço de AA, numa tentativa de o agarrar e apertar, tentando estrangulá-la.

9. Contudo, tal apenas não veio a suceder porque AA conseguiu fugir a tempo para casa de uma vizinha, BB.

10. Desde data não concretamente apurada e até 09.07.2021, o arguido esteve a viver sozinho numa casa que era dos pais de AA (avós do arguido), sita na Rua ..., em ..., ..., ....

11. No dia 10.07.2021, o arguido foi pedir ajuda à mãe, AA, alegando que queria mudar e refazer a sua vida, precisando de dinheiro e de sustento para o seu dia do dia.

12. AA acedeu a que o filho, aqui arguido, fosse viver para sua casa.

13. Desde então, o arguido passou a viver, juntamente com AA, na sua residência sita em ..., ..., em ..., ....

14. Em data não concretamente apurada mas sita no verão de 2021, o arguido ficou desempregado e teve um problema num pé.

15. Desde outubro de 2021, o arguido passou a discutir com a mãe, a aqui Assistente, AA, num tom alto e agressivo, dirigindo-se-lhe nos seguintes termos: “não és minha mãe”, “eu não tenho mãe”, “não vales nada”, “és uma ladra, roubaste-me tudo”, “essa velha nunca mais morre” (referindo-se à aqui Assistente), “és como as estradeiras”, “preferia ter uma mãe puta que andasse na borda da estrada em vez de ter uma como tu”, “és uma porca”.

16. Em data não concretamente apurada, mas sita no início do ano de 2022, no decurso de uma discussão, o arguido atirou um chinelo contra as pernas de AA.

17. Desde janeiro de 2022, o arguido passou a comer e a dormir pouco e, sempre que era contrariado pela mãe, a aqui Assistente AA, revoltava-se dizendo-lhe “nunca tive um pai, uma mãe, só me apetece partir isto tudo.

18. No dia 16.01.2022, durante a madrugada, num momento em que o arguido e AA se encontravam nos respectivos quartos, o arguido disse, em tom de voz elevado “eu não me custa nada meu, em incendiar a casa”, “a minha mãe nunca gostou de mim”, “é uma infeliz e uma desgraçada”, “eu qualquer dia mato-a”.

19. Na noite de 28.01.2022 para 29.01.2022, por várias vezes, o arguido dirigiu-se a AA em tom sério, nos seguintes termos: “qualquer dia eu mato-te, abro o gás, incendeio tudo e vai tudo pelos ares”, “Não me custa nada, faço um furinho na garrafa do gás e vai tudo pelo ar, e depois vai aqui também a vizinha do lado e é pena não ir a outra também, referindo-se a EE.

20. Nessa noite, AA não conseguiu dormir dado que o arguido passou a noite acordado, a falar alto, a ameaçá-la nos termos supra descritos em 21.

21. Face aos comportamentos do arguido, AA ficou muito afetada e desgastada psicologicamente, ao ponto de nem conseguir dormir na sua própria casa, dado que, por um lado, o arguido falava alto a noite inteira e, por outro, tinha cada vez mais medo que o arguido viesse a concretizar as ameaças de morte e de incendiar tudo.

22. O arguido sabia que AA é sua progenitora, pessoa com debilidades físicas e psicológicas, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

23. Actuou sempre o arguido com manifesta insensibilidade perante a integridade física e psíquica de AA, que bem sabia dever respeitar, particularmente por ser sua progenitora, pessoa que o acolheu e o sustentava.

24. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas, para além de censuráveis, eram proibidas e punidas por lei penal.

[Mais se provou que:]

29. Profissionalmente, são reconhecidas capacidades e competências laborais ao arguido, mas as repercussões da adição de substâncias interferiram na assiduidade ao trabalho.

30. Na comunidade, a imagem do arguido está associada aos consumos de drogas, sendo certo que, apesar disso, o arguido é descrito como ajustado a nível do relacionamento interpessoal com os vizinhos.

31. O percurso de vida do arguido foi marcado pelo conflito conjugal dos pais, por problemas de saúde desde a infância, nomeadamente epilepsia, pelas baixas qualificações escolares e pelos consumos de drogas.

32. O desentendimento familiar, particularmente entre o arguido e a mãe, ter-se-á intensificado com o agravamento da dependência de estupefacientes.

33. Do ponto de vista da saúde mental, DD apresenta um quadro de grande instabilidade emocional, com tendência para a vitimização.

[E que:]

34. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

               (…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“(…).

               (…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“(…).

No caso dos autos, a convicção do Tribunal encontra-se alicerçada nos seguintes meios de prova:

▪ Prova por Declarações:

- Declarações prestadas pelo arguido, …

- Declarações prestadas pela (agora) Assistente, AA (77 anos, viúva, reformada) em memória futura, reproduzidas em audiência de discussão e julgamento: a qual, com pertinência, depôs de forma genericamente concordante com a acusação pública (embora alguns dos episódios relatados não correspondam na íntegra aos que vêm descritos no libelo acusatório, conforme infra se explanará).

▪ Prova testemunhal:

Depoimentos prestados pelas seguintes testemunhas:

▪ Prova documental:

Documentos juntos aos autos, mormente:

– Autos de notícia e aditamento, fls. 95 a 96; – Ficha de Avaliação do risco, fls. 123 a 125;

– Certidões de assento de nascimento de fls. 26 a 26v. e 27 a 27v.;

– Elementos clínicos de fls. 34 a 36, 178 a 204 e 258;

– Informação do CRI... ... de fls. 225; – Relatório social de fls. 347 a 351;

– Certificado de registo criminal de fls. 439.

Ora, da prova assim produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento resultaram, para este Tribunal, genericamente sustentados os factos imputados pela acusação pública ao aqui arguido DD com reporte à pessoa da sua mãe AA.

Senão vejamos:

 (…)”.


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*
*


Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

1. O C. Processo Penal coloca à disposição dos intervenientes processuais dois distintos instrumentos para sindicarem a decisão de facto constante da sentença, a impugnação ampla da matéria de facto, essencialmente prevista no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do C. Processo Penal, e o regime dos vícios da decisão, também designado de revista alargada, previsto nos arts. 410º, nº 2 e 426º do mesmo código. In casu, o arguido lançou mão do primeiro. 

Vejamos, então.

O recurso que impugne de forma ampla a decisão proferida sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento, como se o realizado na 1ª instância não tivesse acontecido, no qual ao tribunal de recurso vai reapreciar os elementos de prova que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes, a reapreciação por este tribunal da razoabilidade da decisão do tribunal recorrido relativamente aos factos indicados como incorrectamente julgados, à luz da análise comparativa dos fundamentos da motivação de facto da sentença recorrida e dos meios de prova indicados pelo recorrente como impondo diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº 07P4203, in www.dgsi.pt).

 Na impugnação ampla da matéria de facto compete ao recorrente indicar, de forma precisa, os erros de julgamento, os erros na definição do facto, que entende terem sido cometidos pelo tribunal recorrido. Brevitatis causa, podemos dizer que existe erro de julgamento, quando o tribunal considerou provado um determinado facto, não tendo sido feita prova do mesmo, e quando considerou não provado um determinado facto, tendo sido feita prova do mesmo.

A lei estabelece determinados requisitos a serem observados pelo recorrente na indicação dos erros de julgamento, determinando a sua inobservância a deficiente interposição o recurso da matéria de facto e consequente impossibilidade do seu conhecimento.

Assim, o recorrente deve observar o ónus de especificação previsto no art. 412º, nº 3 e 4 do C. Processo Penal. Deve, portanto, especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, deve especificar as provas a renovar [esta última especificação, nos termos do disposto no art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas é devida quando se verificarem vícios da decisão e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio].

Acresce que, quando as provas especificadas respeitarem a prova gravada por declarações, ao ónus referido soma-se uma segunda exigência: a especificação da prova por declarações deve ser feita por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, estando o recorrente obrigado a indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (nº 4 do art. 412º do C. Processo Penal), satisfazendo esta indicação a transcrição de tais passagens ou excertos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, in DR nº 77, I, de 18 de Abril de 2012).

Deve ter-se ainda presente, que a modificação da decisão de facto não depende de as provas especificadas pelo recorrente permitirem sustentar uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, pois a lei exige mais, exige que essas provas imponham decisão diversa da recorrida.

Deste modo, não basta ao recorrente contrapor a sua própria convicção à convicção do juiz recorrido, expressa na motivação de facto da sentença, tendo também fazer a demonstração de que a convicção levada à referida motivação, quanto aos factos impugnados, é impossível e/ou desrazoável, devendo para tal fim, relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que entende impor decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135).

2. Alega o arguido – conclusões 7 a 52 – que os pontos 6 a 9 e 15 a 24 dos factos provados que constam da sentença recorrida foram incorrectamente julgados, …

Em suma, tendo o arguido observado cabalmente o ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, nada impede o conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto por si deduzida, com o objecto e limites que lhes assinalou e acabamos de balizar.

Passamos de seguida ao conhecimento da impugnação ampla, seguindo na exposição, a opção de a tratar por grupos de factos, no seguimento aliás, do que fez o arguido na motivação apresentada.

2.1. Os pontos 6 e 9 dos factos provados têm a seguinte redacção:

Argumenta o arguido que o depoimento da testemunha BB em nada contribuiu para suportar a prova dos pontos de facto impugnados, …

Resulta da motivação de facto da sentença recorrida, ter a Mma. Juíza a quo formado a sua convicção, quanto aos pontos de facto impugnados, com suporte das declarações para memória futura prestadas pela assistente, conjugadas com o depoimento da testemunha BB.

Pois bem.

A Relação ouviu integralmente o registo gravado do depoimento da testemunha, …

A Relação ouviu também integralmente o registo gravado das declarações para memória futura prestadas pela assistente ao Mmo. Juiz de instrução.

Quanto a estas declarações, cabe dizer que, tanto quanto a audição permite a imediação deste meio de prova, não descortinámos qualquer razão objectivamente válida para, desconsiderando-as probatoriamente, censurarmos a valoração que sobre elas foi feita pela 1ª instância. Com efeito, a assistente prestou estas declarações de forma sentida e magoada, mas também, clara, coerente, serena e consistente, sem nunca ter revelado qualquer sentimento de animosidade, bem pelo contrário, para com o arguido, seu filho. Dito isto.

O arguido questiona, num esforço argumentativo e invocando as regras da experiência comum, diz ser possível que alguém que vê o pai moribundo, desorientado e num cenário de dor, possa levantar os braços para a mãe, por causa de alguma situação ou conversa com ela havida, mas que as mesmas regras já não justificam que, tendo ele 49 anos e a mãe 73, estando esta frágil e debilitada, e encontrando-se ambos num espaço fechado, a tenha deixado escapar e ir para a casa da vizinha, se era seu propósito estrangulá-la. 

A assistente nasceu a .../.../1945 [ponto 1 dos factos provados] e o arguido, seu filho, nasceu a .../.../1969 [ponto 3 dos factos provados], tendo em .../.../2018, a primeira, 72 anos de idade, e o segundo, 48 anos de idade. Sabemos também que a assistente sofre de depressão crónica, tendo tido já dois internamentos em psiquiatria e sendo acompanhada em consultas de neurologia [ponto 2 dos factos provados].

Quem padece de depressão crónica pode ser uma pessoa psiquicamente frágil, fragilidade que, contudo, não tem, necessariamente, que se repercutir no campo físico. Por outro lado, uma cidadã com 73 anos não tem, apenas e só por causa desta idade, necessariamente, que ser incapaz de se defender, v.g., de ter a capacidade de reacção e agilidade física para, numa emergência, evitar ser agarrada e fugir. E esta incapacidade, relativamente à assistente, não consta dos factos provados.

Por outro lado, os pontos de facto impugnados não concretizam o local onde decorreu a acção neles descrita como praticada pelo arguido. Porém, mesmo admitindo – aliás, como a assistente referiu nas suas declarações – que a conduta teve lugar na residência da assistente, seria sempre excessivo qualificá-la [à residência] como espaço/habitáculo fechado.

Em suma, os pontos 6 e 9 dos factos provados mostram-se plenamente suportados pela prova examinada e valorada pela Mma. Juíza a quo, em estrita obediência ao principio ínsito no art. 127º do C. Processo Penal, da mesma forma que os meios de prova especificados pelo arguido e pelo mesmo considerados como impondo decisão diversa da proferida, são insusceptíveis de alcançarem este desiderato, pelo que, devem tais pontos de facto ser mantidos, nos exactos termos em que foram fixados pela 1ª instância.

2.2. Os pontos 15 a 24 dos factos provados têm a seguinte redacção:

Ainda que assim não fosse, a circunstância de o arguido ser dependente do consumo de canábis e de cocaína desde os 18 anos de idade (ponto 4 dos factos provados), e de ter mantido tais consumos, ainda que com períodos de abstinência, até ter sido detido, e sujeito a prisão preventiva, à ordem destes autos, sendo certo que tem hoje 53 anos de idade, não significa que seja incapaz de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Em conclusão, os pontos 15 a 24 dos factos provados mostram-se plenamente suportados pela prova examinada e valorada pela Mma. Juíza a quo, em estrita obediência ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal, da mesma forma que os meios de prova especificados pelo arguido e pelo mesmo tidos como impondo decisão diversa da proferida, são incapazes de alcançarem este propósito, pelo que se mantêm tais pontos de facto, nos exactos termos em que foram fixados pela 1ª instância.


*


            Do não preenchimento do tipo do crime de violência doméstica e suas consequências

            3. Alega o arguido – conclusões 63 a 66 – que não estamos perante um crime de violência doméstica pois que neste, o que importa é saber se a conduta do agente, pela sua natureza violenta ou por configurar, globalmente, o desrespeito ou o desejo de dominação sobre a vítima, pode ser qualificada de maus tratos, quando, nos autos, a sua [do arguido] conduta em nada desrespeita a assistente ou a diminui, e não foi seu propósito dominar a mãe, impondo-se, pois, a sua absolvição.

            Vejamos.

O crime de violência doméstica encontra-se previsto no art. 152º do C. Penal, integrado no Capítulo III, Dos crimes contra a integridade física, do Título I, Dos crimes contra as pessoas, do Livro II do referido código.

Nos termos do disposto no art. 152º, nº 1 do C. Penal, e na parte em que agora releva, pratica este ilícito típico «quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

(…);

            d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

            (…)».

Nos termos do disposto na alínea a), do nº 2 do mesmo artigo, o crime é agravado, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

São conhecidas as divergências existentes quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação. Mas podemos dizer que, no entendimento dominante da doutrina, e que seguimos, o crime tutela a saúde física, psíquica, mental e moral (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512, Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305, Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição revista e actualizada, 2007, AAFDL, pág. 110 e Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 15 e ss.; em sentido distinto, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 591, para quem, acentuando a natureza pluriofensiva do tipo, o crime tutela os bens jurídicos integridade física e psíquica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual e honra, e André Lamas Leite, Julgar, Especial 12, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a criminologia, pág. 49, para quem o fundamento da incriminação se reconduz ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo).

Estamos perante um crime específico impróprio, pois só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial [in casu, a relação familiar ou de convivência social próxima, entre o agente e a vítima], habitual, pois pressupõe a prática reiterada da mesma acção, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado, outras de mera actividade, umas vezes de dano, quanto ao bem jurídico, outras de perigo (cfr. Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 520), que tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora releva:

[Tipo objectivo]

- A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.

O C. Penal não define o conceito de maus tratos, físicos ou psíquicos, limitando-se a dizer que nele se devem incluir os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais.

Consideramos não existirem dúvidas quanto a deverem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos, portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física. E também consideramos não existirem dúvidas quanto a deverem incluir-se no conceito de maus tratos psíquicos, entre outras acções, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas.

A qualificação de uma concreta conduta como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente, uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada acção para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da «respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, op. cit., pág. 19).

Por outro lado, o preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta violenta tenha que traduzir-se numa lesão grave, num tratamento cruel ou brutal, embora, não raras vezes, assim seja.

A violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das acções violentas, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes, o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade.

Sabemos já que a reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo da violência doméstica, embora seja pressuposta como conduta ‘norma’, e daí que o crime seja qualificado como crime habitual. E a execução é reiterada, quando cada acto concreto, cada conduta parcelar, realiza parcialmente o evento, constituindo o somatório dos eventos parciais, o resultado, o evento unitário, o crime único.

A reiteração traduz, pois, um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade.

4. Revertendo agora para o caso concreto, e procurando fixar a referida situação ambiente e a consequente imagem global do facto, temos que:

- Arguido nasceu a .../.../1969 e é consumidor de estupefacientes desde os 18 anos de idade, tendo sido acompanhado no CRI ... até Dezembro de 2011;

- A assistente AA, nasceu a .../.../1945, sofre de depressão crónica, foi já internada duas vezes em serviço hospitalar de psiquiatria e é acompanhada em consultas de neurologia;

- A assistente é mãe do arguido;

- Desde data não concretamente apurada, e até 9 de Julho de 2021, o arguido viveu sozinho, numa casa que pertenceu aos seus avós maternos, situada em ..., ..., ...;

- Em meados de Fevereiro de 2018, estando o marido da assistente e pai do arguido, moribundo, a assistente, na sua residência, em ..., ..., ..., disse ao arguido que o pai estava moribundo e a morrer; de imediato, o arguido disse à assistente, «Tu é que o mataste!», e de seguida, sem que nada o fizesse prever, dirigiu-se com as mãos abertas na direcção do pescoço da mãe, para o apertar, numa tentativa de a estrangular; porém, a assistente conseguiu evitar o filho e fugir para casa de uma vizinha;

- No dia 10 de Julho de 2021 o arguido pediu ajuda à mãe, dizendo que queria mudar e refazer a vida, e que precisava de dinheiro e de sustento para o dia-a-dia, tendo a assistente acedido a que o filho fosse viver para a sua residência, em ..., ..., ..., aqui passando o arguido a viver, juntamente com a mãe;

- A partir de Outubro de 2021, o arguido passou a discutir com a assistente, sua mãe, com voz alta e agressiva, dizendo-lhe, «Não és minha mãe!», «Eu não tenho mãe!», «Não vales nada!», «És uma ladra! Roubas-me tudo!», «Essa velhaca nunca mais morre!», «És como as estradeiras!», «Preferia ter uma mãe puta que andasse na borda da estrada, em vez de ter uma como tu!» e, «És uma porca!».

- Em dia não apurado do início do ano de 2022, no decurso de uma discussão, o arguido um chinelo contra as pernas da assistente;

- A partir de Janeiro de 2022, o arguido passou a comer e a dormir pouco, e sempre que era contrariado pela mãe, revoltava-se e dizia-lhe, «Nunca tive um pai, uma mãe! Só me apetece partir isto tudo!»;

- Na madrugada do dia 16 de Janeiro de 2022, quando a assistente e o arguido se encontravam nos respectivos quartos, o arguido disse em voz alta, «Eu não me custa nada meu, em incendiar a casa!», «A minha mãe nunca gostou de mim!», «É uma infeliz! Uma desgraçada!» e, «Eu qualquer dia mato-a!»;

- Na noite de 28 para 29 de Janeiro de 2022, por várias vezes, o arguido disse à assistente em tom sério, «Qualquer dia eu mato-te! Abro o gás, incendeio tudo e vai tudo pelos ares!», «Não me custa nada, faço um furinho na garrafa do gás e vai tudo pelo ar, e depois vai aqui também a vizinha do lado e é pena não ir a outra também!»; nesta noite, a assistente não conseguiu dormir, dado que o arguido passou a noite acordado, a falar alto e a ameaça-la nestes mesmos termos;

- Face às condutas do arguido, a assistente ficou desgastada psicologicamente, não conseguindo dormir na sua residência, quer porque o filho falava alto a noite inteira, quer porque cada vez mais receava que ele concretizasse as ameaças de morte e de incendiar tudo;

- O arguido sabia que a assistente era sua mãe, sabia que era pessoa física e psicologicamente débil, tendo actuado sempre com o propósito concretizado de a maltratar física e psiquicamente, de modo a atingir o seu bem estar, a sua tranquilidade, a sua honra e a sua dignidade, revelando-se insensível à pessoa da mãe, que sabia dever respeitar, tanto mais que tinha sido quem o acolhera e sustentava; 

- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Estamos, assim, diante de um quadro familiar, perturbado pela adição do arguido, com comportamentos violentos físicos e verbais, para com a assistente, sua mãe, mas que no âmbito da tipicidade da violência doméstica, só relevam os que tiveram lugar a partir de 10 de Julho de 2021, data em que passou a coabitar com a progenitora, na residência desta.

É certo que a violência, física e psicológica, empregue é, digamos assim, de baixa intensidade, mas não deixa, na verdade, de ser violência, vindo a sua repetição, na vertente psicológica, a definir um padrão de conduta por parte do arguido, consubstanciando o supra, referido estado de agressão permanente, revelador da relação de sobreposição que o este passou a exercer sobre a assistente, no âmbito da coabitação familiar, da qual resultou para a vítima um tratamento atentatório da dignidade da sua pessoa.

Por outro lado, e agora, validando a argumentação que na sentença recorrida foi exposta, atendendo à idade da assistente e à sua debilitada saúde psíquica, fruto da depressão crónica de que padece e da ansiedade que a afecta, elementos estes conhecidos, como não podia deixar de ser, do arguido, também entendemos que a mesma deve ser considerada pessoa particularmente indefesa.

Estão, pois, preenchidos os elementos do tipo, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica.

E tendo as condutas do arguido sido praticadas na residência da assistente e, também do arguido, mostra-se preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea a), do nº 2, do art. 152º do C. Penal.

Bem andou, pois, a 1ª instância, ao concluir ter o arguido, com a sua provada conduta, preenchido o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, d) e 2, a) do C. Penal.

Deve, pois, ser mantida a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, o que, necessariamente, determina a manutenção da condenação do arguido no pagamento da arbitrada indemnização.


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            Da excessiva e medida da pena de prisão

            5. Alega o arguido – conclusão 67 – que, face à ausência de antecedentes criminais, e à diminuta gravidade dos factos, deve a pena de prisão ser reduzida ao mínimo legal. No corpo da motivação, o arguido densificou a alegação, dizendo que, ao arrepio do que dispõe o art. 71º do C. Penal, o tribunal a quo não ponderou que nas injúrias que proferiu, agiu sob o efeito de drogas e/ou de álcool, e que deveria ter aplicado o disposto no art. 72º, nº 2, a), b), c) e d) do mesmo código.

            Vejamos.

a. Cumpre desde já conhecer da pretendida aplicação do instituto da atenuação especial da pena.

Dispõe o art. 72º do C. Penal, no seu nº 1 que, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previsto na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

Se bem entendemos a argumentação do arguido e ora recorrente, a circunstância contemporânea do crime, apta a diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a sua culpa ou necessidade da pena, será a circunstância de ser toxicodependente, tendo praticado o facto – as injúrias proferidas, como refere – sob o efeito de drogas e/ou álcool.

Ora, como vimos, a conduta do arguido não se restringiu a injúrias. Por outro lado, não resultou provado que tenha praticado a conduta típica sob o efeito de estupefacientes e/ou álcool.

Porém, ainda que, por mera hipótese de raciocínio, assim não fosse, não vemos que a referida adição e a prática do facto sob o seu efeito, pudesse consubstanciar uma circunstância que diminua acentuadamente, isto é, significativamente, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Resulta até estranho que o arguido, não se tendo provado que tenha actuado sob ameaça grave ou ascendente de terceiro, determinado por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da assistente, ou por provocação injusta ou ofensa imerecida, que esteja sinceramente arrependido, ou que já tenha decorrido muito tempo sobre a prática do crime, invoque todas as circunstâncias previstas nas quatro alíneas do nº 2 do art. 72º do C. Penal.

Em suma, não se mostra provada qualquer circunstância, típica ou atípica, susceptível de conduzir à aplicação do instituto da atenuação especial da pena.

b. Dispõe o nº 1 do art. 40º do C. Penal que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo). Com efeito, a culpa, exprimindo a responsabilidade individual do agente pelo facto, constitui o fundamento ético da pena.

De forma concordante, estabelece o art. 71º, nº 1 do C. Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Assim, prevenção, geral e especial, e culpa são os tópicos a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida. A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto, constituindo a culpa, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.), podendo dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).

            O critério legal da determinação da medida da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal. Nos termos do disposto nos seus nºs 1 e 2, a determinação de tal medida é feita, tendo em conta a moldura penal abstracta aplicável, através da ponderando das exigências de prevenção geral e especial, da medida da culpa do arguido e de todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas naquele nº 2.

Já deixámos dito em a., que antecede, não ter resultado provado que o arguido tenha praticado a conduta típica sob o efeito de estupefacientes e/ou álcool. Aliás, não levou sequer esta questão à impugnação ampla da matéria de facto por si deduzida.

Quanto ao mais.

O crime de violência doméstica previsto pelo art. 152º, nºs 1, d) e 2, a) do C. Penal, é punível com pena de prisão de dois a cinco anos.

Na conclusão da operação de determinação da medida concreta da pena, a 1ª instância discorreu como segue:

            Revertendo ao caso sub judice e no que respeita ao quantum da pena, na apreciação dos critérios do artigo 71.º, n.º 2, do CP, importa referir que:

Constata-se, desde logo, que são muito elevadas as exigências de prevenção geral. Com efeito, o crime de violência doméstica tem-se revelado, fruto da referida progressiva consciencialização ético-social sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, um dos mais sensíveis no seio da comunidade em geral (veja-se, a este respeito, as sucessivas alterações legislativas ao tipo penal). Por outro lado, é igualmente elevado o grau de ilicitude dos factos, porquanto constam ameaças de morte nos factos praticados pelo arguido.

Contra o arguido pode ainda apontar-se a intensidade do seu dolo que é, relembre-se, direto, ou seja, a modalidade mais gravosa de dolo.

São medianas as consequências dos factos, uma vez que a conduta adotada pelo arguido provocou sequelas e transtornos emocionais de alguma gravidade que, no caso, atenta a idade da vítima e as patologias do foro psíquico que a mesma padece, são amplificados.

Há ainda que considerar que o arguido não conta com qualquer condenação no seu percurso de vida, denota hábitos de trabalho, tendo manifestado a intenção de não contactar a vítima e voltar a trabalhar, o que depõe a seu favor.

Tudo ponderado, em conformidade com o disposto no n.º 2, do artigo 71.º, do CP, entende este tribunal ser de aplicar 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Concordamos com a Mma. Juíza a quo quanto a serem muito elevadas as exigências de prevenção geral, relativamente ao crime de violência doméstica.

Não é de desprezar o grau de ilicitude do facto, uma vez que na sua execução, além do mais, o arguido proferiu repetidas ameaças de morte, e também não são de desprezar as consequências da sua conduta, designadamente, o grau de afectação da saúde psíquica da assistente.

Concordamos com a Mma. Juíza a quo quanto a ser elevada a intensidade do dolo do arguido, pois que foi dolo directo.

Concordamos também com a Mma. Juíza a quo quanto a beneficiarem o arguido, a inexistência de antecedentes criminais, os seus hábitos de trabalho e o reconhecimento de que possui capacidades e competências laborais. Porém, a sua longa adição sinaliza uma personalidade deficientemente formada, impondo algumas cautelas de prevenção especial.

Sobrepondo-se as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, e considerando as referidas exigências de prevenção, a pena de dois anos e oito meses de prisão, fixada pela 1ª instância, situando-se ainda abaixo do primeiro quarto da moldura penal abstracta aplicável, é necessária, adequada e proporcional, e mostra-se também plenamente suportada pela medida da culpa do arguido, pelo que, não merecendo censura, é de manter.


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            Improcedem, pois, as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 21 de Junho de 2023



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Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator –, Maria José Guerra – adjunta – e Helena Bolieiro – adjunta