Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
528/13.2TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO PARA PESSOA A NOMEAR
COMPRADOR
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
FACTO NOTÓRIO
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA, SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º E 424º C. CIVIL; 514º, Nº 1 CPC/61 E 412º, Nº 1 CPC/2014.
Sumário: 1.- Constando de um contrato promessa de compra e venda uma cláusula segundo a qual a escritura pública de venda (contrato-prometido) será feita ao promitente comprador ou a pessoa por este a indicar, não configura um contrato para pessoa a nomear, porque o promitente-comprador não se reservou o direito de indicar pessoa que o substituísse como tal, ou seja, como promitente-comprador, mas sim como comprador efectivo.

2.- A cláusula de nomeação aposta no contrato promessa apenas legitima a substituição do promitente comprador na outorga da escritura do contrato definitivo, mas não consubstancia consentimento prévio de cessão da posição contratual da posição do promitente comprador.

3.- À cessão da posição contratual do promitente comprador aplicam-se as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- A Autora – F…, Lda - instaurou na Comarca de Pombal a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – J… e M...

            Alegou, em resumo:

No exercício da sua actividade, em 30 de Março de 2010, por contrato de compra e venda, adquiriu aos Réus uma fracção autónoma destinada a comércio, sita em ...

Em 25 de Março de 2009 os Réus celebraram com B… um contrato promessa bilateral de compra e venda, no qual prometeram vender a este, ou a quem ele indicasse, a referida fracção, tendo-se obrigado os Réus (promitentes vendedores) a proceder, até ao momento da escritura, à reposição de uma parede que separa a dita fracção da outra loja do lado.

Os Réus não cumpriram tal obrigação e na data da escritura foi-lhes apresentado um orçamento de € 3.500,00 relativo aos trabalhos a realizar, pois as obras não foram efectuadas, causando a desvalorização do imóvel, por não reunir condições sanitárias para ser objecto de qualquer tipo de negócio, com prejuízos económicos.

Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia global de € 6.500, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a citação até efectivo pagamento.

Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:

Reconhece a celebração do contrato promessa de compra e venda, mas impugnam a alegação, visto haverem acordado que as obras só seriam realizadas se o inquilino que ali se encontrava não levantasse entraves à realização das mesmas e que em caso de não realização das obras seria devolvido o valor do sinal entregue.

Par além disso, com a outorga da escritura de compra e venda o contrato promessa perdeu os seus efeitos, extinguindo-se as obrigações nele estipuladas.

Concluíram pela improcedência da acção.

Os Autores responderam.

Após audiência prévia, afirmou-se no saneador a validade e regularidade da instância.

1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente e absolver os Réus do pedido.

1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, em cujas alegações concluiu, em resumo:

            Contra-alegaram os Réus, no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            Alteração de facto (facto notório);

Se a Autora pode exigir indemnização pelo incumprimento do contrato promessa já extinto (a autonomia do contrato prometido, cláusula de reserva de nomeação, cessão da posição contratual).

            2.2.- Os factos provados (descritos na sentença)

            2.4. – Alteração de facto

            O tribunal deu como não provados os factos alegados nos arts. 16º, 17º e 18º da petição inicial, ou seja que “ A não realização das obras faz com que a fracção adquirida pela Autora ‘F…, Lda’ não reúna condições sanitárias para qualquer tipo de negócio, incluindo a sua venda“.

            Para tanto, justificou a sua convicção, nos seguintes termos:

            “Decaiu também a prova da falta de condições sanitárias da fracção para a realização de quaisquer negócios, não só por tal facto não haver sido referenciado com suficiente rigor descritivo pelas testemunhas arroladas pela Autora como também pela circunstância de a realização da compra e venda de 30 de Março de 2010, entre as partes, desmentir por si só tal alegação”.

            A Apelante pretende que se julguem provados os factos alegados nos arts. 16º, 17º e 18º da petição por serem factos notórios.

            A lei define “factos notórios” como “os factos que são do conhecimento geral“ (art.514 nº1 CPC/61 e 412 nº1 CPC/2014).

            A caracterização doutrinária é no sentido de que “factos notórios apenas aqueles que sejam do conhecimento geral, ou seja, os que sejam do conhecimento da massa dos cidadãos portugueses regularmente informados, isto é, com acesso aos meios normais de informação”( A. REIS, CPC Anotado, III, pág. 261 ).

O carácter notório para o juiz advém da circunstância de estar colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem juízos presuntivos (cf., por ex., C MENDES, Do Conceito de Prova, pág.711, VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.61).

Para o critério da notoriedade não releva o facto, em si mesmo, mas a sua cognoscibilidade, pressupondo-se “uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza” (Ac STJ de 26/9/95, BMJ 449, pág.293), não sendo, por isso, suficiente qualquer conhecimento, por ser indispensável “ um conhecimento de tal modo extenso e difundido que o facto apareça como evidente, revestido de um carácter de certeza resultante do conhecimento do facto por parte da massa dos portugueses que possam considerar-se regularmente informados por terem acesso aos meios normais de informação” (Ac STJ de 25/10/2005, em www dgsi.pt).

Neste contexto, não parece que o facto impugnado revista o carácter de notório, na acepção definida, improcedendo a alteração de facto.

2.5.- Se a Autora pode exigir indemnização pelo incumprimento do contrato promessa já extinto

A sentença recorrida, depois de enquadrar correctamente o problema no sentido de questionar se assiste à Autora (compradora do imóvel) o direito de exigir dos Réus (promitentes vendedores) a reclamada indemnização pelo incumprimento da obrigação acessória constante do contrato promessa de compra e venda (realização de obras, antes da escritura, no prédio prometido vender) no qual não teve intervenção, julgou a acção improcedente com base nos seguintes tópicos argumentativos:

“ (…) Está em causa uma obrigação acessória do contrato-promessa celebrado entre os Réus e B…, nele não tendo intervindo a Autora. (…) Daí que o cumprimento da promessa (assim como das obrigações secundárias e acessórias nela contidas) só possa ser exigida pelo identificado B… e nunca pela Autora (enquanto pessoa que aquele indicasse oportunamente para ocupar o lugar de comprador).

 (…)

Sendo assim, porque não houve contrato para pessoa a nomear ou sequer cessão da posição contratual, sujeitos do contrato promessa de compra e venda são, como se disse, os Réus (promitentes vendedores) e B… (promitente comprador), soçobrando o pedido formulado pela Autora de condenação dos Réus no pagamento das obras por realizar, no valor por si indicado de 3.500 € (também não comprovado)”.

Objecta a apelante dizendo não fazer sentido autonomizar o contrato promessa do contrato prometido, verificando-se uma cessão da posição contratual, consentida pelos promitentes vendedores.

            O contrato promessa (art. 410 CC) tem por objecto uma obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido, reconduzindo-se a uma obrigação de prestação de facto positivo. Por força do princípio da equiparação, ao contrato promessa são aplicáveis as normas relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as que, por razão de ser, não se devam considerar extensíveis.

            O contrato promessa tem eficácia meramente obrigacional, criando para os sujeitos do negócio jurídico a obrigação de contratar, ou seja a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos termos especialmente previstos na lei (art. 406, nº 2 do CC).

            Mas do art. 410, nº 1 do CC não resulta que o contrato a celebrar a final (contrato prometido) tenha de ser feito entre os sujeitos que no contrato promessa são partes, sendo admissível que a obrigação de contratar dele emergente se reporte a um terceiro ou acabe por ser assumida por este.

            A intervenção de um terceiro na obrigação de contratar pode derivar de várias fontes, com regimes específicos, seja através da “promessa de contrato por terceiro”, de um “contrato para pessoa a nomear”, de uma cláusula de “reserva de nomeação” ou de uma “cessão da posição contratual”.

            Como refere ANA PRATA, “a variedade de configurações que pode revestir uma cláusula incidental no plano subjectivo da relação, isto é, destinada a operar uma modificação subjectiva num dos pólos dela, ou uma dissociação entre o sujeito que tem o direito e o contraente originário, tem suscitado dúvidas e dificuldades de interpretação. É que a forma de expressão utilizadas pelas partes nem sempre é unívoca e não é indiferente, do ponto de vista do regime, que se esteja perante uma promessa a favor de terceiro (quantas vezes indeterminado), perante um contrato com cláusula de reserva de nomeação de terceiro (em que realizada a nomeação, a introdução do terceiro no contrato como parte tem eficácia ex tunc) ou ainda perante uma cessão da posição contratual (em que o cessionário reentra na posição do cedente com eficácia ex nunc) )“ - O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, pág.277.

            O contrato promessa de compra e venda bilateral foi celebrado, em 25/3/2009, entre os Réus (J… e M…), como promitentes vendedores e B…, como promitente comprador, convencionando-se que prometem vender a este “ ou a quem ele indicar” (cf. cláusula 1ª), configurando-se, assim, uma cláusula de reserva de nomeação.

Conforme jurisprudência prevalecente, tem-se entendido que constando do contrato promessa de compra e venda uma cláusula segundo a qual a escritura pública de venda (contrato-prometido) será feita ao promitente comprador a pessoa por este a indicar, não configura um contrato para pessoa a nomear, porque o promitente-comprador não se reservou o direito de indicar pessoa que o substituísse como tal, ou seja, como promitente-comprador, mas sim como comprador efectivo (cf., por ex., Ac do STJ de 23/1/1986, BMJ 353, pág.429; de 16/10/1990, BMJ 400, pág. 612).

            Não sendo a Autora parte no contrato promessa de compra e venda, questiona-se se houve cessão da posição contratual.

A cessão da posição contratual (art. 424 CC) consubstancia um negócio em que um dos contraentes (cedente), num contrato de prestações recíprocas, transmite a um terceiro (cessionário), com o consentimento do outro contraente (cedido), o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato (contrato base).

Ela implica uma modificação subjectiva dos sujeitos da relação contratual, que permanece objectivamente a mesma, sendo que para o terceiro (cessionário) é transmitida a posição contratual no seu todo (teoria unitária), ou seja a posição global do cedente existente no momento da eficácia do negócio. Deste modo, a transmissão da posição contratual produz a liberação do cedente em face do cedido, no momento em que foi notificada ao cedido ou a aceitou, pois a partir daí o cessionário passa a ocupar o lugar do cedente no contrato inicial, com o complexo de direitos e obrigações.

Existe um contrato base ou contrato inicial (realizado originariamente entre cedente e cedido) e o contrato instrumento da cessão (entre cedente e cessionário), através do qual se dá a transmissão.

Por força do art. 425 CC, a forma de transmissão, a capacidade, a falta e vícios de vontade definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão (por ex., compra e venda, doação, dação em pagamento, etc.), significando que as relações entre o cedente o cessionário estão sujeitas ao regime legal e convencional que regula o contrato que fundamentou a cessão, sendo, por isso, a cessão qualificada como “contrato de causa variável”.

Na situação dos autos não se comprova a cessão da posição contratual do promitente comprador (B…) para a Autora.

Em primeiro lugar, porque não está demonstrado o consentimento dos promitentes vendedores (cedidos), expresso ou tácito, antes ou depois da cessão, o que implica, para uns, a incompletude do contrato de cessão, por ausência de elemento essencial (cf. por ex., MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág.474) ou a mera condição de ineficácia, para outros (cf., por ex., CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos, pág.868 e segs.).

A cláusula de nomeação aposta no contrato promessa apenas legitima a substituição do promitente comprador na outorga da escritura do contrato definitivo, mas não consubstancia consentimento prévio de cessão da posição contratual da posição do promitente comprador (cf., por ex., Ac RL de 11/2/2010, proc. nº 908/09), em www dgsi.pt).

Por outro lado, ainda que estivessem reunidos os pressupostos de validade substancial, seria exigível a forma escrita da cessão, enquanto formalidade ad substantiam, logo o contrato de cessão da posição contratual seria nulo, por vício de forma (art.220 CC).

Tem-se entendido que quanto à forma da cessão da posição contratual do promitente vendedor se aplicam as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão. Neste sentido, ensina VAZ SERRA que “ no caso da cessão da posição contratual do promitente comprador, as razões por que a lei (art.410 nº2 C Civil) exige documento assinado pelo promitente para a validade da promessa de compra são igualmente aplicáveis à cessão da posição contratual desse promitente, já que o cessionário irá ocupar a posição do cedente, não havendo mais razão para com o fim de proteger o promitente contra a precipitação e ligeireza, se exigir forma especial (documento assinado) para a declaração negocial do primitivo promitente comprador do que para o novo promitente comprador (cessionário)“ - RLJ ano 108, pág. 346. A jurisprudência adere a esta posição, sustentando que se para a celebração de contrato promessa de compra e venda de imóvel a lei exige a forma escrita, por identidade de razão deve também ser exigida idêntica forma para a cessão da posição contratual (cf., por ex., Ac STJ de 21/6/2007, proc. nº 07B1974; Ac RL de 10/9/2009, proc. nº 4595/07), disponíveis em www dgsi.pt; e Ac RC de 25/3/93, C.J. ano XVII, tomo III, 43).

Por conseguinte, conclui-se pela não comprovação da cessão da posição contratual e a existir seria formalmente nula.

Sendo assim, porque não houve cessão da posição contratual, não pode a Autora exigir a indemnização com fundamento no incumprimento do contrato promessa de compra e venda.

            De resto, há até quem entenda que uma vez realizado o contrato prometido tem-se por efectivado o contrato promessa, que se extingue, não podendo servir de causa para obter o cumprimento de cláusulas nele acordadas (cf., por ex., Ac RC de 8/11/88, C.J. ano XIII, tomo V, pág.71, Ac RC de 15/7/2008, proc. nº 571/05, em www dgsi.pt ).

            2.6.- Síntese conclusiva

1.- Constando de um contrato promessa de compra e venda uma cláusula segundo a qual a escritura pública de venda (contrato-prometido) será feita ao promitente comprador ou a pessoa por este a indicar, não configura um contrato para pessoa a nomear, porque o promitente-comprador não se reservou o direito de indicar pessoa que o substituísse como tal, ou seja, como promitente-comprador, mas sim como comprador efectivo.

2.- A cláusula de nomeação aposta no contrato promessa apenas legitima a substituição do promitente comprador na outorga da escritura do contrato definitivo, mas não consubstancia consentimento prévio de cessão da posição contratual da posição do promitente comprador.

3.- À cessão da posição contratual do promitente comprador aplicam-se as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 24 de Fevereiro de 2015.


 Jorge Arcanjo (Relator)

 Teles Pereira

Manuel Capelo