Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6803/10.0TXLSB-AG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
ASSUMPÇÃO DE CULPA
ARREPENDIMENTO
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 61.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E B), E 3, E 62.º DO CÓDIGO PENAL/C.P.
Sumário: I – Quando ainda não se encontram cumpridos dois terços da pena de prisão, continuam a ser cumulativamente exigíveis para a concessão da liberdade condicional ambos os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61.º do C.P.

II – Não integram os requisitos para a concessão da liberdade condicional, constantes desta norma, o genuíno arrependimento e a perfeita interiorização da culpa por parte do condenado.

III – Num Estado de direito democrático fundado no princípio da dignidade humana, estabelecido nos artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa, não cabe entre os objectivos de uma pena criminal a transformação do condenado em homem novo, corrigido das suas íntimas convicções quanto aos motivos da actuação respectiva e psicologicamente reconfigurado pela sanção.

III – O que realisticamente se tem de exigir como índice da desejada ressocialização é, não uma íntima conversão, mas, apenas, a interiorização de uma objectiva adesão à norma criminal e disponibilidade pessoal para tanto.

IV – Um genuíno arrependimento, enquanto interiorização plena do desvalor da conduta e consequente autocrítica relativamente a ela, constitui um poderoso sinal da disponibilidade do condenado a uma conduta futura que se paute pela responsabilidade, assim potenciando o juízo de prognose favorável, mas a falta de arrependimento, ou a sua imperfeição, não pode sem mais importar privação dos benefícios da liberdade condicional enquanto poderoso instrumento de ressocialização.

V – A colocação em período de adaptação à liberdade condicional, do artigo 62º do C.P., consubstancia uma prévia adaptação à libertação condicional, que forçosamente decorrerá em obrigação de permanência na habitação com sujeição a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, o que implica menor risco de compromisso da satisfação das exigências de prevenção, tanto geral como especial, e assim uma atenuação significativa do rigor da ponderação em ambos os planos concitada.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1.

foi em 17/02/2023 proferida decisão final que decidiu pela não colocação do dito condenado em período de adaptação à liberdade condicional.

2. É dessa decisão que o condenado recorre, apontando-lhe a violação do art. 61.º, n.º 2, als. a) e b), do Código Penal (CP) e pugnando pela alteração do decidido, com a respectiva colocação em período de adaptação à liberdade condicional. Das suas motivações de recurso extrai as seguintes conclusões:

« I – O recorrente cumpre uma pena de vinte e quatro anos de prisão, encontra-se detido desde Dezembro de 2007, sendo que atingiu a metade da pena a 16/12/2019 e atingirá os 2/3 no dia 16/12/2023.

II – Considerou o tribunal a quo, que “o condenado continua a não demonstrar ter já verdadeiramente interiorizado a censurabilidade da sua, isto apesar das sucessivas declarações de arrependimento e que “o condenado deverá, pois, efetuar um percurso de maior interiorização do desvalor das condutas por si praticadas…”

III – Antes de mais refira-se que o MP emitiu parecer favorável à concessão da adaptação à liberdade condicional, e da acta do conselho técnico pode ver-se que a equipa de reinserção emitiu parecer favorável, bem como o chefe principal dos serviços de vigilância e segurança, que também votou favoravelmente.

IV – Do relatório social e do relatório do técnico de reinserção social resulta que o recorrente apresenta juízo critico e de censura, manifesta arrependimento e apresenta uma evolução muito positiva.

V – Salvo o devido respeito, quem efetivamente acompanha de forma próxima e com contacto direto o percurso prisional do recorrente, é unânime que o mesmo reúne as condições para lhe ser aplicada a adaptação à liberdade condicional.

VI – O recorrente tem apoio familiar e económico por parte da companheira e da mãe, tem uma proposta sólida de trabalho no sector da mediação imobiliária, enquanto esteve recluído investiu na sua formação académica, tendo concluído o 12.º ano, trabalhou em todos os estabelecimentos prisionais pelos quais passou.

VII – Demonstra, desde sempre, arrependimento, identifica as vítimas dos seus crimes e tem juízo critico quanto aos mesmos.

VIII – Tem saídas jurisdicionais, vulgo “precárias”, desde 2019, sem registo de qualquer incidente.

IX – Ressalte-se ainda que, apesar de o condenado estar convencido do seu arrependimento e da interiorização da culpa, sempre se dirá que não é requisito de concessão da liberdade condicional nesta fase, que o condenado revele arrependimento e interiorize a sua culpa, como parece afirmar o tribunal a quo.

X – A lei exige, antes, que se verifique um prognóstico no sentido de que o recluso não voltará a cometer novos crimes.

XI – E neste domínio é necessário atender a três ordens de razões:

a. A vida anterior ao cometimento do crime;

b. Personalidade do condenado; e

c. Evolução da personalidade do condenado durante a execução da pena.

XII – Quanto ao primeiro aspecto, o recorrente sempre foi uma pessoa social e laboralmente integrada, bem visto por todos quanto com ele conviviam, seja em contexto social, seja no contexto laboral

XIII – Relativamente à personalidade do recorrente, no sentido de valoração da personalidade do mesmo ser ou não conforme ao direito, o mesmo não tinha quaisquer antecedentes criminais à data da prática dos crimes.

XIV – Já no que toca à evolução da personalidade do recorrente durante a execução da pena, face aos relatórios que constam do seu processo único de recluso, facilmente se conclui por uma evolução muito positiva, como indiciadora de uma postura correcta e conforme às regras aquando da sua libertação,

XV – Uma vez em liberdade possui um projeto de vida concreto e assente em pilares fundamentais: viver com a sua companheira, que é trabalhadora dos CTT, conviver com a sua família e exercer função laboral no setor da mediação imobiliária.

XVI – Sendo certo que continuará a existir um forte controle da vida “em liberdade” do condenado, pois todos os seus movimentos são controlados pela equipa de vigilância, através de meios eletrónicos.

XVII – Sendo possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

»

3. Admitido o recurso (na sequência de reclamação contra a inicial rejeição e favoravelmente decidida neste TRC a 30/03/2023), respondeu-lhe o MP, manifestando, em linha com o que previamente à decisão recorrida tinha já sido o parecer respectivo, o entendimento de que o condenado deve ser colocado em período de adaptação à liberdade condicional …

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que acompanha e proficientemente desenvolve os argumentos da resposta apresentada pelo MP em primeira instância, …

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e no caso nenhuma destas últimas se colocando, as matérias relevantes, como daquelas conclusões se extraem, são simplesmente e em concreto a apreciação sobre a conformidade ou não do decidido com as prescrições dos art. 61.º, n.º 2, als. a) e b), e 62.º, do CP, e 188.º, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEP), aprovado pela Lei 115/2009, de 12/10  – especificamente, determinar se, segundo sustenta o recorrente, as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir seriam suficientemente acauteladas com a sua colocação em período de adaptação à liberdade condicional, que nessa hipótese seria devida. 

2. Os dados do processo e o despacho recorrido

2.1. A liquidação da pena de vinte e quatro anos de prisão que o recorrente tem a cumprir, fixou-lhe o meio, já atingido, em 16/12/2019, os dois terços em 16/12/2023, os cinco sextos em 16/12/2027 e o termo em 16/12/2031.

2.2. Da acta da reunião do Conselho Técnico de 09/02/2023, consta a manifestação de parecer desfavorável por maioria dos seus membros, formada pelo voto de qualidade do Sr. director do EP, acompanhado da responsável para a área do tratamento prisional, mas com votos favoráveis do responsável da equipa dos serviços de reinserção social e do chefe dos serviços de vigilância e segurança, tendo por seu lado o MP promovido decisão no sentido da colocação em regime de adaptação à liberdade condicional; em todo o caso, prevenindo a hipótese de decisão favorável, o Conselho Técnico pronuncia-se no sentido de a colocação em regime de adaptação fixar condicionada à manutenção de residência fixa e aceitação da tutela dos serviços de reinserção.

2.3. É o seguinte, no que aqui pode importar, o teor da decisão sob recurso, proferida a 17/02/2023:

« (…)

III – Fundamentação

De facto

1) O recluso … encontra-se no Estabelecimento Prisional ... a cumprir a pena única de vinte e quatro anos de prisão, à ordem do Processo n.º 4095/07...., pela prática de dois crimes de homicídio qualificado, um deles na forma tentada, e um crime de detenção de arma proibida.

2) De acordo com a liquidação efectuada, o cumprimento do meio da pena foi atingido no dia 16/12/2019, o cumprimento de dois terços da pena será atingido em 16/12/2023, estando os cinco sextos e o termo dessa mesma pena previstos para 16/12/2027 e 16/12/2031, respectivamente.

9) Em liberdade o condenado pretende ir residir com a sua actual companheira num apartamento, T2, emprestado por um sobrinho do recluso.

10) No seu local de residência o condenado não é alvo de rejeição.

11) No exterior o condenado conta ainda com o apoio da sua mãe, designadamente a nível económico.

12) No exterior o condenado tem proposta de trabalho no ramo imobiliário, a trabalhar como mediador.

13) O condenado, apesar das sucessivas declarações de arrependimento, assume genericamente os crimes cometidos que contextualiza num clima de desentendimento que vinha mantendo há alguns meses com o grupo de que a vítima do crime de homicídio consumado fazia parte, assumindo que ele próprio e outras pessoas que estavam consigo dispararam em direcção à vítima e às pessoas que com ela se encontravam, tendo-se, a determinada altura, apercebido que uma das pessoas contra quem disparavam tinha caído no chão.

14) Tem revelado, como recluso, uma atitude proactiva, estando a trabalhar no bar do P....

15) Concluiu, em reclusão, o 12.º ano de escolaridade.

16) Beneficia de saídas jurisdicionais desde Setembro de 2019, que têm decorrido de forma adequada.

17) O condenado regista a prática de infracções disciplinares, datando a última punição, dez dias de privação de uso de fundo, de 18/03/2022.

Motivação

(…)

De direito

O recluso, preso no Estabelecimento Prisional ... em cumprimento de uma pena de vinte e quatro anos de prisão, atinge o 2/3 de tal pena em 16/12/2023 e solicitou a sua colocação em adaptação à liberdade condicional, por antecipação do cumprimento dos 2/3 da dita pena.

No caso dos autos, como anteriormente já se disse, o condenado dispõe, no exterior, do apoio da sua actual companheira com quem iria residir, bem como de sua mãe, contando com perspectivas laborais.

Acresce que o recluso tem um percurso prisional que ultimamente se tem vindo a revelar basicamente adaptado (sendo certo porém, que em Março de 2022, regista a prática de uma infracção disciplinar leve), já tendo beneficiado de medidas de flexibilização da pena que têm decorrido de modo adequado, estando a trabalhar, depois de ter concluído o 12.º ano.

Contudo, o condenado continua a não demonstrar ter já verdadeiramente interiorizado a censurabilidade da sua conduta, isto apesar das sucessivas declarações de arrependimento. Com efeito, assume genericamente os crimes cometidos que contextualiza num clima de desentendimento que vinha mantendo há alguns meses com o grupo de que a vítima do crime de homicídio fazia parte, assumindo que ele próprio e outras pessoas que estavam consigo dispararam em direcção à vitima e às pessoas que com ela se encontravam, tendo-se apercebido que uma das pessoas contra quem disparavam tinha caído no chão.

Ou seja, esta espécie de narrativa – eminentemente auto desculpabilizante – não é de molde a permitir a emissão do juízo de que o recluso está alertado para a importância crucial do bem jurídico que, com a sua conduta, colocou em causa.

Assim sendo, o condenado deverá, pois, efectuar um percurso de maior interiorização do desvalor das condutas por si praticadas – na verdade, tirou a vida a uma pessoa humana, e atentou contra a vida de outra, lesando irreversivelmente o valor sobre o qual se erige todo o tecido jurídico-constitucional nacional; assim, urge que o recluso interiorize verdadeiramente as repercussões drásticas das condutas que desenvolveu, sem incorrer em discursos auto justificativos, só aparentemente mitigadores da sua responsabilidade.

Na verdade, essa consciencialização do desfasamento penal da sua conduta, afigura-se imprescindível na hipótese em análise, tendo em vista que o recluso desenvolva um sério e fundado espírito crítico relativamente ao seu passado – o reconhecimento desse desvalor inerente aos actos que praticou surge, de facto, como passo necessário para se emitir um juízo firme que estará disponível para acatar as regras essenciais da vida em sociedade, nomeadamente não as violando flagrantemente reincidindo na perpetração de comportamentos penais tipicamente relevantes.

Ou seja, é assim evidente que as exigências de prevenção especial ainda se não mostram devidamente satisfeitas; com efeito, o recluso deverá aprofundar a interiorização do desvalor imanente às condutas que praticou e, bem assim, esforçar-se por adquirir competências que lhe permitam evoluir comunitariamente vivendo afastado da prática de ilícitos criminais.

Face ao exposto, terá de ser indeferido o requerido.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Na sua argumentação de recurso o condenado não coloca em crise a matéria de facto tida em consideração na decisão recorrida, não configurando, imperfeitamente que fosse, qualquer impugnação da decisão de facto, o que deixa o recurso incidente na matéria de direito apenas e, como acima ficou enunciado, especificamente sobre a correcta aplicação ou não dos art. 61.º, n.º 2, als. a) e b), e 3, e 62.º, do CP, algo que obviamente cabe apreciar tendo por referentes os factos que a decisão recorrida alinhou e que ficam intocados. Isto assente, tem de sublinhar-se que no plano do enquadramento conceptual da questão em apreço, o ponto de partida da decisão recorrida é inquestionável: a colocação do condenado em período de adaptação à liberdade condicional em regime de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, segundo prevista naquele art. 62.º, do CP, visando a flexibilização do processo de apreciação dessa liberdade condicional e minimizar as possibilidades de compromisso do objectivo de reinserção que pudessem decorrer da extensão demasiada do efectivo encarceramento, tem como pressupostos primeiros, nos próprios termos literais da norma, os que no art. 61.º, do CP, se prevêem para a concessão da liberdade condicional, de que em boa verdade aquele período de adaptação é uma antecipação, com o limite máximo de um ano.

3.2. Importando pois começar por verificar os pressupostos da liberdade condicional, nisso atendendo primeiro aos de natureza formal, o que desde logo avulta é ser inquestionável o consentimento do condenado, que é aliás requerente (e ainda assim o manifestou explicitamente aquando da respectiva audição), além disso sendo manifesto que há muito atingiu o meio da pena, em 16/12/2019 (quanto aos correspondentes dois terços estando previstos já para 16/12/2023). E no que tange aos de natureza mais substancial, notemos que precisamente por não terem sido ainda atingidos aqueles dois terços da pena, não sendo por conseguinte aplicável ainda a restrição do art. 61.º, n.º 3, do CP, continuam a ser cumulativamente exigíveis ambos os previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do mesmo art. 61.º: por um lado, e relevando da compatibilidade da libertação com as exigência de prevenção especial, “ser fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”; e por outro, relevante este da satisfação das exigências de prevenção geral, “a libertação [se] revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”. É o que agora se nos impõe aferir. 

3.3. Em vista disso, tem de manter-se presente a circunstância de que com a colocação em período de adaptação perspectivada, não se trata ainda da directa e efectiva libertação condicional do condenado, mas de uma prévia adaptação a ela, que forçosamente decorrerá em obrigação de permanência na habitação com sujeição a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (art. 62.º, do CP), é dizer, sob uma medida que em substância continua a ser privativa da liberdade. Damos por óbvio, como necessidade lógica, que a diferença, relativamente à hipótese de directa libertação condicional, implica menor risco de compromisso da satisfação das exigências de prevenção, tanto geral como especial, e assim uma atenuação significativa do rigor da ponderação em ambos os planos concitada. Em todo o caso, no que às exigências de prevenção geral respeita, observe-se que nem a decisão recorrida se fundou em qualquer especial premência delas que reclamasse a continuação do encarceramento, nem na verdade isso poderia tirar-se da factualidade especificamente assente ou da que pode colher-se dos dados dos autos, designadamente do relatório social, antes pelo contrário: o condenado não é alvo de rejeição na área da sua residência e, encarando a apreciação da comunidade alargada sobre a sua eventual libertação, cremos que não poderá deixar de relevar a circunstância de ter cumprido efectiva prisão por já quase dezasseis anos.

3.4. Por outras palavras, se vista pelo prisma das exigências de prevenção geral (art. 61.º, n.º 2, al. b), do CP), a situação do recorrente seria compatível já com a própria concessão de liberdade condicional, então e por maioria de razão o é com a colocação em período de adaptação a ela, e tanto mais quanto, no contexto de uma muito longa pena de prisão, faltam nesta data já apenas cerca de seis meses para que atinja os dois terços da duração respectiva e, nos termos do art. 61.º, n.º 3, do CP, deixe por isso de ser requisito da libertação condicional a própria compatibilidade com exigências de prevenção geral. Enfim, o nó do problema, a ele de resto se atendo a decisão em crise, está na conformidade da medida solicitada com o necessário para satisfação das exigências de prevenção especial que se revelem ainda presentes, e nesta outra vertente (a da al. a) do n.º 2 do art. 61.º, do CP), entendemos ter de fundamentalmente divergir da apreciação feita pela Sr.ª juiz recorrida, que, salvo o devido respeito, se nos afigura enfermar de um certo equívoco valorativo, explicitamente alicerçando a negação da pretensão formulada em factor que, por si só, não poderia ter esse alcance, com isso se desviando dos alinhados pela norma e do programa político-criminal a que esta dá corpo.

3.5. Recordemos que de acordo com o art. 61.º, n.º 2, al. a), do CP, importa é (I) ser fundadamente de esperar, atentas (i) as circunstâncias do caso, (ii) a vida anterior do agente e (iii) a sua personalidade e respectiva evolução durante a execução da pena, que (II) libertado conduzirá a vida de modo responsável, sem cometer crimes. O que não pode tirar-se da lei, bem se vê, é a putativa necessidade, para formulação do juízo de prognose favorável assim previsto, de uma irrestrita assunção da culpabilidade ou, reversamente, ausência de esforços subjectivos de racionalização da conduta mais ou menos injustificados – como se um condenado persistentemente inconfesso ou até convicto de ser indevida a condenação, não pudesse beneficiar da liberdade condicional mesmo quando, verificados os mais pressupostos, tudo solidamente apontasse para risco diminuto ou nulo de comissão de novos crimes. Em um Estado de direito democrático, fundado no princípio da dignidade humana (art. 1.º e 2.º, da Constituição da República), não cabe entre os objectivos de uma pena criminal a transformação do condenado em homem novo, corrigido das suas íntimas convicções quanto aos motivos da actuação respectiva e psicologicamente reconfigurado pela sanção; realisticamente, o que tem de exigir-se como índice da desejada ressocialização, e apenas isso, é a interiorização de uma objectiva adesão à norma criminal e disponibilidade pessoal para tanto, não uma íntima conversão.

3.6. Breve, um genuíno arrependimento, enquanto interiorização plena do desvalor da conduta e consequente autocrítica relativamente a ela, é coisa que, sobre ser estimável, constitui um poderoso sinal da dita disponibilidade do condenado a uma conduta futura que, com isso conforme, se paute pela responsabilidade e, assim, certamente potenciaria o juízo de prognose favorável. Porém, enquanto coisa que só poderia decorrer de uma mudança interior insusceptível de heterónoma imposição, a falta dele, ou a sua imperfeição, não pode sem mais importar privação dos benefícios da liberdade condicional enquanto poderoso instrumento de ressocialização – algo que, além de como dissemos só poder resultar de um desvio aos critérios apontados pela lei, resultaria no ilogismo de apenas se potenciar por aquela via a ressocialização de quem afinal… se mostrasse já modelarmente ressocializado, intimamente convertido e, para exteriorizá-lo, assumisse a primazia das críticas ao comportamento que lhe valeu a condenação. Por outro lado, aceitando que a falta de arrependimento ou a sua imperfeição sejam significativo sinal de alerta para a possibilidade de faltar aquela disponibilidade à objectiva sujeição à lei, e tanto mais quanto se trate de condutas violadoras de bens os mais eminentes, como a vida humana, isso não poderia só por si levar ao afastamento da hipótese de libertação condicional, de que o genuíno arrependimento e a perfeita interiorização da culpa não são requisitos.

3.7. Assim, se mesmo faltando esse arrependimento, a indisponibilidade para um comportamento socialmente responsável que com isso pudesse indiciar-se, em lugar de ser confirmada, resulta é afastada pela consideração dos factores previstos na lei, então não pode com aquela falta dar-se sustento à recusa. Em última análise, para formar ou não aquele juízo de prognose favorável, o decisivo terá sempre de ser a ponderação das circunstâncias do caso, da vida anterior do agente e da sua personalidade e respectiva evolução ao longo da execução da prisão. Ora, a despeito de alguma pobreza do enunciado de matéria fáctica da decisão recorrida, certo é que não constam antecedentes do recorrente, de sorte que, em conjugação com um percurso de desenvolvimento pessoal apesar de tudo pautado pela actividade laboral e pela regular integração familiar, os crimes, pese embora a sua evidentíssima muita gravidade, surgem como ocorrência isolada na vida dele, aliás em clima de conflitualidade de grupo e numa idade ainda jovem. Quanto à personalidade respectiva e sua evolução, o que da factualidade pode deduzir-se com segurança é que, não obstante o referido mecanismo psicológico de pseudo racionalização (relativização contextual) que a seu desfavor o tribunal recorrido tanto valorou, o recorrente assume os crimes e vem sucessivamente reiterando declaração de arrependimento, tendo aproveitado a reclusão para investir na formação e ali se dedicando ao trabalho.

3.8. É verdade que em 18/03/2022 cometeu infracção disciplinar leve, mas não o é menos que a última que antes disso praticara, numa longa séria delas desde 2008, tivera lugar já em 07/03/2017, como tudo se tira da ficha biográfica constante dos autos, e dando nota de uma progressiva estabilização comportamental, ainda melhor patenteada, de resto, na circunstância de as saídas de que por autorização jurisdicional já vem gozando desde Setembro de 2019, virem decorrendo sem notícia de vicissitude alguma. Acresce que no exterior conta com o apoio da mãe, designadamente económico, e bem assim e sobretudo da actual companheira, com quem estabeleceu o relacionamento já em 2021, passando o projecto de vida comum por viverem juntos e sendo incondicional o apoio dela, com padrão relacional entre ambos marcado pela estabilidade, afectividade e entreajuda. De resto, também as suas irmãs mostram disponibilidade para igualmente prestar-lhe apoio, e é muito forte a ligação do recorrente com a filha, já adulta e que se mantém a viver com a mãe (com quem a despeito da reclusão o relacionamento se mantivera até 2021),tudo ainda como directamente se tira do relatório social. Enfim, este panorama francamente animador é ainda reforçado, de maneira significativa, pela consideração de que, pretendendo retomar actividade laboral, o recorrente goza até já de concreta proposta de trabalho no ramo imobiliário, como mediador.

3.9. À luz de quanto antecede, atingidos quase os dois terços da pena e não sendo a própria libertação condicional já a nenhum título incompatível com as exigências de prevenção geral,  cremos ser seguro concluir, em face das circunstâncias do caso, da vida anterior do condenado, da sua personalidade e da evolução dela no decurso da parte da pena executada, pelo bom fundamento da esperança de que, uma vez colocado em período de adaptação e no respectivo regime de obrigação de permanência na habitação, ele conduza a sua vida em conformidade com as prescrições do direito penal. Não se reclama uma inalcançável certeza de ulterior comportamento penalmente lícito (exigência que eliminaria a própria possibilidade de vigência do instituto), bastando uma expectativa, que todavia há-de ser racionalmente fundada – e como sempre quando se perscruta o futuro, condição daquela racionalidade é uma projecção segundo a experiência comum a partir dos objectivos passado e presente. Fazendo-a, e assumindo que pela sua própria natureza e enquanto factos isolados na sua vida, não seria à partida razoavelmente expectável uma repetição dos crimes cometidos, afigura-se-nos poder já suficientemente confiar-se na firmeza da disposição do recorrente a uma objectiva conformação de comportamento com o dever ser jurídico-penal, isto é, que as necessidades de prevenção especial estão reduzidas ao suficiente para fazer com elas inteiramente compaginável a adaptação à libertação.

3.10. Sendo este juízo de prognose favorável o que melhor se pode sustentar nos dados disponíveis, vale dizer, estando verificados os pressupostos da libertação condicional, como definidos no art. 61.º, n.º 2, als. a) e b), do CP, em medida suficiente para pelo menos colocar o recorrente em período de adaptação, de acordo com o art. 62.º, do CP, como algo inquestionavelmente vantajoso, ao cabo já de quinze anos e meio de prisão de reclusão, para a consecução do objectivo de ressocialização que se deseja alcançar, então, e porque concedê-lo ou negá-lo não é uma faculdade discricionária do tribunal, a exercer segundo critérios de oportunidade ou em lógica premial, mas antes um poder-dever vinculado àqueles pressupostos, o que em conclusão resulta é que, com a decisão tomada, e sempre salvo o devido respeito, o tribunal recorrido incorreu afinal em desvio relativamente aos critérios legais, impondo-se agora corrigi-lo e, para o efeito, dar provimento ao recurso, determinando, nos termos conjugados daquelas normas e das dos art. 43.º, n.º 3, 64.º, n.º 1, e 52.º, n.º 1, al. a), também do CP, e para efeito de adaptação a ela, a colocação antecipada do recorrente em liberdade condicional, por referência à data prevista para o cumprimento dos dois terços da pena (até 18/12/2023), e com as inerentes obrigações, gerais e específicas dessa antecipação de libertação.

3.11. Notamos, conforme directamente se colhe ainda do relatório social, que a uma tal decisão nada obstariam as condições da habitação onde pretende residir, ali se afirmando que a mesma dispõe das necessárias para a vigilância electrónica, nem a posição da companheira do recorrente, que nessa casa com ele residirá e que o aceita. Assim, e nos termos ainda, a mais do referido, dos art. 177.º, n.º 2, al. c), 188.º, n.º 6 e 7, 183.º, e 184.º, n.º 1, do CEP, ficará o recorrente, para além dos deveres gerais e da sujeição à tutela dos serviços de reinserção social, obrigado a fixar residência na Rua ..., ..., ..., em regime de obrigação de permanência nessa habitação, de que ficam autorizadas saídas somente para actos judiciais, atendimentos de saúde e exercício de actividade profissional, e com fiscalização por meios electrónicos de controlo à distância – cabendo que na execução da adaptação nesse regime, imediatamente após a libertação do recorrente os serviços de reinserção social procedam à instalação dos ditos meios, comunicando-o ao TEP, e no termo do período de adaptação os retirem, igualmente o comunicando ao TEP, e tudo a acrescer aos relatórios no prazo que aquele TEP fixar, sem prejuízo da comunicação imediata de eventuais incumprimentos.

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do condenado AA, e nessa conformidade, revogando a sentença recorrida, determina-se:

a) Colocar o recorrente em período de adaptação à liberdade condicional, para isso antecipando-a, por referência à data prevista para se atingirem os dois terços da pena em execução, 18/12/2023, até lá mantendo-se em regime de permanência na habitação, com sujeição a vigilância por meios técnicos de controlo à distância – ficando desde já autorizadas saídas para assistência médica, comparência a actos judiciais e exercício de profissão –, e depois disso mantendo-se a liberdade condicional até ao termo respectivo, a ocorrer em 18/06/2028, data esta a partir da qual, se não for entretanto caso de revogação, se considerará extinto o excedente da pena (nos termos conjugados dos art. 61.º, n.º 5, do CP, e 177.º, n.º 2, als. a) e b), do CEP);

b) Condicionar em todo o caso a liberdade condicional e sua antecipação às seguintes regras de conduta impostas ao recorrente:
i. Fixar residência, que não poderá alterar por prazo superior a oito dias sem prévia autorização do Tribunal de Execução das Penas, na Rua ..., ..., ..., onde cumprirá aquela obrigação de permanência na habitação e que será a considerada nos autos para futuras notificações;
ii. Contactar com os técnicos da Equipa de Reinserção Social no prazo de cinco dias após a sua libertação e, aceitando a sua tutela, cumprir as ordens legais e recomendações que por eles lhe sejam transmitidas;
iii. Iniciar actividade laboral no prazo de dez dias após a libertação ou, na impossibilidade disso, inscrever-se em Centro de Emprego aproveitando as oportunidades que lhe sejam facultadas;
iv. Não praticar crimes ou quaisquer outros actos ilícitos, designadamente não ter armas em sua posse, não acompanhar pessoas relacionadas com a prática de crimes, não frequentar lugares relacionados com a prática de actividades ilícitas e/ou que, de algum modo, possam contribuir para neutralizar/impedir os efeitos da ressocialização que a liberdade condicional visa alcançar.

Notifique, e comunique de imediato ao Tribunal de Execução de Penas, que no caso de não interessar a prisão do recluso à ordem de outros processos, emitirá os pertinentes mandados de libertação e fará depois e oportunamente as pertinentes comunicações aos serviços de reinserção social. 

Sem custas (art. 513º, n.º 1, a contrario, do CPP)


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Coimbra, 12 de Julho de 2023
Pedro Lima (relator)

José Eduardo Martins (1.º adjunto)

Ana Carolina Cardoso (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente