Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
220/11.2GBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
CRIME CONTRA A PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DAS ESPÉCIES CINEGÉTICAS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 125.º, 128.º, 355.º, 356.º, N.º 7, E 358.º, N.ºS 1 E 3, DO CPP; ARTIGOS 2.º, AL. C), 6.º, N.º 1, ALÍNEA C), 26.º, N.º 1, 30.º, N.º 1, DA LEI N.º 173/99, DE 21 DE SETEMBRO, ALTERADA PELO DL N.º 202/2004, DE 18 DE AGOSTO E PELO DL N.º 2/2011, DE 6 DE JANEIRO; ARTIGOS 78.º E SEGUINTES DO REGULAMENTO DA CAÇA (DL N.º 202/2004, DE 18 DE AGOSTO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DL N.º 2/2011)
Sumário: I - Tendo o arguido relatado espontaneamente a certa testemunha, órgão de polícia criminal, antes da existência de qualquer processo e, consequentemente, antes da sua constituição na dita qualidade, terem sido por si colocados laços visando a captura de espécies cinegéticas, a valoração positiva do depoimento da referida testemunha, que relatou, em audiência de julgamento, o que ouviu o arguido afirmar, não viola o disposto nos artigos 356.º e 357.º do CPP.

II - Neste quadro, tão pouco foi preterida a disposição do artigo 129.º do CPP, porquanto as declarações prestadas pela testemunha não configuram algo que ela tenha ouvido dizer a terceiros; antes traduzem aquilo que a mesma presenciou e as afirmações proferidas pelo arguido.

III - Mostrando-se o arguido acusado da prática, em autoria material, de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º 1, al. c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21-09, alterada pelo DL n.º 202/2004, de 18-09 e pelo DL n.º 2/2011, de 06-01, a referência, na sentença, em sede de fundamentação, para além daquelas, às disposições normativas contidas na alínea c) do n.º 2 da referida Lei n.º 173/99 e no artigo 78.º e ss. do Regulamento da Caça (DL n.º 202/2004, de 18-08, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 2/2011), não comporta a consideração de um diferente crime, mas apenas a explicitação de conceitos que, tendo relevância na definição do comportamento do arguido, em nada alteram a qualificação dos factos. Assim, não é aplicável ao caso a previsão do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

IV - O art. 6.º, n.º 1, al. c), da Lei 173/99, não se restringe ao efectivo abate de espécies cinegéticas; inclui também, inter alia, o exercício de caça fora dos respectivos períodos ou por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados.

V - A utilização de processos e meios não autorizados ou indevidamente autorizados configura, por si só, a consumação do crime enunciado no art. 30.º do mencionado diploma, não sendo, para tanto, exigida a efectiva captura ou abate de qualquer espécie cinegética.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)

Relatório

1.            No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal singular, n.º 220/11.2GBTND, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, foi julgado o arguido A..., casado, avicultor, nascido em 16 de Dezembro de 1950, na freguesia (...), concelho de Tondela, filho de (...) e de (...), com domicílio no (...), Santiago de Besteiros, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelos artigos 6.º, n.º 1, alínea c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, alterada pelo Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto e pelo Decreto-lei n.º 2/2011, de 6 de Janeiro.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls. 211 e seguintes) onde se conclui nos seguintes termos:

«Pelo exposto, julgo procedente por provada a acusação pública, e, em consequência, decide-se:

a) Condeno o arguido A..., como autor material de um crime de, na pena 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 o que perfaz o montante global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros).

b) Vai ainda o arguido condenado a pagar as custas do processo, com 3 UC de taxa de justiça.

c) Declaro perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos.»

2.1 O arguido, não se conformando com esta decisão, veio interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1ª.- Da prova produzida em sede de Audiência de discussão e Julgamento não poderiam ter sido dados como provados os factos 1.º, a parte final do 4.º, 6.º a 8.º, porquanto, o Tribunal, sem atender à prova aí produzida, limitou-se a dar como provado os factos constantes da acusação, sem atender às concretas provas – testemunhal – que impõem decisão diversa, como vai explanado nas conclusões que se seguem, havendo – erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º n.º 2 a) e c) do Código de Processo Penal.

2ª.- Na verdade, da prova produzida em Audiência, nomeadamente do depoimento transcrito (pág. 5 e 11 deste recurso) do Agente D..., e conforme consta quer da acusação, quer dos factos provados – ponto 5, existe um facto sobre o qual não há dúvidas, ou seja, que foi o arguido quem por sua iniciativa se dirigiu à GNR, porém, existe contradição entre os dois agentes, porquanto, pelo D... é referido ter o arguido admitido ser o autor da colocação dos laços na sua propriedade, enquanto que o seu colega E... , que foi ao local, refere que o arguido não assumiu tal autoria.

3ª.- Assim, não poderá o depoimento do Agente D... ser atendido para a formação da convicção do Tribunal, atendendo à Jurisprudência maioritária (Acórdão da Relação de Évora de 2 de Dezembro de 2003, o Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2004, os Acórdãos da Relação do Porto de 7 de Março de 2007 e de 19 de Setembro de 2008 e o Acórdão da Relação de Guimarães de 4 de Junho de 2007, também retirados de www.dqsi.pt.) não é admissível, em todos os casos, a valoração de declarações prestadas pelo arguido perante órgãos de polícia criminal, nos termos dos Arts. 356º, n.º 7 e 357º do Código de Processo Penal, mesmo que antes da sua constituição como arguido ou do início do inquérito.

4ª.- Quando assim não se entenda, considera a defesa que a testemunha D... não poderia depor sobre as conversas que teve com o arguido, ainda que este fosse, na altura, uma mera testemunha, daí que, no decurso da Audiência vários requerimentos foram ditados para a acta, porém sempre improcedentes, muito embora não devessem ser admitidas tais declarações, não só porque as mesmas não configuram um relato de diligências de investigação, mas antes um depoimento indirecto, o qual, diga-se, não foi confirmado pelo pretenso transmitente o Sr. A..., ora recorrente, que na altura era testemunha.

5ª.- Além de que as declarações do Agente D... equivalem à leitura das declarações das testemunhas, em sede de audiência, que não podem ser lidas, no caso de oposição do arguido, o que aconteceu, devendo por isso, considerar-se tal depoimento em violação do artigo 356 n.º 2 e n.º 7 do CPP, já que a aplicação desta norma não se deverá cingir apenas às declarações reduzidas a escrito e assinadas pelo declarante, mas também àquelas que são transmitidas oralmente, como, no caso dos autos, aconteceu com as pretensas declarações que aquela testemunha diz ter recebido do recorrente.

6ª.- E também quando assim não se entenda, sempre o depoimento do Agente D..., ao relatar factos que diz ter ouvido do arguido, deveria ser analisado com as demais provas, designadamente com a contradição manifestada pelo seu colega E..., que não apenas e só o depoimento daquele Agente.

7ª.- Pois o Agente E... (transcrições pág. 8 e 9 deste recurso), refere que o arguido negou diretamente para si ser o autor da colocação dos laços, e nunca ouviu que tivesse dito algo em contrário para o seu colega, pelo que não deveria o Tribunal considerar credível o depoimento do primeiro Agente inquirido, não só pela postura e versão do arguido, mas também por não ser aceitável, à luz da experiência, que alguém altere o seu depoimento em apenas minutos de forma tão convicta.

8ª.- Na sentença, consta da motivação dos factos provados, que a testemunha “ E..., casado, agente da GNR presta serviço em Campo de Besteiros, o qual prestou depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Referiu que no dia em que arguido foi ao posto comunicar que tinha montado os uns laços e que ficou lá um cão preso.” Ora, da transcrição (pág. 8 e 9 deste recurso) do depoimento desta testemunha, verifica-se que o mesmo refere que o arguido nunca referiu para si que tivesse sido o autor da colocação dos laços, pelo que o Tribunal, além de não ter feito alusão a tal facto, motivou a sua convicção com base num depoimento indirecto, já que tal testemunha não identificou a pessoa a quem ouviu.

9ª.- E mesmo que alicerçados na posição assumida no Tribunal da Primeira Instância, não poderá, no nosso entender e como atrás ficou exposto, ser admitido o depoimento da testemunha que diz que o arguido assumiu a autoria dos factos ( D...), quando a mesma é negada para o colega e negada pelo arguido em sede de Audiência, o qual voluntariamente se deslocou ao Posto da GNR para que a situação fosse solucionada, (transcrição pág. 5, 10 a 12 deste recurso) e ter apresentado uma versão credível, como se vem demonstrando.

10ª.- Afirma o Tribunal que: “Ora, conjugados tais depoimentos com as regras da experiência diremos que, trabalhando o arguido como disse diariamente na Quinta onde disse ter o “epicentro da sua vida” (embora em concreto tivesse colocado esse epicentro num outro ponto da Quinta que não a estrema onde foram encontrados os laços), não seria crível que se não tivesse sido ele a colocar os laços no local não se tivesse já apercebido dos mesmos.” Esta conclusão não está de todo adequada às regras de experiência, porquanto, se a colocação dos laços tivesse ocorrido num apartamento, talvez este raciocínio tivesse aplicação, porem, estamos perante uma Quinta, que tal como consta desta conclusão e das declarações do arguido, da testemunha B..., e da testemunha C..., (transcrições pág. 13 a 23, 29 e 30 deste recurso) é de grande dimensão e o epicentro da sua vida ocorre a uma distância longe do local onde foram colocados os laços.

11ª.- Refere a decisão recorrida que: “Diremos que a versão do arguido de que não pôs laços nenhuns, não logrou convencer o Tribunal. Tanto mais que se não tivesse sido o mesmo a colocar os laços, não se percebe porque o admitiria quando chegou a GNR a participar a ocorrência, nem se percebe como é que sendo ele o proprietário da quinta em cuja rede se mostravam colocados os laços e com os alegados riscos das suas ovelhas e demais animais não se tenha preocupado em apurar quem o teria feito ou até que se tivesse mostrado surpreendido com toda essa situação. Pois, como bem referiu o agente E..., não houve da parte do arguido qualquer reacção de surpresa, pelo contrário, a reacção foi de total colaboração para remediar a situação.” Desta conclusão também deveria o Tribunal questionar-se do porquê do arguido ter logo que chegou ao Posto confessado ser o autor da colocação dos laços perante o Agente D..., e minutos depois ter negado ao agente E.... (É que na verdade tal postura não se compagina com a atitude do arguido que vai ao posto dar conta de um facto, pedindo auxílio às entidades competentes);

12ª.- Afinal, da experiência e do comportamento humano quem é que se desloca perante as Autoridades admitindo o cometimento de um crime para um dos Agentes e minutos depois nega-o para outro Agente, mas a par deste comportamento pede auxílio a estes e é o mesmo, que posteriormente e sem qualquer auxílio mas tão só na presença destes que solta o animal, o que facilmente poderia ter feito logo que se apercebeu que o cão estava preso aos laços.

13ª.- Mas mais, afinal é sobre o arguido que recai a incumbência de averiguar quem foram os autores do crime, ou seja, quem terá entrado na sua propriedade e colocado os laços? Mesmo, depois de ter dado conhecimento à Entidade Competente para o efeito? Parece-nos que não. Pois, arguido não tem o ónus de imputar os factos a terceiros para se desresponsabilizar, daí a existência de uma fase de inquérito para se apurar quem foram os agentes do crime, e nenhuma diligência quer nessa fase, quer na fase de Julgamento foi tomada, já que se partiu sempre da premissa que o depoimento do Agente D... foi credível.

14ª.- Da sentença consta ainda e por forma a não dar credibilidade ao depoimento do arguido:

“…ou até que se tivesse mostrado surpreendido com toda essa situação. Pois, como bem referiu o agente E..., não houve da parte do arguido qualquer reacção de surpresa, pelo contrário, a reacção foi de total colaboração para remediar a situação”. A primeira reacção do arguido, conforme refere a testemunha D... (transcrito pág. 26 deste recurso) foi de exaltação. A ser assim, como pode então o Tribunal considerar que o mesmo não ficou surpreendido, só porque o Agente E... referiu que no local o arguido não demonstrou tal surpresa. Será que o Tribunal pretendia que a surpresa e exaltação do arguido se mantivesse até à chegada ao local. Para além disso é ao Tribunal que se impõe uma análise crítica a fim de formar a sua convicção, estando tal análise arredada às testemunhas por imperativo legal, conforme dispõe o artigo 130 n.º 2 do CPP, não incumbindo ao Agente E... tecer a sua convicção sobre a surpresa do arguido, tanto mais que não o conhece.

15ª. – O Tribunal entendeu que a versão do arguido não era credível, porém, a única testemunha (Agente E...) a par do arguido que visualizou a forma e o modo como estavam colocados os laços, admitiu que também os animais do arguido lá poderiam cair, (transcrição pág. 27 e 28) referindo, para tanto, que no local eram visíveis vestígios de terem andado animais no local, o que reforça a veracidade do depoimento do arguido a que o Tribunal deveria ter dado credibilidade, sob pena de apenas uma parte do depoimento desta testemunha formar a convicção do Tribunal e a outra não formar tal convicção.

16ª.- O arguido colaborou com as Autoridades como ficou exposto no ponto IV (pág. 31 a 36 deste recurso), onde consta parte do depoimento do Comandante do posto da GNR ( D...) (pág. 31 e 32) e da testemunha ( E...) (pág. 33 a 34) resultando ser o arguido quem pede o auxílio das entidades competentes para se deslocarem ao local a fim de solucionar o problema. Mas mais, é ainda o arguido quem procura o dono do animal, enquanto os Srs. agentes se mantêm no local. É também o arguido quem arranja os objectos para soltar o cão em tempo útil, e quem o acaba por soltar evitando um maior sofrimento para o animal ou até mesmo a sua morte.

17ª.- Um cão é considerado uma espécie não cinegética, sendo que do depoimento da testemunha F... (transcrito na pág. 35 deste recurso) verificamos que o cão preso nos referidos laços tem dono, pelo que a tipificação legal que protege o pretenso acto que se está a imputar ao arguido seria apenas o crime de dano, cujo direito de queixa já estaria extinto por aquele não ter desejado procedimento criminal.

18ª.- Porém, o Tribunal condenou o arguido não por ter sido capturado um cão (que como bem se refere na sentença é uma espécie não cinegética), mas sim porque exerceu um acto venatório nos termos do artigo 2º al. c) da Lei de Bases, “pois ao colocar os laços agiu com o intuito de capturar”. Artigo 2 c) da Lei 173/99 de 21/09 e 78 e seguintes do Regulamento da Caça, previsto pelo DL 202/2004 de 18 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo DL 2/2011 de 06/01.”

19ª.- Ora, o arguido vinha acusado por ter pretensamente praticado factos que se integravam no estatuído nos artigos 6º, n.º 1 c), 26 n.º 1 e 30 n.º 1 da Lei 173/99 de 21/09, alterado pelo DL 202/2004 de 18/08 e DL 2/2011 de 06/01.

20ª.- O artigo 2 da Lei 173/99 de 21/09, dá-nos várias definições, como se pode ler na sua epígrafe, constando da alínea c) Exercício da caça ou acto venatório – todos os actos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição; daí que, na sentença está-se a punir com base numa definição, que quanto muito poderia colocar-se a sua apreciação no elemento subjectivo do ilícito, o que não acontece por se estar a punir uma intenção, conforme consta da sentença “pois ao colocar os laços agiu com o intuito de capturar”. As intenções não são puníveis, estas prendem-se com o elemento subjectivo, já que para a existência de um ilícito exige-se também o preenchimento do tipo objectivo, que no caso está previsto no artigo 6 alínea c) da mesma Lei e a sua moldura penal no artigo 30.

21º. – O Tribunal ao condenar em preceitos legais que vão além dos constantes da acusação, pronunciou-se por factos que importam uma alteração da qualificação jurídica dos factos, tendo proferido decisão sem dar cumprimento ao estatuído no artigo termos 358 n.º 3 e n.º 1 do CPP, sendo assim, tal decisão nula nos termos do art. 379 n.º 1 c) do CPP.

22ª.- Mas mais, em sede de Audiência de discussão e julgamento não foi feita uma única pergunta se no local onde estavam colocados os laços, existe “qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural susceptíveis de serem capturadas, vivas ou mortas” conforme exige o artigo 2º da citada Lei. Quer isto dizer que da prova produzida em sede de Julgamento não foi possível apurar se existe qualquer espécie que se encontre em liberdade natural no local onde estavam colocados os laços.

23ª.- Assim, não poderia o Tribunal, na falta de tal prova essencial, cujo preenchimento do requisito objectivo a lei exige, imputar o ilícito pelo qual o arguido vem condenado, “artigo 6 nº.1 c) “Caçar espécies cinegéticas que não constem das listas de espécies que podem ser objecto de caça ou fora dos respectivos períodos de caça, das jornadas de caça e em dias em que a caça não seja permitida ou por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados”;

24ª.- Para o preenchimento deste tipo de ilícito teria que se provar:

1º.- Qual o móbil com que o agente actua, ou seja, se pretende ou não capturar animais; (elemento subjectivo)

2º.- Se o meio utilizado é idóneo a capturar; (elemento objectivo)

3º.- Se existem espécies, vivas ou mortas, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, susceptíveis de serem capturadas. (elemento objectivo) artigo 6 c).

25ª.- Assim, para que se verificasse a consumação do crime pelo qual vem o recorrente condenado, tinha primeiro que se provar que foi o arguido quem colocou os laços e ter este caçado uma espécie cinegética, já que este tipo não se basta com a mera intenção, conforme dispõe o artigo 6 alínea c) Lei 173/99 de 21-09

26ª.- Não menos é verdade que na propriedade do arguido também não existem espécies cinegéticas ou não cinegéticas que se encontrem em liberdade. Ou será que existem? Ora, não tendo nenhuma das testemunhas em sede de Audiência referido se há ou não qualquer espécie susceptível de ser capturada, porque o Ministério Público (titular do ónus da prova da matéria constante da acusação) não entendeu averiguar/questionar, ou até apurar se a Quintinha propriedade do arguido era rodeado por pinhal, por casas de habitação ou se está no centro da cidade, pelo que não estando assim provado qual a caça ou espécie susceptível de ser caçada, não deveria o Tribunal punir sem estar elucidado sobre tais factos.

27ª.- Se andar um Homem com uma arma numa zona onde não seja permitida a caça, até há prática dos actos de execução não é possível sequer falar-se em tentativa porque o artigo 6 nº.1 c), que nos dá o tipo objectivo de crime, exige a caça efectiva.

28ª.- No ponto 3 dos factos provados consta que o arguido colocou os laços (armadilhas) em locais estratégicos com o intuito de apanhar os animais que entrassem na sua propriedade e “espantavam” as suas ovelhas que se encontravam a pastar.

Mas que outros animais? E que animais são estes que espantam as ovelhas? (certamente que não é o cão, tanto mais que este animal é usado para as guiar).

Sem prescindir:

29ª.- O animal preso nos laços foi um cão de raça boxer, que tem dono, conforme documentos juntos nos autos e declarações do proprietário F... (transcrições pág. 35 deste recurso).

30ª.- Tendo sido o arguido a chamar a GNR para ir ao local, por forma a retirar o animal, e aí chegados foi o mesmo quem o libertou (transcrições pág. 8 a 9, 14, 31 a 34 deste recurso), verifica-se a desistência relevante da tentativa nos termos do artigo 24 do CP. Tanto mais que se não fosse a actuação do arguido, hoje o animal poderia estar morto, conforme referiu o agente D... que nestes casos dependeria sempre da agressividade do animal (transcrição pág. 40).

31ª.- A tentativa de cometimento de um crime, subsumível à previsão dos art.ºs 22.º e 23.º do C. Penal, pode, não obstante, deixar de ser punível. Basta que o agente: abandone voluntária e espontaneamente a execução do crime isto é, omita a prática de mais actos de execução (desistência voluntária) − art. 24.º, n.º 1, 1.ª parte, independentemente das razões (sejam nobres ou até ilegais) que o levaram a desistir.

 32ª.- A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 127, 129, 356 nº.2 e nº.7, 358 nº.3 e nº.1, 379 nº.1 c), 374 nº.2, 410 nº.2 a) e c) todos do CPP, 24 do CP e artigo 2º al. c), 6 nº.1 c), 26 nº.1 e 30 nº.1 da Lei 173/99 de 21/09 e 78 e seguintes do Regulamento da Caça, previsto pelo DL 202/2004 de 18 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo DL 2/2011 de 06/01.

Termina afirmando que deve dar-se provimento ao recurso, julgando-se improcedente a acusação e substituindo-se a decisão recorrida por outra que absolva o arguido.

2.2 O Ministério Público, em 1.ª instância, apresentou resposta à motivação.

Aí conclui afirmando a sua “convicção de que o tribunal recorrido fez conseguida Justiça, decantando exemplarmente os factos pelo crivo infungível da imediação e da oralidade, subsumindo-os depois, sem reparo, ao direito aplicável, pelo que se propugna a um só e mesmo tempo pelo não provimento do recurso e pela confirmação da douta sentença recorrida”.

2.3 Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público teve vista nos autos, emitindo parecer onde defende que a decisão recorrida não enferma da nulidade apontada, encontra-se bem julgada, devendo ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

2.4 O arguido, notificado nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Penal, veio responder, reiterando os fundamentos antes enunciados.

3.            Colhidos os vistos e remetidos os autos a conferência, cumpre apreciar a matéria que é objecto de recurso e decidir.

Nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a motivação do recurso enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido. O âmbito do recurso define-se por estas conclusões, sem prejuízo da matéria que é de conhecimento oficioso, nomeadamente as questões que estão previstas nos artigos 379.º e 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

O objecto do presente recurso consubstancia-se, essencialmente, na apreciação da seguinte questão.

§ A alegada existência de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º n.º 2 a) e c) do Código de Processo Penal e erro de julgamento perante a prova produzida, por alegada violação do disposto nos artigos 127.º e 129.º do Código de Processo Penal.

§ Os pressupostos do crime imputado ao arguido e a alegada nulidade decorrente de violação do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

§ A tentativa e a desistência relevante.

II)

Fundamentação

1.            Factos relevantes.

1.1          Com interesse para a decisão a proferir, importa considerar que, na sentença recorrida e depois de discutida a causa em audiência de julgamento, julgaram-se provados os seguintes factos:

«Instruída e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1 – Em data não concretamente apurada, mas certamente antes das 10 horas do dia 3 de Novembro de 2011, o arguido A..., colocou dois laços (armadilhas) em aço presos na base do ferro que suporta a rede que delimita a sua propriedade sita no Lugar da Quintinha, em Santiago de Besteiros, área desta comarca.

2 – No interior da referida propriedade colocou mais um laço em aço montado estrategicamente com o arco firme em dois paus espetados e atado a uma nogueira e, ainda colocou outro laço em aço entre dois portões deixados entreabertos.

3 – O arguido colocou os laços (armadilhas) em locais estratégicos com o intuito de apanhar os animais que entrassem na sua propriedade e “espantavam” as suas ovelhas que se encontravam a pastar.

4 – No dia 3 de Novembro de 2011, pelas 10 horas, o arguido dirigiu-se à referida propriedade e encontrou um canídeo preso num dos laços em corda que tinha colocado junto à vedação em rede.

5 – De seguida, o arguido dirigiu-se à GNR dando conta do sucedido, tendo os elementos da Guarda ido ao local, fazendo a apreensão dos referidos laços.

6 – A colocação dos laços (armadilhas) pelo arguido, tinha por finalidade caçar espécies cinegéticas, o que configura acto venatório.

7 – O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, colocando os laços em corda e em aço (armadilhas) em locais estratégicos, como forma de capturar espécies cinegéticas que bem sabia não lhe ser permitido, ainda assim não se inibiu de o fazer.

8 – Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9 - O arguido é avicultor, auferindo mensalmente cerca de € 800,00 por mês, conjuntamente com a esposa; vive em casa própria; tem o 4º ano de escolaridade.

10 – Do Certificado de Registo Criminal do arguido de fls. 96 nada consta.

FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem factos não provados.

III – MOTIVAÇÃO

a) Dos factos provados:

Para dar como provados os factos atrás expostos, a convicção do Tribunal baseou-se na prova produzida em audiência de julgamento, designadamente:

Nas declarações de D..., casado, agente GNR, em Campo de Besteiros, o qual prestou depoimento de forma clara e coerente, motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Disse que o arguido foi ao posto por sua própria iniciativa, a dar conta que estaria um cão preso num laço colocado por ele, junto da propriedade dele. O arguido disse que o cão era pertença de um juiz e pretendia que resolvessem o problema. Disse que o arguido lhe referiu ali a existência de ovelhas. Disse que na sequência de tal informação lavrou o auto de notícia de fls. 4 a 6 dos autos, cujo teor confirmou e enviou uma patrulha ao local com o arguido.

Determinante para formar a convicção do Tribunal foi ainda o depoimento prestado por E..., casado, agente da GNR presta serviço em Campo de Besteiros, o qual prestou depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Referiu que no dia em que o arguido foi ao posto comunicar que tinha montados uns laços e que ficou lá um cão preso foi-lhe ordenado pelo comandante do posto que fosse ao local, tendo ali constatado o cão preso num laço e diversos laços. Disse que o arguido veio com um alicate e um martelo prontamente a desatar o laço. Disse que conhecia aquele terreno por outros motivos, como sendo do arguido. O arguido acompanhou-os e tentou ir falar com a dona do cão, ainda no local e antes da retirada do cão. Disse que não chegou à fala com ela e em virtude disso cortaram o laço e o cão foi directo à propriedade da dona. Disse que não entrou no terreno do arguido porque na parte onde estava o laço era na estrema. O laço estava atado numa árvore junto à rede do terreno. Verificaram na continuidade da estrema outros dois laços. Disse que o arguido não se mostrou perplexo com o facto de encontrarem ali os laços. O cão estava debilitado, o que demonstrava que já ali teria passado pelo menos aquela noite. Disse que o terreno era utilizado para pastorícia mas naquele dia não viu lá quaisquer animais à solta. Disse que foi o arguido quem retirou o animal, e se não fosse ele a retirá-lo tinham que arranjar material para o fazer. Não era possível os laços terem sido colocados duas horas antes da chegada deles ao local, pois o animal tinha aspecto de já ali estar há algumas horas.

De facto, existem, na jurisprudência portuguesa, duas posições quanto à questão da valoração das chamadas “conversas informais”:

- para a primeira, é possível a valoração das declarações prestadas pelos arguidos perante os órgãos de polícia criminal, antes da sua constituição como arguidos, uma vez que, nesse momento, não há sequer inquérito, estando-se numa fase prévia ao mesmo – cfr., por todos, o Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Julho de 2008 (embora com um douto voto de vencido), o Acórdão da Relação de Guimarães de 25 de Fevereiro de 2009 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007, todos retirados de www.dgsi.pt, escrevendo-se neste último que “IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”;

- para a segunda, não é admissível, em todos os casos, a valoração de declarações prestadas pelo arguido perante órgãos de polícia criminal, nos termos dos Arts. 356º, n.º 7 e 357º do Código de Processo Penal, mesmo que antes da sua constituição como arguido ou do início do inquérito – cfr., por todos, o Acórdão da Relação de Évora de 2 de Dezembro de 2003, o Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2004, os Acórdãos da Relação do Porto de 7 de Março de 2007 e de 19 de Setembro de 2008 e o Acórdão da Relação de Guimarães de 4 de Junho de 2007, também retirados de www.dgsi.pt.

Diremos que perfilhamos o primeiro dos citados entendimentos, pois, consideramos que uma testemunha – órgão de policia criminal – que em audiência de julgamento depõe relatando o que lhe foi transmitido pelo arguido, não profere um depoimento indirecto, antes sendo algo que aquele ouviu directamente da boca do arguido, de viva voz. E, um tal depoimento constitui prova que é legalmente admissível, sendo valorada dentro da livre apreciação pelo Tribunal, nos termos do artigo 127º do CPP. Trata-se de um meio legal de obtenção de prova.

Acresce que o artigo 356º, n.º 7 do CPP refere que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, ou quaisquer outras pessoas que, a qualquer título, tenham participado na sua recolha, não podem ser inquiridas sobre o conteúdo daquelas. Porém, já assim não é quando os agentes da autoridade obtêm conhecimento dos factos por modo diferente das declarações do arguido reduzidas a auto. Neste sentido, veja-se entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/05/2012 Pº 12/11.9PECTB.C1 e Pº 118/11.4PBCTB.C2, ambos disponíveis, in, www.dgsi.pt.

Assim, entendemos ser de valorar o depoimento da testemunha D... que se deparou no posto da GNR com o arguido a pretender participar a situação que deu origem ao auto de notícia de fls. 4 a 6, o qual deu início aos presentes autos e foi elaborado em momento anterior à constituição do arguido nessa qualidade. Acresce que tal testemunha contactou directamente com o arguido e foram as declarações deste (antes de assumir o estatuto processual do arguido) que levaram à actuação processual do agente, designadamente de mandar uma patrulha ao local. Ora em causa não está, como já referimos qualquer depoimento indirecto, mas directo o agente ouviu as declarações directamente da boca do arguido as quais foram reduzidas ao auto de notícia, e as quais foram por si confirmadas em sede de audiência. Acresce que, tendo o arguido prestado declarações no final da audiência teve a oportunidade de exercer o contraditório relativamente a tal depoimento.

Entendemos igualmente ser de valorar o depoimento da testemunha E..., o qual não obstante ter procedido ao interrogatório do arguido em sede de inquérito não prestou depoimento sobre essa parte mas tão só sobre o que presenciou quando se deslocou ao local, designadamente a constatação no local dos laços na estrema da propriedade do arguido, o cão preso num dos laços e demais circunstâncias presenciadas no local.

O Tribunal teve ainda em consideração as declarações prestadas pela testemunha, F..., solteiro, estudante, residente em Tondela, o qual prestou depoimento de forma clara e isenta motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Disse que o cão tinha uma doença, que foi agravada com o acontecimento e teve que ser abatido. Disse que estava em Coimbra e que na altura os pais contaram-lhe que o cão foi apanhado no laço e que foi chamada na GNR. Disse que admite a data como possível. Disse que o cão era um boxer tinha uma doença Leishmaniose e teve que ser abatido. Os pais disseram-lhe que o cão já estava desaparecido há um dia.

B..., casado, reformado (foi emigrante trabalhava na metalúrgica), residente em Tondela, conhece o arguido há mais de 10 anos, prestou depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. A propriedade da Quintinha costuma estar vedada. Disse que essa propriedade tem um aviário, ovelhas à solta. Disse que o arguido trabalha num aviário e a mulher dele também.

C..., solteiro, vendedor de alimentos para animais, residente em Pedronhe, filho do arguido o qual apenas em parte logrou convencer o Tribunal, pois prestou depoimento de forma claramente comprometida com a versão do arguido, pelo que, só na parte em que o seu depoimento se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios logrou convencer o Tribunal. Disse que conhece a Quintinha que está vedada, numa parte com muro e rede e noutra parte tem rede. É uma quinta com aviários e tem algumas ovelhas e um cão. Disse que os pais vivem dos rendimentos do aviário. Disse que a quinta é vedada para evitar a entrada de pessoas e animais.

Ora, conjugados tais depoimentos com as regras da experiência diremos que, trabalhando o arguido como disse diariamente na Quinta onde disse ter o “”epicentro da sua vida” (embora em concreto tivesse colocado esse epicentro num outro ponto da Quinta que não a estrema onde foram encontrados os laços), não seria crível que se não tivesse sido ele a colocar os laços no local não se tivesse já apercebido dos mesmos.

Acresce que o argumento utilizado pelo arguido de que não teria sido ele pois as ovelhas e os outros animais da Quinta também ali podiam ser capturados, o certo é que, “o epicentro” estava situado noutro lado no tocante aos animais e, portanto certamente o arguido teria pugnado para que tais acidentes não ocorressem com os seus animais, pois dia em que o agente da GNR ( E...) ali se deslocou, não constatou a presença de ovelhas nem outros animais (que não o cão preso no laço), o que certamente não seria coincidência.

Quanto à situação pessoal e económica, do arguido o Tribunal considerou-se as declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelo mesmo, e ainda pelas testemunhas B... e C..., os quais, nos termos já expostos prestaram depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual lograram convencer o Tribunal.

O Tribunal teve ainda em consideração o Certificado de Registo Criminal do arguido junto a fls. 96, o auto de apreensão de fls. 15/16 e a reportagem fotográfica de fls. 18 a 23.

Diremos que a versão do arguido de que não pôs laços nenhuns, não logrou convencer o Tribunal. Tanto mais que se não tivesse sido o mesmo a colocar os laços, não se percebe porque o admitiria quando chegou à GNR a participar a ocorrência, nem se percebe como é que sendo ele o proprietário da quinta em cuja rede se mostravam colocados os laços e com os alegados riscos para as suas ovelhas e demais animais não se tenha preocupado em apurar quem o teria feito ou até que se tivesse mostrado surpreendido com toda essa situação. Pois, como bem referiu o agente E..., não houve da parte do arguido qualquer reacção de surpresa, pelo contrário, a reacção foi de total colaboração para remediar a situação.

Acresce que a testemunha C..., filho do arguido, não logrou convencer o Tribunal, na parte em que o seu depoimento não se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios. A este propósito salienta-se o facto de o mesmo dizer que nunca lá viu os laços, nem sabe que o arguido os lá tenha colocado, o que não significa que não estivessem lá (como efectivamente estavam) e que não tenha sido o arguido a colocá-los (como foi).

2.            A alegada existência de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º n.º 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal e de erro de julgamento perante a prova produzida, com pretensa violação do disposto nos artigos 127.º e 129.º, 356.º e 357.º do Código de Processo Penal.

2.1 Nos termos dos artigos 124.º e 125.º do Código de Processo Penal, constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, sendo admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente – como ocorre nos casos de prova vinculada – o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – artigo 127.º do Código de Processo Penal.

“Como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” – Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Almedina, 17.ª edição, página 354, em anotação ao artigo 127.º.

“O princípio da livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado. Ele não viola a CRP antes a concretiza (acórdão do TC n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão n.º 464/97): “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

O princípio tem, portanto, limites. A CRP e a lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Esses limites dizem respeito (…) ao grau de convicção requerido para a decisão, (…) à proibição de meios de prova, (…) à observância do princípio da presunção da inocência, (…) à observância do princípio in dubio pro reo” – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, páginas 329 e 330, em anotação ao mesmo artigo.

O limite normativo deste princípio (da livre apreciação da prova) consubstancia-se no princípio “in dubio pro reo”, que se identifica com a presunção de inocência do arguido a que alude o artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos.

“O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal (…). Trata-se da aplicação de uma regra de decisão (…). A aplicação deficiente desta regra, bem como a sua não aplicação são passíveis de controlo pelo STJ (…). Mas é importante que se note que este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido (…), pois o princípio in dubio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio in dubio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto” – autor e obra anteriormente citados, página 341, em anotação ao artigo 127.º.

É permitido o recurso das sentenças – artigo 399.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; nos termos do artigo 410.º do mesmo diploma legal, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1); e mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [n.º 2, alínea a)], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [n.º 2, alínea b)] e erro notório na apreciação da prova [n.º 2, alínea c)].

O recorrente suscita a existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.

Reportando-nos a estes vícios e no ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição, Editora Rei dos Livros, página 69 e seguintes), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.

Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»” – os autores reportam-se ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Janeiro de 1999, proferido no âmbito do processo n.º 1126/98.

O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se (autores e obra citados, página 74) em “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º (…)”.

Sendo um vício que se relaciona com a apreciação da prova, tem de traduzir-se em vício de raciocínio inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores, designadamente quando o tribunal dá como provado algo que manifestamente está errado, porque baseado em juízo ilógico ou contraditório, resultando o vício do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Não se confunde no entanto com a mera divergência de valoração feita pelo arguido ou por outro interveniente processual.

Quanto ao recurso relativo à matéria de facto (fora, portanto, dos vícios a que se reporta o aludido artigo 410.º, n.º 2) e desde que interposto nesses termos, nos casos em que a prova foi documentada, o Tribunal da Relação deve proceder à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e recorrido e de outras que julgue relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – artigo 412.º do Código de Processo Penal.

É pacífico que, em princípio, não se trata aqui de proceder a um novo julgamento, pelo tribunal superior e a partir da releitura da prova, nomeadamente, da generalidade dos depoimentos produzidos em audiência. Visa-se antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último, proceder à reponderação dos factos provados e não provados e da respectiva fundamentação, corrigindo-se no que for essencial e relevante os factos provados e não provados, colmatando-se erros de julgamento – que devem ser explicitamente indicados pelo recorrente, sem perder de vista as regras processuais de produção e valoração da prova.

Ao recorrente impõe-se então que observe as regras específicas enunciadas no artigo 412.º do Código de Processo Penal.

A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.

À luz do quadro legal que sumariamente se deixa traçado se apreciará a matéria sob recurso.

2.2 Feita a leitura da sentença recorrida e apreciada, em particular, a fundamentação da matéria de facto, não se vê que ocorram os pretendidos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, que se deixaram caracterizados e enquanto vícios que resultem do próprio texto da sentença. O que o recorrente verdadeiramente suscita é a existência de erro de julgamento e errada valoração da prova, com fundamento nas diferentes questões que invoca.

Alegando que se impunha que não fosse dado como provado o que consta nos pontos 1, 2 e parte final do ponto 4, começa por afirmar a existência de contradição entre os depoimentos das testemunhas D... e E..., ambos elementos da Guarda Nacional Republicana, pretendendo que o tribunal não podia valorar o depoimento da testemunha D... nos termos que resultam da sentença quando é certo que existe contradição entre os dois agentes, porquanto, pelo D... é referido ter o arguido admitido ser o autor da colocação dos laços na sua propriedade, enquanto que o seu colega E..., que foi ao local, refere que o arguido não assumiu tal autoria.

A leitura da fundamentação que se deixou transcrita evidencia que o tribunal recorrido considerou que os depoimentos das aludidas testemunhas foram determinantes para formar a sua convicção, particularmente na parte em que julgou que foi o arguido que colocou os dois laços de aço que foram detectados na base do ferro que suporta a rede que delimita a sua propriedade e os outros dois que foram encontrados no interior da propriedade, um montado estrategicamente com o arco firme em dois paus espetados e atado a uma nogueira e outro laço entre dois portões deixados entreabertos. A registar-se a alegada contradição nos depoimentos e na ausência de qualquer justificação em sede de fundamentação, fica abalada a validade probatória dos depoimentos das aludidas testemunhas.

A audição dos depoimentos revela no entanto que o recorrente não tem razão quando invoca a existência de contradição, dado que esta não se verifica.

A testemunha D... – comandante do posto territorial de Campo de Besteiros, da Guarda Nacional Republicana – relatou que o arguido se dirigiu ao referido posto, onde falou com o militar que desempenhava então o serviço de atendimento ao público, mostrando-se muito exaltado; apercebendo-se dessa exaltação, a testemunha deslocou-se até junto deles, tentando aperceber-se do que se estava a passar; foi aí que o arguido lhe disse que tinha metido uns laços junto da vedação da propriedade dele e que estaria lá um cão, preso nos laços; confirma que o arguido aí se deslocou por iniciativa própria, sem que tivesse sido convocado por qualquer motivo, afirmando que estaria um cão preso num laço colocado por ele e que o mesmo suscitou a deslocação da GNR ao local, dando a entender que havia uma quezília com o dono do cão e que não seria a primeira vez que cães daquele proprietário tinham entrado na propriedade do arguido; esclareceu ainda que foi o cabo E... quem esteve no local (cf. momento 01m:03s a 04m:46s do primeiro dos dois registos da gravação áudio, entre as 14:50:25 e as 14:55:36).

A testemunha E... não contraria este relato, na certeza de que a transcrição feita pelo recorrente na oitava página do respectivo requerimento de motivação do recurso falha por omissão, na medida em que omite uma afirmação importante. Na verdade, esta testemunha esclareceu que, estando de patrulha, foi nomeado pelo comandante do posto para ir ao local, na sequência de comunicação do arguido, em que este dava conta de que tinha metido uns laços num terreno de propriedade sua e que tinha lá ficado um cão preso; deslocando-se ao terreno, lá viu um cão algo debilitado por estar no laço, indiciando estar assim há algumas horas; feita uma ronda, constatou a existência de mais dois ou três laços, sendo um deles dentro da propriedade do arguido (cf. momento 01m:55s a 02m:54s do primeiro dos dois registos da gravação áudio, entre as 15:24:14 e as 15:37:28).

Relata ainda esta testemunha (cf. momento 02m:56s a 03m:33s do mesmo registo):

“Questionei-o [ao arguido] quem tinha sido que montou os laços e na altura disse que não sabia, quando no posto confirmou que tinha sido ele a montá-los. Questionei-o quem é que tinha entrado na propriedade dele e montado o laço e deixado as portas entreabertas com o laço propositadamente entre as duas portas e disse que também não sabia, mas que sabia que o cão que era de um vizinho. E assim que a gente lá chegou prontamente ele veio logo com um alicate ou com um ponteiro e um martelo para cortar o laço”.

É evidente que os depoimentos não são contraditórios. Diversamente, a testemunha E... confirma inteiramente o relato da testemunha D..., quanto à afirmação feita pelo arguido no posto da Guarda Nacional Republicana, assumindo aí, por iniciativa própria, ter sido ele quem colocou os laços que vieram a ser observados no local; o que a testemunha também relata – e salienta de forma expressiva no respectivo depoimento – é a contradição do próprio arguido, quando este no local dá o dito por não dito, dizendo não saber quem colocara os laços quando no posto e sem ninguém o questionar afirmara ter sido ele a fazê-lo.

Assim, não procede como fundamento para questionar a credibilidade dos depoimentos das testemunhas D... e E... a alegada contradição dos mesmos – que, manifestamente, não ocorre.

2.3 O recorrente questiona também a valoração do relato da testemunha D..., alegando violação do disposto nos artigos 356.º, 357.º e 129.º do Código de Processo Penal: no caso das duas primeiras normas, pela admissão de prova não permitida, enquanto configura valoração de declarações prestadas pelo arguido perante órgãos de polícia criminal; relativamente à última das normas citadas, enquanto se admitiu prova por depoimento indirecto.

No capítulo da produção de prova, o artigo 356.º do Código de Processo Penal estabelece as regras referentes à leitura permitida de autos e declarações, em audiência de julgamento, e o artigo 357.º, de forma mais específica, a leitura permitida de declarações do arguido.

Nos termos do artigo 357.º, na redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, e que aqui releva, a leitura em audiência de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida a sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.

Remetendo o n.º 2 do artigo 357.º para o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo 356.º, releva aqui – como consequência do direito ao silêncio do arguido – que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas; a visualização ou a audição de gravações de actos processuais só é permitida quando o for a leitura do respectivo auto nos termos dos números anteriores; a permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.

No capítulo da prova testemunhal, o artigo 129.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “depoimento indirecto”, estabelece que se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas; esta disposição aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha, não podendo, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

Reportando-nos ao disposto nos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, importa começar por salientar que as aludidas normas não têm aqui aplicação nem ocorre violação das mesmas, na medida em que não estamos perante declarações que tenham sido prestadas pelo arguido no âmbito deste processo ou de qualquer outro. Não altera esta conclusão o facto de estarem na origem do presente processo, o qual, na sequência de averiguações feitas no local pelas autoridades policiais, veio a ser instaurado, com a ulterior constituição de arguido, em 6 de Janeiro de 2012, nos termos documentados a fls. 30.

Por outro lado, também não estamos perante o que podemos denominar de “conversas informais” entre os agentes policiais e o arguido, que tenham ocorrido no decurso de um inquérito, como forma de contornar o silêncio do arguido.

Acresce, finalmente, que o arguido teve em audiência de julgamento o conhecimento do relato em causa e a oportunidade de o contrariar.

Tendo o arguido relatado espontaneamente à testemunha, antes da existência de qualquer processo e, consequentemente, antes da sua constituição na dita qualidade, terem sido por si colocados os laços, a valoração do depoimento da referida testemunha, ao relatar em audiência o que ouviu o arguido afirmar, não viola o disposto nos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal – cf., entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 9 de Maio de 2012, no âmbito do processo 118/11.4PBCTB.C2, disponível na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt/).

Também não se verifica a pretendida violação do artigo 129.º do Código de Processo Penal. Na verdade, as declarações prestadas pela testemunha não configuram algo que ela tenha ouvido dizer de terceiros, em relação ao arguido, e constituam nessa medida depoimento indirecto, mas antes algo que a própria testemunha presenciou, as afirmações proferidas pelo arguido, nas circunstâncias antes descritas.

Assim, não ocorrendo violação do disposto nos artigos 129.º, 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, improcede nesta parte a argumentação do recorrente.

2.4 O recorrente pretende que, perante a conclusão que antecede, sempre o depoimento do agente D..., ao relatar factos que diz ter ouvido do arguido, deveria ser analisado com as demais provas, designadamente com a contradição manifestada pelo seu colega E..., que não apenas e só o depoimento daquele agente.

A leitura atenta da fundamentação evidencia que, se é certo que o relato da testemunha em causa foi determinante para formar a convicção do tribunal, é igualmente seguro que esta assentou também no confronto com os restantes meios de prova e a sua apreciação à luz das regras da experiência.

Relativamente ao confronto com o depoimento da testemunha E..., reitera-se o que antes se deixou enunciado quanto à inexistência da alegada contradição; se é certo que o agente E... refere que, já no local e ao questionar o arguido quanto à autoria dos laços, este lhe disse que não sabia, é igualmente seguro que afirma com igual veemência que no posto dissera ter sido ele a montá-los, o que contraria inequivocamente a alegação do recorrente.

Os fundamentos de convicção do tribunal também não são alterados pelo facto da testemunha ter admitido que os animais do arguido também podiam cair nos laços em questão ou pelo facto do arguido, quando se deslocou ao terreno com esta testemunha, ter procedido à libertação do animal que aí estava preso, com ferramenta própria para cortar o laço – de onde se pode extrair que podia ter procedido logo desse modo, sem recorrer às autoridades policiais.

O relato da testemunha D... salienta a existência de quezília com o dono do cão que ficou preso no laço e o facto de não ser a primeira vez que cães daquele proprietário tinham ido à sua propriedade, e a necessidade que em face disso terá sentido de se registar a ocorrência. E se não se vê a existência de qualquer razão para pôr em causa a credibilidade do relato das testemunhas D... e E... (não tendo essa virtualidade a negação do próprio arguido), também não se regista fundamento para concluir que o arguido, ao afirmar a autoria da instalação dos laços, estivesse a mentir, a assumir algo que realmente não tinha feito.

Como se salienta na sentença recorrida e foi afirmado pela testemunha E... (cf., sensivelmente, momento 08m:20s do respectivo depoimento), perante a constatação feita no local, pela testemunha, quanto à existência de outros laços, incluindo dois no interior da propriedade, o arguido não teve qualquer perplexidade. Não se vê que este facto e a conclusão que dele se extrai na sentença sejam prejudicados pelo estado de exaltação do arguido no posto, mencionado pela testemunha D..., salientando-se que não resulta do depoimento da mesma que tal estado se tenha devido a qualquer surpresa resultante da constatação do laço, da sua colocação naquele local.

Na sentença recorrida não se acolhe a versão dos factos relatada pelo arguido, ao negar ter sido ele a colocar os laços em questão, pese embora ter sido ele quem veio a suscitar a intervenção das autoridades policiais e quem, na presença destas e no local, veio a libertar o animal que aí ficou preso. Pelas razões que se deixaram enunciadas nos pontos antecedentes não se vê que haja fundamento para contrariar a convicção aí afirmada quanto à efectiva intervenção do arguido e a autoria de tal acto.

Conclui-se então que a sentença recorrida não viola o disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal, nem padece dos vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

Ainda que mencionando inicialmente aos pontos 1.º a parte do 4.º e 6.º a 8.º, o recorrente restringe a explicitação da concreta prova – testemunhal – que, na sua leitura, impõe decisão diversa aos pontos 1, 2 e parte final do 4 da matéria de facto provada, pelo que a esses pontos se restringe a apreciação deste tribunal.

Pelas razões sobreditas, não se regista a existência de erro, não havendo fundamento para alterar a matéria de facto nos termos pretendidos, pelo que nesta parte improcede o recurso.

3. Os pressupostos do crime imputado ao arguido e a alegada nulidade decorrente de violação do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

O arguido foi acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, com referência, como normas incriminadoras, aos artigos 6.º, n.º 1, alínea c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, alterada pelo Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto e pelo Decreto-lei n.º 2/2011, de 6 de Janeiro.

A primeira norma, sob a epígrafe “preservação da fauna e das espécies cinegéticas”, estabelece, na parte que aqui interessa, que, tendo em vista a conservação da fauna e, em especial, das espécies cinegéticas, é proibido, nomeadamente, caçar espécies cinegéticas que não constem das listas de espécies que podem ser objecto de caça ou fora dos respectivos períodos de caça, das jornadas de caça e em dias em que a caça não seja permitida ou por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados.

Quanto a processos e meios de caça, o artigo 26.º, n.º 1, estabelece que a caça só pode ser exercida pelos processos e meios permitidos, sancionando o artigo 30.º, n.º 1, a infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.

Está em causa o facto do arguido ter colocado dois laços (armadilhas) em aço presos na base do ferro que suporta a rede que delimita a sua propriedade e outros dois no interior desta, em locais estratégicos com o intuito de apanhar os animais que entrassem na sua propriedade e “espantavam” as suas ovelhas que se encontravam a pastar, visando caçar espécies cinegéticas, agindo o arguido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo não lhe ser permitido, ainda assim sem se inibir de o fazer, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; no dia 3 de Novembro de 2011, pelas 10 horas, o arguido dirigiu-se à referida propriedade e encontrou um canídeo preso num dos laços em corda que tinha colocado junto à vedação em rede.

Na sentença recorrida julgou-se provada a prática do aludido crime, reportando-se em sede de fundamentação, além das aludidas normas, ao disposto na alínea c) do artigo 2.º da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, nos termos da qual se estabelece que, para efeitos deste diploma, considera-se exercício da caça ou acto venatório todos os actos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição.

Resulta desta definição que o exercício da caça não se restringe ao efectivo abate ou captura de espécies cinegéticas nem o exige, materializando-se antes em diferentes actos que, tendo esse fim último, não chegam à sua concretização, onde se inclui a instalação de armadilhas.

No caso dos autos, regista-se que o arguido colocou laços (armadilhas) em aço em diferentes locais da respectiva propriedade, com o intuito de apanhar os animais que entrassem na sua propriedade e “espantavam” as suas ovelhas que se encontravam a pastar, visando caçar espécies cinegéticas, agindo o arguido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Pondera-se na sentença, em sede de fundamentação:

«Dúvidas não existem de que o bem jurídico protegido pela incriminação é de natureza pública, sendo, em sentido amplo, o ambiente, o meio ambiente, numa das suas particulares vertentes: a preservação da fauna, a conservação da natureza, a diversidade biológica e a gestão sustentada dos recursos.

No caso o arguido exerceu um acto venatório nos termos do artigo 2º al. c) da Lei de Bases, pois ao colocar os laços agiu com o intuito de capturar, não sendo necessário que o tivesse feito para preencher o ilícito em causa, sendo que, o facto de ter capturado um cão (espécie não cinegética) é irrelevante, pois, atento o meio e processo utilizado o mesmo era idóneo à captura de espécies cinegéticas e como tal os elementos do tipo mostram-se preenchidos.

Diremos ainda que o arguido ao colocar os laços para capturar, não observou os meios e processos permitidos para tal captura, os quais se encontram previstos nos artigos 78 e seguintes do Regulamento da Caça, previsto pelo DL 202/2004 de 18 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo DL 2/2011 de 06/01.

No caso, dúvidas não restam de que o arguido ao colocar os laços na sua propriedade com o intuito de capturar espécies cinegéticas, bem sabendo que tal não era permitido incorreu na prática do ilícito que lhe vinha imputado tendo como tal que ser penalizado.»

Pretende o recorrente que, vindo acusado por ter pretensamente praticado factos que se integravam no estatuído nos artigos 6.º, n.º 1, alínea c), 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Lei 173/99 de 21/09, alterado pelo Decreto-lei n.º 202/2004, de 18/08 e Decreto-lei n.º 2/2011, de 06/01, o tribunal recorrido, ao condenar em preceitos legais que vão além dos constantes da acusação, pronunciou-se por factos que importam uma alteração da qualificação jurídica dos factos, tendo proferido decisão sem dar cumprimento ao estatuído no artigo 358.º, n.º 3 e n.º 1 do Código de Processo Penal, sendo por isso tal decisão nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal.

Não assiste razão ao recorrente.

Tendo o processo penal uma estrutura acusatória, como afirma o artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, a acusação tem especial relevância ao definir o objecto do processo, narrando os factos imputados ao arguido e as disposições legais que lhes são aplicáveis [artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 285.º, n.º 3, do Código de Processo Penal], devendo manter-se, em princípio, essa identidade até à prolação da sentença.

Sem prejuízo desta regra, fazendo apelo a razões de economia processual e no interesse do próprio arguido, a lei – artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal – prevê e disciplina os casos em que se verifique alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e aqueles em que ocorra alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (n.º 1); esta regra ressalva-se no caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa, mas é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (n.º 2 e n.º 3).

A alteração da qualificação jurídica dos factos, com referência ao artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não se confunde com a alteração substancial ou não dos factos.

É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a comunicação ao arguido a que alude o artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar.

Reportando-nos ao caso dos autos, é certo que na sentença recorrida se faz referência a normas que não constam da acusação, especificamente, os artigos 2.º, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, e 78.º e seguintes do Regulamento da Caça, previsto pelo Decreto-lei n.º 202/2004 de 18 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 2/2011 de 6 de Janeiro, nos termos que antes se deixaram transcritos.

Contudo, não estamos perante alteração da matéria de facto (os factos considerados correspondem ao teor da acusação) nem perante diferente qualificação jurídica (o crime cuja prática é afirmada na sentença recorrida corresponde à imputação que era feita na acusação). A referência feita pelo tribunal recorrido às aludidas normas não se traduz na consideração de um diferente crime, mas apenas na explicitação de conceitos que, tendo relevância na definição do comportamento do arguido, em nada alteram a qualificação dos factos; também não se traduz no conhecimento, por parte do tribunal recorrido, de questões de que não pudesse tomar conhecimento.

Por isso, também aqui improcede o recurso.

4.            A tentativa e a desistência relevante.

Pretende o recorrente que, para que se verificasse a consumação do crime pelo qual vem condenado, tinha primeiro que se provar que foi o arguido quem colocou os laços e ter este caçado uma espécie cinegética, já que este tipo não se basta com a mera intenção; se andar um homem com uma arma numa zona onde não seja permitida a caça, até à prática dos actos de execução não é possível sequer falar-se em tentativa porque o artigo 6.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, que nos dá o tipo objectivo de crime, exige a caça efectiva.

Pretende ainda que, de qualquer modo, tendo sido o arguido a chamar a GNR para ir ao local, por forma a retirar o animal, e aí chegados foi o mesmo quem o libertou, verifica-se a desistência relevante da tentativa nos termos do artigo 24.º do Código Penal; a tentativa de cometimento de um crime, subsumível à previsão dos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, pode, não obstante, deixar de ser punível, bastando que o agente abandone voluntária e espontaneamente a execução do crime, isto é, omita a prática de mais actos de execução (desistência voluntária), independentemente das razões (nobres ou até ilegais) que o levaram a desistir.

Nos termos do artigo 22.º do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, entendendo-se como tal os actos que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os que forem idóneos a produzir o resultado típico ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies anteriormente indicadas.

A tentativa deixa de ser punível quanto o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime (artigo 24.º, n.º 1, do Código Penal).

O artigo 6.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, como antes se disse, ao estabelecer proibições, não se restringe ao efectivo abate de espécies cinegéticas, incluindo também, naquilo que aqui interessa, o exercício de caça fora dos respectivos períodos ou por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados.

A utilização de processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados configura por si só a prática consumada do crime enunciado no artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, sem que se exija a efectiva captura ou abate de qualquer espécie cinegética. Obviamente que a captura ou não se qualquer espécie não é facto inócuo, não condicionando no entanto a configuração do crime.

É justamente isso que está em causa nos presentes autos (utilização de processos e meios não autorizados), seja em sede de acusação, seja na sentença entretanto proferida e objecto do recurso.

Por isso, independentemente do facto de não se ter apurado quais as concretas espécies animais que o arguido pretendia atingir, os meios utilizados são por si só suficientes para configurar o ilícito.

Mostrando-se consumada a prática do crime, não pode falar-se em desistência relevante da tentativa, em prejuízo da pretensão do arguido.

Conclui-se que improcede o recurso interposto pelo arguido.

III)

Decisão:

Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC – artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

*

(Joaquim Correia Pinto - Relator)

(Fernanda Ventura)