Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA PLANO DE INSOLVÊNCIA PLANO DE RECUPERAÇÃO EMPRESA | ||
Data do Acordão: | 07/10/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.5, 192, 207, 249, 250, 251 CIRE | ||
Sumário: | 1 - O plano de recuperação – uma das 4 modalidades de plano de insolvência – só pode ser proposto nos casos em que existe uma empresa. 2 – Tendo o devedor/insolvente encerrado a sua actividade/estabelecimento antes da declaração de insolvência, não existe uma empresa a recuperar e que seja recuperável. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório A requerimento de credor foi, em 04/06/2013, declarada a insolvência de A (…). Apresentado o Relatório a que alude o art. 155.º do CIRE, realizada a respectiva Assembleia de Credores e efectuada a votação, a Exma. Juíza, em 21/11/2013, proferiu despacho em que “atenta a posição unanime dos credores, considerou aprovada a proposta apresentada pelo Sr. AI e, em consequência, determinou que os autos prosseguissem para liquidação de todos os bens apreendidos para a massa insolvente”. Após o que, uma vez que o devedor/insolvente havia oportunamente requerido a “exoneração do passivo restante”, veio a ser proferida decisão, em 09/01/2014, que admitiu liminarmente tal pedido de exoneração do passivo restante. Tendo-se iniciado o período da cessão em 01/07/2017 (cfr. art. 6.º/6 do DL 79/2017), foi o devedor/insolvente notificado pelo fiduciário para lhe entregar o rendimento disponível. Sem que os autos retratem qualquer entrega e continuando em curso a liquidação do activo[1], veio o devedor/insolvente, em 04/07/2018, apresentar plano de recuperação e requerer “a suspensão da liquidação quanto ao imóvel que se propõe que não seja objecto de venda” Conclusos os autos, o Exmo. Juiz, em 08/11/2018, proferiu o seguintes despacho: “ (…) Os presentes autos prosseguiram para liquidação da massa insolvente. A requerida suspensão da liquidação da massa insolvente (requerimento datado de 4.07.2018) não tem fundamento legal, pelo que se indefere. Todavia, poderá o insolvente, se todos os credores prestarem o seu consentimento para o efeito, pedir o encerramento do processo ao abrigo do disposto no art. 230º, nº 1, al. c), do CIRE. Com vista à definição processual desejável, deverá o insolvente, no prazo de 15 dias, informar se pretendem ou não fazer uso do citado normativo e, em caso afirmativo, se obtém o consentimento de todos os credores para o efeito (o qual deve ser expresso, formulado por escrito e junto aos autos) (…)”. * Inconformado com tal decisão, interpõe o devedor/insolvente o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que mande “o tribunal recorrido apreciar e aceitar o plano apresentado, ordenar a suspensão da liquidação quanto ao imóvel identificado no requerimento de 04.07.2018, recolher os competentes pareceres, e designar data para assembleia de credores destinada à apreciação e votação do plano”. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: (…) A. No dia 04.07.2018 o insolvente deu entrada de um requerimento, apresentando plano de insolvência, destinado à sua recuperação, e por isso denominado de plano de recuperação, conforme prevê o artigo 192º nº3 do CIRE (assim denominado no requerimento de junção como no próprio plano). B. Naquele requerimento datado de 04.07.2018 o insolvente apresentou um resumo do conteúdo do plano, tendo também requerido a suspensão da liquidação, ao abrigo do artigo 206º, apenas quanto ao imóvel que se propõem que não seja objecto de venda, e que se mantenha na esfera patrimonial do insolvente, mantendo-se também o respectivo crédito hipotecário nos seus exactos termos originais. C. O respectivo credor hipotecário, antes de proferido o despacho recorrido, veio aos autos declarar que não se opunha a tal medida. D. O plano é apresentado por quem tem legitimidade para o efeito – o insolvente – e em momento oportuno. E. Na verdade, não existe limite temporal para a apresentação de plano de insolvência, antes determinando o legislador, no artigo 209º nº2 do CIRE, que a assembleia de apreciação do plano não pode ocorrer antes de transitada em julgado a sentença de declaração de insolvência, de esgotado o prazo para impugnações da lista de credores e da realização da assembleia de apreciação do relatório, tudo actos já praticados nestes autos. F. O plano respeita o princípio da igualdade, e o seu conteúdo vai ao encontro do previsto no artigo 195º, explanando, nomeadamente, a finalidade do plano e as concretas medidas propostas. G. Nada obsta à aceitação do plano, e subsequente recolha de pareceres, nos termos previsto no artigo 208º, seguida da realização da assembleia para apreciação e votação do plano e posterior homologação, sendo aprovado. H. O despacho recorrido limita-se a referir que “os autos prosseguiram para liquidação”, nada dizendo quanto à aceitação ou rejeição do plano apresentado. I. Sendo certo que inexiste fundamento legal para a rejeição do plano, mas, em todo o caso, o despacho recorrido não apresenta qualquer fundamento legal para a posição tomada, no sentido, presumido, de considerar não oportuna a apresentação do plano. J. Assim, o despacho recorrido é nulo, porquanto não se pronuncia sobre a apresentação de plano de insolvência, feita pelo insolvente a 04.07.2018, nada dizendo sobre a sua aceitação ou rejeição, e respectivos fundamentos legais. K. Deve ser declarada a nulidade do despacho, nos termos e para os efeitos do artigo 615º nº1, d) do CPC. L. O Tribunal recorrido deve apreciar e pronunciar-se sobre a apresentação de plano de recuperação, nos termos em que o mesmo é apresentado, a 04.07.2018, e respeitar o enquadramento e tramitação previstas nos artigos 192º e seguintes do CIRE. M. Deve também ser revogado o despacho na parte em que determina, por falta de fundamento legal, o indeferimento da requerida suspensão (parcial) da liquidação. N. O fundamento legal da suspensão da liquidação encontra-se no artigo 206º nº1 do CIRE, e foi expressamente alegado, quer no requerimento, quer no próprio plano anexo ao requerimento. O. A adequação da suspensão resulta inequívoca, já que o plano propõe a manutenção, na esfera patrimonial do insolvente, de um dos imóveis apreendidos, e manutenção do respectivo crédito hipotecário, nos exactos termos originalmente contratados com o credor BCP, que, previamente ao despacho recorrido, manifestou não oposição à referida proposta vertida no plano. P. Sendo assim clara a conveniência de suspender as diligências de venda daquele imóvel, até que exista decisão definitiva quanto à aprovação ou rejeição do plano, já da sua eventual aprovação resultará a manutenção, na esfera patrimonial do insolvente, daquele imóvel, sendo por isso clara a inconveniência da promoção da respectiva venda na pendência do desenvolvimento das diligências de apreciação e votação do plano proposto. Q. Concluindo, o despacho recorrido deve ser declarado nulo na parte em que não aprecia a apresentação do plano, e revogado, por ilegal, na parte em que determina que inexiste fundamento legal para a suspensão parcial da liquidação, porque existe fundamento legal, previsto no artigo 206º nº1 do CIRE, expressamente alegado, e de resto adequado e conveniente. R. Deverá o Tribunal recorrido apreciar e aceitar o plano apresentado, ordenar a suspensão da liquidação quanto ao imóvel identificado no requerimento de 04.07.2018, recolher os competentes pareceres, e designar data para assembleia de credores destinada à apreciação e votação do plano. (…)”
Não foi apresentada qualquer resposta. Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação Os factos relevantes são os que emergem do relatório que antecede, acrescentando-se que: - O devedor, no ano anterior ao início do processo de insolvência e até 30/04/2012, explorou um estabelecimento destinado ao comércio de electrodomésticos e instalações eléctrica; - O devedor tem dívidas laborais; - O devedor, conforme carta enviada aos seus empregados, encerrou o estabelecimento em 30/04/2012; - Ao devedor foram apreendidos dois prédios urbanos, sitos em x (...) (hipotecados ao (…) y (...) ), não existindo móveis “porquanto estava a actividade está encerrada e sem empregados” (fls. 106); * Quanto ao Direito: O âmbito de aplicação do Plano de Insolvência (as disposições constantes dos títulos IX do CIRE) é definido pela negativa no art. 250.º do CIRE, do qual resulta que, não sendo o mesmo aplicável nem às pessoas singulares não titulares duma empresa nem às pessoas singulares titulares de uma pequena empresa (às quais é aplicável o plano de pagamento aos credores do art. 251.º e ss. do CIRE[2]), é o mesmo aplicável às pessoas jurídicas e às pessoas singulares que tenham sido titulares duma empresa não pequena. É o caso do devedor/apelante; que foi titular duma empresa (na noção dada pelo art. 5.º do CIRE) até 30/04/2012 e que tinha, à data do início do processo, dívidas laborais, motivos pelos quais o disposto no Capítulo II do CIRE (arts. 249.º e ss do CIRE) não lhe é aplicável, sendo-lhe antes aplicável o que no CIRE se dispõe sobre o Plano de Insolvência (art. 192.º a 222.º do CIRE). Mas isto não significa – existindo quatro modalidades de plano de insolvência: o plano de liquidação da massa insolvente, o plano de recuperação, o plano de saneamento por transmissão da empresa e o plano que resulte da combinação de todas ou algumas de tais modalidades – que toda e qualquer uma de tais 4 modalidades lhe possa e deva ser aplicável. É que, para poder haver e ser proposta a modalidade de plano de recuperação, tem que existir uma empresa. Efectivamente, “(…) sempre que a lei se refere à recuperação associa-lhe a empresa. Acontece isso, por exemplo, nas normas dos art. 1.º, 161.º/2, 195.º/2/b) e ainda no próprio nome do Código – da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Não existem, assim, quaisquer dúvidas de que o plano de recuperação só é configurável nos casos em que existe uma empresa”[3]. Ora, como resulta dos autos, o devedor/apelante encerrou a sua actividade/estabelecimento em 30/04/2012, não sendo assim titular dum qualquer estabelecimento e não existindo, por isso, uma empresa a recuperar e que seja recuperável. Não pode/ia pois, a nosso ver, o devedor/apelante apresentar proposta de plano de insolvência, na modalidade de plano de recuperação[4]. Sendo assim, convocando a marcha processual a prolação do despacho a que alude o art. 207.º do CIRE, a decisão recorrida devia ser a não admitir a proposta apresentada pelo devedor/apelante, ao abrigo e nos termos do art. 207.º/1/a) do CIRE. Assim: Como tal despacho não foi proferido, ou seja, como não foi proferido despacho sobre a admissibilidade da proposta apresentada – antes se proferindo despacho a indeferir a suspensão da liquidação da massa insolvente – foi, ponto em que o devedor/apelante tem razão, cometida a nulidade do art. 615.º/1/d) do CPC (ex vi art. 613.º/3 do CPC). Porém, quanto ao mais relevante (fundo/mérito da sua pretensão), é que não pode ser dada razão ao devedor/apelante, ou seja, não se pode mandar “o tribunal recorrido apreciar e aceitar o plano apresentado (ordenar a suspensão da liquidação quanto ao imóvel identificado no requerimento de 04.07.2018, recolher os competentes pareceres, e designar data para assembleia de credores destinada à apreciação e votação do plano)”, uma vez que, como se acaba de referir, não é admissível ao aqui devedor/insolvente, que já não é titular duma empresa desde 30/04/2012, apresentar uma proposta de plano de insolvência, na modalidade de plano de recuperação. Em conclusão, substituindo-nos ao tribunal recorrido, será proferida decisão a não admitir a proposta de plano de insolvência, na modalidade de plano de recuperação, apresentada pelo devedor em 04/07/2018[5]. * III - Decisão Pelo exposto, declara-se nula a decisão recorrida (por não se ter pronunciado sobre o que tinha que começar por ser apreciado) e, em sua substituição, profere-se decisão a não admitir a proposta de plano de insolvência, na modalidade de plano de recuperação, apresentada pelo devedor/insolvente em 04/07/2018. Custas pela massa. Coimbra, 10/07/2019
Barateiro Martins ( Relator) Arlindo Oliveira Emídio Santos [1] Uma vez que o encerramento do processo consequente ao despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (cfr. art. 230.º/1/e) do CIRE), “quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível” (cfr. art. 233.º/7 do CIRE) [2] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito de Insolvência, pág. 49. [3] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito de Insolvência, pág. 318. [4] E ao dizer isto estamos implicitamente a reconhecer que não se coloca nenhum obstáculo de tempestividade/oportunidade na apresentação de tal proposta. [5] Ficando assim prejudicada a questão respeitante à existência de base legal para a suspensão da liquidação requerida (que está efectivamente prevista no art. 206.º do CIRE), questão que evidentemente só se coloca se a proposta de plano de insolvência for admitida. |