Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1624/15.7T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ARRESTO
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
BENS
SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE
DÍVIDA
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – INST. CENTRAL – SEC. TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 146º, 160º, 162º, 163º E 164º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS; 391º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: I – Resulta do disposto no artº 391º, nº 1 do nCPC que ‘o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor’.
II – Havendo um averbamento registral de dissolução e encerramento da liquidação de uma sociedade, nos termos do artº 160º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais essa sociedade extinguiu-se.

III – A dissolução de uma sociedade é apenas a modificação (e não a extinção) da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, fase esta em que a sociedade entra em liquidação, mas mantém a personalidade jurídica durante esta fase – artº 146º, nºs 1 e 2 do C.S.C..

IV – Com a extinção de uma sociedade deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem – artºs 162º, 163º e 164º CSC.

V – Assim, no tocante às ações pendentes em que a sociedade seja parte, elas continuam após a extinção desta, que se considera substituída – sem que haja lugar a suspensão da instância, uma vez que não é necessária habilitação – pela generalidade dos sócios, representada pelos liquidatários, não havendo lugar à absolvição da instância.

VI – Os liquidatários, que já funcionavam no processo como representantes da própria sociedade, passam a ser considerados como representantes legais da generalidade (ou seja da totalidade) dos sócios.

VII – Ao cumprimento das obrigações societárias apenas está afecto o volume do património social distruído na partilha, respondendo cada sócio apenas até ao montante do que nela houver recebido – artº 163º, nº 1 do C.S.C.

Decisão Texto Integral:




                        Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
                                  

                        Por apenso à acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que move contra A..., Ldª, veio B... instaurar o presente procedimento cautelar de arresto, pedindo o arresto dos bens da requerida, que identifica.
                        Realizou-se audiência final, sem contraditório da requerida, após o que foi proferida decisão cuja parte dispositiva transcrevemos:

                        “Em face do exposto decide o Tribunal:

                        I.

                        Na procedência do pedido formulado por B... , decretar o arresto dos seguintes bens, pertencentes à requerida « A... , Lda», para garantia de um crédito indiciário de € 18 058,60 (dezoito mil cinquenta e oito euros sessenta cêntimos):

                        i. Recheio do estabelecimento comercial, composto por artigos de vestuário de homens e senhoras;

                        ii. Mobiliário existente, composto por balcões, cacifos, prateleiras, varões, manequins e entre outros;

                        iii. Sistema informático, computador e impressoras adaptadas à atividade comercial;

                        iv. Veículo automóvel, marca e modelo Ford Mondeo, matrícula (...) GS;

                        v. Saldos das contas de depósito à ordem ou a prazo existentes em instituições bancárias, com agências ou filiais situadas no município de Trancoso.

                                                                       II.

                        Condenar o requerente B... no pagamento das custas do presente procedimento cautelar, sem embargo de serem atendidas, a final, na ação respetiva (artigo 539º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil).

                        Registe e notifique a requerente com a advertência do disposto nos artigos 373º, nº 1, alíneas b) a e), e 395º do Código de Processo Civil.

                        Apense o presente procedimento cautelar, bem como a ação com o nº (...) à ação de processo comum nº (...).

                        Diligencie pelo arresto dos bens, tendo em consideração o limite do crédito a garantir. Após, cumpra o disposto no artigo 366º, nº 6, do Código de Processo Civil”.
                        A fls. 55, consta o auto de arresto do saldo da conta bancária da requerida na Caixa Geral de Depósitos.
                         A fls. 62 foi proferido o seguinte despacho:

                        “No procedimento cautelar de arresto nº 1704/15.9T8GRD consta certidão da matrícula da sociedade requerida, que atesta a dissolução e encerramento da liquidação.

                        Junte aos presentes autos cópia da dita certidão, bem como da ata que contém a deliberação de dissolução, e notifique o requerente para, em 10 dias, se pronunciar sobre os efeitos para o presente processo”.

                        Notificado para se pronunciar, veio o requerente defender a substituição da sociedade requerida pelos sócios e liquidatários C... e D... , nos termos do artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais.
                        Tendo o Sr. Juiz proferido despacho, que termina da seguinte forma:

                        “Pelo exposto decide o Tribunal:

                                                                       I.

                        Indeferir o pedido de substituição da sociedade requerida « A... , Lda» pelos sócios e liquidatários C... e D... .

                                                                       II.

                        Absolver a sociedade requerida « A... , Lda» da instância, por falta de personalidade judiciária.

                                                                       III.

                        Condenar o requerente B... no pagamento das  custas do presente procedimento cautelar.
                                                                       x
                        Inconformado, veio o requerente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
[…]

                        Não foram apresentadas contra-alegações.

                        O Exmº PGA entendeu não dever emitir parecer, por considerar que a questão em apreço não se inclui no âmbito do disposto no artº 87º, nº 3, do CPT.

                                                                       x
                        Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões,  temos, como única questão em discussão, se deve ser determinada a prossecução do procedimento cautelar de arresto contra os sócios da requerida extinta.
                                                        x
                   Como circunstancialismo relevante temos o descrito no relatório deste acórdão.

                                                                       x

                        - o direito:

                        Resulta do disposto no artº 391º, nº1, do  CPC que o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.

                        O fundamento desta norma de direito adjectivo radica nos artigos 619º e 601º do Cod. Civil, dos quais resulta que este receio de perda implica que se alegue que os bens cujo arresto se requer, além de estarem em vias de ocultação ou dissipação, sejam essenciais à efectivação da garantia, ou seja, deve ser feita a alegação no sentido de que são os únicos bens que existem no património do requerido em condições de poder garantir a satisfação do crédito.

                        No caso dos autos, o arresto veio a ser decretado, por decisão transitada em julgado, que incidiu sobre os bens supra identificados.

                        Acontece que, após a instauração do presente procedimento cautelar de arresto (e da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento), a sociedade – requerida foi dissolvida, com o encerramento da liquidação, facto já registado.

                        O que determinou que no despacho recorrido se decidisse absolver a sociedade requerida da instância, por falta de personalidade judiciária, e indeferir o pedido de substituição da sociedade requerida  pelos sócios e liquidatários - C... e D... .

           Para tanto alinhou-se em tal despacho a seguinte fundamentação, na parte que releva:

                        “Considerando a previsão do artigo 391º do Código de Processo Civil e o que se expôs supra, o requerente do arresto teria de demonstrar a qualidade de credor, a existência de um justo receio da perda da garantia patrimonial e que os sócios receberam na partilha determinados bens ou certo montante.

                        Ora, tendo-se realizado audiência final e tendo sido proferida a competente decisão final, a prova que foi produzida incidiu sobre a verificação daqueles dois primeiros pressupostos em relação à sociedade e não em relação aos sócios.

                        Para eventual prosseguimento do processo, apenas a prova da qualidade de credor é suscetível de aproveitamento, dado que a extinção da sociedade requerida não extinguiu a obrigação.

                        Porém, inexiste prova do justo receio de perda da garantia patrimonial em relação aos sócios. Do mesmo modo que inexiste prova do recebimento por estes de determinados bens ou certo montante em resultado da partilha da sociedade.

                        A falta de verificação destes pressupostos obsta ao prosseguimento da instância em relação aos sócios, pois estes veriam os seus bens ser arrestados sem que houvesse sido proferida decisão a julgar verificados os pressupostos de procedência do arresto no que lhes diz respeito. A prova produzida no procedimento cautelar de arresto tem um cunho pessoal, sendo unicamente aplicável à entidade contra a qual foi instaurado o procedimento e relativamente à qual foi proferida decisão.

                        Deste modo, o presente procedimento cautelar não poderá prosseguir e, dada a extinção da sociedade requerida, com a inerente perda de personalidade jurídica e judiciária, impõe-se a sua absolvição da instância [artigos 11º, 278º, nº 1, alínea c), 576º, nos 1 e 2, e 577º, alínea c), do Código de Processo Civil]”.   

           Este entendimento não merece a nossa concordância.

                        Dúvidas não há de que face ao averbamento registral da dissolução e encerramento da liquidação da sociedade requerida e ao disposto no artº 160, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais- CSC a sociedade se extinguiu.

           Por outro lado, e contrariamente ao que inculca o entendimento adoptado no despacho recorrido, estamos perante uma questão de natureza processual e não substantiva, sendo que transitou em julgado a decisão que decertou o arresto.

                        Na providência cautelar de arresto o que é essencial é que o requerente alegue e prove factos que, ainda que em termos de mera probabilidade e verosimilhança, levem a concluir pela existência de um direito de crédito seu sobre o requerido e que este já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração relativamente ao seu património, os quais, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita, criando, nessa medida um justo receio, de que o mesmo se prepara para subtrair o seu património à acção dos seus credores. É o que decorre do disposto nos artigos 619º, nº 1, do Cod. Civil, e 391º, nº 1, do CPC. No caso, a sentença considerou verificados esses requisitos, que não podem sofrer alteração por se terem verificado as mencionadas  dissolução e encerramento da liquidação.

                        A dissolução de uma sociedade é a modificação (e não a extinção) da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade.

                        Com efeito, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mas mantém a personalidade jurídica durante esta – artº 146º, nºs 1 e 2, do CSC.

                        Este ultimo número é bem claro ao estabelecer que a “sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas”.

                        As finalidades visadas com a liquidação são: quanto ao sócios, evitar que as relações sociais quer activas, quer passivas, passem a constituir relações pessoais dos sócios, ou em contitularidade ou individualmente; no que respeita aos credores, obter a satisfação dos seus créditos enquanto permanece o ente juridicamente devedor – cfr. Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987,pág. 216.

                        E dispõe o artº 162º do CSC que:

                        “1. As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5.

                        2. A instância não se suspende nem é necessária habilitação”.

                        A dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção são realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos. Na verdade, uma sociedade dissolvida e em liquidação não está extinta: a extinção só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação (artº 160º, nº 2, do CSC).

                        Com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos artºs 162º, 163º e 164º do CSC.

                        Assim, no tocante às acções pendentes em que a sociedade seja parte, elas continuam após a extinção desta, que se considera substituída – sem que haja lugar a suspensão da instância, uma vez que não é necessária habilitação – pela generalidade dos sócios, representada pelos liquidatários, não havendo lugar à absolvição da instância.

                       O nº 1 do artº 163º do CSC pressupõe que a liquidação esteja encerrada e extinta a sociedade – só neste caso é que se verifica a substituição da sociedade pela generalidade dos sócios.

          A sociedade considera-se substituída pela generalidade dos sócios: são estes que passam a ser parte na lide, representados pelos liquidatários. Os liquidatários, que já funcionavam no processo como representantes da própria sociedade, passam a ser considerados como representantes legais da generalidade (ou seja, da totalidade) dos sócios. A lei comete-lhes o encargo de defender interesses alheios, em continuação de uma função que, relativamente à sociedade, já vinham exercendo. - cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 17/2/2011, in www.dgsi.pt.

            As disposições dos artºs 160º, 162º e 163º, malgrado a sua inserção no CSC, são disposições de carácter nitidamente adjectivo ou processual e seu alcance está salvaguardado no artº 269º, nº1, alínea a), do CPC, onde se estatui que a instância suspende-se ”se se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 162 do Código das Sociedades Comerciais.”

                        Vindo a ser oportunamente proposta a acção declarativa sequente ao procedimento cautelar, o início do litígio judicial  tem de se reportar à data da instauração deste (artº 373º, nº 1, do CPC e 32º, nº 1, do Código Civil)- cfr. Ac.  da Rel. Lisboa de  21/11/2012, in www.dgsi.pt

                        E ao cumprimento obrigações societárias apenas está afecto o volume do património social distribuído na partilha, respondendo cada sócio apenas até ao montante do que nela houver recebido – artº 163º, nº 1, citado.

            Nas acções pendentes contra a sociedade, à data da sua extinção, opera uma sucessão subjectiva, sem suspensão da instância e nem liquidação, considerando-se ela substituída pelos ex-sócios (artigo 162º do CSC);
                        Procede, como tal,  a apelação, embora por fundamentos assaz diversos.
                                                                       x

                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que o procedimento de arresto prossiga, sem necessidade de habilitação, com a substituição da sociedade – requerida extinta pelos seus sócios e liquidatários.

                                                                       Coimbra, 19/05/2016

                                                          

                                                                        (Ramalho Pinto)

                                                       

                                                           (Azevedo Mendes)

                                                          

                                                             (Joaquim José Felizardo Paiva)