Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
577/20.4JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
BUSCA EM CASA HABITADA
EXTENSIBILIDADE DA BUSCA
Data do Acordão: 07/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 74.º E 177.º DO CPP
Sumário: Autorizada, pelo Juiz de Instrução Criminal, a realização de busca domiciliária tendo por objecto um determinado imóvel, perfeitamente caracterizado na ordem judicial corporizada no respectivo mandado, está formalmente autorizada a restrição do direito à inviolabilidade do domicílio, afectando esta restrição os direitos de todas as pessoas que residam no local objecto da busca, ainda que não tenham sido expressamente identificadas no despacho ou no mandado emitido.
Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

 Nos autos supra referenciados, que correm termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 1 (inquérito remetido ao TIC para actos de natureza jurisdicional) foi proferido despacho com o seguinte teor:

(...)

            Analisados os presentes autos verifica-se que o único suspeito identificado nos mesmos se trata do cidadão I., residente na (…), Lote (…), n.º (…), (…)..

            Não obstante se referir no relatório de fls. 61 a 63, 64 e 65 que poderá residir na morada do suspeito I. um individuo que eventualmente terá colaborado com ele, concretamente nos factos referentes ao pagamento do abastecimento de combustíveis com recurso a nota falsa, não existe nos autos qualquer outra referência que permite identificar tal indivíduo, tanto mais que é igualmente referido que o I. se faz acompanhar por diferentes indivíduos, os quais não estão identificados nos autos.

            Relativamente ao único suspeito conhecido nos autos o Ministério Público promoveu a fls.66 a realização de busca domiciliária, à residência de I., incluindo dependências usadas por outros cidadãos ali residentes, anexos, logradouro, garagens e arrecadações.

            No despacho proferido pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, o qual autorizou a realização da busca, constante de fls. 71, foi determinado que face à prova até ao momento produzida existiam indícios que I. realizará crime de passagem de moeda falsa e tráfico de estupefacientes e que o mesmo se faz acompanhar por gente conhecida profissionalmente ligada ao tráfico de estupefacientes e que pelo exposto e em conformidade com os artigos 174º e 177º n.º 1 do Código de Processo Penal se autorizava a realização de busca domiciliaria à casa de I. sita na Rua (…), Lote (…), n.º (…) , (…), (…)..

            Consta dos autos a fls. 72 o mandado de busca e apreensão, sendo indicado no mesmo como local de diligência a residência do I. e constando desse auto que a busca deverá incidir sobre a totalidade do imóvel, mesmo na parte ocupada por pessoas diferente do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos).

            Do auto de busca e apreensão realizado no dia 25/02/2021, pelas 10:30h, consta como local alvo de busca a residência do I., e que a busca teve início pelas 10:30 à moradia, composta pela habitação principal, onde reside o I. e os seus pais, e um anexo, com dois pisos, sem ligação interior, sendo que na parte inferior reside L..

            Nesse auto consta que a habitação principal é composta por uma cozinha, uma sala, uma casa de banho, dois quartos, um pátio exterior comum com um anexo, composto por telheiro e grelhador.

            O piso superior do anexo é acedido por uma escada exterior, que dá acesso a um terraço, sendo composto por dois quartos e uma casa de banho, sendo que actualmente ninguém reside na mesma.

            O piso inferior é ocupado por L. e é composto por uma sala, uma cozinha, um quarto e uma casa de banho.

            Consta do referido auto que percorridas todas as divisões da residência principal e piso superior na companhia do suspeito I., nada de relevante foi encontrado.

            Do referido auto consta que passadas duas horas, ou seja, pelas 12:30h, deram início à busca ao piso inferior do anexo, na companhia da pessoa ali residente L., cujo acesso foi franqueado com a sua chave, o qual prontamente informou que ali guardava estupefaciente.

            Ora, o arguido foi ouvido no dia de hoje, estando as suas declarações gravadas, declarações que não suscitam ao Tribunal qualquer dúvida, uma vez que com a mesma frontalidade e espontaneidade este arguido descreveu ao Tribunal as circunstâncias em que foi realizada a busca à sua residência, bem como explicou os motivos pelos quais tinha no interior do seu quarto e dentro da sua mochila o produto estupefaciente apreendido.

            O arguido declarou que quando se encontrava no seu local de trabalho foi abordado por agentes da Polícia Judiciária, tendo-lhe sido solicitado que os acompanhasse à sua residência. O arguido já nesse local facultou o acesso à sua residência, tendo-lhe sido exibidos uns papéis nos quais não constava o seu nome e sem que lhe tivesse sido expressamente perguntado se autorizava a realização da busca.

            A descrição feita no auto de busca, relativamente ao local onde a mesma ocorreu, não suscita ao tribunal qualquer dúvida que estão em causa duas residências autónomas e devidamente individualizadas, sem qualquer ligação interior.

            A residência do suspeito I. descrita por referência às respectivas dependências, anexos e terraço e a residência do L., também descrita por referencia às suas dependências e que asseguram uma total autonomia.

            O arguido L. esclareceu ainda o tribunal que paga de renda e por ocupação de tal residência o valor mensal de cerca de €350,00.

            Nesse pressuposto quando nos mandados de busca, os quais não reflectem integralmente o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, se faz menção que a busca deve incidir sobre a “totalidade do imóvel”, mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do suspeito, isso indica expressamente que a busca incide sobre a residência de I., podendo abranger todas as dependências desta residência, mesma ocupadas por pessoas diferentes do suspeito.

            Não se poderá considerar que apesar das duas residências constituírem os dois pisos de uma mesma moradia, que isso signifique que a autorização da busca se refere a ambas as residências, as quais e como já se disse são totalmente independentes.

            Assim não se poderá considerar que se concedeu autorização para a realização de busca domiciliária a outra residência autónoma e independente da residência de I., embora ambas situadas no mesmo prédio/moradia/imóvel.

            A circunstância de ter sido necessário ir buscar o arguido L. ao seu local de trabalho e de ter sido este a franquear a chave para facilitar o acesso ao interior da sua residência é revelador de que os agentes se deparam com duas residências distintas.

            Perante essa circunstância impunha-se aos agentes a realização da busca com recurso a autorização concedida pelo arguido L., consignada em auto, ou pela obtenção de um mandado que autorizasse a realização da busca.

            Não se pode esquecer que está em causa um direito inviolável, com garantia e protecção constitucional, e que perante a situação em apreço o OPC competente pela investigação tinha ao seu alcance meios que lhe permitiam, em tempo útil, solucionar a questão, com o cumprimento dos formalismos legais e sem que se suscitasse qualquer dúvida.

            Assim sendo, considera-se que a busca domiciliária nos moldes em que foi feita é nula, não tendo sido cumpridas as formalidades dos artigos 174º e 177º do CPP, nomeadamente ao abrigo de autorização concedida pelo juiz de instrução.

            Tal nulidade decorre do disposto no artigo 126º, nº. 3 do CPP e tem como efeito que as provas obtidas através de métodos proibidos não podem ser utilizadas e valoradas pelo tribunal.

            No caso concreto os factos vertidos na promoção do MP de sujeição do arguido a interrogatório judicial descrevem a busca realizada e as apreensões efetuadas, razão pela qual tal factualidade não se poderá considerar indiciada.

            As declarações prestadas pelo arguido não têm reflexo na factualidade descrita na promoção do MP, nem na prova indicada.

            Assim sendo, não se aplica ao arguido qualquer medida de coacção, determinando a sua restituição à liberdade.

                                                          

Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1º - Investigando-se nos autos a prática de crimes de passagem de moeda falsa por parte de I., residente na Rua (…), (…), n.º (…), (…), (…), bem como de tráfico de estupefacientes, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal autorização de busca domiciliária “à totalidade do imóvel” situado na “(…), lote (…), n.º (…), (…), (…)”, “mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos)”.

2º - Nos autos existiam suspeitas da permanência de objetos na moradia em causa, sendo do conhecimento da entidade policial que na mesma podiam residir outros indivíduos, cuja identidade se desconhecia.

3º - Na sequência desta solicitação o Juiz de Instrução Criminal, em 05.02.2021, após análise e estudo do processo e a devida reflexão sobre o enquadramento apresentado, ordenou e assinou a emissão de mandados, autorizando a busca “à totalidade do imóvel” situado na “(…), lote (…), n.º (…), (…), (…)”, “mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos)”.

4º - Em resultado de tais buscas à totalidade do imóvel situado no citado nº 6 foram apreendidos vários objetos ao arguido L., designadamente canábis com um peso aproximado de 160 gramas, uma balança de precisão digital, apresentando vestígios de produtos estupefacientes, uma placa de haxixe com o peso de 100 gramas, uma “língua” de uma haxixe com o peso aproximado de 1 grama, duas placas de haxixe com o peso de 200 gramas, dois pequenos sacos, tendo um cerca de 15 gramas de cocaína e o outro cerca de 10 gramas de cocaína e um outro saco com cerca de 5 gramas de cocaína. O arguido tinha ainda na sua posse o montante global de 2.845 euros. Dentro do seu veículo automóvel, de matrícula (…), foi encontrado e apreendido haxixe, com o peso de 4 gramas, sendo que se verificou a emissão de mandados pelo M. Público.

5º - O Magistrado do Ministério Público, titular do inquérito, validou tais apreensões, nos termos e no prazo a que alude o art.º 178° do Cód. Proc. Penal e, em 26.02.2021, elaborou requerimento para apresentação a 1° interrogatório judicial do arguido L. por entender que se indiciava fortemente a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21°, n.°1, do Decreto-Lei n.°15/93, de 22 de janeiro, tendo presente as tabelas I-B e I-C. 

6º - Em 26.02.2021, apenas após a realização de 1° interrogatório judicial de arguido detido, a Juiz de Instrução Criminal considerou que a busca domiciliária nos moldes em que foi feita é nula, não tendo sido cumpridas as formalidades dos artigos 174° e 177°, ambos do CPP e, em consequência, entendeu não estar indiciada a factualidade imputada ao arguido. E assim sendo, não aplicou aquele qualquer medida de coação, determinando a sua restituição à liberdade. A nossa discordância e, portanto, a razão do presente recurso, prende-se com este despacho.

7º - Entendemos que se mostra respeitado o disposto nos art.º 174° e 177°, ambos do Cód. Proc. Penal, não padecendo a busca e apreensão efetuada no imóvel situado na Rua (…), lote (…), n.º (…), (…), (…), de qualquer vício ou nulidade.

8º - As provas em causa não foram obtidas mediante intromissão no domicilio sem a autorização judicial, pelo que contrariamente ao entendimento do Mm° Juiz de Instrução Criminal, não ocorre o vício do art.º 126°, n°3 do Cód. Proc. Penal, podendo as mesmas ser valoradas.

9º - É que o Juiz de Instrução Criminal, em 05.02.2021, não autoriza a busca à “residência” ou “casa” ou “habitação’’ do suspeito. Autoriza à ‘’totalidade do imóvel” onde se insere aquela, “mesmo que ocupado por pessoas diferentes do suspeito”, “incluindo ainda garagens, sótão e anexos’. Se não tivesse sido essa a intenção e a vontade do Juiz de Instrução Criminal porque não consignar simplesmente busca à “residência”, termo que é aliás, em regra, utilizado na emissão de mandados de busca domiciliária?

10º - Note-se que é a própria Juiz de Instrução Criminal que no seu despacho usa as expressões residência/habitação/casa e prédio/moradia/imóvel com interpretações e significados diferentes.

11º - Ainda neste âmbito realça-se que tanto o arguido I. como o arguido L. indicaram nos autos, nomeadamente, na prestação de TIR o mesmo imóvel - Rua (…), lote (…), n.º (…), (…), (…) – cfr. 114 dos autos.

12º - Não obstante nos surgir como menos relevante salienta-se que a apontada inexistência de acesso interior entre o rés-do-chão e o 1º andar do anexo em causa (por parte da Juiz de Instrução Criminal) não é visível do exterior. É que, só após a realização da busca é que se constatou a inexistência de acesso interior entre o rés-do-chão e o 1º andar do anexo, pertencente ao imóvel em causa. E por essa razão e de novo, usando a máxima das cautelas, foi requerida “busca à totalidade do imóvel” e não à “residência” – cfr. reportagem fotográfica de fls. 84, a qual apresenta a imagem do “imóvel”. Da mesma resulta a constatação da existência de uma moradia composta por uma habitação principal e por um anexo, com dois pisos. E é esta estrutura composta por habitação principal e anexos, com rés do chão e 1º andar, que constitui o “imóvel”.

13º - Se dúvidas tivessem sido suscitadas ao Juiz de Instrução Criminal, face à mencionada solicitação do Ministério Publico ou às expressões por este utilizadas, cabia-lhe indeferir o pedido nos moldes requeridos ou restringir o pedido ou sugerir esclarecimentos. No entanto, resulta claramente dos autos que o Juiz de Instrução Criminal entendeu a pretensão do Ministério Púbico e o enquadramento apresentado e aderiu na integra à mesma, usando idêntica formulação, i. é, igual expressão - “a totalidade do imóvel” situado na “Rua (…), lote (…), n.º (…), (…), (…)”, “mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos)” em lugar da habitual e tradicional expressão “residência”.

14º - Na hipótese de aderirmos à posição assumida pela Juiz de Instrução Criminal, cabe-nos ainda formular uma interrogação - que segurança e confiança podemos ter no futuro no desempenho da nossa atividade profissional se por estarmos cientes da existência de um único imóvel (no qual poderão residir outros indivíduos), i. é, de uma moradia habitada por um arguido, à qual não temos a possibilidade de aceder previamente ao seu interior (pelo que desconhecemos a sua configuração) e por isso usando a máxima das cautelas levamos à consideração, em conformidade com o disposto na lei, do Juiz de Instrução Criminal, a busca não a “residência” do suspeito, mas “da totalidade do imóvel’ incluindo “garagem, sótão e anexos, mesmo que habitado por terceiros (que não temos a possibilidade de identificar)” e que posteriormente, após a realização da busca com base no referido mandado, vemos a mesma ser declarada nula por um outro Juiz de Instrução Criminal, considerando este que não houve prévia autorização judicial?

15º - Não desconhecemos que o artigo 126° do CPP descreve métodos proibidos da prova, ferindo de nulidade as provas deles resultantes. No entanto, entendemos que tal não ocorreu no caso concreto dado que, como já salientámos, as buscas foram autorizadas por um Juiz de Instrução Criminal.

16º - Assim, cumpriu-se o pressuposto da realização de buscas domiciliárias, ou seja, a pré-existência de um despacho judicial que autorize tal diligência – cfr. artigo 177° do CPP. Melhor dizendo, no caso dos autos temos uma busca domiciliária que foi efetuada por órgão de polícia criminal com prévio despacho de autoridade judiciária e o arguido foi detido na sequência desta e em flagrante delito.

17º - Atento o explanado, os autos indiciam fortemente que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, o citado crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto pelo artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22.01.

18º - E assim sendo, tendo em atenção os alegados perigos de continuação de atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e tendo em consideração as quantias monetárias, a balança e o produto estupefaciente apreendidos, o modo de execução dos factos e os antecedentes criminais do arguido, sem olvidar os princípios da adequação face às exigências cautelares do caso e da proporcionalidade atenta a gravidade do delito e da sanção que previsivelmente lhe virá a ser aplicada, bem como a confissão do arguido (a qual deveria ter tido relevância, por si só, não obstante a tese defendida, sendo que se encontrava representado por advogado e o fez de forma livre e espontânea), deveria a Juiz de Instrução Criminal ter determinado que aquele aguardasse os ulteriores trâmites processuais sujeito a TIR já prestado e em prisão preventiva, tudo nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 191 193°, 196.°, 202.°, nº 1, alínea a) e 204.°, alínea c), todos do Código de Processo Penal.

19º - No entanto, atenta a postura do arguido no presente interrogatório judicial e a conjuntura atual que se vive de pandemia, por COVID-19, a nível mundial e nomeadamente em Portugal, no qual se aconselha como medida o isolamento social e o recolhimento na residência, não se nos repugna que se tivesse substituído aquela medida pela de Obrigação de Permanência na Habitação, com o recurso aos meios técnicos de controlo à distância, nos termos conjugados do estatuído nos artigos 191°, 192.°, 193.°, 201°, n.° 1 e n° 3, 202°, n° 1, al a) e 204°, al. c), todos do CPP.

20º - Por todo o exposto, e salvo melhor opinião, entendemos que deverá ser revogada a decisão ora recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que considere válidas as buscas realizadas no imóvel situado na Rua (…), lote (…), n.º (…), (…), (…), bem como as referidas apreensões, e em consequência dê os factos vertidos no requerimento elaborado pelo Ministério Público como fortemente indiciados, aplicando assim ao arguido a medida de coação requerida no âmbito do 1º interrogatório judicial.

21º - Ao exarar o despacho colocado em crise a Mma Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 126º, nº3, 174º e 177º, todos do CPP, e em consequência destes os artigos 191°, 193º, 196°, 201°, n.°1 e nº 3, 202º, nº 1, al a) e 204º, al. c), todos do CPP.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, chamando a atenção para a preocupação do Mmº. Juiz de Instrução que despachou, emitiu e assinou o mandado de busca com data de 05-02-2021, em caracterizar o local como sendo a casa de I., sita na R. (…), lote (…), n.º (…), (…), (…), acrescentando que a busca incidirá sobre a totalidade do imóvel, mesmo que habitada por pessoas diferentes do suspeito (residência, garagens, sótão e anexos), donde resultaria não ter a diligência realizada excedido o âmbito daquilo que havia sido judicialmente autorizado.

Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente a única questão a apreciar consiste em saber se o mandado de busca, nos termos em que foi emitido, permite considerar validamente abrangida a busca ao anexo em que reside o arguido L.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Para decisão do recurso importa ter presente essencialmente os seguintes elementos, resultantes dos autos:

            - Nos autos de inquérito que originaram o presente recurso em separado, a Polícia Judiciária recolheu indícios consistentes da prática do crime de passagem de moeda falsa, havendo ainda fortes suspeitas da prática do crime de tráfico de estupefaciente, pelos quais seriam responsáveis I. e um amigo deste, que o costuma acompanhar e que se supunha residir num anexo da casa onde habita o I.;

            - Na sequência das diligências de investigação efectuadas, a Polícia Judiciária solicitou a emissão de mandado de busca e apreensão para a residência do suspeito I., sita na rua (…), lote (…), nº (…), em (…), (…), incluindo as dependências usadas por outros cidadãos ali residentes, anexos, logradouro, garagem e arrecadações;

            - Por despacho de 05/02/2021, o Mmº Juiz de Instrução Criminal autorizou a realização de busca domiciliária até 02/03/2021, tendo feito constar do mandado, que assinou, que «a busca deverá incidir sobre a totalidade do imóvel, mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos)», indicando ainda como local da diligência «Rua (…), lote (…), nº (…), (…), (…), residência de I.»;

            - Consta do auto de busca e apreensão, para além do mais, que «(…) deu-se início à busca à moradia, composta pela habitação principal, onde reside o suspeito I. e os pais, J. e E., e um anexo, com dois pisos sem ligação interior, sendo que na parte inferior reside L (…)».

            Vejamos então a questão suscitada, restringindo essa análise à vertente relevante para o caso dos autos, a saber, a busca ordenada por despacho judicial.

            Dispõe o art. 174º do CPP (redacção introduzida pela lei nº 39/2020, de 18 de Agosto):

            1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
            2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.

            3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.

            (…)

            A busca constitui, pois, um meio de obtenção de prova e a sua realização pressupõe:

            - A existência de indícios da prática de um crime; e

            - A existência de indícios de que a pessoa visada por essa diligência oculta, em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, animais, coisas ou objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova.

            O Código de Processo Penal contém a indicação dos requisitos a observar em diligências desta natureza, prevendo um regime especial para as buscas domiciliárias, seguindo um critério ajustado à declaração de inviolabilidade do domicílio resultante do art. 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, intimamente ligada à garantia de reserva da vida privada.

            Como resulta da própria Constituição, que relega para a lei ordinária a regulamentação do modo como poderá operar a entrada no domicílio contra a vontade do respetivo titular, sujeita a controlo judicial, a inviolabilidade do domicílio não constitui um direito absoluto. Trata-se, no fundo, da velha questão da coexistência de direitos constitucionalmente tutelados, a implicarem, sempre que se revele necessário, a compressão de uns para a afirmação de outros, como sucede em todos aqueles casos em que a lei admite expressamente a restrição de um direito fundamental com vista à realização da justiça, salvaguardando os princípios da legalidade e da proporcionalidade.

            No caso que agora cuidamos de apreciar, a questão reveste-se de uma especial configuração, na medida em que tendo sido emitido mandado de busca para a «rua (…), lote (…), nº (…), (…), (…), residência de I.», consta expressamente do mandado que «a busca deverá incidir sobre a totalidade do imóvel, mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito (residência, garagens, sótão e anexos)».

            Entendeu, no entanto, a Mma. Juiz que procedeu ao primeiro interrogatório judicial de L. que «não se poderá considerar que apesar das duas residências constituírem os dois pisos de uma mesma moradia, que isso signifique que a autorização da busca se refere a ambas as residências, as quais e como já se disse são totalmente independentes»; e mais adiante, revelou o seu entendimento sobre o procedimento que deveria ter sido seguido para que a busca se pudesse considerar válida, consignando que «perante essa circunstância impunha-se aos agentes a realização da busca com recurso a autorização concedida pelo arguido L., consignada em auto, ou pela obtenção de um mandado que autorizasse a realização da busca».

            No entanto, a questão que verdadeiramente se coloca não tem a ver com a identificação da pessoa que ocupa o local ou com a exigência de consentimento para a realização da busca, antes se prende essencialmente com a identificação do local onde essa diligência de obtenção de prova se deveria (de modo coactivo) realizar. Trata-se, aliás, de diligência autorizada por Juiz de Instrução e o teor do mandado emitido é bem explícito, dele resultando uma especial preocupação e cuidado na identificação do local que seria objecto de busca, referido como sendo a casa de I., sita na rua (…), lote (…), n.º (…), (…), (…), esclarecendo-se que a busca incidirá sobre a totalidade do imóvel, mesmo que habitada por pessoas diferentes do suspeito (residência, garagens, sótão e anexos). E se assim sucedeu, terá sido, certamente, por força da informação transmitida pela Polícia Judiciária, de que num anexo da residência em causa residiria um dos suspeitos dos crimes indiciados, cuja identificação não era conhecida.

            Autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal a realização da busca domiciliária tendo por objecto um determinado imóvel, perfeitamente caracterizado na ordem judicial corporizada no mandado de busca, está formalmente autorizada a restrição do direito à inviolabilidade do domicílio, afectando esta restrição os direitos de todas as pessoas que residam no local objecto da busca, ainda que não tenham sido expressamente identificadas no despacho ou no mandado emitido. O próprio Tribunal Constitucional tem reconhecido que uma concepção de tal modo garantística que exigisse a identificação de todos os ocupantes do espaço a buscar redundaria, em muitos casos, na total ineficácia deste meio de obtenção de prova. Veja-se, a propósito, a argumentação expendida por aquele tribunal, ainda que a propósito de questão algo distnta, mas que pela sua pertinência para o caso dos autos se transcreve:

            «(…) um domicílio alvo da busca pode ser (…) residência de outros indivíduos que não os visados, sobre os quais não recaem quaisquer suspeitas de envolvimento na prática ilícita em investigação. A lei não faz depender a busca da relação entre o titular de habitação e os objetos que se procuram, mas da sua existência em determinado local.

            Acontece que a busca, como meio investigatório, envolve, na maior parte das vezes, uma relativa indeterminação sobre a exata titularidade do domicílio – v.g., quanto à natureza do título de ocupação ou ao número de residentes – cuja intromissão é exigida pela medida.

            Envolve, também, uma relativa indeterminação dos concretos objetos a apreender e da respetiva titularidade, em conformidade com o juízo meramente indiciário que a fundamenta

            Acresce que, como facilmente se compreende, a reserva do domicílio – ainda que partilhado com outras pessoas, em muitos casos ligadas por laços familiares, ou de proximidade existencial, geradores de relações de confiança e solidariedade, naturalmente inibidoras de denúncias – propicia o resguardo pretendido para a ocultação de objetos incriminadores.

            (…)

            Por outro lado, recorde-se que a norma segundo a qual a autorização judicial de busca domiciliária, em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação, pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visado por tal diligência, pressupõe que a autorização judicial da busca (e definição da sua extensão) implica, ela mesma, um juízo prévio sobre os respetivos pressupostos, que avaliará, no caso concreto, a adequação, necessidade e proporcionalidade de tal medida, juízo que é realizado por quem, por imposição constitucional, protege os direitos fundamentais.

            Assim, a possibilidade de a autorização judicial de busca domiciliária envolver a permissão de devassa de todo o espaço da habitação, incluindo as divisões que, embora de utilização predominante por outros habitantes, sejam acessíveis ao suspeito visado pela diligência, não apenas comporta uma restrição do direito à “esfera privada espacial” adequada à prossecução do princípio da investigação ou da verdade material e, de uma maneira geral, de realização da justiça, que a justificam, como se revela necessária, porque, em concreto (como se assinalou), indispensável à eficácia da diligência, bem como proporcional, em sentido estrito, por se apresentar como correspondente a uma equilibrada ponderação do peso relativo de cada um dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, do peso do agravo produzido para o titular afetado no direito que é objeto da restrição (direito à inviolabilidade do domicílio) e do benefício que justifica a restrição (a realização da justiça - refletido na viabilização do efeito útil da busca domiciliária, como diligência de investigação - que se consubstancia na efetivação do direito à tutela jurisdicional efetiva de outros tantos direitos fundamentais protegidos pelas normas incriminadoras)

            (...)» [1].

            À luz destas considerações, que perfilhamos integralmente e cujo conteúdo damos por adquirido, não se vê que a busca realizada tenha excedido o âmbito do autorizado pelo JIC, não ocorrendo, pois, violação do princípio da legalidade (na obtenção dos meios de prova), tanto bastando para que se conclua pela pertinência da posição sustentada pelo recorrente, a implicar a revogação do despacho recorrido.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido e determinando a sua substituição por despacho que, reconhecendo a validade da busca realizada, dela retire todas as consequências legais que ao caso convierem.

Sem taxa de justiça.

            Coimbra, 7 de Julho de 2021

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - Acórdão nº 216/2012, disponível para consulta em tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos